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PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
OBRIGAÇÃO REAL
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário
1. Os poderes do Tribunal da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de julgamento do juiz da 1ª instância, permitindo apenas sindicar a correcção da análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, prevenindo o erro do julgador e corrigindo-o, se for caso disso. 2. A as obrigações propter ou ob rem estão ligadas à coisa (res), de tal forma, que a transmissão do direito de crédito tem lugar com a mera aquisição do direito de sobre a coisa. 3. É absolutamente proibida a cláusula inserida num contrato de prestação de serviços, na medida em que estabelece obrigação perpétua/duradoura por parte do réu, apenas dependente da unilateral da autora, obrigando-se aquele a aceitar ad aeternum os serviços prestados por esta última, não podendo opor-se, recusar, ou criar entraves, limitando a sua responsabilidade aos vícios da sua prestação, 4. É por sua vez proibida a que impõe aos réus que em caso de venda do imóvel, incluam no contrato, como condição escrita, as obrigações assumidas. (AMPMR)
Texto Integral
Acordam na 8ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa
S, S.A. demandou M e L pedindo a sua condenação na quantia de € 8.913,80 acrescido de juros vincendos desde a citação, à taxa supletiva legal, até integral pagamento.
Alegou em síntese que, no âmbito da sua actividade – sociedade comercial que se dedica à compra e venda, promoção, exploração de arrendamento e administração de imóveis, entre outras – vendeu, em 13/272003, ao réu o imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “BE”, a que corresponde o bloco C Nove, 1º andar dto., para habitação, do prédio urbano..
Como documento complementar à referida escritura o réu celebrou com a autora um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual a autora se obriga a proceder à manutenção da vedação da referida propriedade, segurança activa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos nos mesmos moldes em que tinha vindo a efectuar.
Em contrapartida dos serviços prestados, o réu obrigou-se a pagar à autora uma prestação anual e antecipada, a qual, em 2003, se cifrava em € 445,69, incluindo IVA à taxa em vigor – cláusula 1ª do contrato.
Assim, na data da outorga da escritura o réu procedeu ao pagamento do valor correspondente ao ano de 2003.
Conforme cláusula 7ª do contrato, o réu, em caso de transmissão do referido imóvel, obrigou-se a incluir como condição escrita do respectivo contrato, a aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente das obrigações assumidas perante a autora.
A violação desta cláusula, de acordo com o estipulado na cláusula 6ª, o réu ficaria obrigado a proceder ao pagamento de uma indemnização correspondente a vinte vezes a prestação anula devida no ano em que tiver ocorrido a violação, a título de cláusula penal.
Em 26/11/2003, os réus procederam à transmissão do imóvel, não tendo incluído como condição escrita do respectivo contrato de compra e venda o estipulado na cláusula 7ª do contrato.
Assim, devem os réus à autora a quantia de € 8.913,80 (atento o valor da prestação anual de 2003).
A autora continua a prestar os serviços relativos ao imóvel transmitido e contratados com o réu – manutenção da vedação da propriedade, segurança activa e portaria – sem que se possa eximir do cumprimento dos mesmos, sendo que a actual proprietária usufrui de tais serviços sem que os respectivos valores lhe possam ser debitados por culpa exclusiva dos réus.
Na contestação os réus concluíram pela absolvição do pedido ou, caso assim se não entendesse que fosse determinada, pelo Tribunal, a redução da cláusula 6ª, segundo juízos de equidade e de justiça, em consonância com o princípio de boa-fé, ex vi art. 812 CC e, em caso de improcedência destes pedidos, a absolvição dos réus do pagamento da indemnização peticionada com base na prestação defeituosa dos serviços fundamento do pedido e da redução verificada no âmbito destes, em valor a definir pelo Tribunal, segundo juízos de equidade.
Excepcionaram a nulidade das cláusulas 7ª e 4ª do documento complementar/contrato de adesão ex vi dos arts. 18 j) e 22 c) e f) do DL 446/85 de 25/10;
Defenderam a redução da cláusula penal porquanto o seu teor - cláusula 6ª – era abusivo.
No demais, impugnaram o alegado pela autora.
A autora replicou, concluindo pela improcedência das excepções e pela procedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, relegando-se para final o conhecimento das excepções invocadas, não tendo sido fixada a base instrutória, ex vi art. 787/2 CPC (manifesta simplicidade) – fls. 152/153.
Após julgamento foi prolatada sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.
Inconformada, a autora apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª. A apelante recorreu à acção de cuja sentença ora se recorre para pedir a condenação dos apelados no pagamento da quantia de € 8.913,80, acrescida dos juros vincendos desde a citação até integral e efectivo pagamento, fundamentando o seu pedido na violação por parte dos apelados das obrigações por estes assumidas no contrato de prestação de serviços, em concreto, a de introduzir, em futuros contratos de alienação da sua propriedade na Herdade.. uma cláusula escrita subordinando a perfeição do contrato à condição de aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente das obrigações assumidas naquele contrato de prestação de serviços.
2ª. A apelante sempre cumpriu os serviços a que se propôs de início e que eram do conhecimento dos apelados, ou seja, a manutenção da vedação da propriedade, segurança activa, portaria e sistema de recolha de lixo doméstico.
3ª. Por não encontrarem sustentação na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não pode proceder a decisão recorrida quanto a dois factos: “A recolha de lixos domésticos é efectuada pelos serviços camarários”, “Ocorreram vários casos de furtos na Herdade …”.
4ª. A recolha dos lixos domésticos que se encontram fora dos moloques, designadamente na zona circundante do empreendimento, é, como sempre foi, exclusiva tarefa dos serviços da apelante. É, assim, imprecisa e, em parte, incorrecta a decisão no sentido de que é da Câmara Municipal a responsabilidade pelo serviço de recolha do lixo doméstico; ademais, foi a apelante quem adquiriu os moloques e tratou das suas condições de acessibilidade.
5ª. Por tal razão, deve ser retirada da matéria de facto provada que “A recolha de lixos domésticos é efectuada pelos serviços camarários”, devendo ser considerado provado que a apelante sempre cumpriu a obrigação de recolha dos lixos domésticos, nos moldes em que tinha vindo a efectuar, tal como acordado no contrato.
6ª. A ocorrência de furtos, desprovida de qualquer contextualização e suporte probatório, não pode ser aceite como devidamente demonstrada, muito menos para o efeito de se concluir pela imperfeição dos serviços que foram prestados pela apelante. Para mais, e se dúvidas houvesse, é a própria sentença que reconhece que a obrigação de segurança activa continua a ser cumprida pela apelante, evidência que é incongruente com aqueloutra.
7ª. Assim, deve considerar-se provado que a apelante sempre cumpriu a obrigação de segurança activa, nas condições acertadas contratualmente, e como não provado que “Ocorreram vários casos de furto na Herdade …”.
8ª. A obrigação de prestação de serviços pela apelante mediante retribuição dos apelados consubstancia uma obrigação “propter rem” ou com natureza real criada mediante acto contratual.
9ª. A sua natureza real emerge da necessidade de tutela de interesses comuns, aos quais foi feita expressa menção no contrato de prestação de serviços.
10ª. A existência deste tipo de obrigações tem vindo a ser admitida, de forma consolidada, pela Doutrina e pela Jurisprudência, que as caracterizam como vínculos que são fruto, não de uma relação creditória autónoma, mas da titularidade de um direito real sobre um bem; de tal forma que se pode dizer que é a coisa sobre que incide o direito que determina o surgimento automático da adstrição, independentemente do seu concreto titular, prescindo-se de um particular acto volitivo de aceitação.
11ª. Obrigações que, in casu, foram criadas mediante contrato, possibilidade jurídica que, também de forma consensual, é admitida. Assim acontece em diversas realidades (propriedade horizontal, habitação periódica, habitação turística e “unidades de alojamento” integradas em empreendimentos turísticos), podendo extrair-se, por “analogia juris”, uma regra no sentido da admissibilidade da criação, via acto voluntário, deste tipo de obrigações.
12ª. A sua especial natureza inviabiliza a qualificação como “contratuais gerais” das cláusulas que estabelecem as obrigações e, em consequência, a aplicação do regime constante do DL 446/85 de 25/10.
13ª. Pelo que, em consequência, as cláusulas 4ª e 7ª do contrato de prestação de serviços são válidas.
14ª. De facto, à obrigação que impõe aos apelados a fixação, num futuro contrato de alienação da fracção, de uma cláusula condicionando a sua viabilização à aceitação pelo terceiro das mesmas obrigações não pode aplicar-se o art. 18 j), daquele diploma, porquanto a vigência “ad aeternum” da obrigação de aceitação dos serviços (rectius, a sua não denunciabilidade) é decorrência natural da sua ligação genética à fracção habitacional. O contrário, seria admitir a liberdade de celebração e de disposição sobre um vínculo que é plural e não parcelar, com risco de afectação das vinculações já estabelecidas com outros proprietários e dos seus interesses protegidos em conformidade.
15ª. Assim também, a obrigação da aceitação dos serviços por parte de quem quer que seja, sem hipótese de recusa ou oposição, não circunscreve a responsabilidade da apelante, em prejuízo da garantia dos apelados de um bom serviço, para efeitos do disposto nos arts. 18 l) e 22 c) e f), do mesmo diploma. Em causa está o serviço em si, mais do que quem o presta, ficando, em qualquer caso, os apelados e os demais destinatários da prestação, a todo o tempo, munidos das ferramentas jurídicas que lhes assistem em caso de incumprimento da obrigação. Isto porque, conquanto tenham carácter real, as obrigações mantém-se estruturalmente enquanto tais, permitindo, designadamente, a aplicação sem desvirtuação do regime geral do não cumprimento das obrigações.
17ª. Concluindo-se pela validade das cláusulas 4ª e 7ª constantes do contrato de prestação de serviços e verificando-se o incumprimento pelos apelados das obrigações nele constantes – em concreto, a obrigação de condicionar a alienação futura da fracção à aceitação pelo terceiro das obrigações assumidas pelos apelados no contrato de prestação de serviços celebrado com a apelante -, resulta evidente a possibilidade da apelante accionar a cláusula penal nele prevista, sendo os apelados, em consequência, condenados a proceder ao pagamento da quantia peticionada pela apelante.
18ª. Assim, deverá o recurso ser provido e revogada a decisão, substituindo-se por outra que condene os apelados no pagamento à apelante da quantia de € 8.913,80, acrescida dos juros vincendos, desde a citação até integral pagamento.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A 1ª instância considerou assentes os seguintes factos:
1 - A autora é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda, promoção, exploração, arrendamento e administração de imóveis, por ela construídos ou adquiridos, a revenda dos adquiridos para esse fim, a realização de empreendimentos imobiliários, à prestação de serviços de consultadoria, à elaboração de estudos e projectos técnicos e económicos, sua execução, administração e coordenação e a prestação de serviços e à realização de operações necessárias ou adequadas aos referidos fins, bem como à gestão e exploração de estabelecimentos hoteleiros e similares.
2 – No âmbito da sua actividade, em 13/2/2003, a autora vendeu ao réu o imóvel correspondente à fracção autónoma designada pela letra “BE”, a que corresponde o bloco C Nove, 1º andar direito, para habitação, do prédio urbano ….
3 – Como documento complementar à referida escritura o réu e autora subscreveram um escrito, nos termos do qual a autora se obriga a proceder à manutenção da vedação da propriedade, segurança activa, portaria e sistema de recolha de lixos domésticos, nos mesmos moldes em que tinha vindo a efectuar, obrigando-se o réu a proceder ao pagamento de uma prestação anual e antecipada, a qual, em 2003, se cifrava em € 445,69, incluindo IVA à taxa em vigor, conforme documento de fls. 11, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4 – Na data da outorga da aludida escritura, o réu procedeu ao pagamento proporcional corresponde ao número de meses que decorreram desde a data da escritura, inclusive, e o mês de Dezembro imediatamente subsequente, tendo procedido ao pagamento do valor correspondente ao ano de 2003.
5 – Em 26/11/2003, os réus procederam à transmissão do imóvel em causa, a favor de T, conforme certidão de escritura de compra e venda junta a fls. 13 a 16, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
6 – Os réus não incluíram como condição escrita no contrato de compra e venda aludido em 5., a aceitação do cumprimento das obrigações constantes das cláusulas do documento complementar, conforme resultava do ponto segundo da escritura referida em 2 e 3.
7 – A actual proprietária do imóvel, T, enviou à autora uma carta datada de Maio de 2006, onde, além do mais, refere que não subscreveu o referido documento complementar à escritura de compra e venda e solicita que cessem a emissão de facturas relativa a serviços que não contratou, conforme documento de fls. 17 a 19, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8 – O imóvel em causa está situado na Herdade …, onde se encontram uma série de imóveis e, relativamente aos quais a autora celebrou idêntico documento complementar com os seus proprietários.
9 – A autora continua a prestar os serviços relativos ao imóvel transmitido, nomeadamente, no que diz respeito à manutenção da vedação da propriedade, segurança activa e portaria.
10 – Do documento complementar à escritura referido em 3, consta, além do mais:
(…)
Cláusula Quarta – O Segundo Outorgante obriga-se a aceitar os serviços prestados pela S, S.A., ou por quem esta designar, os quais não poderá recusar ou por qualquer foram opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação.
(…)
Cláusula Sexta – No caso de violação de quaisquer obrigações constantes deste documento, obrigam-se a pagar à S, S.A., uma indemnização em montante correspondente a vinte vezes a prestação anual devida no ano em que tiver ocorrido a violação.
Cláusula Sétima – Caso venham a proceder à transmissão ou arrendamento do imóvel ora adquirido, obriga-se o(s) comprador (es) a incluir como condição escrita do respectivo contrato, a aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente ou arrendatário, das obrigações atrás assumidas.
11 – O documento complementar aludido em 3 foi prévia e totalmente elaborado pela autora.
12 – A Herdade ….não é um condomínio fechado.
13 – A recolha de lixos domésticos é efectuada pelos serviços camarários.
14 – A autora assegura um serviço de portaria na Herdade …., cujo funcionário controla a entrada e saída de viaturas e pessoas.
15 – Ocorreram vários casos de furto na Herdade… .
Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra, o objecto do recurso – arts. 684/3 e 690 CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se:
a) Há lugar à alteração da matéria de facto – factos sob os nºs 13 e 15.
b) A obrigação de prestação de serviços pela apelante mediante retribuição dos apelados consubstancia uma obrigação “propter rem” ou com natureza real criada mediante acto contratual.
c) Inaplicabilidade do DL 446/85 de 25/10 relativo às cláusulas contratuais gerais – arts. 18 f) e l) e 22 c) e f) - pelo que as cláusulas 4ª e 7ª do documento complementar são válidas.
d) Há lugar ao accionamento da cláusula penal.
Vejamos, então.
a) Questão da alteração da decisão da matéria de facto (factos 13 e 15)
O Tribunal da Relação pode alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do art. 690-A, a decisão com base neles proferida – art. 712 a) CPC.
Importa desde já referir que a garantia do duplo grau de jurisdição, no que concerne à matéria de facto, não desvirtua, nem subverte, o princípio da liberdade de julgamento, ou seja, o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – art. 655 CPC.
No entanto, esta liberdade de julgamento não se traduz num poder arbitrário do juiz, encontra-se vinculada a uma análise crítica das provas, bem como à especificação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção – art. 653 CPC.
Por isso, os acrescidos poderes do Tribunal da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de julgamento do juiz da 1ª instância, permitindo apenas sindicar a correcção da análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, prevenindo o erro do julgador e corrigindo-o, se for caso disso.
A apelante insurge-se sobre a resposta dada aos factos 13 e 15, defendendo que a resposta aos mesmos deve ser “Não provado”.
Tendo-se procedido à audição, na íntegra, dos depoimentos gravados, nomeadamente das testemunhas da autora - E e A -, e observado os documentos juntos, entende-se que há lugar à alteração da matéria de facto impugnada no que concerne ao facto provado sob o nº 13.
Assim, a redacção dofacto provado sob o nº 13 passará a ser a seguinte: A recolha de lixos domésticos que se encontram no interior dos moloques (contentores) é efectuada pelos serviços camarários.
Ainda sobre a matéria referente à recolha de lixos domésticos e em consonância com a alegação das partes – vide contestação e réplica – acrescenta-se o facto sob o nº 13-A com a seguinte redacção: A autora procede à manutenção e limpeza diária da área envolvente dos referidos moloques (contentores) recolhendo o lixo doméstico que se encontra espalhado por essa zona.
Já no que concerne ao facto provado sob o nº 15, entende-se manter a sua redacção nos seus precisos termos concordando-se com o decidido na 1ª instância e atento o depoimento da testemunha dos réus M que adquiriu duas fracções na Herdade …., em 2001 e 2003 e aí viveu.
Assim, procede parcialmente a conclusão da apelante.
b) Questão da obrigação de prestação de serviços pela apelante mediante retribuição dos apelados consubstancia uma obrigação “propter rem” ou com natureza real criada mediante acto contratual.
“Tanto as obrigações como os direitos reais podem nascer por mero efeito do contrato.
A nossa lei, ao invés do direito alemão – este sistema atribuindo ao contrato eficácia meramente obrigatória, exige um acto posterior de transmissão da coisa (negócio obrigacional e o acto real de transmissão) - consagra a eficácia translativa do contrato destinado à constituição ou transferência dos direitos reais sobre coisa determinada – cfr. 408 e 409 CC – ou seja, quem compra certa coisa, móvel ou imóvel, torna-se dono dela por simples efeito do contrato, sem necessidade de qualquer acto posterior de translação do domínio.
É também sabido que a violação dos direitos reais, bem como a de outros direitos absolutos, cria obrigações entre o titular do direito violado e o autor da lesão – arts. 483 e sgs. CC; que há direitos reais (de garantia) destinados a assegurar o cumprimento das obrigações - arts. 656, 666, 686, 733 e 754 CC; que os direitos de crédito podem servir de base, por meio de aquisição derivada constitutiva, à constituição de direitos reais, como sucede no penhor, usufruto ou na penhora de créditos – arts. 684 e 1463 e sgs. CC e art. 856 CPC.
Porém o ponto mais curioso de contacto entre as duas categorias de relações é dado através de figuras híbridas das chamadas obrigações propter ou ob rem e dos ónus reais, que são um quid medium entre os direitos reais e as obrigações.
Diz-se obrigação real a obrigação imposta, em atenção a certa coisa, a quem for titular desta. Dada a conexão funcional existente entre a obrigação e o direito real, a pessoa do obrigado é determinada através da titularidade da coisa: é obrigado quem for titular do direito real, havendo assim uma sucessão no débito fora dos termos normais da transmissão das obrigações. E como a obrigação existe por causa da res, ao devedor é algumas vezes concedida a faculdade (abandono liberatório) de libertar-se do vínculo obrigacional, renunciando ao seu direito real – cfr. arts. 1411 (despesas de conservação ou fruição da coisa comum), 1424 e 1428/3 e 4 (despesas de conservação e fruição das partes comuns do edifício e de reconstrução do edifício possuído em condomínio) e 1472/3 ( despesas de administração e das reparações ordinárias da coisa usufruída) e art. 1567/4 (obras que o proprietário do prédio serviente se tenha obrigado a custear) do CC.
Para que a sucessão na obrigação se dê fora das regras específicas da transmissão dos direitos de crédito, por mera aquisição do direito sobre a coisa, é necessário que a obrigação, não se tendo ainda autonomizado, continue de algum modo ligada à res.
Estará nessas circunstâncias a obrigação de reparar a coisa comum ou as partes comuns do edifício que constitua objecto de propriedade horizontal, bem como a obrigação de arrancar as árvores plantadas sem observância da distância regulamentar imposta pelas relações de vizinhança.
Os ónus reais são também obrigações de prestação periódica ou reiterada, relacionadas com certa coisa, inerentes à coisa e, por isso, impostas a quem for titular desta.
A diferença prática entre os ónus reais e obrigações propter ou ob rem reside no facto de que quanto a estas, o titular coisa só fica vinculado às obrigações constituídas na vigência do seu direito, enquanto que naquelas – ónus reais – o titular da coisa fica obrigado mesmo em relação às prestações anteriores, por suceder na titularidade de uma coisa a que está visceralmente unida a obrigação.
A obrigação acompanha de certo modo a própria coisa como um peso (um ónus) que recai sobre ela.
Para que haja um verdadeiro ónus real e não um direito real de garantia (como hipoteca, privilégio creditório, etc.), é preciso que o titular da coisa seja realmente sujeito passivo duma obrigação, se encontre vinculado à realização de uma prestação e não seja apenas titular duma coisa cujo valor assegura o cumprimento da dívida.
E para que haja ónus, e não mera obrigação propter rem, será necessário que a coisa, em função da qual o onerado deve, sirva de garantia à obrigação” – vd. A. Varela “Das Obrigações em Geral, vol. I, 3ª ed., Almedina, 177 e sgs.
Defende a apelante que o contrato de prestação de serviços constante do documento complementar constituiu uma obrigação propter rem.
Do exarado supra, constata-se que as obrigações propter ou ob rem estão ligadas à coisa (res), de tal forma, que a transmissão do direito de crédito tem lugar com a mera aquisição do direito de sobre a coisa.
Exemplos destas obrigações estão contidos no instituto da propriedade horizontal – despesas de fruição, conservação e reconstrução das partes comuns.
Está bem de ver que o contrato de prestação de serviços, constante do documento complementar, não constitui uma obrigação propter ou ob rem tal como definido supra.
Não estamos no domínio da propriedade horizontal, nem a realidade da Herdade ….se reconduz a um condomínio fechado.
O contrato de prestação de serviços em questão é autónomo e constitui realidade distinta relativamente à compra e venda.
Assim, não há lugar a qualquer transmissão do contrato de prestação de serviços aquando da aquisição do direito sobre a coisa.
Desta forma, falece a conclusão da apelante.
c) Questão da inaplicabilidade do DL 446/85 de 25/10 relativo às cláusulas contratuais gerais (arts. 18 j) e l) e 22 c) e f)) e validade das cláusulas 4ª e 7ª do documento complementar.
Um dos princípios básicos do direito privado é o da liberdade contratual, consignado no art. 405 CC.
Este princípio sofre algumas restrições, na verdade não se pode falar de liberdade contratual se houver ausência de discernimento ou de liberdade a respeito da celebração, se existirem divergências entre a vontade real e declarada, restrições essas contidas nos institutos do erro, dolo, falta de consciência da declaração, coacção, incapacidade acidental, simulação, reserva mental ou da não seriedade na declaração.
Subjacente a todos os contratos e consagrado no CC está o princípio da boa-fé.
O comércio jurídico massificou-se, continuamente as pessoas celebram contratos não precedidos de qualquer fase negociatória, ou seja, as pessoas deixaram de discutir e acordar sobre os termos de cada uma das cláusulas apostas no contrato.
E é nestas circunstâncias que surge o fenómeno das cláusulas contratuais gerais, as quais se estendem aos mais diversos domínios.
Com a criação e fortalecimento de grupos com grande poder económico, a oferta massificada de produtos foi-se diversificando e alargando, começando a surgir, cada vez mais, no comércio jurídico os contratos já elaborados por um só dos contraentes, sem possibilidade de discussão do seu conteúdo.
Ao outro contraente está, na prática, vedada a possibilidade de discutir os termos do contrato, restando-lhe aceitar o clausulado que lhe é apresentado já elaborado de modo definitivo.
E as empresas, principalmente as que operam em determinados ramos de actividade económica ou que prestam determinados serviços, adoptam um modelo contratual típico que utilizam com os seus clientes, que a eles aderem sem possibilidade de discussão contratual.
Se por um lado, as padronizações negociais favorecem o dinamismo do tráfico jurídico, conduzindo a uma racionalização ou formalização e a uma eficácia benéficas aos próprios consumidores, a experiência jurídica leva-nos, por vezes, à conclusão da existência de certas cláusulas que, quando inseridas em contratos, se tornam nocivas ou injustas.
Consequentemente, surgiram as proibições, entre outros, dos negócios usurários, dos pactos leoninos, pactos comissórios e, em termos gerais, aos actos contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes.
Visando combater os abusos do poder económico e de defesa do consumidor, bem como a autonomia privada do uso destes meios electrónicos, atendendo aos apelos da Comunidade Europeia, no sentido de serem tomadas medidas de combate e condenação das cláusulas abusivas, surgiu o DL 446/85 de 25/10.
No âmbito deste normativo são sancionadas com o vício da nulidade, as cláusulas contratuais gerais insertas em contrato-tipo de adesão que violem normas imperativas de ordem pública, nomeadamente, as que invertam ou alterem a distribuição do risco, as regras de repartição do ónus da prova, que tenham como efeito a exclusão da responsabilidade de um dos contraentes se se verificarem determinados requisitos – cfr. Ac. STJ de 23/11/99, in CJ VII, 3º-100 e Ac RP 28/9/2004, in www.dgsi.pt.
Posto isto, e tendo em atenção os documentos juntos, constata-se que o contrato de prestação de serviços, constante do documento complementar à escritura de compra e venda (os compradores limitaram-se a apor as suas assinaturas no formulário/contratual previamente preenchido), terá de ser classificado como sendo um contrato de adesão, sujeito ao regime do DL 446/85 de 25/10, com as alterações constantes do DL 220/95 de 31/8 e DL 249/99 de 7/7 – cláusulas contratuais gerais.
A redacção da Cláusula Quarta do contrato complementar é a seguinte – O Segundo Outorgante obriga-se a aceitar os serviços prestados pela Silcoge – Sociedade Construtora de Obras Gerais, S.A., ou por quem esta designar, os quais não poderá recusar ou por qualquer foram opor-se, impedir ou criar entraves à sua prestação.
(…)
Constando da cláusula Sétima - Caso venham a proceder à transmissão ou arrendamento do imóvel ora adquirido, obriga-se o(s) comprador (es) a incluir como condição escrita do respectivo contrato, a aceitação e cumprimento pelo terceiro adquirente ou arrendatário, das obrigações atrás assumidas.
O princípio geral no que às cláusulas gerais concerne é o da proibição das cláusulas contrárias à boa-fé – cfr. art. 16 DL cit.
São em absoluto proibidas as cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa, apenas, da vontade de quem as predisponha, bem como as que consagrem, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo se a identidade do terceiro constar do contrato inicial – art. 18 alíneas j) e l) do DL 446/85 supra citado.
São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente as cláusulas contratuais gerais que atribuam a quem as predisponha o direito de alterar unilateralmente os termos do contrato, excepto se existir razão atendível que as partes tenham convencionado e as cláusulas que afastem, injustificadamente, as regras relativas ao cumprimento defeituoso ou aos prazos para o exercício de direitos emergentes dos vícios da prestação - art. 22 c) e g) DL 446/85 de 25/10, com as alterações introduzidas pelos DL 220/95 de 31/8 e 249/99 de 7/7 (e não alínea f) como referido, por lapso, na sentença e alegações).
Atentos os arts. citados está bem de ver que a cláusula 4ª, inserida no contrato complementar de prestação de serviços, é uma cláusula absolutamente proibida, na medida em que estabelece uma obrigação perpétua/duradoura por parte do réu, apenas dependente da vontade (unilateral) da autora; o réu obriga-se a aceitar ad aeternum os serviços prestados pela autora, não podendo opor-se, recusar ou criar entraves…, limitando a sua responsabilidade aos vícios da sua prestação – art. 18 j) e 22 g).
Por seu turno a cláusula 7ª ao impor aos réus, em caso de venda do imóvel, a incluir no contrato, como condição escrita, as obrigações assumidas (documento complementar) é também considerada proibida nos termos dos arts. 18 l) e 22 c).
Destarte, as cláusulas em questão são nulas – art. 12 DL cit.
Assim, falece a conclusão da apelante.
d) Questão do accionamento da cláusula penal.
Atento o explanado na alínea anterior, prejudicada fica a apreciação desta questão.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.