CONTRATO-PROMESSA
QUINHÃO
HERANÇA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO
Sumário

Não há incumprimento definitivo imputável aos promitentes alienantes do contrato promessa de alienação de um quinhão hereditário quando a celebração do contrato prometido se torna impossível por homologação da partilha em processo de inventário requerido por outro interessado na mesma herança.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM OS JUÍZES DESEMBARGADORES DA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO
Nº do processo: Recurso de Apelação na Acção Sumária nº ...
a) M..., casada, residente na Rua (…) em Porto Salvo intentou contra D..., divorciado, por si e na qualidade de único herdeiro de F... e contra B..., divorciada, residentes na Rua (…) no Barreiro visando, na procedência da acção, a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 4.730,82 acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.
Alega, em síntese, que:
Autora e réus eram herdeiros, por óbito de seus pais, da respectiva herança constituída por um único imóvel sito na freguesia e concelho de Idanha-a-Nova e que celebraram, em 7 de Dezembro de 2000, um contrato promessa de compra e venda do quinhão hereditário através do qual os réus prometeram vender-lhe o seu quinhão hereditário pelo preço de 150.000$00, que logo receberam. Através do referido contrato foi conferido à autora o direito a tomar posse imediata do imóvel a que o quinhão hereditário se referia.
No âmbito do inventário entretanto requerido por um dos interessados foi o imóvel adjudicado por E..., recebendo todos os demais interessados as respectivas tornas, cabendo aos réus receber o valor total de € 4.730,82.
Os réus recusaram-se a entregar tal quantia à autora, pelo que, devendo o contrato promessa ser tido por definitivamente incumprido, estão os réus obrigados a restituir tal quantia à autora.
b) Ambos os réus contestaram pedindo a improcedência da acção.
A ré B... (…) contestou invocando ser parte ilegítima dado o seu regime de bens com o herdeiro D..., com quem era casada e, em sede de impugnação, muito sucintamente, não ter recebido qualquer quantia da autora nem ter sido por ela interpelada para pagar.
Também o réu D... apresentou contestação invocando a nulidade do contrato promessa celebrado por não estar assinado pela autora, que tal contrato não se encontra datado e que não responde pelas dívidas de sua mãe já que não recebeu a quantia aludida pela autora como contrapartida da celebração do contrato promessa. Mais alega que não celebrou o contrato em causa, o qual foi forjado pela autora nem recebeu a quantia aludida.
c) Respondeu a autora pedindo a improcedência das excepções invocadas.
d) Foi então proferida decisão, ao abrigo do disposto no artigo 510º nº 1 alínea b) do Código de Processo Civil que, julgando a acção improcedente, absolveu os réus do pedido.
e) Inconformada apelou a autora, tendo o recurso sido admitido como de apelação com efeito devolutivo.
São do seguinte teor as conclusões das respectivas alegações:
“1. A presente acção tem por base o incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda do quinhão hereditário correspondente a um sétimo da herança deixado por G... e mulher H..., contrato junto à petição inicial;
2. A autora, ora apelante, tornou imediatamente posse do objecto sobre que incidia a herança constituída por um único bem imóvel, construído antes de 1951 (embora não conste do contrato, é do conhecimento das partes);
3. A escritura de compra e venda, cujo prazo não fora fixado no contrato, não chegou a realizar-se por um dos herdeiros, que não prometeu vender, ter requerido inventário;
4. Nesse inventário, os quinhões hereditários, perfeitamente definidos, foram distribuídos por igual, entregando, porém, os promitentes vendedores (como os réus na acção, ora apelados) os respectivos montantes dos quinhões à Autora, ora apelante e, no contrato, promitente compradora, com excepção dos aqui réus;
5. A promitente vendedora confessou a existência do contrato que se encontra junto aos autos e o recebimento do preço;
6. A, aliás douta, sentença de que se recorre considerou que o contrato é nulo com o fundamento na primeira parte do nº 3 do artigo 410º do Código Civil;
7. Porém, não transcreveu a parte final do mesmo artigo 410º nº 3, que vem transcrito acima e aqui não se repete mas se dá por reproduzido para todos os legais efeitos;
8. Desta sorte, o contrato-promessa dado à sindicância desse Tribunal da Relação, é válido até por versar sobre uma parte ideal de um bem que faz parte de um bem na sua essência abstracto, até à sua concretização na partilha, como se refere claramente nos autos e consta da certidão da mesma partilha junto aos autos;
9. Nessa partilha, apenas licitaram esse bem único, o marido da Autora acompanhado pelo mandatário da mulher herdeira e o requerente do inventário e daí ter o bem adquirido o valor que atingiu;
10. Ora, nos termos do n° 3 do artigo 410º (in fine) e n° 2 do artigo 442º, ambos do Código Civil, a ser considerado que o douto julgador possui todos os elementos, a acção devia ser julgada procedente e provada e os réus condenados no pedido,
Porém, se assim se não entender, deve a sentença ser revogada e a acção prosseguir com a prolação do despacho saneador, matéria assente e base instrutória;
11. A sentença de que se recorre violou os artigos 442º n° 2 e 410º nº 3 (in fine) ambos do Código Civil e artigos 510º e 511º do Código de Processo Civil”.
f) A ré B... apresentou contra alegações em que defende a manutenção da decisão recorrida.
g) Colhidos os vistos legais dos Exmº Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Como decorre do relatório, a decisão impugnada foi proferida antes da fase de instrução, tendo sido considerados relevantes os factos seguintes:
1. No Tribunal Judicial de Idanha a Nova, sob o nº ..., correu seus termos um processo de inventário por óbito de G... e mulher H..., no âmbito do qual foram interessados: E..., C..., I..., M..., Maria C..., Maria S.., F... e D...;
2. Os autos de inventário foram requeridos por E...;
3. Na conferência de interessados foi licitado o bem imóvel identificado nos presentes autos pelo interessado E... pelo preço de € 32.222,00;
4. Tendo licitado e sido adjudicados ao interessado E... bens no valor total de € 33.115,75 e sendo o seu quinhão de apenas € 4.730,82, elaborou-se mapa informativo segundo o qual o interessado E... tinha de dar tornas designadamente a D... no valor de € 1.710,01 e a F... no valor de € 3.020,82, totalizando € 4.730,83.
5. A partilha foi homologada por sentença proferida em 26 de Junho de 2006.
Importa ainda considerar os seguintes factos controvertidos:
6. Segundo alegação da autora (…) celebrou com D..., então casado com B..., e com F... um contrato intitulado de “Contrato Promessa de Compra e Venda” de acordo com o qual, reconhecendo-se mutuamente os outorgantes como herdeiros, entre outros, de G... e H..., os segundos prometeram vender à primeira o seu quinhão hereditário na referida herança, quinhão esse correspondente a um sétimo da herança, pelo preço de 150.000$00 (cento e cinquenta mil escudos) que os segundos declararam receber e de que deram quitação.
7. Segundo alegação da autora nesse contrato promessa foi concedido à autora o direito a tomar posse de imediato da casa que constituía o único bem da herança, o que ela fez apesar de não ter sido celebrada de imediato a escritura do contrato prometido.
8. Segundo alegação da autora os réus foram interpelados para pagar a quantia correspondente ao valor das tornas que tinham recebido.
B) O DIREITO
Importa agora apreciar as questões a decidir tendo em conta o teor das conclusões das alegações de recurso apresentadas pela apelante que, como é sabido, e ressalvadas as questões de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente, definem o respectivo objecto.
A questão colocada neste recurso é a de saber se, com os elementos de facto que os autos fornecem nesta fase processual, podia ser conhecido e julgado improcedente o pedido formulado pela autora.
O pedido, recorde-se, consiste na condenação dos réus a pagar à autora o valor por eles recebido a título de tornas no âmbito do inventário aberto por óbito de G... e H..., valor coincidente com o valor actualizado do imóvel único bem da herança.
A causa de pedir traduz-se no incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda do quinhão hereditário dos réus nessa herança de G... e H..., por alegada culpa dos réus.
Na apreciação das questões colocadas partir-se-á sempre da versão dos factos trazida aos autos pela autora já que a circunstância de alguns deles serem controvertidos apenas será relevante se se concluir que os autos devem prosseguir para a fase de instrução e julgamento.
1. No documento cuja cópia se mostra a fls 14, abstraindo, como se alertou já, da circunstância de ter ou não sido assinado pelo réu, está contida uma promessa, juridicamente vinculante, de cedência ou alienação à autora de direitos de que os réus seriam titulares sobre uma quota ideal de um património indiviso, a herança de G... e H....
Através dele os subscritores vincularam-se à celebração de um negócio adequado à transmissão dos direitos relativos à herança que alegadamente seria constituída por um único imóvel de que a autora teria tomado posse.
Estamos em presença de um contrato promessa de compra e venda ou de cessão de um quinhão hereditário, isto é, de promessa de cedência ou alienação do direito a haver para si a quota ideal de um património comum e indiviso que é a herança aberta por óbito de G... e H....
Tal promessa por parte dos alienantes é legalmente admissível, e o contrato dos autos é, formal e substancialmente válido (artigos 2124º e 2126º do Código Civil).
Como bem se decidiu na douta decisão impugnada, não é aplicável ao contrato dos autos o regime específico do contrato promessa de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele previsto no artigo 410º nº 3 do Código Civil, não colhendo na situação dos autos a razão de ser da parte final dessa norma.
Abre-se aqui um parêntesis para salientar que, como resulta de uma leitura atenta da decisão em impugnada e contrariamente ao alegado pela apelante, nela não se declarou nulo o contrato promessa celebrado por força do disposto no artigo 410º nº 3, primeira parte, do Código Civil.
Considerando sempre o objecto do contrato promessa, apesar de a autora alegar ter tomado posse do imóvel que seria o único bem da herança, não pode ter-se como adequada a afirmação de que houve tradição da coisa (imóvel) a que se refere o contrato prometido para efeito do disposto no artigo 442º nº 2 do Código Civil.
Na verdade o contrato promessa não versa sobre quaisquer bens determinados – portanto sobre o imóvel em causa – mas sim sobre o direito a uma quota ideal de um património indiviso com vários titulares, em si mesmo insusceptível de tradição. Nesse contexto a simples autorização dos réus a que a autora usufrua o património comum não é relevante para se poder concluir que com ela a autora ficou em condições de poder praticar todos os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade sobre o alegado único bem da herança.
2. Em qualquer caso, as considerações feitas na parte final do número anterior só seriam impeditivas da procedência do pedido se tivesse havido incumprimento definitivo do contrato promessa imputável aos réus. O que não sucede.
Na verdade o artigo 442º nº 2 do Código Civil faz depender o direito à indemnização correspondente ao dobro do sinal entregue ou, no caso de tradição da coisa objecto do contrato prometido, o seu valor determinado objectivamente à data do não cumprimento, da circunstância de haver incumprimento definitivo imputável à parte que recebeu o sinal.
Admitindo que as partes quiseram atribuir ao valor alegadamente entregue aos réus o carácter de sinal, haveria então que concluir-se que o contrato prometido não se celebrou por causa imputável aos réus.
Recorde-se que o contrato promessa não está datado, não foi fixado prazo para cumprimento (celebração do contrato prometido) nem foi feita qualquer interpelação admonitória tendo em vista o cumprimento.
Recorde-se ainda que, como se salienta nas conclusões das doutas alegações, a escritura relativa ao contrato prometido “não chegou a realizar-se por um dos herdeiros, que não prometeu vender, ter requerido inventário”.
3. Seguindo o ensinamento do Prof. Gravato Morais, (“Contrato promessa em Geral e Contratos Promessa em especial” ed. Almedina a página 160 e seguintes) são causas de incumprimento definitivo do contrato promessa, a impossibilidade de realização da prestação que seja imputável ao devedor, nos termos do artigo 801º nº 1 do Código Civil, a perda objectiva de interesse do credor na realização da prestação, nos termos do artigo 808º nº 1 do Código Civil, o decurso do prazo fixado em interpelação admonitória em caso de mora e a declaração negocial inequívoca de não cumprimento do contrato.
No caso dos autos o que está em causa é o eventual incumprimento definitivo do contrato promessa por impossibilidade de realização da prestação imputável aos réus.
Nos termos do artigo 801º nº 1 do Código Civil, “tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação”.
Ou seja, a equiparação entre a impossibilidade de realização da prestação pelo devedor e qualquer outra situação de incumprimento depende sempre da imputabilidade ao devedor da responsabilidade pela ocorrência da situação de facto geradora dessa impossibilidade.
Ora a autora explica bem a causa da impossibilidade de realização da prestação a que os réus se vincularam: o contrato prometido não foi realizado, tendo-se tornado impossível a cedência dos quinhões, porque um dos outros interessados na herança de G... e H... requereu inventário judicial e no âmbito do respectivo processo um dos interessados adjudicou os bens da herança recebendo ou demais as tornas a que tinham direito.
Não decorre daqui indiciada qualquer conduta imputável aos réus que seja causa da impossibilidade de realização da prestação a que os réus se vincularam (a de cedência do respectivo quinhão hereditário na herança de G... e H...).
Tratou-se do exercício, por terceiro, de direitos que lhe foram reconhecidos como interessados na herança em causa e a que os réus são alheios e que teve como consequência, com a homologação da partilha, a extinção de tal património autónomo e comum.
Nenhuma culpa pode ser assacada aos réus nesse evento gerador da impossibilidade da prestação.
4. A autora situa, porém, o incumprimento do contrato promessa por parte dos réus num outro momento que não na impossibilidade da celebração do contrato prometido por extinção do património comum em relação ao qual os réus prometeram ceder a parte de que eram titulares.
Na verdade, alega a autora que os réus incumpriram o contrato por se terem recusado a entregar a quantia que receberam a título de tornas no inventário, fazendo coincidir a prestação a que os réus estavam obrigados com a entrega do valor das tornas uma vez que – será esse o sentido da sua argumentação – a prestação originária se tinha tornado impossível de realizar.
A lei e o direito não acolhem tal entendimento.
A recusa do pagamento da indemnização correspondente ao valor actualizado da coisa não constitui incumprimento do contrato mas sim recusa de aceitação das consequências do incumprimento culposo.
Na verdade, aquilo que as partes acordaram foi celebrar um contrato através do qual os réus cederiam o direito que tinham em relação à herança de G... e H.... Nada foi convencionado para o caso de a prestação se tornar objectivamente impossível.
Sempre deverá dizer-se, no entanto, que à autora poderá assistir, segundo as regras gerais do direito, aquilo que nesta acção não pede – o direito a haver, em singelo, aquilo que entregou aos réus como antecipação de cumprimento da sua prestação ou sinal.
5. Em conclusão, bem andou a douta decisão impugnada ao julgar improcedente, com base nos elementos que os autos fornecem nesta fase processual, o pedido formulado pela autora.
Improcedendo as conclusões das alegações da apelação deve tal decisão ser confirmada.
III – DECISÃO
Pelo exposto acordam em não conceder provimento à apelação e em confirmar a douta decisão impugnada.
Custas pela apelante.
Lisboa, 13 de Julho de 2010
Manuel José Aguiar Pereira
José da Ascensão Nunes Lopes
Gilberto Martinho dos Santos Jorge