Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
PROPRIEDADE HORIZONTAL
TÍTULO CONSTITUTIVO
ACTIVIDADE COMERCIAL
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
LICENÇA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL E INDUSTRIAL
COLISÃO DE DIREITOS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ABUSO DE DIREITO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Sumário
I - O estatuto da propriedade horizontal tem eficácia absoluta, sendo vinculativo erga omnes. II - O critério de interpretação dos dizeres do título constitutivo da propriedade horizontal deve ser o consagrado no art. 236º do Código Civil pelo que deve assentar predominantemente no significado corrente das expressões nele usadas. III – A instalação de uma creche em fracção destinada a habitação – entendida esta palavra no sentido corrente - pelo título constitutivo da propriedade horizontal representa alteração do fim previsto. IV - A obtenção pelo condómino junto da Câmara Municipal do licenciamento da fracção para fim diferente do constante do título constitutivo da propriedade horizontal constitui condição necessária mas não suficiente para que possa proceder a essa alteração: a sua eficácia está dependente da modificação do título com o consentimento unânime dos restantes condóminos em conformidade com o disposto no art. 1419º do Código Civil. V - A figura da colisão de direitos pressupõe a concorrência de direitos de outras pessoas em termos de se tornar total ou parcialmente impossível o exercício cumulativo de todos eles. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
“A” instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra “B” – Actividades de Creches, Jardins-de-Infância e Afins, Lda pedindo: a) que seja a Ré condenada a abster-se de utilizar e explorar comercialmente uma creche na fracção sita no 1º andar direito da Rua ..., nº ..., em Lisboa; b) que se fixe uma sanção pecuniária compulsória de 500 € por cada dia de atraso no cumprimento da decisão que vier a ser decretada; c) e que seja a Ré condenada a pagar à Autora, a título de compensação pelos danos morais sofridos a quantia de 15.000 €.
Alegou, em síntese:
- a A. é co-proprietária da fracção correspondente ao 2º andar direito daquele prédio e aí reside com o seu companheiro e as suas duas filhas;
- desenvolve grande parte da sua actividade profissional na sua residência, aí analisando projectos e propostas de arquitectura e construção e promoção de concursos para adjudicação de empreitadas, trabalhando regular e continuamente pela noite dentro, descansando muitas vezes durante o dia;
- é em casa que as suas filhas estudam para as aulas e exames;
- o companheiro de A. trabalha regularmente aos fins-de-semana, descansando à segunda e terça-feira;
- o prédio é composto de 12 fracções destinadas exclusivamente para habitação e por uma fracção destinada ao exercício do comércio;
- desde Setembro de 2005 a fracção correspondente ao 1º andar direito encontra-se a ser utilizada pela Ré para a exploração de uma creche;
- a actividade de creche em nada se assemelha a habitação e não pode ali ser exercida sem se alterar o título constitutivo da propriedade horizontal, pelo que está a ser exercida ilegalmente;
- com o início da exploração da creche o prédio perdeu por completo as habituais condições de possibilidade de sossego, tranquilidade, segurança, limpeza e paz social;
- todos os dias da semana tem sido insuportável o barulho causado pelos empregados e pelas crianças que se encontram na creche, que obsta ao direito ao sossego, repouso e ao sono da Autora e família e demais habitantes do prédio;
- desde que a creche ali está a ser explorada a porta da rua é deixada aberta constantemente, sendo também constante o lixo e sujidade nas escadas e entrada do prédio e que a Ré não limpa;
- foram e são inúmeros os dias em que a Autora e a sua família foram impedidos de dormir, descansar, de trabalhar e de estudar, causando-lhes cansaço e irritabilidade extremas e alterações no seu rendimento profissional e no aproveitamento escolar das suas filhas.
*
A Ré contestou pugnando pela improcedência da acção e, caso se entenda necessário, para que sejam proferidas medidas para acautelar os direitos de todos os interessados atendendo ao custo e exequibilidade das mesmas.
Invocou, em resumo:
- a actividade de creche insere-se no uso habitacional;
- o título constitutivo do prédio não prevê que o mesmo seja destinado exclusivamente para habitação mas sim para habitação no sentido lato;
- por reunir todos os requisitos legais, foi atribuído à Ré alvará de abertura e funcionamento para a actividade de creche no prédio dos autos;
- a assembleia de condóminos aprovou, por maioria, o funcionamento da creche;
- a Ré realizou obras para diminuir a passagem do ruído para o exterior;
- a Ré e seus utentes não deixam a porta do prédio aberta nem são causadores da alegada falta de higiene nas escadas e entrada do prédio;
- o horário de funcionamento da creche decorre entre as 8h00 e as 18h00 de cada dia útil;
- a actividade profissional desenvolvida pela Autora não a obriga a dormir durante o dia;
- a Ré não tem possibilidade de acolher as crianças noutras instalações pelo que o encerramento da creche causaria grandes prejuízos para a Ré, funcionários e crianças;
- não é o simples facto de a creche gerar algum barulho que implica a lesão de direitos de personalidade;
- impugna os alegados danos morais da A.
*
Realizada a audiência de discussão e julgamento e dadas as respostas à base instrutória, foi proferida sentença em que se decidiu: «julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a R. a:
- no prazo de 6 meses, abster-se de utilizar a fracção correspondente ao 1º andar direito do prédio sito na Rua ..., nº ..., em Lisboa, para a actividade de creche, fixando-se como sanção pecuniária compulsória o montante de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão, e
- pagar à A., a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de € 10.000,00».
*
Inconformada, apelou a Ré e tendo alegado, formulou as seguintes conclusões:
- Da matéria de facto
1. Nos termos do artigo 690º - A do Código de Processo Civil, os concretos pontos da matéria de facto que se consideram incorrectamente julgados traduzem-se na respostas afirmativas dadas aos quesitos 16º, 17 e 18º da Base Instrutória.
2. Face ao teor da prova testemunhal constante nos autos e ao ónus da prova que incumbia à apelada e à ausência de prova documental, deve ser alterada a decisão proferida quanto aos quesitos 16º a 18º, considerando-se totalmente como não provados.
3. No que respeita ao essencial dos factos que constituem a causa de pedir da presente acção, nomeadamente no que respeita à pretensa violação do repouso, da saúde e da higiene da autora, enfim, no que concerne à violação dos seus direitos de personalidade e respectivos (alegados) danos, não foram juntos aos autos quaisquer documentos, nem produzidas outras provas, quer prova pericial (que parecia impor-se neste caso), quer ainda prova por inspecção ao local.
4. Quanto a estes pontos da matéria de facto provada, refere-se na motivação da decisão sobre a matéria de facto: depoimento da testemunha “C”, tendo ainda considerado o depoimento das testemunhas “D” e “E”, bem como as regras de experiência comum.
5. Não resulta do depoimento da testemunha “C” que (i) foram, e são, inúmeros os dias em que a apelada e a sua família foram impedidos de dormir, descansar, trabalhar e estudar; (ii) a apelada e a sua família sofrem de irritação e mal-estar e (iii), aqui ainda mais evidente, que esses barulhos provocaram alterações aos rendimentos profissionais e escolares.
6. Porquanto a testemunha ouviu dizer, alguém lhe disse, alguém se queixou. Em bom rigor, a testemunha não passou inúmeros dias na habitação da Autora e da sua família, não tendo, por isso, conhecimento directo de que a Autora e a sua família foram, em inúmeros dias, impedidos de dormir, descansar, trabalhar e estudar, tratando-se, afinal, de um testemunho de hearsay, um testemunho de ouvir dizer, de duvidosa espontaneidade e isenção cuja razão de ciência, por um lado, e o próprio testemunho, por outro, depunham a favor de uma resposta negativa aos quesitos em análise.
7. Não foram alegados ou provados factos instrumentais relativos às pessoas que vivem na habitação da Apelada, por exemplo, os horários concretos das pessoas, nomeadamente, os horários escolares da filha da Apelada e as horas a que as pessoas que habitam aquele apartamento se costumam levantar.
8. Mais se estranha que deste depoimento se tenha considerado que os barulhos provocados pela creche tenham provocado uma alteração do rendimento profissional da Apelada quando, na verdade, a testemunha refere a este propósito: Ela trabalhou uns tempos nos seguros, mas, neste momento, gere algumas propriedades que os pais lhe deixaram em testamento, e faz a recuperação de alguns imóveis que os pais lhe deixaram em testamento, sobretudo.
9. Deste modo, a testemunha “C” pouco ou nenhum conhecimento directo revelou sobre os factos 16 a 18 dos factos provados e o seu depoimento foi notoriamente pouco espontâneo, permitindo questionar a respectiva isenção perante o objecto da causa - naturalmente compreensível e até admissível atenta a relação familiar e afectiva com a Apelada e as suas filhas.
10. O depoimento da testemunha “D” em nada poderia contribuir para a convicção do Tribunal, especialmente se se tiver em atenção que quanto ao barulho esta testemunha refere, ao contrário do depoimento de “C” e de “E”, que o barulho que ouve surge, sobretudo, das escadas do prédio e a partir das 8h30 da manhã.
11. A mesma testemunha refere que ouve barulho de crianças a brincar e que se sente incomodado com isso. Nada se vislumbra nesse depoimento quanto à Apelada e a sua família serem, em inúmeros dias, impedidas de dormir, descansar ou trabalhar, e que a Apelada tem sofrido mal-estar caracterizado por cansaço e irritabilidade e alterações no seu rendimento profissional.
12. Quanto à terceira testemunha, “E”, cumpre referir que passa normalmente o dia em casa, sendo, desse modo, uma das testemunhas com mais razão de ciência sobre o que, de facto, se passa no prédio em que se encontra a creche da Apelante.
13. Esta testemunha refere que o barulho que ouve ocorre principalmente nos momentos em que as crianças vão para o recreio e que esses recreios ocorrem pelas 10h30, da parte da manhã, e pelas 15h30, da parte da tarde.
14. Verifica-se, pois, que a testemunha não tem qualquer conhecimento directo dos factos, a saber: (i) a testemunha nada refere quanto aos horários de descanso, estudo ou trabalho da Autora e/ou da sua família; (ii) a testemunha nada refere quanto à Autora e/ou às suas filhas serem impedidas de dormir, descansar ou trabalhar e (iii) a testemunha nada refere quanto ao cansaço, stress, irritabilidade ou alterações de rendimento profissional da Autora.
15. Restam, assim, as invocadas regras de experiência comum. A este propósito sublinha-se: não basta invocar regras de experiência comum para se considerar provado determinado facto, pelo contrário, seria necessário que se fundamentasse como é que as regras de experiência comum devem impor, ou complementam, determinado juízo de julgamento, pois só assim poderá ser sindicado o juízo de julgamento.
16. As regras de experiência comum implicam, outrossim, a conclusão de que no centro de uma capital europeia, como Lisboa, o barulho é constante e, por vezes, bastante incomodativo, seja pela circulação dos automóveis, seja pelos alarmes ou pelas sirenes, pelos aviões, seja ainda pelas inúmeras obras e trabalhos de construção civil.
17. As regras de experiência comum impõem considerar que as crianças entre os 0 e os 3 anos de idade dormem grande parte do tempo e que o barulho que possam produzir, durante o dia, é certo, é bastante inferior ao barulho normal de uma cidade que acorda e que vive, nomeadamente ao provocado por alarmes, automóveis, obras, sirenes, etc.
18. As regras de experiência comum impunham considerar que se o barulho provocado pela creche da apelante fosse verdadeiramente perturbador, então as testemunhas teriam relatado que o barulho era ensurdecedor, enlouquecedor, terrível, que impedia as pessoas de descansar ou de repousar.
19. As testemunhas falam apenas nalgum incómodo, que o barulho proveniente da creche não é constante, que sucede apenas durante os dias de semana entre as 8h30 e as 18h00, com alguns picos, em que se torna realmente audível, nas horas de recreio.
20. Seria razoável que se a Apelada tivesse sofrido verdadeiras sequelas físicas e/ou psicológicas resultantes do barulho provocado pela creche, tivesse produzido, nomeadamente, prova pericial, que tivesse indicado o seu médico para depoimento, que tivesse apresentado receitas do seu médico com indicação de toma de relaxantes, anti-depressivos, soporíferos ou outros medicamentos que minorassem o seu sofrimento, a apelada poderia ter indicado para depoimento as pessoas com quem vive, as pessoas com quem alegadamente trabalha e, mesmo, o mencionado explicador da sua filha - que não fez.
21. Existe ainda notória contradição entre os factos provados nos mencionados pontos 16 a 18 e a resposta parcial dada ao quesito 1º (ponto 9º dos factos provados na sentença).
22. Se prova que, por vezes, a Apelada trabalha à noite e, por outro, ao mesmo tempo, deu-se como provado que foram, e são, inúmeros os dias em que a Apelada foi impedida de dormir quando todas as testemunhas, mesmo as da Ré, referiram que o horário da creche é das 8h/8h30 às 18h/18h15,
23. esta contradição quebra inexoravelmente o nexo causal fáctico entre o barulho produzido pela creche e as inúmeras vezes que a Autora é impedida de dormir, uma vez que ficou também provado que a creche funciona exclusivamente em horário diurno.
24. Se a Autora só por vezes trabalha à noite e se inúmeras vezes é impedida de descansar, considerando que a creche funciona durante o dia, então o que determina a falta de repouso da Autora não pode ser o barulho provocado pela creche.
25. Impõe-se considerar que os testemunhos de “C”, “D” e “E”, cada um por si só ou mesmo conjugados entre si, e ainda que conjugados com regras de experiência comum, implicavam a resposta negativa aos pontos 9 a 11 da base instrutória, correspondentes aos pontos 16 a 18 dos factos provados constantes da sentença.
26. Recaindo sobre a apelada o ónus da prova dos factos demonstrativos da existência dos danos (artigo 342º, nº 2 do Código Civil) e não logrando obter tal prova, terá de ver a dúvida daí resultante ser deduzida contra ela (artigo 562º do Código de Processo Civil), ou seja, no sentido da inexistência de factos que originam os danos alegados.
Da matéria de direito
27. Entende igualmente a apelante que ocorreu erro de interpretação, aplicação e determinação da lei aplicável.
28. A meritíssima Juiz a quo entendeu que a actividade da apelante seria uma actividade comercial, industrial ou por conta própria e como tal não poderia estar habilitada a exercer a actividade de creche por a fracção onde se encontra ser destinada a habitação
29. Ficou provado que o título constitutivo da propriedade horizontal prevê que a fracção ocupada pela apelante é destinada ao uso habitacional.
Mas o mesmo título e que consta do documento nº 10 junto aos autos com a contestação, não estipula nem prevê expressamente que esse uso seja exclusivamente destinado a habitação.
30. Ou seja, o título constitutivo não prevê a utilização exclusiva de habitação unifamiliar ou plurifamiliar, o título prevê apenas o uso habitacional no sentido lato.
31. A noção de uso habitacional é dada pelo D.L. 94/94 de 29 de Setembro que constitui o Plano Director Municipal (PDM) e que estabelece as regras para utilização, ocupação e transformação do uso do solo em todo o território do concelho de Lisboa.
32. Define no seu artigo 7º que o Uso Habitacional é entendido como: “habitação familiar e plurifamiliar, as instalações residenciais especiais (albergues, residências de estudantes, religiosas e militares) e as instalações hoteleiras”.
33. A licença de utilização destinada a habitação, quando não refere que seja destinada exclusivamente a habitação pode ser utilizada para qualquer um dos fins descritos no artigo 7º do PDM.
34. As conclusões sobre atribuição de uso exclusivo para habitação unifamiliar, no caso sub iudice da fracção ocupada pela apelante, carecem de fundamento legal e factual e violam o artigo 7º do PDM/ D.L 94/94 de 29 de Setembro.
35. As creches e jardins-de-infância, incluem-se na CAE 85 321, que se define como “acção social para a infância e juventude sem alojamento que compreende, nomeadamente, as actividades desenvolvidas por creches, jardins de infância, centros de actividades de tempos livres, amas e salas de acolhimento. Inclui as actividades de adopção de crianças”.
36. A acção social de acolhimento de crianças não é, nem pode ser, uma actividade comercial, industrial nem de profissional liberal.
37. Uma creche não é um equipamento, um consultório, um escritório, nem um estabelecimento comercial nem tão pouco um estabelecimento alimentar (actividades estas mais comuns em fracções habitacionais e que obrigam a uma alteração do título constitutivo da propriedade horizontal).
38. Não foi dado como provado que a creche seja uma actividade comercial, industrial ou profissional liberal mas apenas que a apelante exerce a actividade de creche (al. c) dos factos assentes). Não foi dado como provado que a apelante exerce uma actividade comercial de creche.
39. Assim, segundo o CAE e o PDM, a creche é uma actividade de acolhimento social e, repetindo, é de se inserir no âmbito habitacional.
40. A definição de actividade comercial e industrial foram já definidas por acórdão do STJ como “a ideia de compra e venda de valores, mercadorias, negócio, permutação de produtos, troca de um produto por outro, troca de valores, ao passo que a noção de indústria respeita a habilidade para fazer alguma coisa, artifício, invenção, engenho, ou seja, ao conjunto de actividades de produção e transformação de matérias.
41. De outra sorte, através da deliberação do Director Municipal da Gestão Urbanística e por despacho nº 45/P/2005, de 24 de Maio de 2005 da Exma. Vereadora do Urbanismo, (doc. n 2 da contestação, fls. 84 e dado como assente) ambos em funções e com poderes para o acto, esclareceram e deliberaram que:
- ‘é essencial para a actividade da requerente a existência de quartos, cozinhas, em similitude com as habitações, lares e em dissemelhança com as lojas, escritórios, consultórios e laboratórios
- o legislador não explicitou as creches e jardins de infância na definição de uso habitacional porque não se destinam a acolher durante as vinte e quatro horas do dia, mas apenas durante o período de acolhimento,
Concluindo, em suma que:
42. a actividade de creche ou jardim de infância é de haver como habitacional, dado que pelo CAE 85.321, que a define, carece de quartos e cozinhas, a exemplo das habitações, lares e instalações hoteleiras e ao contrário das lojas, escritórios, consultórios e laboratórios’ (al. G) dos factos assentes)
43. o despacho/parecer emitido pela Câmara Municipal de Lisboa traduz uma decisão final, válida e definitiva sobre o uso e legalidade da fracção onde está situada a creche da apelante e a apelada não impugnou esse acto administrativo por qualquer forma prevista na lei.
44. O acolhimento de crianças não implica alteração de estrutura de habitação, pois as crianças brincam na sala, dormem nos quartos, as refeições são confeccionadas na cozinha, tudo em semelhança a um agregado familiar.
45. O licenciamento das creches - acção social de creches - é efectuado pelo Instituto de Solidariedade e Segurança Social, tendo competência exclusiva para o efeito.
46. O Despacho normativo 99/89 que regula as condições de instalação e funcionamento das creches prevê na norma III que “as creches devem obedecer preferencialmente às seguintes condições: a) inserir-se em zona habitacional no aglomerado urbano...” e “nos casos de instalação em parte de edifício, deve, de preferência, ocupar-se o rés-do-chão e andares subsequentes até ao 2º andar”, o que traduz igualmente a previsão e possibilidade da utilização de creches em prédios de habitação.
47. Por reunir os pressupostos legais e essenciais para o efeito, designadamente, a existência de licença de utilização válida e legal, foi emitido o alvará de funcionamento pela autoridade competente, ISS, IP, e nesta matéria, com competência exclusiva.
48. Actuando a apelante com uma licença válida e autorizada pela única entidade que o permite, CML, e tendo obtido o Alvará de funcionamento, a apelante está legal e cumpre todos os requisitos que a sua actividade social exige, não praticando qualquer acto ilícito.
Não existe assim, qualquer violação do título constitutivo da propriedade horizontal, pois não é dado um fim diferente ao que se destina a fracção, i.e., de habitação.
E como tal, não existe qualquer violação do artigo 1422, nº 2, al. c) do Código Civil, estando a apelante autorizada a exercer a actividade de acção social de creche na fracção em questão.
49. E, por consequência, não assiste o direito da autora, aqui apelada, de se opor ao uso da fracção como creche.
50. Não estando em causa a alteração do uso da fracção, não existe qualquer necessidade de autorização dos condóminos para mudança de uso, pois a licença de habitação existente não refere ser exclusiva e foi passível de autorização camarária para a acção social de creche. O que tinha de ser aprovado, foi com maioria qualificada e que são as obras na fracção.
51. Foi dado como provado que:
- a A., aqui apelada, é empresária por conta própria na área do imobiliário, desenvolvendo grande parte da sua actividade profissional no “escritório” que tem instalado na sua residência. Por vezes a A., apelada, trabalha à noite e, nesses dias, dorme parte do período da manhã seguinte, originando alterações no seu rendimento profissional e no aproveitamento escolar da filha - al. F) dos factos assentes e resposta aos quesitos 1º e 11º da BI;
52. Na sentença objecto de presente recurso, refere que a habitação não pode ser utilizada para “o exercício de uma actividade profissional liberal, por tal constituir violação do disposto no art. 1422º, n 2, al. c) do C. Civil”.
53. É exactamente na qualidade de profissional liberal que a autora, aqui apelante, invoca os seus danos e pede indemnização pecuniária. É por trabalhar à noite e querer descansar de manhã que a autora/apelada reclama contra a actividade diurna da creche.
54. Exercendo a autora/apelada uma actividade liberal, que segundo a sentença proferida, lhe está vedada e é ilícita (pois não pode “abarcar qualquer actividade lucrativa, por conta própria, que revista natureza comercial, industrial ou profissional liberal”) não terá legitimidade nem direito para reclamar supostos direitos relacionados com a sua actividade ilícita, não havendo assim causa de pedir quanto a este tipo de danos ou derivados do facto de autora ter o seu escritório em casa.
55. Ao ser atendido o pedido da autora com base no exercício da sua profissão liberal, estamos perante um abuso de direito, consagrado no artigo 334º do Código Civil.
56. Não está verificado o requisito primeiro da responsabilidade civil extracontratual: a ilicitude dos factos, quer porque a utilização não é ilegal, quer porque não estão violados, pelo menos, de forma intensa que mereçam a protecção peticionada, os direitos de personalidade da autora.
57. A ilicitude não pode resultar de meros incómodos, tendo antes que corresponder a “(...) um comportamento ruidoso, que prejudique o repouso, a tranquilidade e o sono de terceiros, está no facto de, injustificadamente e para além dos limites do socialmente tolerável, lesar tais baluartes da integridade pessoal.”
58. Não basta, pois, o desconforto por algum ruído, há que atender - ainda que desconsiderando a aferição do ruído por padrões legais estabelecidos - ao nível e tipo de ruído, aos horários em que o mesmo é produzido e às especiais circunstâncias daqueles que possam ser afectados pelo mesmo.
59. Da decisão sobre a matéria de facto, resulta apenas que da actividade da Ré, exercida no prédio que a A. habita, é produzido barulho (cfr. ponto 4º da decisão sobre a matéria de facto) quando no quesito inicial se questionava: Desde que a Ré iniciou a exploração da creche, todos os dias da semana, tem sido insuportável o barulho e o incómodo causado pelos empregados e pelas crianças?
60. A apelada não está acamada, não exerce nenhuma actividade com condicionantes especiais em termos de horários: v.g. médicos, enfermeiros, bombeiros, polícias, etc., pelo que não se exige uma protecção acrescida em face do homem médio, tanto mais quanto mais: a apelada é empresária por conta própria na área do imobiliário (cfr. ponto F da matéria de facto assente), podendo organizar a sua actividade como bem lhe aprouver.
61. Não há pois factos que permitam avaliar se “(...) o sono e o sossego...[da autora] é perturbado ... para que se possa concluir se existe ou não ofensa de um direito a um ambiente de vida humano e sadio segundo um critério de tolerabilidade normal.”
62. Era à apelada que caberia, nos termos e para os efeitos do art.º 342º, n.º 1, do CC, fazer prova dos factos constitutivos do seu direito, mormente, dos factos que permitissem concluir por uma lesão grave e efectiva dos seus direitos de personalidade.
63. Segundo a teoria da causalidade adequada, o facto voluntário do agente tem que ser condição abstracta e concreta do dano, isto é o facto tem que ser apto a produzir o dano e tem, no caso concreto, que ser a conditio do mesmo.
64. Quem se arroga à repressão ou indemnização por danos decorrentes de facto ilícito terá que provar o mesmo, sendo certo que é precisamente esse nexo causal de facto que não se vislumbra em nenhum ponto da matéria de facto provada.
65. A produção de barulho, só por si, não permite estabelecer o nexo de causalidade com o dano alegadamente sofrido pela Autora.
66. Ficou provado que a creche funciona apenas em dias úteis com um horário de funcionamento das 8h30 às 18h00, que as crianças dormem a sesta das 12h às 15h e, ao mesmo tempo, que por vezes a Autora trabalha à noite, dormindo parte da manhã, sendo que exerce uma actividade liberal.
67. E assim, a falta de descanso e de dormir da Autora não se pode dever ao barulho provocado pela actividade da creche, pois esse barulho só sucede de manhã ou à tarde e a Autora só por vezes dorme parte da manhã, nem sequer se tratando, assim, de um dano permanente.
68. Cansaço e irritabilidade, não constituem danos, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 483º e 496º do CC, já que ao contrário do que sucede com os danos patrimoniais, os danos morais só serão indemnizáveis se a sua gravidade o justificar.
69. Mesmo que se entenda que a Apelada sofreu danos e que esses danos merecem ser ressarcidos, dir-se-ia que a indemnização arbitrada - € 10.000,00! - é absolutamente exagerada e, por conseguinte, desproporcional.
70. A Autora exerce uma actividade liberal, administrando o património imobiliário que lhe foi deixado por herança, pelo que sempre poderá regular os seus horários como bem lhe aprouver, sendo que, considerando-se verificadas a ilicitude e a culpa da apelante, as respectivas intensidades sempre ter-se-ão de considerar diminutas.
71. Caso improcedam todos os outros argumentos expendidos no presente recurso, o que só se concede por cautela, deverá a indemnização fixada pelo Tribunal a quo ser reduzida, de acordo com as regras da equidade, para montante nunca superior a € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
72. Estamos perante uma colisão de direitos. Desde logo, porque os direitos em confronto são, por um lado, o direito ao repouso e, por outro, o direito de livre iniciativa económica (artigo 61.º da CRP) da Recorrente mas, também, o direito ao ensino, direito ao trabalho, e dos trabalhadores, dos sete colaboradores desta - vide facto provado nº 30 -, nos termos e para os efeitos dos artigos 58º, 59º, 61º, 62º e 74º da CRP.
73. Ficou provado que a única fonte de receitas da apelante são as propinas pagas pelos pais das crianças que frequentam a sua creche e que não tem condições económicas para, no imediato, acolher crianças noutro espaço (vide facto provado n.º31).
74. De acordo com regras de experiência comum, a apelante terá que encerrar a sua actividade caso a decisão de fechar a creche se mantenha, sobretudo, se se atender às obrigações de reembolso previstas no contrato celebrado com o Instituto do Emprego e da Formação Profissional para financiamento da instalação dessa creche (facto provado nº 32)
75. Ensina a doutrina que mais tem versado sobre a colisão de direitos fundamentais e princípios constitucionais que o exercício de resolução do conflito de direitos pressupõe a ponderação das circunstâncias concretas do caso, sendo inequívoco que uma preferência constitucional abstracta é duvidosa ou senão mesmo impossível.
76. Assim o impõe o Artigo 18º, nº 2 da Constituição, segundo o qual a lei pode restringir os direitos, liberdades e garantais nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Este artigo preconiza o princípio material da proporcionalidade o que envolve, para os tribunais, a obrigação de interpretar e aplicar os preceitos sobre direitos, liberdades e garantias de modo a conferir-lhes a máxima eficácia possível, dentro do sistema jurídico, e a obter equilíbrio, a concordância prática, se possível a realização simultânea dos direitos, liberdades e garantias, por um lado, e da iniciativa privada, por outro.
77. A ser assim, como sucede com a decisão recorrida, estaremos perante uma decisão violadora do princípio da proporcionalidade (artigo 18º, n.º 2, da CRP), uma vez que não foi adoptada uma decisão que salvaguardasse o núcleo essencial do direito preterido.
78. Ainda que se considerasse provados todos os factos da petição inicial, e ainda que se considerasse que os incómodos da apelada merecem tutela, sempre haveria que ponderar uma solução que não coarctasse de forma absoluta os direitos da apelada e dos seus trabalhadores, designadamente, impondo-lhe a obrigação de realizar obras para isolamento de ruído, que o limitasse a níveis que se considerassem como socialmente toleráveis ou, por exemplo, a limitação dos horários dos recreios das crianças.
79. Por outro lado, a actividade da creche decorre entre as 8.30 da manhã e as 18.15 da tarde. Trata-se do período diurno em que a maioria dos cidadãos desempenha a sua actividade profissional e decorrem as aulas escolares. 0 período de sono, descanso, repouso, ocorre, por regra, entre as 21 horas e 7 horas da manhã. Tal é explicitado no artigo 3º, n 3, al. e) do Regulamento do Ruído aprovado pelo D.L. 292/2000 de 14 de Novembro e art. 177º do Código de Processo Penal e artigo 840º, nº 3 do Código de Processo Civil.
80. Não está assim em causa a recuperação fisiológica do ser humano nem a violação ao descanso, repouso e ao sono. Aliás, a apelada não exerce actividade profissional que implique que a mesma durma durante o dia (enfermeiros, médicos, guarda nocturno, hospedeira, etc.), e a filha da apelada não estuda no período nocturno que a obrigue a dormir de dia.
81. Há ainda que atender à natureza do ruído ou barulho em causa. Não se trata de um barulho proveniente de maquinismos com carácter constante, equipamentos de frio, ares condicionados, etc. Trata-se de barulho proveniente de vozes humanas, que terá alguma intensidade entre as 8.30h e as 12.00h e entre as 15.00h e as 18.15h - factos provados n 28 e 29. O barulho de crianças é um barulho humano, não tendo ficado provado que fosse insuportável ou agressivo.
82. Não tem, por isso, aplicação ao caso sub/iudice, o artigo 1346º do Código Civil, indicado na sentença, uma vez que se refere a ruídos e elementos que tenham natureza incorpórea - vapores, ruídos, correntes eléctricas, raios luminosos - e as de elementos corpóreos de tamanho ínfimo - fuligem, poeira, cinza, etc.. Neste sentido esclarece o Prof. Menezes Cordeiro que a ideia de emissão do ponto de vista do prédio que as recebe, abrange realidades físicas, materiais, sob forma energética, gasosa ou em pequenas partículas. Não estão abrangidas “emissões imateriais” ou seja, efeitos provenientes de realidades meramente psicológicas ou sociais.
83. Todavia, infelizmente, o Tribunal a quo decidiu determinar o encerramento da creche em 6 meses, com os inerentes prejuízos para os trabalhadores da Recorrente, para as crianças e para os seus pais e para a própria Recorrente, o que, é claro, constitui medida manifestamente desproporcional para salvaguardar a ocorrência de meros incómodos.
84. Na ponderação entre a reduzida gravidade do dano que se visa evitar à apelada (impedir de descansar por exercer a sua profissão liberal - vedada por lei - durante o período nocturno) e os danos que o encerramento da creche - que exerce uma actividade licita e no âmbito habitacional - designadamente o encerramento de estabelecimento, extinção de 8 postos de trabalho que irão acrescer ao inúmero de pessoas que se encontram actualmente no desemprego com pagamentos de indemnizações de cerca de € 15 000,00, ao reembolso imediato ao IEFP de quantia nunca inferior a € 97 883, 00, e a prejudicar 25 famílias, pais e crianças - crê-se que estes últimos avultariam em relação àquele.
85. A apelante sempre actuou com boa-fé e com a máxima diligência e transparência, tal como comprovam os factos provados e dados como assentes. A apelante tomou todas as providências e procedimentos para exercer a actividade de acção social de creche segundo as regras e normas legais impostas, acrescido do cuidado especial perante a vizinhança - confira-se as respostas aos quesitos 14º, 17º, 18º, 19º, 20º e 21º da BI.
86. A apelante cumpre os requisitos legais, enquadra-se no âmbito habitacional e respeita a lei do ruído, pois o barulho que provoca é um barulho familiar: são pessoas e crianças e é sentido entre as 8.30h e as 18.00h.
87. A própria CML transmitiu ao IEFP, no decurso do processo de financiamento da creche da apelante, parecer “Favorável, dado contribuir para o desenvolvimento local e criação de emprego”.
88. O encerramento da creche irá levar a apelante à falência porque não exerce outra actividade que não a acção social nem tem receitas para fazer face aos encargos de encerramento (indemnização de funcionários, reembolso de investimento, empréstimo, reembolso ao IEFP, pagamento a fornecedores, devolução de inscrição aos pais) tudo num montante estimado de € 150 000,00, irá desempregar 8 trabalhadores e prejudicar 25 famílias e 25 crianças.
89. Não é razoável decidir pelo encerramento de uma creche, com todos os benefícios que traz à comunidade, famílias e emprego, quando a sua actividade é de acção social e é lícita numa casa de habitação cuja licença de utilização é válida, com o uso não destinado exclusivamente a habitação, mas sim no sentido lato e definido pelo PDM, com alvará emitido, que emite barulho dentro do horário permitido e diurno porque a vizinha, aqui apelada, exerce a sua profissão liberal e faz de sua casa escritório e opta por trabalhar à noite (porque quer e não porque a sua profissão o exige) e não consegue descansar de dia.
90. Conclui-se, por isso, que a decisão recorrida violou todas as normas antes mencionadas mas, em especial, o disposto nos artigos, 335º, 342º, 483º, 496º, 562º, 563º, do Código Civil e as normas consagradas nos artigos 18º, nº2, 58º, 59º, 61º, 62º e 74º da CRP.
Mais violou o D.L. 94/94, de 29 de Setembro (PDM), em especial o seu artigo 7º e o D.L. 182/93 de 14 de Maio (CAE),
Houve erro na determinação da norma aplicável, designadamente, os artigos 1422º e 1436º do Código Civil, que não se aplicam ao caso sub iudice.
Devendo ter sido aplicados os artigos violados assim como devem ser respeitados os princípios consagrados na CRP,
Devem ser aplicados o artigo 7º do PDM que define o âmbito de uso habitacional, o CAE no sentido que define que a actividade de creche é uma actividade de acção social,
Mais deveriam ter sido aplicados os D.L. 292/2000 de 14 de Novembro (lei Ruído) em consonância com os artigos 177º do C.P.P. e art. 840º, n 3 do C.P.C., assim como o D.L. 133-A/97 de 30 de Maio (licenciamento de creches).
91. O prazo de encerramento de 6 meses é manifestamente curto para permitir à apelante qualquer tipo de alternativa e angariar fundos necessários para o pagamento de indemnizações e reembolsos que o encerramento acarretará, já referidos em cerca de € 150.000,00.
92. Assim como é curto o mesmo prazo para os pais conseguirem vaga para os filhos noutros locais, a meio de um ano lectivo.
93. A ser decidido pelo encerramento, sempre se requer que o mesmo seja adiado para o final do ano lectivo em que for proferido o respectivo acórdão, ou seja, que seja concedido um prazo mínimo superior a 6 meses e, caso calhe a meio do ano escolar, seja permitido até ao final do mesmo, que ocorre em Julho do ano civil.
94. Finalmente, quanto ao montante da sanção pecuniária compulsória, atendendo à diminuta lesão que foi causa de pedir da apelada e à proporção dos danos em questão, deverá ser aplicado um montante de € 100,00 por mês de atraso e não por dia, por se demonstrar ser manifestamente desproporcionado aos valores e decisão que está em causa.
Termos em que deve ser revogada a sentença apelada, substituindo-a por acórdão que:
a) julgue como não provados os quesitos 9º, 10º e 11º da base instrutória;
b) julgue que a actividade da apelante é lícita e legalmente inserida no âmbito habitacional;
Julgando a acção inteiramente improcedente, absolvendo-se a apelante do pedido formulado na petição inicial
c) se assim não se entender, que se conceda um prazo alargado para o encerramento de actividade, reduzindo a sanção pecuniária compulsória ao montante de € 100,00 mensais
*
A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação da sentença.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC). Assim, as questões que se colocam são as seguintes:
- se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto
- se é lícito o exercício da actividade de creche no prédio dos autos
- se a pretensão da apelada configura abuso do direito
- se há colisão de direitos e violação do princípio da proporcionalidade
- se o exercício da actividade de creche no prédio dos autos tem causado à apelada danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica
- se o montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser reduzido
- se deve ser alargado o prazo para encerramento da creche
- se deve ser reduzido o montante da sanção pecuniária compulsória
*
III – Fundamentação
A) Na sentença recorrida vêm dados como provados os seguintes factos:
1 - Encontra-se inscrita em nome da A. “A” e de “F” a aquisição, por compra, da fracção autónoma designada pela letra “D”, que corresponde ao 2º andar direito do prédio urbano sito na Rua ... n.º ..., em Lisboa, descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....
2 - O prédio é composto por treze fracções autónomas, das quais a fracção “A” é destinada a loja e utilizada para o exercício do comércio, e as restantes a habitação.
3 - Desde Setembro de 2005 a fracção autónoma designada pela letra “B”, correspondente ao 1º andar direito, encontra-se a ser utilizada pela R. para a actividade de creche.
4 - Tal utilização é feita na sequência dum contrato de arrendamento celebrado entre a R. e a proprietária da fracção.
5 - A fracção autónoma designada pela letra “B” apenas possui licença de utilização para habitação.
6 - A A. é empresária por conta própria na área do imobiliário, desenvolvendo grande parte da sua actividade profissional no “escritório” que tem instalado na sua residência e é aí que se dedica à análise de projectos e propostas de arquitectura e construção e à promoção de concursos para adjudicação de empreitadas.
7 - No dia 29 de Julho de 2005 a Vereadora do Urbanismo da CML deferiu um pedido da R. com base no parecer junto a fls. 84, do qual consta, designadamente: “alega, ainda, ter autorização dos condóminos para exercer a actividade desde que o possa fazer sem mudar a finalidade da habitação...” (pág. 1) e “a actividade de creche ou jardim-de-infância é de haver como habitacional, dado que, pela CAE 85.321, que a define, carece de quartos e cozinhas, a exemplo das habitações, lares e instalações hoteleiras e ao contrário das lojas, escritórios, consultórios e laboratórios” (pág. 3).
8 - Em 12 de Abril de 2007 o Instituto da Segurança Social, I.P., atribuiu à creche da R. o alvará de abertura e funcionamento n.º .../2007, para a actividade de creche com uma lotação máxima de 25 crianças.
9 - Por vezes a A. trabalha à noite e, nesses dias, dorme parte do período da manhã seguinte. ( resposta ao artº 1º da base instrutória)
10 - A sua filha menor, “G”, frequenta o 11º ano de escolaridade, sendo em casa que estuda e se prepara para as aulas e exames.
11 - Desde que a R. iniciou a exploração da creche, durante os dias úteis e no período do seu funcionamento, as crianças que a frequentam e as funcionárias que aí trabalham produzem barulho.
12 - Barulho este provocado, designadamente, pelos berros, gritos, choro e correria de 25 crianças.
13 - O barulho produzido não tem origem apenas no interior da fracção, mas também na escada até ao 1º andar e na entrada do prédio.
14 - A porta de acesso à rua fica com frequência aberta, quer de manhã, quer à tarde, gerando desconforto e sensação de insegurança à A., sua família e demais habitantes do prédio, que temem um possível assalto às suas instalações.
15 - A entrada do prédio e a escada até à porta da creche sujam-se mais com a passagem de utentes e funcionários da creche.
16 - Foram, e são, inúmeros os dias em que a A. e a sua família foram impedidos de dormir, descansar, trabalhar e estudar. (resposta ao artº 9° da base instrutória)
17 - O que lhes causa, nos dias imediatos, mal-estar, caracterizado por cansaço e irritabilidade. (resposta ao artº 10º da base instrutória)
18 - Originando, inclusive, alterações no seu rendimento profissional e no aproveitamento escolar da sua filha. (resposta ao artº 11º da base instrutória)
19 - Em Janeiro de 2005 a R. dirigiu-se à Câmara Municipal de Lisboa para saber qual a licença de utilização necessária para a acção social de creche.
20 - Foi informada que não são emitidas licenças de utilização específicas para a acção social de creche ou actividades afins, que se inserem no âmbito do uso habitacional.
21 - Em 3 de Junho de 2005 a Ré enviou uma carta aos proprietários e arrendatários do prédio, informando-os, entre outras coisas, sobre o licenciamento da creche e sobre a validade da licença de utilização.
22 - Em assembleia de condóminos realizada dia 14.06.2006, foram aprovadas pelos condóminos presentes, que representavam mais de dois terços do valor total do prédio, as obras efectuadas no alçado a tardoz do prédio, junto à fracção autónoma correspondente ao 1º Dto., conforme doc. de fls. 111 a 115.
23 - As obras realizadas no 1º Dto. destinaram-se também a diminuir a passagem de ruído para o exterior da fracção autónoma. 24 - A R. mandou instalar toldos no pátio utilizado pelas crianças.
25 - E mandou colocar pavimento “vinil tapiflex” que, para além de outras características, gera menos ruído.
26 - Para minimizar o incómodo que o bater da porta de acesso à rua pudesse causar, a R. mandou afinar a mola de modo a que a porta feche com suavidade.
27 - Os funcionários da R., as crianças e os seus pais não utilizam o elevador do prédio para não lhe causar um desgaste anormal.
28 - O horário de funcionamento da creche é de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 18h00, saindo as crianças obrigatoriamente até às 18h15.
29 - Frequentam a creche 25 crianças entre os 4 meses e os 3 anos, fazendo todas elas a sesta, embora em períodos que variam consoante a sala, mas compreendidos entre as 12h e as 15h.
30 - Aí trabalham sete pessoas e uma empregada de limpeza, cujos postos de trabalho seriam postos em causa com um eventual encerramento.
31 - A R. tem como única fonte de receitas as propinas pagas pelos pais das crianças e não tem condições físicas e económicas para, no imediato, acolher as crianças noutras instalações.
32 - Em 06.07.2005, foi celebrado entre o Instituto de Emprego e Formação Profissional e as sócias da R. “H” e “I” o contrato de concessão de incentivos financeiros, cuja cópia se mostra junta a fls. 126 a 136, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
B) Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
B)1. Sustenta a apelante que devem ser alteradas as respostas aos artigos 9º, 10º e 11º da base instrutória (que correspondem aos pontos 16º, 17º e 18º da matéria de facto constante da sentença).
No art. 9º da b.i. pergunta-se: «Foram, e são, inúmeros os dias em que a A. e a sua família foram impedidos de dormir, descansar, trabalhar e estudar?»
A resposta dada na 1ª instância foi: «Provado».
No art. 10º da b.i. pergunta-se: «O que lhes causa, nos dias imediatos, um profundo mal estar, caracterizado por cansaço e irritabilidade extremas?».
A resposta dada na 1ª instância foi: «Provado que (…) o que lhes causa, nos dias imediatos, mal estar, caracterizado por cansaço e irritabilidade.»
No art. 11º da b.i. pergunta-se: «Originando, inclusive, alterações no seu rendimento profissional e alterações no aproveitamento escolar das suas filhas?»
A resposta dada na 1ª instância foi: «Provado que (…) originando, inclusive, alterações no seu rendimento profissional e no aproveitamento escolar da sua filha.».
*
A 1ª instância fundamentou as respostas a estes artigos nestes termos: «depoimento da testemunha “C”, tendo ainda sido considerado o depoimento das testemunhas “D” e “E”, bem como as regras da experiência comum.».
No que respeita a estas testemunhas referiu-se que “C” é cunhada da A., conhecendo-a há 24/25 anos, e visita da sua casa, nomeadamente durante a semana e a diferentes horas do dia; “D” é residente no 4º andar esquerdo do prédio desde 1996; “E” é residente no 3º direito do prédio desde 1963.
*
B) 2. Para reapreciação da prova nesta Relação procedeu-se à leitura da transcrição dos depoimentos das testemunhas “D”, “E” e “C” bem como à audição dos depoimentos de todas as testemunhas gravados nas cassetes apensas aos autos.
De harmonia com o nº 1 do art. 655º do CPC o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Por sua vez, o art. 396º do Código Civil prevê que «A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal».
Como refere Alberto dos Reis «Prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei.
(…) se nenhuma prova se produziu sobre determinado facto, cumpre ao tribunal responder que não está provado (…)» (in Código de Processo Civil anotado, vol IV, pág. 544/545).
Também para Castro Mendes «O princípio da prova livre, ou de livre apreciação ou avaliação da prova, é aquele segundo o qual a lei não deve fixar as conclusões que o juiz tirará dos diversos meios de prova; a relevância e força probatória destes será aquela que tiverem naturalmente no espírito do julgador» (in Direito Processual Civil III, 1980, pág. 205/206).
No mesmo sentido escrevem Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto: «ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.» (in Código de Processo Civil anotado, vol 2º, 2ª ed, pág. 668).
Portanto, na valoração dos depoimentos das testemunhas deverá o juiz valer-se das regras da experiência comum para avaliar a sua credibilidade e formar a sua convicção sobre a realidade dos factos.
No caso vertente apenas a testemunha “C” mantém relação próxima com a apelada, por ser sua amiga e cunhada, sendo visita da casa com frequência.
As testemunhas “D” e “E” desconhecem qual a actividade profissional da apelada e não revelaram conhecimento sobre a sua vivência, sentimentos e estado psicológico quer antes quer após a instalação da creche.
No que respeita ao depoimento da testemunha “C”, a sua audição permite-nos concluir que depôs de forma séria e sincera, não denotando parcialidade. Referiu que na residência da apelada se ouve o barulho das crianças – choros, correrias - produzido quer no interior da creche quer no recreio. O seu depoimento está em consonância com os depoimentos das testemunhas “D” e “E”, o primeiro residente no 4º andar esquerdo e a segunda residente no 3º andar direito, pois declararam que no interior das suas residências ouvem o barulho que se produz na creche. Na verdade, como se houve o barulho nos andares superiores é natural que se ouça também e com mais intensidade na casa da apelada porque se situa exactamente por cima da creche.
Mas vejamos qual o conhecimento que a testemunha “C” revelou relativamente aos factos a que respeitam os artigos 9º, 10º e 11º da base instrutória.
A testemunha disse que dormiu uma vez na casa da apelada, em Fevereiro de 2008, acordou às 8h00 da manhã e já se ouvia algum barulho da creche, «não stressei porque era uma vez, se fosse muitas vezes, provavelmente stressaria». Não referiu ter-se apercebido nessa altura de que a apelada ou alguma das filhas não conseguiam dormir por causa do barulho da creche nem mostrou conhecimento sobre os horários habituais de descanso matinal praticados pela apelada e pelas filhas. Repare-se até, que na 1ª instância apenas foi dado como provado, com fundamento no depoimento desta testemunha, que «Por vezes a A. trabalha à noite e, nesses dias, dorme parte do período da manhã seguinte» (cfr resposta ao art. 1º da b.i. e que corresponde ao ponto 9 da matéria de facto da sentença).
Por outro lado, perguntada se a Autora e a sua família foram impedidas de dormir, descansar, trabalhar e estudar respondeu: «Ela queixou-se do barulho», a miúda queixou-se das explicações, que o explicador se queixava de que assim não se conseguia trabalhar, o dormir pois não sei, ela diz que andava tensa, que andava nervosa, que aquilo era uma barulheira, pronto, deduzo que devia ser de não conseguir dormir por causa do barulho cá de baixo».
Perguntada «sabe se ela ficou com algum mal-estar, com cansaço, com irritabilidade, por causa…?», respondeu «Andava stressada. Andava e anda stressada», «Andava irritada, anda nervosa, diz que não consegue descansar, que aquilo é uma barulheira constante, depois é a porta, depois é a miúda que está a estudar para os exames, está-se a preparar para os exames, era o explicador que se queixava que também não conseguia concentrar-se, nem na sala, porque aquilo estende-se ao longo da casa toda, depois são as crianças que vão para o recreio, e depois não se conseguem concentrar. Portanto, queixavam-se, depois era a miúda que também se queixava, portanto aquilo cria um mal estar.»
E referindo-se ao desempenho profissional da apelada e ao rendimento escolar das filhas referiu que aquela é empresária em nome individual, «trabalha em ligação com um arquitecto, tem uma contabilista a trabalhar com ela mas não dentro da residência, as pessoas dirigem-se a casa dela para tratar dos assuntos», «Eu não assisti às reuniões que ela tinha, obviamente, com o arquitecto, ou contabilista, mas ela diz que, muitas vezes estava em reunião e que não conseguia fazer uma reunião com princípio, meio e fim com o arquitecto, mas eu não assisti às reuniões, embora ouvisse as queixas.», «Ouvi a queixa em relação ao explicador, portanto que era o barulho, e que as miúdas não estavam a dar rendimento, agora não sei a que é que atribuíram isso, mas sei que as explicações não tinham rendimento, e que ele se queixava do barulho».
Portanto, a testemunha não sabe se a apelada e as suas filhas são impedidas de dormir por causa do barulho da creche, limitando-se a fazer uma dedução e mesmo assim, apenas quanto à apelada, pois nada referiu sobre este aspecto relativamente às filhas.
Quanto à alegada impossibilidade de se trabalhar e estudar lá em casa, a testemunha limitou-se a transmitir o que lhe foi dito pela apelada e por uma filha.
Assim, apesar de a experiência da vida nos ensinar que o barulho é factor de perturbação do sono, podendo causar diminuição do rendimento no trabalho e no estudo, não foi produzida prova de que o barulho sentido na casa da apelada proveniente do interior da creche e do recreio e até das escadas do prédio com as entradas e saídas de pais e crianças, tenha originado tais consequências.
Por isso, não pode ser dado como provado que a A. e a sua família foram impedidos de dormir, trabalhar e estudar e que tiveram alterações no seu rendimento profissional e aproveitamento escolar.
Também é verosímil que haja perturbação na vida dos habitantes de um prédio em que funcione uma creche com 25 crianças, sobretudo para os habitantes de fracção situada imediatamente acima. E é um dado adquirido que a casa em que se reside é o local onde se espera poder repousar e encontrar tranquilidade. Ora, as testemunhas “D” e “E” disseram, de forma convicta e séria, que até nas suas fracções ouvem o barulho proveniente da creche, a testemunha “C” disse que a A. andava e anda stressada, irritada e nervosa por causa do barulho que se estende por toda a sua fracção A.. Assim, estando já provado o que consta nas respostas aos quesitos 4º, 5º e 6º, conclui-se, da conjugação desses factos e dos depoimentos das referidas testemunhas que deve ser dado como provado que foram e são inúmeros os dias que a A. tem sido perturbada no seu descanso em casa e que isso lhe causa mal estar caracterizado por cansaço e irritabilidade.
Por quanto se disse, altera-se as respostas aos artigos 9º, 10º e 11º da base instrutória, passando a ser as seguintes:
Artigo 9º - Provado que foram e são inúmeros os dias em que a A. tem sido perturbada no seu descanso em casa pelo barulho produzido pela creche como referido nas respostas aos artigos 4º, 5º e 6º.
Artigo10º - Provado que o constante na resposta ao artigo 9º causa à Autora mal estar caracterizado por cansaço e irritabilidade.
Artigo 11º - Não provado.
*
Em consequência:
- é eliminado o ponto 18 da matéria de facto
- são alterados os pontos 16 e 17 da matéria de facto passando a ter a seguinte redacção:
«16 – Foram e são inúmeros os dias em que a A. tem sido perturbada no seu descanso em casa pelo barulho produzido pela creche como referido nos pontos 11, 12 e 13.
17 – O que causa à Autora mal estar caracterizado por cansaço e irritabilidade.
*
C) O Direito
1. - Se é lícito o exercício da actividade de creche no prédio dos autos
A apelante exerce a actividade de creche no 1º andar direito do prédio dos autos na sequência de um contrato de arrendamento que celebrou com a proprietária dessa fracção autónoma.
A referida fracção autónoma apenas possui licença para habitação, sendo que o documento mencionado no ponto 5 da matéria de facto é uma certidão da Conservatória do Registo Predial onde se lê: «Primeiro andar direito – habitação» (fls. 10 a 15 dos autos de procedimento cautelar).
O título constitutivo do regime de propriedade horizontal deste prédio é o documento de fls. 100 a 102 referido no ponto 2 da matéria de facto nele constando «Que o referido prédio destinado a comércio e habitação se compõe de cave, rés-do-chão, seis andares, com lados direito e esquerdo, e sótão», «Fracção “B” – Primeiro andar, lado direito: ocupação ou fogo destinado a habitação, com entrada pelo número oitenta de polícia, composto de treze divisões e marquise (entre elas as salas, quartos, cozinha, casa de banho, instalações sanitárias e despensa)» e que o 1º andar esquerdo e todos os restantes andares esquerdo e direito desde o 2º ao 6º inclusive são também destinados a habitação e que a loja está situada ao nível do rés-do-chão e da cave.
O art. 1418º do Código Civil dispõe que o título constitutivo da propriedade horizontal poderá conter a menção do fim a que se destina.
Por sua vez, de harmonia com o art. 83º nº 1 al c) do Código do Registo Predial, a descrição predial de cada fracção autónoma deve conter a menção do fim a que se destina se constar do título.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art. 7º do CRP).
Nos termos do art. 1422º nº 2 al c) do Código Civil é vedado ao condómino dar à sua fracção uso diverso do fim a que é destinada.
O estatuto da propriedade horizontal tem eficácia absoluta, sendo vinculativo erga omnes.
Importa, por isso, saber se a utilização do 1º andar direito para o exercício da actividade de creche se integra no fim indicado no título constitutivo e no registo predial.
Invoca a recorrente o art. 7º do Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa dizendo que dá a noção de uso habitacional e que a licença de utilização destinada a habitação, quando não refere que seja destinada exclusivamente a habitação, no sentido mais comum do termo, pode ser utilizada para qualquer um dos fins descritos naquele normativo.
O PDM de Lisboa foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 94/94 e publicado no Diário da República nº 226, I-B de 29/9/1994.
O art. 7º do Regulamento do PDM estabelece que para efeitos do Regulamento são adoptadas as seguintes definições: «Uso habitacional: engloba a habitação unifamiliar e plurifamiliar, as instalações residenciais especiais (albergues, residências de estudantes, religiosas e militares) e as instalações hoteleiras».
Portanto, não refere creches, infantários ou jardins de infância.
Mas a admitir-se a equiparação de uma creche às instalações residenciais especiais ou às instalações hoteleiras, a verdade é que se tratam, todas, de estabelecimentos onde são prestados serviços aos seus utentes. Portanto, o PDM de Lisboa dá-nos uma noção alargada de uso habitacional e que não corresponde ao correntemente utilizado.
Ora, o critério de interpretação dos dizeres do título constitutivo da propriedade horizontal deve ser o consagrado no art. 236º do Código Civil pelo que deve assentar predominantemente no significado corrente das expressões nele usadas. Por isso, a declaração constante desse título relativa ao destino das fracções do prédio deve valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário (ou seja, o terceiro, candidato a condómino) possa dele deduzir (neste sentido Ac da RL de 17/12/1992 – CJ ano XVII, 5º, pág. 162).
Para um declaratário normal o sentido corrente de «habitação» é «lugar ou casa onde se habita; residência, domicílio» e o de «habitante» é «a pessoa que reside habitualmente num lugar» (cfr Dicionário da Língua Portuguesa, 7ª ed, Dicionários Editora). Para o declaratário normal a utilização de uma fracção autónoma para habitação não tem o mesmo significado que utilização como hotel, casa de hóspedes, lar de idosos, residência para estudantes ou creche.
A proibição, imposta aos condóminos, de dar à sua fracção uso diverso do fim a que é destinada justifica-se não só por razões de natureza pública mas também para defesa dos interesses e das justas expectativas da comunidade condominial.
Na verdade, como se lê no Ac do STJ de 14/12/2008 (Proc. 08B1350 – in www.dgsi.pt), «Quem adquire alguma fracção em propriedade horizontal tem o direito de saber com o que conta, o direito de saber até onde vão os seus direitos, enquanto condómino, no confronto com os direitos dos demais condóminos.
E deve haver um rigor extremo na definição dos direitos de cada qual, e na articulação de todos eles entre si, pois que um conceito alargado do que cada um possa fazer é meio caminho andado para que todos perturbem todos».
Um interessado que adquire um andar num prédio destinado a habitação poderia não o ter comprado se soubesse que no imóvel poderia vir a ser instalado um estabelecimento de restauração, uma hospedaria ou uma creche pois é normal que a prestação dos serviços inerentes a estas actividades gere maior movimento e barulho do que a mera utilização como casa de habitação.
Assim, como se decidiu no Ac do STJ de 26/11/2002 (Proc. 02A3477 in www.dgsi.pt) resultando do título constitutivo de propriedade horizontal que uma fracção autónoma se destina a habitação é vedada a sua utilização como casa de hóspedes e portanto a cedência habitual e profissional de alojamento de pessoas em quartos de dormir, pois dessa forma está a ser exercida uma actividade não consentida no título constitutivo da propriedade horizontal.
Aliás, também no âmbito do arrendamento a lei afasta-se claramente da noção alargada de uso habitacional adoptada pelo Regulamento do PDM de Lisboa ao dispor que consideram-se hóspedes as pessoas, no máximo de três, a quem o arrendatário proporcione habitação e preste habitualmente serviços relacionados com esta, ou forneça alimentos, mediante retribuição. Distingue-se pois, o arrendamento para habitação em que apenas é permitido um máximo de três hóspedes e o arrendamento para o exercício de actividade hoteleira (cfr art. 76º do RAU e agora o art. 1093º do Código Civil).
Concentrando-nos agora nas creches, diz-nos o DL 133-A/97 de 30/5 que são estabelecimentos de apoio social relativos a crianças e não podem iniciar a sua actividade sem se encontrarem licenciados através de alvará (cfr art. 1º, 2º, 6º e 7º).
A Norma I do Despacho Normativo nº 99/89 de 27/10/89 preceitua:
«1 – As presentes normas visam regulamentar as condições mínimas de instalação e funcionamento das creches com fins lucrativos, (…).
2 – Para efeitos do número anterior consideram-se creches os estabelecimentos que acolham crianças em número igual ou superior a cinco».
A Norma II prescreve:
««São objectivos específicos das creches:
a) Proporcionar o atendimento individualizado da criança num clima de segurança afectiva e física que contribua para o seu desenvolvimento global;
b) Colaborar estreitamente com a família numa partilha de cuidados e responsabilidades em todo o processo evolutivo de cada criança;
c) Colaborar no despiste precoce de qualquer inadaptação ou deficiência, encaminhando adequadamente as situações detectadas».
A Norma III prevê:
«1 – Relativamente à localização e instalação, as creches devem obedecer preferencialmente às seguintes condições:
a) Inserir-se em zona habitacional no aglomerado urbano (…)
(…)
d) Nos casos de instalação em parte do edifício, deve, de preferência, ocupar-se o rés-do-chão e andares subsequentes até ao 2º andar e ser salvaguardada a independência das áreas a utilizar pela creche, excepto no que se refere à entrada, que pode ser comum aos restantes andares do prédio;
(…)».
A Norma IV estabelece:
«As instalações das creches devem compreender, nomeadamente, os seguintes compartimentos e espaços, de harmonia com os requisitos definidos nas normas seguintes: berçários, salas de actividades, copa de leites, cozinha, sala de refeições, instalações sanitárias, gabinetes e outros espaços.».
Portanto, uma creche é um estabelecimento que presta serviços no âmbito da actividade de apoio social e cujo funcionamento está sujeito a licenciamento para esse fim mesmo se instalada em fracção autónoma destinada a habitação. Em consequência, a instalação de uma creche em fracção destinada a habitação – entendida esta palavra no sentido corrente - pelo título constitutivo da propriedade horizontal representa alteração do fim previsto.
No sentido de que o deferimento da alteração do fim duma moradia inserida num loteamento, de habitação para jardim de infância configura mudança de fim potencialmente violador dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos proprietários dos outros lotes, veja-se o Ac do STA de 12/12/2002 (Proc. 047699 in www.dgsi.pt).
O facto de a Vereadora do Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa ter considerado que a actividade de creche ou jardim de infância é de haver como habitacional por se integrar na CAE 85.321 e de o Instituto da Segurança Social, IP, ter atribuído à creche alvará de funcionamento não tem a virtualidade de alterar o fim a que se destina a fracção autónoma nos termos do título constitutivo da propriedade horizontal.
A obtenção pelo condómino junto da Câmara Municipal do licenciamento da fracção para fim diferente do constante do título constitutivo da propriedade horizontal constitui condição necessária mas não suficiente para que possa proceder a essa alteração: a sua eficácia está dependente da modificação do título com o consentimento unânime dos restantes condóminos em conformidade com o disposto no art. 1419º do Código Civil (cfr Abílio Neto, Manual da Propriedade Horizontal, 3ª ed, 2006, pág. 186/187).
Ou seja, o acto da Câmara não confere ao proprietário da fracção um direito que não tinha perante os demais condóminos.
Aliás, a CAE 85.321 nem prevê o alojamento, afastando-se do conceito de habitação, pois tem o seguinte teor:
«Acção social para a infância e juventude, sem alojamento
Compreende, nomeadamente, as actividades desenvolvidas por creches, jardins-de-infância, centros de actividade de tempos livres, amas, parques infantis e salas de acolhimento. Inclui as actividade de adopção de crianças».
Além disso, a Classificação Portuguesa de Actividades Económicas destina-se apenas a ser utilizada para a classificação de empresas e estabelecimentos, para elaboração das estatísticas por actividade económica, para a realização de estudos, para a publicação de textos oficiais e para outros fins envolvendo principalmente a administração (cfr Aragão Seia, Propriedade Horizontal, 1991, pág. 105).
De quanto se expôs conclui-se que é ilícito o exercício da actividade de creche no 1º andar direito do prédio dos autos por violação da proibição consagrada no art. 1422º nº 2 al c) do Código Civil.
*
2. - Se a pretensão da apelada configura abuso do direito
Invoca a apelante que a pretensão da apelada configura abuso do direito.
Na sua contra-alegação sustenta a recorrida que se trata de matéria nova, não alegada nos articulados ou alegações de direito e por isso não poderá ser apreciada em sede de recurso.
Tem-se entendido que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida a exame do tribunal de que se recorre, mas que o tribunal de recurso pode conhecer de questões novas desde que de conhecimento oficioso e ainda não decididas com trânsito em julgado, como é o caso do abuso do direito (cfr Fernando Amâncio Ferreira (in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 146 a 149). Perfilhamos esta orientação. Assim, se os autos contiverem os factos pertinentes, deve este Tribunal conhecer do abuso do direito no caso concreto, pois a recorrida já exerceu o contraditório na contra-alegação.
Segundo a apelante, estando provado que a apelada exerce uma actividade liberal na sua fracção aí tendo instalado um escritório, não tem legitimidade nem direito para reclamar supostos direitos relacionados com tal actividade ilícita porque exercida em violação do disposto no art. 1422º nº 2 al c) do Código Civil.
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º do Código Civil).
Para que o exercício do direito seja abusivo é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder, é preciso que o direito seja exercido em termos “clamorosamente ofensivos da justiça” (Ac do STJ de 4/6/2002 (Proc. 02A1442 – in www.dgsi.pt).
Está provado que «A A. é empresária por conta própria na área do imobiliário, desenvolvendo grande parte da sua actividade profissional no “escritório” que tem instalado na sua residência e é aí que se dedica à análise de projectos e propostas de arquitectura e construção e à promoção de concursos para adjudicação de empreitadas».
Não está provado - nem foi alegado - que a apelada recebe clientes na sua residência, que aí se verifica um movimento de entradas e saídas diferente do usual numa casa de habitação nem que o exercício da sua actividade gera barulho ou qualquer outra perturbação no prédio. Portanto, apesar de a apelada exercer a sua actividade profissional na sua residência, não está demonstrado que provoque incómodo para os restantes utilizadores do prédio. Assim, resultando dos factos provados que a apelada tem visto perturbado o seu direito a permanecer tranquilamente em casa devido ao barulho produzido pelo funcionamento da creche, a sua pretensão para que seja encerrada não configura abuso do direito.
*
3. - Se há colisão de direitos e violação do princípio da proporcionalidade
Na sentença recorrida lê-se: «(…) este direito da A. a que a fracção da R. não seja destinada a uso diverso do que consta do título e que cessem aqueles ruídos não colide com qualquer direito da R. (art. 335º do C.Civil).
Efectivamente, a R. não tem o direito de na sua fracção exercitar a actividade de creche – proíbe-o o título constitutivo de propriedade horizontal e o disposto nos art. 1346º e 1422º nº 2 al c), ambos do Código Civil.
Daí que, não havendo o direito da R. a exercer naquela fracção aquela actividade, se não coloque a questão de conciliação entre o direito da A. e o pretenso direito da R.; sem colisão de direitos (a A. tem o direito a fazer cumprir o destino estabelecido no título e fazer cessar o ruído e a R. não tem direito a exercer aquela actividade naquele local) não há que ponderar qualquer conciliação de direitos nem fazer prevalecer o que deva considerar-se superior.
Todavia, sempre se dirá que entre o direito da A. e um pretenso direito da R. de natureza patrimonial, haveria que conceder prevalência àquele.
(…)
É indiscutível que o direito ao repouso, à tranquilidade e ao sono são uma emanação da consagração constitucional do direito à integridade física e a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente equilibrado, constituindo por isso, direitos de personalidade e com assento constitucional entre os Direitos e Deveres Fundamentais.
Também, por sua vez, o nº 1 do art. 70º do C.Civil preconiza que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (…)».
Sustenta a recorrente que os direitos em confronto são, por um lado o direito ao repouso e, por outro, o direito de livre iniciativa económica (art. 61º da CRP) da recorrente mas, também, o direito ao ensino, direito ao trabalho, dos sete colaboradores desta, nos termos e para os efeitos dos art. 58º, 59º, 61º, 62º e 74º da CRP.
Estabelece o art. 335º do Código Civil:
«1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes.
2. Se os direitos forem desiguais ou de espécies diferentes, prevalece o que deva considerar-se superior.».
Como ensina Castro Mendes (in Direito Civil, Teoria Geral, vol II, pág. 97 se ss), os direitos subjectivos estão sujeitos a limites intrínsecos e a limites extrínsecos. Limites intrínsecos são os que resultam da extensão ou do seu objecto ou do seu conteúdo e permitem representar uma série de categorias de actos que a lei considera em princípio lícitos e que são determinados pelas suas características materiais ou jurídicas – usar, fruir, dispor.
A figura da colisão de direitos integra-se nos limites extrínsecos, significando que os actos de exercício dos direitos têm de obedecer à condição de não estarem em colisão com direito a que devam ceder. Pressupõe a concorrência de direitos de outras pessoas em termos de se tornar total ou parcialmente impossível o exercício cumulativo de todos eles (cfr Ac do STJ de 29/4/1999 - Proc. 99B258 – in www.dgsi.pt).
Também sobre este instituto, ponderou-se no Acórdão do STJ de 9/5/2006 (Proc. 06A636 – in www.dgsi.pt):
«Parece-nos resultar com toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro – e quem diz direito diz qualquer posição jurídica passível de actuação – a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência de ambos. Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade. (…) Se ponderada a situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se.».
No caso dos autos é isto que se passa, ou seja, inexiste colisão de direitos.
Tem razão a apelante ao alegar que a Constituição da República Portuguesa consagra o direito à livre iniciativa económica, o direito ao trabalho, o direito ao ensino e o direito à propriedade privada. Designadamente, o art. 61º da CRP prevê que «A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.».
Porém, apesar da consagração constitucional do direito à livre iniciativa económica, isso não significa que a apelante o possa exercer em todo e qualquer local. Como já se concluiu que é ilícito o exercício da actividade de creche na fracção autónoma dos autos por representar alteração do fim a que a mesma se destina, não tem a apelante o direito de exercer a livre iniciativa económica naquele local. Em consequência, carece também de fundamento a invocação de violação do princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º nº 2 da Lei Fundamental.
Na verdade, todo o raciocínio desenvolvido pela apelante para aplicação da figura da colisão de direitos assenta no pressuposto errado de que tem direito a exercer a actividade de creche no 1º andar direito do prédio. E por isso, carece igualmente de fundamento, a argumentação de que se teria de ponderar a solução de lhe impor a limitação dos horários de recreios das crianças ou a obrigação de realizar obras para isolamento do ruído.
Improcede, pois, esta defesa da apelante.
*
4. - Se o exercício da actividade de creche no prédio dos autos tem causado à apelada danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica e na afirmativa, se o montante da indemnização deve ser reduzido
Atentos os factos provados descritos nos pontos 3, 11, 12, 16 e 17 da matéria de facto é indubitável que desde Setembro de 2005 a Autora tem sido perturbada, dentro da sua residência, pelo barulho causado pelo funcionamento da creche.
Para um cidadão comum, normal, a residência é o local onde se espera encontrar alguma paz e sossego.
O art. 70º do Código Civil prescreve que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, podendo a ofensa dar lugar a responsabilidade civil.
De harmonia com o nº 1 do art. 1422º nº 1 do mesmo diploma «Os condóminos, nas relações entre si, estão sujeitos, de um modo geral, quanto às fracções que exclusivamente lhes pertencem e quanto às partes comuns, às limitações impostas aos proprietários e aos comproprietários das partes comuns.».
Nos termos do art. 1344º em conjugação com o nº 1 do art. 1422º, o condómino pode opor-se à emissão de ruídos provenientes de outra fracção autónoma quando os mesmos não resultem da sua utilização normal.
Se alguém é diariamente confrontado - nos dias úteis -, contra a sua vontade, com o barulho dos berros, choros e correrias de 25 crianças e com isso se sente incomodado, sofrendo inúmeras vezes de cansaço e irritabilidade, como é o caso da apelada, não se vê como isso possa configurar um mero incómodo, tanto mais que esta situação se arrasta desde Setembro de 2005.
Além disso, os barulhos provenientes da creche não resultam da utilização normal da fracção autónoma pela simples razão de que são consequência de uma utilização desconforme com o fim de habitação a que a fracção está destinada pelo título constitutivo da propriedade horizontal.
Trata-se de uma ofensa ilícita à personalidade física e moral da apelada que assume gravidade devido ao seu prolongamento no tempo, pois não se resume a situações esporádicas, antes se enquadrando numa situação que se arrasta desde Setembro de 2005.
É irrelevante que o barulho seja produzido fora do período de descanso nocturno que ocorre por via de regra entre as 21h00 e as 7h00 da manhã de acordo com as normas legais invocadas pela apelante e que o nível de ruído produzido atinja ou não níveis que possam fazer a apelante incorrer na prática de contra-ordenação. A apelada tem o direito de estar em sossego no seu lar a qualquer hora do dia. É claro que o movimento de circulação de pessoas e veículos na rua também pode causar incómodo. Mas isso é o normal da vida em sociedade, é inevitável numa cidade, não podendo constituir justificação para que a apelada se veja forçada a suportar o barulho de uma creche a funcionar mesmo debaixo da fracção em que habita e com o qual não podia contar quando a comprou.
Estando provado que o barulho proveniente da creche tem causado à apelada mal estar caracterizado por cansaço e irritabilidade e que a produção desse barulho é ilícita, verificados estão os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos consagrada no art. 483º do Código Civil).
O direito à indemnização por danos não patrimoniais só existe se os mesmos revestirem gravidade merecedora da tutela do direito (art. 496º nº 1 deste diploma legal).
As consequências advindas para a apelada são gravosas dado o seu prolongamento no tempo e por isso justifica-se a fixação de indemnização em montante equitativo como prescreve o nº 3 do art. 496º.
Na sentença recorrida fixou-se a indemnização no montante de 10.000 € como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela apelada por se ter considerado que «desde Setembro de 2005, foram e são, inúmeros os dias em que a A. e a sua família foram impedidos de dormir, descansar, trabalhar e estudar, o que lhes causa, nos dias imediatos, mal-estar, caracterizado por cansaço e irritabilidade, originando inclusive, alterações no seu rendimento profissional e no aproveitamento escolar da sua filha.».
Mas em consequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto, os factos concretizadores dos danos não patrimoniais são estes: foram e são inúmeros os dias em que a apelada tem sido perturbada no seu descanso em casa pelo barulho produzido pela creche desde Setembro de 2005 como referido nos pontos 11, 12 e 13, o que lhe causa mal estar caracterizado por cansaço e irritabilidade. Perante estes factos, mostra-se equitativa a fixação da compensação pelos danos não patrimoniais no montante de 3.000 € (três mil euros), valor este actualizado – Ac do STJ Acórdão do STJ uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002 – in DR nº 146 de 27/6/2002 - reduzindo-se assim, o valor da indemnização fixada na 1ª instância.
*
5. - Se deve ser alargado o prazo para encerramento da creche
Vem alegado que a procedência da acção provocará o fecho imediato da creche e a falência da apelante pois terá de proceder ao reembolso ao IEFP, a extinção de 8 postos de trabalho e a impossibilidade de recolocação de 25 crianças afectando a vida pessoal e profissional de 25 famílias, que a sua actividade é lícita e que o prazo de seis meses para o encerramento é manifestamente curto para lhe permitir qualquer alternativa e angariar fundos necessários para o pagamento de indemnizações e reembolsos que o encerramento acarretará além de que é curto para os pais conseguirem vaga para os filhos noutros locais, a meio de um ano lectivo. Mais sustenta a recorrente que a ser decidido o encerramento da creche deve o mesmo ser adiado para o final do ano lectivo em que for proferido o acórdão, concedendo-lhe um prazo mínimo superior a seis meses e, caso calhe a meio do ano escolar, seja permitido o encerramento até ao final do mesmo, que ocorre em Julho do ano civil.
Já se concluiu pela ilicitude do exercício da actividade de creche na fracção dos autos e pela inexistência de colisão de direitos da apelante e da apelada.
Além disso, não resulta dos factos provados e designadamente face ao contrato de concessão de incentivos financeiros, que a apelante está impedida de exercer a sua actividade noutro local, ou seja, que será forçada a cessar a sua actividade se esta creche for encerrada.
Na sentença recorrida fixou-se em 6 meses o prazo para a apelada se abster de utilizar a creche neste local com estes fundamentos:
«Embora a R. possa exercer a actividade de creche noutro local, em local permitido, considerando que se apurou que a creche é frequentada por 25 crianças, que aí trabalham sete pessoas e uma empregada de limpeza, cujos postos de trabalho seriam postos em causa com um eventual encerramento, que a R. tem como única fonte de receitas as propinas pagas pelos pais das crianças e não tem condições físicas e económicas para no imediato, acolher as crianças noutras instalações, entende-se ser razoável conceder à R. o prazo de 6 meses para se abster de utilizar a fracção para a actividade de creche».
A apelante pretende a concessão de um prazo superior a seis meses para o encerramento do seu estabelecimento na fracção dos autos mas não indica qual o prazo que tem por adequado, apenas sendo claro que pretende que o encerramento não ocorra antes do final do ano lectivo em curso na data do acórdão. No entanto, mostra-se pertinente evitar o encerramento deste estabelecimento a meio do ano escolar para que os progenitores não se vejam confrontados com a impossibilidade de colocarem as suas crianças noutra creche.
Assim, mantém-se o prazo de seis meses contado da notificação deste acórdão, salvo se terminar a meio do ano escolar, caso em que fica desde já prorrogado até ao final do mesmo.
*
6. - Se o montante da sanção pecuniária compulsória deve ser reduzido
No entender da recorrente a fixação da sanção pecuniária compulsória em 100 € por dia de atraso é manifestamente desproporcionada, devendo antes ser aplicado o montante de 100 € por mês de atraso.
Estabelece o art. 829º A do Código Civil, na parte que ora interessa:
«1. Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, (…) o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento (…).
2. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.
(…)».
O fim da sanção pecuniária compulsória é forçar o obrigado a cumprir, vencendo a resistência da sua oposição ou do seu desleixo (cfr Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, vol II, 4ª ed, pág. 103/104). Na fixação do seu montante, o julgador deverá nortear-se segundo critérios de razoabilidade, o que significa que a sanção não deverá ser diminuta a ponto de ser mais benéfico para o obrigado manter-se no incumprimento nem elevada a ponto de reverter em benefício do credor o atraso no incumprimento.
Está provado que a apelante acolhe 25 crianças. Nada está provado sobre os rendimentos que a apelante aufere da actividade dessa creche. Mas é notório que esta creche se integra em zona da cidade frequentada habitualmente por pessoas com estatuto social e económico de nível médio ou alto, pelo que não é crível que a retribuição mensal auferida pela apelante, por cada criança, seja inferior a 100 €.
Assim, a fixação da sanção pecuniária em 100 € por mês não satisfaz a sua finalidade coerciva.
Por outro lado, considerando a legítima expectativa da apelante em ver cumprida a decisão do tribunal e reposta a tranquilidade dentro da sua habitação que lhe tem sido inúmeras vezes recusada pelo barulho causado pela actividade da apelante, mostra-se adequada a quantia de 100 € por dia.
*
IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e em consequência:
a) condena-se a apelante a pagar à apelada a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos a quantia de 3.000 € (três mil euros), já actualizada;
b) condena-se a apelante a abster-se de utilizar a fracção correspondente ao 1º andar direito do prédio sito na Rua ..., nº ..., em Lisboa, para a actividade de creche, no prazo de 6 (seis) meses contado desde a data da notificação deste acórdão, salvo se tal prazo terminar a meio do ano escolar em curso, caso em que fica desde já prorrogado até ao final do ano escolar;
c) confirma-se no mais, a sentença recorrida.
Custas por apelante e apelada na proporção de vencido.
Lisboa, 19 de Outubro de 2010
Anabela Calafate
António Santos
Folque de Magalhães