PROCURAÇÃO
RENÚNCIA
REVOGAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MÁ FÉ
Sumário

1. A renúncia é uma das modalidades de extinção da procuração, não se estabelecendo qualquer limite ao poder de renunciar. Trata-se de um acto unilateral (irretratável) que não carece de aceitação por parte do representado, nem depende de forma especial (arts. 265º, nº1, e 219º, ambos do CC).
2. Face ao direito positivo português, é contestável a admissibilidade legal da procuração no interesse exclusivo do procurador.
3. A mera convenção de irrevogabilidade não impede a revogação da procuração. Tal depende do juízo que se formular resultante da ponderação de interesses emergentes da relação subjacente, e não da simples vontade do procurador e do dominus
(sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam na 7ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

1. J instaurou a presente acção declarativa comum, com processo ordinário, contra “Z” pedindo:

- Se declare a ineficácia e/ou nulidade do acto de revogação da procuração a que se refere o doc. de fls. 49-51;

- Na eventualidade de a ré ter alienado a terceiros o bem imóvel identificado na procuração outorgada ao autor, impossibilitando o cumprimento da obrigação, que a ré seja condenada no pagamento de uma indemnização, pelos danos sofridos, no montante de EUR 200.000,00, correspondente ao valor do imóvel, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;

- A condenação da ré como litigante de má fé em multa e indemnização a favor do autor, consistindo esta no pagamento dos honorários, fixados em € 5.000,00.

Para tanto, alega, em síntese, que:

Através da procuração, irrevogável, feita exclusivamente no interesse do autor, a ré concedeu ao autor os poderes que constam do documento de fls. 49-51.

Acontece que a ré revogou a dita procuração, sem fundamento legal, pelo que tal acto é ineficaz relativamente ao autor.

Caso a ré tenha vendido o imóvel a terceiros, o autor deve ser indemnizado pelos danos decorrentes da sua actuação, nos termos peticionados.

2. Regularmente citada, a ré contestou. Porém, este articulado foi mandado desentranhar, por extemporâneo.

3. Seguidamente, foram declarados confessados os factos articulados pelo autor. Cumprido o disposto no art. 484º, nº2, do CPC, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a ré do pedido.

4. Inconformado, apela o autor, o qual, em conclusão, diz:

“Nos termos dos arts. 659º, nºs 2 e 3, do CPC, deverão considerar-se ainda provados os seguintes factos:

- “O mandato a que se refere a al. E), dos factos provados tinha em vista salvaguardar um interesse próprio do autor”, por se tratar de matéria alegada no art. 7º, da p.i., não impugnada pela ré; e, ainda, por tal facto ter sido confessado pela ré, perante o notário que outorgou a procuração.

- “O lote número 10, encontra-se registado a favor de “DT Construções, Lda.” – atento o teor da certidão do registo predial de fls. 188 e ss;

- “Conforme consta do contrato de venda de fls. (75), em 12/03/2008, a Ré vendeu o lote n.º 10 a que se refere a procuração, a terceiros” – atento o teor do contrato de compra e venda junto pela ré como doc. nº 13 e da certidão do registo predial junta como doc. nº 5.

Atendendo (como resulta dos autos):

- Às condições em que o autor acordou na cessação das suas funções de administrador e de trabalhador da sociedade “S”;

- Às negociações tripartidas a que se refere o negócio jurídico com o envolvimento da Ré Z e da S, em que aquela Ré assumiu a obrigação contratual de outorgar a procuração irrevogável a favor do autor, relativo ao lote 10, identificado na acção, o qual poderia, inclusive, fazer o negócio consigo próprio, sem ter de prestar contas;

A que, nos termos do acordo estabelecido, além dos valores pecuniários a pagar pela Ré Z à S, implicava ainda um pagamento em géneros ao autor, que era a entrega de um lote de terreno avaliado pela Ré em EUR 200.000,00

Para concretização do pagamento a que se refere a alínea “F e G”, a forma determinada pelas partes foi a outorga da procuração irrevogável em favor do autor, único interessado naquele instrumento notarial, que visou tutelar interesse económico e jurídico exclusivo do autor e em seu benefício, sendo esta a causa subjacente a tal instrumento.

Sendo a revogação da procuração pela apelada, no caso “sub judice” um acto ilícito, como tal considerado quer em face do art. 265º, nº3 do C.C e bem assim do art.483º, do CPC.

Considerando o facto provado na alínea “G ”, que ali deu como provado que o valor do lote n.º 10 era de EUR 200.000,00 avaliado pela Ré;

Que a Ré, sem motivo, revogou a procuração irrevogável, feita no exclusivo interesse do mandatário – ora apelante.

Que tal revogação teve como consequência que o Autor e ora Apelante ficasse impossibilitado de alienar o imóvel e integrar na sua esfera patrimonial o correspondente valor de 200.000,00€, sendo este o valor do seu prejuízo causado pelo comportamento da Ré.

Em face do exposto, deve a sentença ser revogada, julgando-se a acção procedente e condenando-se a ré a pagar ao autor a quantia de EUR 200.000,00, acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação.

Tendo em vista o comportamento da Recorrida, supra mencionado, deverá a Apelada ser condenada ainda como litigante de má fé, em multa e indemnização, consistindo esta no pagamento dos honorários, que o Apelante teve de suportar com a acção, no valor de 5.000,00 € a que acresce o IVA à taxa legal.”

5. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

6. É a seguinte a factualidade dada como provada:

A – O autor foi sócio e é accionista da sociedade “S”, onde exerceu funções de administrador até fins de Novembro de 2007.

B – Em 29/11/2007, o Autor acordou com o Presidente de Administração – D – fazer cessar, por mútuo acordo, as funções de trabalhador e de administrador.

C – No ano de 2003, a sociedade Ré negociou com J, ora Autor, e D, a realização de um negócio jurídico, que consistiu na prestação de serviços pela “S” à sociedade Ré;

D – Acordado foi ainda entre as partes que, para além dos valores pecuniários envolvidos no negócio a receber pela Sociedade “S”, a Ré outorgaria em favor dos beneficiários, individualmente identificados em C), uma procuração individual.

E – Na sequência do negócio jurídico realizado, a Ré cumprindo a sua obrigação, outorgou a favor do Autor procuração onde declarou: “ Que, pelo presente instrumento, constitui procurador da sociedade o Sr. J, …., a quem concede os necessários poderes para, nas condições de ónus ou encargos que se encontrem à data de hoje, vender, permutar, pelo preço e condições que entender, o lote 10, sito na…., assinando assim a respectiva escritura, bem como contratos particulares, receber e dar quitação, na competente conservatória, requerer quaisquer actos de registo predial, definitivos ou provisórios, cancelamentos ou averbamentos, bem como representá-lo nas repartições de finanças, e respectivas Câmaras Municipais, requerendo e assinando tudo o que se torne necessário aos fins indicados. A presente procuração é passada também no interesse do mandatário, sendo irrevogável, nos termos do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco do número dois e do artigo mil cento e setenta do Código Civil, poderão ser exercidos na celebração de negócio consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em nome de terceiros nos termos do artigo duzentos e sessenta e um do Código Civil”.

F – Com vista à saída do Autor como accionista da “S”, na fase pré-negocial para venda ao Sr. D, das suas acções foi acordado, como parte do pagamento, o lote de terreno 10, sito em…., do qual o Autor podia dispor por força da procuração acima mencionada.

G – Este prédio foi avaliado em € 200.000,00 (duzentos mil Euros), pela própria Ré.

H – No âmbito destas negociações, em 17-12-2007, o Autor elaborou um documento onde renunciava à procuração mencionada em E), com assinatura reconhecida por advogado – cf. doc. de fls. 45.

I – Tendo-se gorado as negociações, o Autor enviou à Ré carta registada, datada de 11/3/2008 onde declara manter a procuração em seu poder por não se terem concluído as negociações com D, pretendendo vender a curto prazo o lote de terreno 10.

J – Em 12/3/2008, mediante instrumento notarial, a ré declarou que “ revoga, a partir desta data, a procuração outorgada no dia trinta de Janeiro de 2003 no Cartório Notarial, a favor do Sr. J, …, nos termos do n.º 3 do art. 265.º do Código Civil.”

L – O Autor pagou € 5.000 de honorários ao seu advogado para que o represente nesta acção.

M – No dia 12/03/2008, mediante escritura pública, a Ré vendeu à “S.” e esta declarou comprar, pelo preço de € 175.000, o prédio urbano, composto de lote de terreno para construção urbana, designado por lote 10, sito….

7. Em face das conclusões da apelação, são as seguintes as questões de que cumpre conhecer:

- Da alteração da decisão de facto;

- Da admissibilidade da revogação da procuração e dos seus efeitos;

- Da condenação da ré como litigante de má fé.

8. Da decisão de facto

8.1. Pretende o apelante que se adite à matéria de facto, dada como provada, que “o mandato a que se refere a al. E) dos factos provados tinha em vista salvaguardar um interesse próprio do autor”.

Sustenta que se trata de matéria alegada no art. 7º, da p.i., a qual não só não foi impugnada pela ré, como foi por esta expressamente confessada, perante o notário que outorgou a procuração.

Sem qualquer razão.

Em primeiro lugar, tratando-se de alegação vaga, genérica e de cariz marcadamente conclusivo, desacompanhada da enunciação dos correspondentes factos concretos, não pode, enquanto tal, figurar no elenco dos factos provados.

Em segundo lugar, ao contrário do que se afirma, a matéria em questão não foi alegada na petição inicial, nem resulta dos documentos juntos aos autos.

Com efeito, no art. 7º, da petição inicial, o autor – remetendo para as cópias das procurações juntas aos autos – reconduz o seu articulado, no essencial, ao que consta dos ditos documentos, isto é, que «os respectivos mandatários tinham um interesse próprio na procuração individual que lhes foi outorgada», o que é substancialmente diferente.

Ora, essa factualidade foi dada como provada: vide alínea E), dos factos provados.

Improcede, pois, a pretensão do apelante.

8.2. Atendendo ao teor de uma cópia de certidão do registo predial, junta a fls. 188 e ss. pretende também que se dê como provado que:

- “O lote número 10, encontra-se registado a favor de “T.”

Ora bem:

O documento invocado é omisso quanto ao facto atrás mencionado, o que desde logo inviabiliza a viabilidade da pretensão do recorrente.

Ainda que assim não fosse, temos por discutível que se pudesse ter em conta o teor daquele documento, dado que foi apresentado pela “S” (e não pela ré[1], ao contrário do que afirma o apelante), juntamente com o requerimento em que deduziu a sua intervenção espontânea, incidente que foi indeferido liminarmente – cf. despacho de fls. 271, transitado em julgado.

Além disso: considerando o pedido formulado nesta acção, bem como a respectiva causa de pedir, tendo ainda em conta o teor da alínea M), dos factos provados, eventual registo de aquisição do lote 10, a favor de um terceiro, não assume relevância na decisão desta causa, pelo que é totalmente destituída de fundamento a pretensão do apelante.

8.3. Atendendo ao teor do contrato de compra e venda (doc. nº 13, a fls. 149) e à cópia de uma certidão da conservatória do registro predial junta como doc. nº5, a fls. 105 e ss., pede ainda o apelante que se dê como provado que:

- “Conforme consta do contrato de venda, em 12/03/2008, a Ré vendeu o lote n.º 10 a que se refere a procuração, a terceiros”.

Esta factualidade já consta da alínea M), dos factos provados pelo que  não se percebe o alcance da pretensão do apelante.

Em face do exposto, é de manter inalterada a decisão de facto.


9. Da (in)admissibilidade da revogação da procuração outorgada a favor do apelante

9.1. Em 30/1/2003, a ré outorgou uma procuração onde declarou, além do mais, que “ (…) a presente procuração é passada também no interesse do mandatário, sendo irrevogável, nos termos do número três do artigo duzentos e sessenta e cinco do número dois e do artigo mil cento e setenta do Código Civil (…)”.

Posteriormente, em 12/3/2008, mediante instrumento notarial, a ré declarou que “revoga, a partir desta data, a procuração outorgada no dia trinta de Janeiro de 2003 a favor do Sr. J (…).”

Sustenta o autor que a procuração foi outorgada no seu interesse exclusivo, pelo que, sendo irrevogável, deve ser declarada a ineficácia e/ou nulidade do acto de revogação.

Está, no entanto, a esquecer que:

Ficou provado que, em 17-12-2007, o autor renunciou à procuração (cf. al. H), dos factos provados).

Ora, a renúncia é uma das modalidades de extinção da procuração, não se estabelecendo qualquer limite ao poder de renunciar. Trata-se de um acto unilateral (irretratável) que não carece de aceitação[2] por parte do representado, nem depende de forma especial (arts. 265º, nº1, e 219º, ambos do CC).

O poder de renunciar é conferido (por lei) ao procurador no seu próprio interesse, pelo que lhe caberá em exclusivo a decisão sobre a renúncia e, mesmo que a renúncia afecte um interesse do dominus, tal não se pode sobrepor à tutela da esfera jurídica do procurador.

Consequentemente, renunciando o procurador à procuração, ainda que esta seja irrevogável, não poderá praticar os actos que resultam da relação subjacente.

Mais: se o procurador renunciar à procuração, o dominus não poderá ser obrigado, com base no negócio que constitui a relação subjacente, a praticar os actos para os quais atribuiu poderes representativos, podendo optar (a manter-se a validade do negócio subjacente) por qualquer meio ao seu dispor para atingir a mesma finalidade.

Nesta conformidade, não pode o apelante pretender invalidar a revogação de uma procuração já extinta, por renúncia.

Carece, assim, em absoluto, de fundamento legal a sua pretensão.

9.2. Não deixaremos, contudo, de tecer algumas considerações, necessariamente breves, sobre o regime da procuração conferida no interesse exclusivo do procurador.

O Código Civil consagra, no seu art. 265º, nº3, a irrevogabilidade da procuração que tenha sido outorgada no interesse comum do procurador e do dominus.

Já no que respeita à procuração no interesse exclusivo do procurador, dado o silêncio da lei (o CC apenas prevê duas figuras : a procuração outorgada no interesse do dominus – caso típico – e a procuração outorgada no interesse também do procurador ou de terceiro), a sua admissibilidade tem sido tradicionalmente contestada.[3]

Com efeito, sendo a procuração um negócio jurídico unilateral, através do qual uma pessoa atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos para em nome do representado praticar actos que produzam efeitos na esfera jurídica deste (art. 262º e 258º, CC), não se vislumbra como dispensar o interesse do representado na representação voluntária e na procuração.

Neste sentido, pronunciam-se Castro Mendes, Teoria Geral, III, 1968, 398 e ss.; Carvalho Fernandes, Teoria Geral, II, 202-203; Oliveira Ascensão, Teoria Geral, III, 306. Januário Gomes, inicialmente, considerava de forma peremptória o interesse do dominus essencial à representação; mais recentemente, in Assunção Fidejussória, 2000, pag. 100 continua a manifestar muitas dúvidas sobre a sua admissibilidade.
 
Noutra corrente, Pais de Vasconcelos (A Procuração Irrevogável, 94 e ss), muito embora reconheça trata-se de figura controversa e susceptível de levantar problemas jurídicos complexos, dificilmente ultrapassáveis à luz das normas legais (estritas) que regulam o instituto da procuração/representação – socorrendo-se dos princípios gerais da autonomia privada (art. 405º, CC), dos bons costumes e da ordem pública – admite a existência jurídica da procuração no interesse exclusivo do procurador, embora – se bem interpretamos o seu pensamento – apenas nas situações em que a procuração não seja estruturalmente útil para atingir um fim do dominus ou quando este não tenha já um fim a prosseguir.[4]

O mesmo autor, numa construção, não isenta de dificuldades, no que respeita  ao regime da revogação, admite que a mesma é irrevogável, da mesma forma que a procuração no interesse comum do dominus e do procurador.

No caso subjudice, o apelante sustenta precisamente que a procuração foi outorgada exclusivamente no seu interesse (muito embora não se tenha preocupado em dar a conhecer os fundamentos legais para justificar a sua admissibilidade, bem como o regime jurídico aplicável quanto à irrevogabilidade).

Acontece que, ainda que se aceitasse, com as reticências acabadas de expor, a tese da admissibilidade jurídica da procuração no interesse exclusivo do procurador, face aos factos alegados e provados, seria de rejeitar liminarmente essa qualificação à procuração outorgada ao apelante.

Com efeito não só não ficou provada factualidade donde decorra  a  «inexistência de interesse relevante do dominus», como também não se provou «a existência de interesse exclusivo do procurador» (repare-se que o apelante nem sequer logrou provar a matéria por si alegada, tendo em vista a recondução da procuração àquela figura, isto é, a  existência de «negociações tripartidas» entre a ré, a “S” e o autor; a outorga da procuração «a título de pagamento em géneros»; «o único interessado naquele instrumento notarial é o autor»; «a procuração visa tutelar um interesse económico e jurídico exclusivo do autor e em seu benefício»).

Afastada ficaria assim a hipótese de, por esta via, se considerar irrevogável a procuração em questão.

Acresce que:

A procuração outorgada pela ré contém a menção de «ser  passada também no interesse do mandatário, sendo irrevogável, nos termos do nº3, do art. 265º, do CC».

Não obstante, face aos termos da lei (art. 265º, nº3, CC), a mera convenção de irrevogabilidade não impede a revogação da procuração. Tal depende do juízo que se vier a formular resultante da ponderação de interesses emergentes da relação subjacente, e não da simples vontade do procurador e do dominus.[5]

Na verdade, a procuração está directamente relacionada com uma relação jurídica que constitui a sua causa (a relação subjacente), pela qual se ajustam os termos da actuação representativa – cf. Castro Mendes, Teoria Geral, III, 404.

Consequentemente, para determinar se a procuração está sujeita ao regime geral da livre revogabilidade (art. 265º, nº2, do CC), ou, pelo contrário, à regra do nº3, do mesmo preceito legal, há que apurar, em cada caso, qual é o interesse relevante do procurador, resultante do negócio que constitui a relação subjacente.

Por sua vez, na concretização desse interesse, importa ter presente que não basta que o procurador tenha um mero interesse geral na execução do negócio: exige-se a prova de que tem um interesse específico nessa execução.

A procuração deverá igualmente representar uma utilidade dirigida à prossecução de fins próprios (isto é, autónomos) do procurador, no quadro da relação subjacente.

Por outro lado, o interesse relevante tem que resultar objectivamente da relação subjacente (não podendo, naturalmente, um qualquer estado psicológico e meramente subjectivo do procurador servir para justificar a irrevogabilidade.

O procurador deve ainda demonstrar ter um interesse directo na conclusão do negócio, manifestado no facto de o mesmo ser parte nesse negócio ou dele beneficiar directamente.

Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., pag. 55, «a relação subjacente deverá, assim, consistir num negócio que se destine a regular a relação que resulta da procuração, a relação de representação. Deverá consistir num negócio que esteja estruturalmente concebido de modo a dele se poder retirar o critério de actuação, pelo qual os sujeitos da relação de representação se deverão reger.»

Esse negócio deve por isso mesmo preceder a procuração de modo a poder constituir a causa (função) da sua outorga e permitir, pelo seu conteúdo, concretizar «o fim visado pelas partes, ou seja, a função da procuração e o critério de exercício dos poderes dela emergente».[6]

No caso concreto:

Dos factos provados, desde logo pela escassez de elementos fornecidos pelo autor no seu articulado inicial, não se descortina a existência de um interesse próprio, específico e directo do procurador (ora autor) na execução do negócio celebrado entre a sociedade “S” e a ré, tanto mais que o autor, em nome pessoal, não figura como sujeito dessa relação.

Torna-se assim impossível estabelecer uma relação de causa-consequência, indispensável para aferir da existência do interesse relevante, para efeitos de sujeitar a procuração ao regime da irrevogabilidade.

Também no que respeita às negociações mantidas entre o autor e D, tendo-se frustrado a concretização do negócio que  visava a venda de acções que o autor possuía na “S”,  está pura e simplesmente afastada a existência de uma relação subjacente que possa funcionar como causa da procuração e da qual pudesse decorrer o interesse relevante do procurador na outorga da procuração.

É assim de concluir não ter o autor logrado demonstrar que se estaria perante uma procuração irrevogável, no sentido atrás apontado, razão pela qual se encontrava sujeita ao regime da sua livre revogação. Consequentemente, caso o autor não tivesse renunciado à procuração, nada obsta a que a ré a pudesse revogar.

10. Da má fé

A pretensão do apelante não encontra nos factos provados o mínimo suporte que permita imputar à ré comportamento que preencha os pressupostos indicados no art. 456º, do CPC, pelo que, sem necessidade de outros considerandos, há-de improceder esta pretensão.

11. Nestes termos, negando provimento à apelação, acorda-se em confirmar a sentença recorrida (embora com diversa fundamentação).

Custas pelo apelante.

Lisboa, 19 de Outubro de 2010

Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado
Rosa Maria Ribeiro Coelho
Amélia Ribeiro
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[1] Sendo certo que a contestação da ré foi mandada desentranhar, por extemporânea.
[2] Sendo certo que a ré, ao revogar - muito anos depois – a procuração em causa, mais não fez do que expressar a aceitação desta renúncia.
[3] cf. Pais de Vasconcelos, in A Procuração Irrevogável, pags 94 e ss.
[4] Parecendo sufragar esta doutrina, na jurisprudência, podem consultar-se os Acs. da Rel. Lisboa de 17/4/2008, JusNet 1779/08 e do STJ de 2/3/2004, JusNet 1108/2004.
[5] cf., neste sentido, Ac. Trib. Rel. de Lisboa, de 29 Abril 2004 (JusNet 2368/2004) e o Ac. STJ de 7 Julho 2009 (JusNet 3904/2009).
[6] Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., 75.