CESSÃO DE EXPLORAÇÃO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DENÚNCIA
PROPOSTA NEGOCIAL
REVOGAÇÃO
RENOVAÇÃO
Sumário

I – Não vale como denúncia, para o fim do prazo, de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, convencionalmente sujeito a renovação automática, a carta, enviada pelo cessionário ao cedente, onde aquele declare a sua intenção de pôr termo ao contrato e, ao mesmo tempo, proponha fazer a este a entrega do estabelecimento, em data a combinar;
II – A declaração negocial, assim produzida, tem antes o valor de proposta contratual de revogação desse mesmo contrato, sujeita portanto, para produzir o pretendido efeito extintivo, à aceitação do seu destinatário;
III – Ao não haver aceitação, e nada mais se provando, tem de se ter o contrato por automáticamente renovado, no fim do prazo, e portanto perfeitamente em vigor, produzindo os seus efeitos até que, por outra causa, se deva considerar findo.
(sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1.
1.1. P propôs acção declarativa contra S,Ld.ª e M pedindo () a anulação do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, que celebrou com a primeira Ré, com fundamento no incumprimento contratual, e em consequência seja ela condenada a restituir-lhe 2.500 €, que lhe entregara como garantia do valor dos utensílios do estabelecimento, com juros desde a citação, ou então () a anulação do dito contrato, com fundamento em erro, acrescida da sobredita condenação, e ainda () a condenação da Ré a pagar-lhe 1.000 €, a título de indemnização, por culpa na formação do contrato, e pelos danos que culposamente lhe foram causados.
Alega, em síntese, a celebração do contrato, em 3 de Dezembro de 2003, subscrito pela 2ª Ré em representação da primeira, e a sua duração entre 8 de Dezembro de 2003 e 31 de Dezembro de 2004; o valor mensal estipulado de 500 €, mais IVA, e a entrega a título de garantia, pelo valor dos utensílios do estabelecimento, de 2.500 €. Acontece que uma boa parte desses utensílios, integrantes do estabelecimento cedido, se não encontravam em bom estado de utilização; tendo a Ré, passado tempo, procedido à reparação de alguns, mas apenas parcial. A isto acresceu não dispor o estabelecimento das licenças administrativas indispensáveis ao seu funcionamento, o que o Autor desconhecia e a Ré cedente recusou regularizar. Em suma, houve incumprimento do contrato, que levou o Autor a propor à Ré a respectiva anulação, mas esta rejeitou. O incumprimento definitivo faculta a resolução do contrato; sem prejuízo de este ser anulável por erro sobre o objecto.

1.2. As Rés contestaram a acção, pedindo a respectiva improcedência, e deduziram reconvenção, pedindo seja declarada a cessação do contrato em causa por resolução, ordenada a desocupação e restituição do estabelecimento à primeira Ré e, ainda, a condenação do Autor no pagamento das rendas, não pagas, mais IVA, no total de 8.806 €, bem como na importância indemnizatória de 2.000 €.
Dizem, em síntese, ser do conhecimento do Autor, aquando das negociações preliminares, não estar a loja em estado novo; mas que, mesmo assim, assentiram em providenciar reparações, para satisfação de todas as exigências daquele; mais ainda, que a Ré cedente dispôs sempre das licenças necessárias, enquanto explorou o estabelecimento. Por outro lado, não viram as Rés motivo para a proposta cessação do contrato e, por isso, a rejeitaram. Nos termos ajustados, a cessão era sucessivamente renovada, salvo denúncia de alguma das partes, que não aconteceu; o estabelecimento continua na posse do cessionário; findo o primeiro ano a renda mensal passaria a 600 €, mais IVA; o Autor apenas pagou 1.000 €, nos termos firmados, correspondente ao primeiro e último meses do contrato; sendo de concluir que há fundamento para resolução do negócio e inerente desocupação do estabelecimento. Outrossim, em face dos gastos na satisfação das exigências do Autor e atento o encerramento do estabelecimento, por período superior a um ano, com consequente deterioração dos seus electrodomésticos e perda de clientela fidelizada, é a Ré cedente credora da indemnização peticionada.

1.3. O Autor contestou a reconvenção alegando, em síntese, que a cessão de exploração ficou extinta com a proposta que enviou às Rés, em 14 de Janeiro de 2004; data em que colocou o estabelecimento à disposição da cedente e deixou de ter qualquer posse sobre ele. A resolução não procede, dada a extinção precedente; as despesas da Ré foram justificadas por essenciais ao funcionamento do estabelecimento cedido; o alegado encerramento do estabelecimento só à própria Ré, que está na posse do mesmo, é devido.

2. A instância declaratória desenvolveu-se e, a final, veio a ser proferida sentença que decidiu, quanto à acção, absolver as Rés do pedido, e, quanto à reconvenção, julgá-la parcialmente procedente, por parcialmente provada e (i.) declarar resolvido o contrato celebrado entre as partes com fundamento na falta de pagamento de rendas, (ii.) condenar o Autor a desocupar e restituir à 1ª Ré o estabelecimento comercial “S, Ld.ª”, instalado na loja nº 78, do Centro…, (iii.) condenar o Autor no pagamento à 1ª Ré das rendas vencidas e não pagas, à excepção de uma, correspondente à “última renda”, e das vincendas, acrescidas de IVA à taxa de 19%, até efectiva entrega, e finalmente (iv.) condenar a 1ª Ré a devolver ao Autor a quantia de 2.500 €, entregue como garantia, após verificação do bom estado ou, pelo menos, que estão no estado em que lhe foram entregues os móveis, objectos e utensílios que se encontram no estabelecimento, (v.) absolvendo, no mais, o Autor.

3.
3.1. O Autor, inconformado, apelou dessa sentença.
E, nas alegações de recurso, formulou as seguintes conclusões:
a) O apelante operou validamente a resolução do contrato, por comunicação de 14.01.2004, por falta de licença de utilização precedida de vistoria realizada nos oito anos imediatamente anteriores.
b) Se assim não se entender, o contrato de cessão de exploração sub judice deve ser considerado denunciado por parte do apelante, quer por virtude do teor da carta de 14.01.2004, quer por virtude do teor da petição inicial desta acção, ambos chegados ao conhecimento dos apelados em data anterior a sessenta dias em relação ao prazo de caducidade, no qual se mostra à exaustão traduzida a vontade de não renovação do contrato.
c) Para qualquer declaratário médio colocado na situação dos apelados era claro que o apelante havia denunciado o contrato caso a resolução não pudesse operar. Os próprios apelados confessam no seu articulado que o apelante desde Fevereiro de 2004 não se encontrava na posse do estabelecimento.
d) Não se tendo renovado o contrato na data da caducidade, ou seja, 31.12.2004, a obrigação de suportar as respectivas rendas cessaria nesta data.
e) Tendo havido denúncia do contrato, que operou validamente, não faz sentido condenar o apelante na resolução do mesmo e na obrigação de restituição.
Em suma, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma outra que julgue o contrato de cessão de exploração celebrado em 03.12.2003 resolvido em 14.01.2004 ou denunciado para não se renovar na data da respectiva caducidade, em 31.12.2004, e consequentemente limite a condenação no pagamento de rendas apenas até esta data.

3.2. As apeladas ofereceram contra-alegações onde concluem, no que importa ao objecto do recurso, e em síntese:
a) O apelante não logrou … provar qualquer facto reportado à inexistência do licenciamento exigido para o estabelecimento comercial;
b) A carta de 14.01.2004 não é idónea a produzir a denúncia do contrato, isto porque, além de não se poder extrair tal intenção do texto da referida missiva, também não se pode extrair essa intenção do comportamento posterior do recorrente;
c) O recorrente nunca procedeu à entrega à recorrida das chaves do estabelecimento, tendo privado a recorrida do usufruto do estabelecimento comercial em questão;
d) O contrato manteve-se em vigor até à prolação da sentença, que decretou a sua resolução, por falta de pagamento das rendas;
e) Tendo o contrato de cessão de exploração dos autos terminado por resolução decretada pelo tribunal a quo na data da prolação da … sentença, por incumprimento do contrato imputado ao Autor, terá o mesmo que ser condenado no pagamento à 1ª Ré das rendas vencidas e vincendas até à efectiva entrega do locado.
Em suma, não deve ser concedido provimento à apelação, antes se confirmando a sentença.

4. Delimitação do objecto do recurso.

São as conclusões do apelante que delimitam, em primeira linha, o objecto do recurso (artigos 660º, nº 2, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
            E, nesse conspecto, são as seguintes as questões a apreciar:
            1ª Caracterização do contrato celebrado e delimitação do respectivo regime jurídico-normativo aplicável;
            2ª Efeitos do contrato na esfera jurídica do apelante;
            3ª Momento da extinção do contrato e dos seus efeitos;
            4ª Reflexo dessa extinção nas esferas jurídicas das partes.
 

II – Fundamentos

            1. É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provada da primeira instância:[1]
            i. O Autor e 1ª Ré (representada pela 2ª Ré), em 3 de Dezembro de 2003, acordaram que a segunda cedia ao primeiro a exploração do estabelecimento comercial “S. Ld.ª”, instalado na Loja nº 78 do Centro ….(doc. fls. 11 a 15) – alínea a) matéria assente.
            ii. Acordaram que a cessão de exploração teria início em 8 de Dezembro de 2003 e terminava em 31 de Dezembro de 2004 (cláusula 1ª.1.) – alínea b) matéria assente.  
            iii. Nos termos da cláusula 1ª.2. “O contrato chegado ao seu termo em 31 de Dezembro de 2004, renovar-se-á por iguais e sucessivos períodos de um ano, salvo se houver denúncia de qualquer das partes, a qual deverá ser comunicada à outra parte por meio de carta registada com aviso de recepção com a antecedência mínima de 60 dias” – alínea j) matéria assente.
            iv. Segundo a cláusula 2ª o Autor utilizaria todos os móveis, objectos e utensílios que se encontravam no estabelecimento comercial referido e que constam de uma relação anexa ao contrato – alínea e) matéria assente.
            v. Acordaram que o valor mensal dessa cessão de exploração era de 500 €, acrescidos de IVA à taxa legal de 19% (cláusula 3ª.1.) – alínea c) matéria assente.
            vi. Nos termos do acordado, a renda mensal, findos os primeiros 12 meses, passaria a ser de 600 €, acrescidos de IVA à taxa legal de 19% (cláusula 3ª.2.) – alínea m) matéria assente.
            vii. Enquanto explorou o estabelecimento comercial a 1ª Ré teve licença de exploração do mesmo – resposta ao quesito 25º da base instrutória.
            viii. Aquando das negociações do contrato as Rés explicaram ao Autor que a renda definida para a cessão seria de valor menor do que o originalmente pretendido pelo facto da loja não se encontrar em estado de novo e apresentar sinais de desgaste – resposta ao quesito 16º da base instrutória.
            ix. O que o Autor aceitou – resposta ao quesito 17º da base instrutória.
            x. Em 3 de Dezembro de 2003, como garantia do valor dos móveis, objectos e utensílios que se encontravam no estabelecimento comercial, o Autor procedeu ao pagamento à 1ª Ré de 2.500 €, cujo valor seria devolvido no termo do contrato, após verificação do bom estado dos elementos acima indicados (cláusula 3ª.4.) – alínea d) matéria assente.
xi. O Autor pagou à 1ª Ré, a título de renda, a quantia prevista na cláusula 3ª.3., ou seja, 1.000 €, correspondentes à primeira e última renda – alínea n) matéria assente.
            xii. Além da quantia referida em n) (facto xi.) o Autor nada mais pagou à 1ª Ré a título de rendas – resposta ao quesito 30º da base instrutória.
xiii. Antes do início do contrato o Autor insistiu junto das Rés pela substituição da máquina registadora por uma nova – resposta ao quesito 22º da base instrutória.
            xiv. As Rés procederam à compra de uma máquina registadora nova – resposta ao quesito 23º da base instrutória.
            xv. As borrachas das portas frigoríficas encontravam-se estragadas – alínea f) matéria assente.
            xvi. O micro-ondas não funcionava – alínea g) matéria assente.
            xvii. A fiambreira encontrava-se avariada – alínea h) matéria assente.
            xviii. A máquina de café fazia um escoamento irregular para uns garrafões – resposta ao quesito 2º da base instrutória.
            xix. O motor do frigorífico de balcão não se encontrava a funcionar  – resposta ao quesito 4º da base instrutória.
            xx. O estado em que as borrachas do frigorífico se encontravam não impediam o funcionamento do mesmo – resposta ao quesito 18º da base instrutória.
            xxi. A 1ª Ré procedeu à reparação das borrachas das portas frigoríficas – resposta ao quesito 1º da base instrutória.
            xxii. A 1ª Ré procedeu à reparação do micro-ondas – resposta ao quesito 3º da base instrutória.
            xxiii. A 1ª Ré procedeu à reparação da fiambreira – resposta ao quesito 5º da base instrutória.
            xxiv. A reparação do micro-ondas e da fiambreira ficou concluída em 19 de Dezembro de 2003 – resposta ao quesito 20º da base instrutória.
            xxv. Na reparação do micro-ondas, fiambreira, na substituição das borrachas do frigorífico e na compra da máquina registadora a 1ª Ré despendeu a quantia de 750,18 € – resposta ao quesito 31º da base instrutória.
            xxvi. Por carta, datada de 14 de Janeiro de 2004, o Autor comunicou à 1ª Ré que era sua intenção pôr termo ao contrato, com efeitos a partir da recepção da carta, devido ao facto do estabelecimento carecer das licenças administrativas indispensáveis ao seu funcionamento e início de exploração, o que não era do seu conhecimento na data da assinatura do mesmo (doc fls. 21) – alínea i) matéria assente.
            xxvii. A 1ª Ré não concordou com o “termo do contrato” proposto pelo Autor – resposta ao quesito 15º da base instrutória.
            xxviii. O Autor não denunciou o contrato nos termos e para os efeitos do disposto no ponto 2. da cláusula 1ª do contrato – alínea l) matéria assente.

            2. O mérito do recurso.

            2.1. Enquadramento preliminar.
            No conspecto negocial que as partes, entre si, criaram a propósito de um estabelecimento comercial que à sociedade apelada pertencia, veio a sentença da primeira instância, além do mais, vincular o apelante a pagar a esta o conjunto das prestações vencidas e das vincendas, a que se comprometera, e até efectiva entrega do dito estabelecimento.
            Ora, é no essencial este o dispositivo que o apelante põe em crise, ao defender que a relação negocial se extinguiu em 14 de Janeiro de 2004 ou, ao menos, em 31 de Dezembro de 2004, data para além da qual não pode aquela ter gerado qualquer efeito e, portanto, qualquer tipo de vinculação.
            Ao invés, para as apeladas, o contrato celebrado subsistiu e só com a sentença recorrida foi declarado findo, aliás, sem sequer restituição entretanto do estabelecimento comercial em causa.

2.2. Caracterização do contrato e regime legal aplicável.
            Resulta dos factos, dados por provados, que o negócio jurídico celebrado entre as partes foi o de cessão de exploração de estabelecimento comercial, também chamado de locação de estabelecimento.
            Como consensualmente sempre foi afirmado trata-se de um contrato pelo qual se transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial que nele se mostra instalado; e consiste numa forma de negociação dele, onde o cessionário, através do pagamento de uma renda ao cedente, explora o estabelecimento por sua própria conta e risco.[2]
Significa que o que há de verdadeiramente característico neste tipo negocial, não é tanto a cedência do espaço do imóvel, ou sequer a do gozo do mobiliário e utensílios que porventura nele se encontrem, mas antes a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa.[3]
Ao tempo da assinatura do contrato, aqui em causa (3 de Dezembro de 2003), referia-se a este tipo negocial o artigo 111º do Regime de Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, com a redacção do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril.[4]  Em particular, a articulação do nº 2 desse artigo, com o nº 2 do artigo 115º do mesmo diploma permitia confirmar, como exigências cumulativas da cessão, quer a transferência global das instalações, utensílios, mercadorias e outros elementos integrantes do estabelecimento (alínea a)), quer a continuidade do exercício económico no mesmo ramo de comércio ou indústria (alínea b)).
            Se bem que nominado, como negócio atípico, sempre foi entendimento corrente o de que à cessão de exploração não deveriam ser aplicáveis as disposições legais específicas do contrato de arrendamento,[5] antes havendo de recorrer aos ditames próprios que a liberdade contratual quisesse prescrever e, subsidiariamente, às pertinentes normas de aplicação não excluída do contrato típico de estrutura mais próxima – o arrendamento comercial – ou, na sua falta, às disposições comuns sobre os contratos.[6]

            2.3. Eficácia na esfera jurídica do apelante.
            O clausulado contratual, que foi reduzido a documento escrito (doc fls. 11 a 15),[7] estabelecia, além do mais:
. a duração da cessão entre 8 de Dezembro de 2003 e 31 de Dezembro de 2004 (cláus 1ª.1.);
. a renovação por iguais e sucessivos períodos de um ano, salvo denúncia, a ser formalizada por carta registada com aviso de recepção e antecedência mínima de 60 dias (cláus 1ª.2.);
. o preço mensal da cessão, a cargo do cessionário, nos primeiros 12 meses, de 500 €, mais IVA, a entregar até ao dia 7 de cada mês (cláus. 3ª.1.), e daí em diante, de 600 €, mais IVA (cláus 3ª.2.).
Eram cláusulas que vinculavam a esfera jurídica de cada uma das partes, que as assmuiram e subscreveram, a coberto do ditame da autonomia da vontade privada (artigo 405º do Código Civil), dessa forma, subsistentes na ordem jurídica e carentes de realização pontual, por banda de uma e outra (artigos 406º, nº 1, e 762º, nº 1, do Código Civil).
Em particular, quanto à transferência efectiva do estabelecimento negociado, não merecerá dúvidas de que aconteceu, certo que houve até lugar a aquisições, reparos e arranjos de alguns dos seus utensílios (factos II-1.xiii. a xix. e xxi. a xxiv.) e o cessionário garantiu, com um pagamento efectivo, o valor do respectivo recheio (facto II-1.x.).
Ainda, foi convencionalmente firmada uma cláusula de renovação automática do contrato; ou seja, salvo manifestação de vontade atempada de alguma das partes nesse sentido, o negócio não terminava no fim do prazo, ficando ambas sujeitas à sua continuidade por novo prazo. Desta forma, uma convenção ajustada a transformar um contrato temporário, num contrato vocacionalmente sem prazo; salvaguardada sempre, claro está, a faculdade denunciativa, na estrita disponibilidade de qualquer dos contraentes.
Por outro lado, no concernente ao pagamento do preço, ficou estabelecido ainda que o cessionário pagaria a importância de 1.000 € correspondente ao primeiro e último meses do contrato (cláus 3ª.3.); o que fez (facto II-1.xi.). Se bem que nada se provando, quanto à efectiva satisfação das demais rendas, bem ao invés, antes se apurando que o cessionário nada mais pagou (facto II-1.xii.).

            2.4. Extinção do contrato e seus efeitos.
            Entretanto, logo em 14 de Janeiro de 2004, o cessionário pretendeu pôr termo ao negócio (facto II-1.xxvi.). Para tanto, elaborou a carta, que enviou à cedente, e cujo teor convém ter em particular atenção (doc fls. 21).
            É o seguinte, ao que importa, o texto dessa carta:
            «...
            Venho pela presente comunicar-lhe que é minha intenção pôr termo ao contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial relativo ao “Snack Bar ... Lda”, celebrado em 03.12.2003 com efeitos a partir da data da recepção desta carta.
            Efectivamente, e como é do seu conhecimento, o estabelecimento em causa carece das licenças administrativas indispensáveis ao seu regular funcionamento e início da exploração, situação que não era do meu conhecimento na data da assinatura do respectivo contrato.
            Assim sendo, proponho fazer-lhe a entrega das chaves do estabelecimento em data a combinar, contra a libertação da caução no valor de 2500 € que lhe entreguei para garantia dos móveis, objectos e utensílios que se encontram no estabelecimento comercial.
...»
Daqui decorrem, no essencial, duas declarações – a 1ª, a da intenção de fazer cessar o contrato; a 2ª, a da proposta de fazer a entrega das chaves. Decorre, ainda, uma justificação para o assim declarado – de que falecem as licenças administrativas do estabelecimento, situação não conhecida aquando da concretização do acordo.
Note-se, ademais, que está provado que a cedente não concordou com termo do contrato, assim proposto pelo cessionário (facto II-1.xxvii.).
O contrato de cessão de exploração está sujeito às causas gerais de extinção dos contratos, abrangendo assim as figuras da caducidade, da resolução, da revogação e da denúncia.
Afastada a caducidade, que implica, nos termos gerais, a cessação do vínculo negocial em razão da ocorrência de um facto jurídico, a que se confere o efeito extintivo,[8] e que não releva para o caso, fica-nos a questão de saber se a carta produzida pelo cessionário, ora apelante, tem a virtualidade de suportar a eficácia extintiva do contrato alicerçada em alguma das outras figuras – resolução, revogação ou denúncia.
Comecemos pela resolução. A resolução do contrato é um meio de extinção do vínculo contratual, por declaração unilateral, mas sempre condicionada por um motivo previsto na lei ou dependente de convenção das partes (artigo 432º, nº 1, do Código Civil). Efectiva-se, em regra, por declaração negocial de uma das partes à outra (artigo 436º, nº 1, do Código Civil), só excepcionalmente se exigindo a intervenção, para o efeito, de um órgão judicial.
No caso concreto, não vislumbramos que as partes hajam convencionado qualquer tipo de cláusula resolutiva no negócio que concluiram. Resta-nos, por isso, a resolução legal, relacionada com o incumprimento de prestações contratuais (artigos 801º, nº 2, e 808º, nº 1, do Código Civil). Mas nem essa se vislumbra ocorrer, posto que não se mostra provado qualquer tipo de preterição de prestação debitória, que onerasse a cedente. A própria justificação que a carta de 14 de Janeiro contém, indemonstrada aliás,[9] reflecte-se na génese da relação negocial, e portanto nem seria idónea para alicerçar a válida declaração extintiva, por resolução.
Agora, a revogação. Esta corresponde à situação em que as partes põem termo ao contrato celebrando um acordo extintivo, acordo que é admissível nos termos gerais, por mútuo consenso, também aqui ao abrigo da autonomia da vontade privada (artigo 406º, nº 1, do Código Civil). Numa situação deste tipo as partes escolhem e convencionam as estipulações que entendam melhor servir a realização dos seus interesses, firmando um verdadeiro contrato, cuja especificidade particular está precisamente no seu principal efeito a visar a extinção de um outro, que anteriormente haviam concluído.
Como dissemos, o cessionário declara intenção de pôr termo ao contrato e propõe a entrega das chaves do estabelecimento. Ora, à luz das regras aplicáveis para a interpretação das declarações negociais (artigo 236º, nº 1, do Código Civil), vislumbramos aqui efectivamente uma proposta negocial, um projecto contratual para um acordo extintivo da cessão de exploração antes firmada, e dirigida pelo cessionário, ora apelante, à cedente, ora apelada. Ocorre contudo que o contrato só fica concluído no âmbito do acordo da vontade declarada das partes (artigo 232º do Código Civil) e, neste aspecto, a cedente, ora apelada, rejeitou o projecto contratual que lhe foi proposto, e como consta da matéria de facto provada. Em suma, também aqui, a carta de 14 de Janeiro é, por si só, inidónea para conseguir a extinção do contrato de cessão.
Finalmente, a denúncia. Trata-se da comunicação da vontade de uma das partes, feita à contraparte, manifestando a intenção de fazer cessar o vínculo obrigacional em presença. Por via de regra, a denúncia é de exercício discricionário, não sendo necessário invocar qualquer motivo.
No contrato que celebraram, cedente e cessionário clausularam a renovação automática da cessão de exploração, a partir de 31 de Dezembro de 2004, por iguais e sucessivos períodos de um ano, salvo denúncia de qualquer das partes, formalizada por carta registada com aviso de recepção e antecedência mínima de 60 dias (facto II-1.iii.). Aqui se preveniu, então, a admissibilidade de uma declaração negocial, por via da qual uma das partes podia obstar à renovação automática após o termo do seu prazo.
Mas não se vê que a carta de 14 de Janeiro possa suportar este sentido. A declaração negocial vale, em princípio, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (artigo 236º, nº 1, do Código Civil). Ora, ali não se manifesta a vontade de ver prosseguir o negócio, até ao termo do prazo convencionado, terminado o qual haja intenção de se não renovar. Distintamente o que se declara é a intenção de fazer findar o contrato “com efeitos a partir da data da recepção desta carta”, a isto se acrescentando a proposta de restituição do estabelecimento, logo que possível, “em data a combinar”. Destes dizeres, o declaratário normal não retira o sentido de subsistência da cessão, até ao termo do prazo (31 de Dezembro de 2004), e apenas chegado este, a sua não renovação.
            A  isto acresce que, de acordo com a alínea l) da matéria assente, o Autor não denunciou o contrato nos termos e para os efeitos do disposto no ponto 2. da cláusula 1ª do contrato (facto II-1.xxviii.), o que do ponto de vista fáctico só pode significar, para além do deixado dito a respeito da carta de 14 de Janeiro (facto II-1.iii.), que está provado que, em algum outro momento, jamais o cessionário, ora apelante, enviou carta registada com aviso de recepção, até aos 60 dias anteriores ao termo do prazo, a manifestar à cedente, ora apelada, a sua intenção de não ver o contrato renovado por novo período.
            Já em sede de alegações, o apelante acrescenta ainda que, ao menos, através do teor da petição inicial desta acção, que chegou ao conhecimento das apeladas mais de 60 dias em relação ao termo do prazo, se mostra traduzida a vontade de não renovação do contrato (alínea b) das conclusões). Mas, e independentemente do mais,[10] nem aqui teria razão; a petição inicial, que deu entrada a 30 de Julho de 2004, só veio a ser efectivamente conhecida das apeladas já em Março de 2005 (v fls. 27 e 28). Além disso, os pedidos nela formulados, alicerçados em vício de vontade e incumprimento contratual, nem suportam o sentido da denúncia, convencionalmente ajustado e já acima indicado, qual seja, o da normal subsistência do contrato até ao termo do prazo e, apenas atingido este, a sua natural não renovação.
            Ao pugnar que era sua intenção denunciar o contrato, caso a resolução não pudesse operar, o apelante labora até em contradição com a postura que sempre assumiu, descurando desde início a realização das prestações debitórias que o oneravam (facto II-1.xii.), por entender viciado e inidóneo o contrato, e, por outro lado, deixando de efectivamente proceder à denúncia, como podia ter feito, nos estritos termos convencionados e contidos na clásula 1ª.2. do contrato de cessão de exploração (facto II-1.iii.).
            Finalmente, nem é correcto acrescentar que os apelados confessam no seu articulado que o apelante desde Fevereiro de 2004 não se encontrava na posse do estabelecimento (alínea c) das conclusões). No artigo 55º da contestação (fls. 51), o que dizem é que o estabelecimento encontra-se encerrado desde Fevereiro de 2004, que é coisa diferente. Apurada, aliás, a entrega do estabelecimento ao apelante aquando da execução da cessão de exploração (e que aquele se propõe, aliás, devolver na carta de 14 de Janeiro), a ele competia fazer prova da respectiva restituição à cedente apelada, o que não conseguiu (respostas aos quesitos 35º a 37º da base instrutória).
            Resta, então, concluir que, neste conspecto, funcionou o mecanismo de renovação automática do contrato de cessão de exploração do estabelecimento, previsto na sua cláusula 1ª.2.; e que apenas a sentença apelada veio a declarar extinto, por resolução.

            2.5. Reflexos nas esferas jurídicas das partes e no recurso.
            A subsistência do contrato de cessão de exploração até à declaração da sua extinção, por via resolutiva, operada pela sentença recorrida, permite concluir estar a esfera do apelante onerada com a vinculação do pagamento das rendas convencionadas, e insatisfeitas, até essa cessação.
            Acresce que, mesmo extinto o contrato, e enquanto não houver efectiva restituição do estabelecimento à apelada cedente, continuarão tais rendas a vencer e a constituir crédito desta. É o que resulta do artigo 1045º, nº 1, do Código Civil, aqui aplicável, a título subsidiário.[11]
            Improcedem assim, no seu todo, as conclusões formuladas pelo apelante, importando confirmar o que foi decidido na primeira instância.
            À sentença produzida importará, porém, esclarecer que a taxa de Imposto sobre o Valor Acrescentado, que incide sobre as rendas e é devida,[12] é aquela que em cada momento esteja em vigor (artigo 12º, nº 1, da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro).[13]
            As custas da apelação são da responsabilidade do apelante, que decaiu (artigo 446º, nº 1 e nº 2, do Código de Processo Civil); importando, porém, ter em conta que lhe foi concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa total de taxa de justiça e demais encargos com o processo (v fls. 22).

            2.6. Síntese conclusiva.
            É a seguinte a síntese conclusiva que pode ser feita, a propósito do que fica de essencial quanto ao mérito do presente recurso:

            I – Não vale como denúncia, para o fim do prazo, de um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, convencionalmente sujeito a renovação automática, a carta, enviada pelo cessionário ao cedente, onde aquele declare a sua intenção de pôr termo ao contrato e, ao mesmo tempo, proponha fazer a este a entrega do estabelecimento, em data a combinar;
            II – A declaração negocial, assim produzida, tem antes o valor de proposta contratual de revogação desse mesmo contrato, sujeita portanto, para produzir o pretendido efeito extintivo, à aceitação do seu destinatário;
            III – Ao não haver aceitação, e nada mais se provando, tem de se ter o contrato por automáticamente renovado, no fim do prazo, e portanto perfeitamente em vigor, produzindo os seus efeitos até que, por outra causa, se deva considerar findo.

           
III – Decisão
           
            Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, apenas com o esclarecimento de que a taxa de Imposto sobre o Valor Acrescentado é aquela que, em cada momento, esteja em vigor.
            Custas pelo apelante (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia).

Lisboa, 12 de Outubro de 2010

Luís Filipe Brites Lameiras
Jorge Manuel Roque Nogueira
António Santos Abrantes Geraldes
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[1] Procede-se à reordenação do elenco dos factos, por uma ordem lógica e cronológica, de maneira a conseguir uma melhor percepção da realidade empírico-sociológica sobre que incumbe fazer incidir a apreciação jurídico-normativa.
[2] Januário Gomes, “Arrendamentos Comerciais”, 2ª edição remodelada, páginas 61 e seguintes.
[3] A transferência é da própria organização concreta dos factores produtivos, com valor de posição no mercado (Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de Janeiro de 2000 in CJ XXV-1-7).
   As razões que determinam a cessão são, assim, facilmente configuráveis: na parte do cedente quer-se tirar partido da empresa sem os respectivos encargos de gerência, na parte do cessionário pode dispor-se facilmente e sem desembolso de volumosa quantia de um estabelecimento comercial (Orlando de Carvalho, “Critério e estrutura do estabelecimento comercial”, volume I, página 220).
   Sobre a noção de estabelecimento comercial, objecto da cessão, veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Dezembro de 2007, Proc.º nº 07B4168, in www.dgsi.pt.
[4] Com o Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, e entrado em vigor no dia 28 de Junho de 2006 (artigo 65º, nº 2), este tipo de negócio passou a merecer tratamento no artigo 1109º do Código Civil, sob a epígrafe “locação de estabelecimento”. Sobre o novo regime veja-se Fernando de Gravato Morais, “Novo Regime de Arrendamento Comercial”, Novembro de 2006, páginas 154 a 157.
[5] Em particular, a ênfase era colocada na circunstância de este tipo contratual não ficar abrangido pela regra da renovação automática, que era própria dos contratos de arrendamento.
[6] Jorge Aragão Seia in “Arrendamento Urbano”, 5ª edição, página 557; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Outubro de 2006, Proc.º nº 06ª2756, in www.dgsi.pt.
[7] Sobre a forma da cessão de exploração do estabelecimento comercial, veio o artigo 1º do Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril, acrescentar um nº 3 ao artigo 111º do Regime do Arrendamento Urbano, de acordo com o qual o negócio deve constar de documento escrito, sob pena de nulidade. É também este o regime actual (Gravato Morais, citado, página 154).
[8] O caso mais habitual é o de o contrato ser celebrado por um determinado prazo, previamente estabelecido, e decorrido o qual o negócio jurídico se considera findo.
[9] Respostas aos quesitos 10º a 13º da base instrutória.
[10] Trata-se de uma questão nova, que não foi sequer abordada na sentença recorrida e a que, por isso, falta virtualidade para poder ser idóneo objecto do recurso (Acórdão da Relação de Lisboa de 29 de Outubro de 2009, Proc.º 4046/06, in www.dgsi.pt)
[11] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2004, Proc.º nº 04B627, in www.dgsi.pt.
[12] A cessão de exploração está sujeita ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), podendo o tribunal comum pronunciar-se sobre a sua exigibilidade (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2000 in Colectânea de Jurisprudência (STJ) VIII-1-31).
[13] Lei nº 16-A/2002, de 31 de Maio (19%, até 30 de Junho de 2005); Lei nº 39/2005, de 24 Junho, e  Decreto-Lei nº 102/2008, de 20 de Junho (21%, a partir de 1 de Julho de 2005 até 30 de Junho de 2008); Lei nº 26-A/2008, de 27 de Junho, e  Decreto-Lei nº 186/2009, de 12 de Agosto (20%, a partir de 1 de Julho de 2008 até 30 de Junho de 2010; e Lei nº 12-A/2010, de 30 de Junho (21%, a partir de 1 de Julho de 2010).