DEPOIMENTO INDIRECTO
DECLARAÇÕES DO ASSISTENTE
INCAPACIDADE POR ANOMALIA PSÍQUICA
PROCESSO EQUITATIVO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Sumário

I – É valorável o depoimento indirecto quer quando as pessoas a quem se ouviu dizer são inquiridas em julgamento quer sobretudo quando tais pessoas já faleceram.
II – O assistente que seja interdito por anomalia psíquica com capacidade intelectual e emocional para prestar declarações, tem o direito de vir a julgamento e narrar o que sofreu e como sofreu. Obviamente que tais declarações serão apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, concorrendo com todos os outros meios de prova, como determina o art. 127º, do CPP. O que não pode suceder é que esta vítima, só por se encontrar interdito, esteja impedido de trazer a julgamento a sua versão dos factos.
III – O art. 131º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de declarar incapaz para testemunhar ou prestar declarações uma pessoa que tenha num processo a condição de vítima ou ofendido de um crime se essa pessoa estiver interdita por anomalia psíquica, é inconstitucional, por violação dos arts. 1º e 13º e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral

I - Relatório

O 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais proferiu a seguinte decisão:
I) Pelo exposto, julga-se a acusação improcedente e, em consequência, absolve-se o arguido P… da prática do crime de maus tratos p.p. no domínio da “lex temporis” no art 152 nº1 al a) do C.Penal e actualmente p.p. no art 152 – A nº1 al a) do C.Penal.
II) julga-se totalmente improcedente o pedido de indemnização deduzido pelo demandante J… R…, dele se absolvendo o demandado P….
Inconformado, o assistente/demandante J… R…, representado pelo seu Tutor, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1 - Da prova produzida em audiência de julgamento resultaram elementos probatórios que impunham o acolhimento de solução diversa.
2 - Não obstante não se encontrarem na sala dos banhos na ocasião em que foram praticados os factos os depoimentos prestados pelas testemunhas E… L…, M… M…, A… G… e M… D… deveriam ter sido apreciados pelo Digníssimo Tribunal a quo, à luz do princípio da livre apreciação da prova e das regras da experiência comum.
3 - Ao se abster de valor os depoimentos prestados pelas ditas testemunhas o Digno Tribunal não só violou o seu dever de se pronunciar sobre os factos que as mesmas descreveram, com prejuízo para a boa fundamentação da sua decisão, como o seu dever de proceder ao exame crítico de toda a prova relevante à formação da sua convicção.
4 - A sentença recorrida afigura-se, assim, nula, nos termos do disposto no artº 379.º, n.º 1, alínea c), do Cód. Proc. Penal, e inquinada pelo vício de insuficiência da matéria de facto, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do mesmo diploma legal.
5 - Sem estar a admitir qualquer depoimento indirecto proibido poderia e deveria o Digno Tribunal aquo ter valorado os depoimentos prestados pelas testemunhas enunciadas, para exame crítico da prova carreada a estes autos.
6 - Sendo certo que A… C… e F… C… foram ouvidos em audiência e que as Enfermeiras E… L… e M… M… se limitaram a reproduzir o que ouviram directamente destes, nenhum problema de proibição de prova chegou a colocar-se em relação aos depoimentos prestados por estas enfermeiras.
7 - Também, considerando o facto de E… L… e M… M… terem ouvido de M... T... o relato dos factos em discussão, testemunha falecida na pendência destes autos, não se afigura correcto valorar como depoimento indirecto proibido o conhecimento veiculado por aquelas duas testemunhas, na medida em que é a própria lei que vem excepcionar desse regime de proibição os casos em que a inquirição da fonte não seja possível, por morte.
8 - Igual censura merece a desconsideração dos depoimentos prestados por A… G… e M… D…, na parte em que relataram os maus-tratos infligidos pelo arguido, de acordo com a descrição que lhes fez o próprio assistente.
9 - Da conjugação dos elementos de prova obtidos pelas testemunhas enunciadas resultou provada quer a autoria, quer a origem, quer as circunstancias em que se verificaram os factos trazidos a Juízo, pelo que se impunha a prolação de decisão contrária à recorrida.
10 - No que se refere à apreciação do pedido de indemnização civil enxertado nestes autos e pese embora o mesmo ter sido julgado improcedente por o Tribunal a quo ter entendido que “Não se provou que o arguido praticou os actos que lhe vinham imputados”, a sentença recorrida afigura-se nula.
11 - A nulidade desse segmento da sentença assenta em vício de falta de fundamentação, à luz da interpretação conjugada do disposto nos art.s 374.º, n.º 2, e 377.º, n.º 1, ambos do Cód. Proc. Penal, pois desempenhando o arguido, à data a que os factos se reportam, funções com deveres de garante, relativamente à protecção e bem-estar do assistente/recorrente, impunha-se que a douta decisão tivesse sustentado em que medida a violação de tais deveres não resultou provada nestes autos.
O Ministério Público ofereceu resposta, sujeita às seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida encontra-se bem fundamentada, indicando os motivos de facto e de direito que deram origem à decisão, relacionando os meios de prova e efectuando o necessário exame crítico, em estrita consonância com o disposto no artº 97º nº 4, 5 e 374º nº 2 do CPP, tendo-se pronunciado sobre todas as questões pertinentes e relevantes para a discussão da causa.
2. Vigora no nosso sistema processual penal o princípio da livre apreciação da prova ou da livre convicção consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal, o que habilita o Tribunal a valorar ou não, quer as declarações do arguido, quer os depoimentos das testemunhas prestados.
3. Não foi violada qualquer norma de direito probatório, decidindo o Tribunal recorrido em função das regras da experiência e da lógica, em consonância com uma convicção que se apresentou de forma objectiva e motivada, perfeitamente capaz de se impor à sociedade.
4. A sentença recorrida não padece de falta de fundamentação, insuficiência da prova ou de qualquer contradição insanável na sua fundamentação, pelo que se deve manter nos seus precisos termos, devendo o recurso ser rejeitado.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, a Exmª Senhora Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os "vistos", teve lugar a conferência.

II – A) Factos Provados
O arguido P… trabalhou no Centro do Apoio Social do P... (CASP) com a categoria profissional de trabalhador dos serviços gerais, entre 6/6/2001 e 24/10/2006.
O ofendido J… R… nasceu a 26/7/1959.
O ofendido está internado no referido Centro de Apoio Social do P... desde Novembro de 1992 sofrendo de oligofrenia com doença neurológica evolutivo-degerenativa.
No dia 20/6/2006, cerca das 6,30 horas, na enfermaria do CASP, o ofendido, que se desloca em cadeira de rodas, encontrava-se na sala de banhos, a aguardar a sua vez para tomar banho, juntamente com outros residentes, entre os quais, F… C…, A… C…, M… T… e S… F….
Nessa ocasião, o arguido estava incumbido de dar os banhos aos residentes, entre os quais o ofendido.
Em circunstancias não concretamente apuradas, o ofendido sofreu queimaduras de 1º e 2º graus principalmente na região nadegueira, com flictenas, lesões essas que determinaram 20 dias de doença, sendo os primeiros 15 dias com incapacidade para o trabalho.
B) Factos Não Provados
- que chegada a vez do ofendido tomar banho, o mesmo tentou levantar-se da cadeira mas, não conseguindo, caiu no chão;
- que de imediato o arguido começou a gritar com o ofendido, mandando-o levantar, enquanto lhe dava pontapés no rabo;
- que apenas com a ajuda dos residentes F… C… e S… F… é que o ofendido logrou levantar-se e agarrar-se aos varões da cabina do duche;
- que o arguido com a mangueira do banho dirigiu jactos de água quente às nádegas do ofendido e que, apesar de este chorar e gritar que a água o queimava, prosseguiu com esses jactos;
- que o arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei;
- que em consequência da conduta do arguido, o ofendido sentiu dores, ficou consternado e traumatizado.
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III – Objecto do recurso
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal.
Invoca o recorrente, em suma, (i) o vício da al. a), do nº 2, do artº 410º, do CP, e (ii) a nulidade da al. c), do nº 1, do artº 379º, ainda do CP.
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IV – Fundamentação
(da inexistência do vício da al. a), do nº 2, do artº 410º)
Impõe-se, de imediato, dizer que insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados pela acusação ou defesa ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados em resultado da discussão. Daí que a alínea a) do n.º 2 do Art.º 410° do C.P.Penal se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada. A insuficiência da matéria de facto para a decisão integradora do vício supra mencionado existe, assim, quando se verifica que a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. Pelo que, só existe quando o tribunal tiver deixado de investigar factos que podia e devia ter investigado, tornando, pois, a matéria de facto inadequada à subsunção jurídico-criminal, isto é quando inquina a matéria de facto provada de tal maneira que não é possível fundamentar a solução de direito de uma forma correcta e legal. Contudo, se o recorrente pretende contrapor a convicção que alcançou sobre os factos com a que o Tribunal teve sobre os mesmos livremente e segundo as regras da experiência comum - Art.º 127º do C.P.Penal -, e invoca a alínea a) do n.º 2 do Art.º 410º do C.P.Penal, está a confundir insuficiência da matéria de facto fixada com a insuficiência da prova para decidir (cfr. Acórdão do S.T.J. de 29-04-1992, in Processo n.º 42535).
As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo. Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento. O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação – cfr. acórdão do STJ, de 15.07.2009, processo nº 103/09 – 3ª secção, pgdlisboa.pt.
Ora, analisando o texto da decisão recorrida, não se vê que o Tribunal “a quo” tenha incorrido no vício a que alude a alínea a) do nº 2 do art. 410º do Cód. Proc. Penal. Nada mais havia a investigar ou a considerar para a decisão de direito tomada, ou seja, todos os factos foram considerados.
Do que trata o recurso é de um erro de julgamento, de uma errada valoração da prova.
Por conseguinte, improcede, nesta parte, o recurso.
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(do depoimento indirecto)
Dispõe o art. 129º do C.P.P., cuja epígrafe é “depoimento indirecto”:
“ 1 - Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas. 2 - O disposto no número anterior aplica-se ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha. 3 - Não pode, em caso algum, servir como meio de prova o depoimento de quem recusar ou não estiver em condições de indicar a pessoa ou a fonte através das quais tomou conhecimento dos factos”.
É a seguinte a motivação da sentença:
A factualidade provada baseia-se nas declarações do arguido que relatou os factos apurados, e nos depoimentos de E… L…, enfermeira do citado Centro do P..., que viu as referidas lesões no ofendido, e do Dr. J… L…, médico, que verificou as referidas lesões no ofendido.
Foi tomado em consideração o relatório de exame directo de fls 164 a 166.
A factualidade dada como não provada resulta da ausência de elementos de prova suficientes.
Das pessoas ouvidas em julgamento, apenas as testemunhas F… C… e A… C…, residentes no citado Centro do P..., se encontravam no balneário.
F… C… e A… C… tiveram depoimentos contraditórios, tendo o primeiro dito que o arguido não bateu no ofendido, mas que lhe dirigiu água quente, e tendo o segundo dito que o arguido desferiu pontapés no ofendido e que não viu o arguido dar-lhe banho.
No dia 20/6/2006, à tarde, a testemunha E… L…, enfermeira, examinou o ofendido, tendo constatado que o mesmo apresentava as mencionadas lesões, mas não lhe viu hematomas. O relatório médico não indica hematomas (relatório de fls 164 a 166).
O Dr. J… L…, médico, não referiu que o ofendido apresentasse hematomas.
Nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência relatou ter visto o ofendido com hematomas.
O ofendido, declarado interdito por anomalia psíquica por sentença de 13/3/02 (v: Sentença de fls 30 a 33), não foi ouvido em audiência.
O arguido negou a prática dos factos que lhe vinham imputados.
O arguido afirmou que não desferiu pontapés no ofendido, nem lhe deu banho.
As testemunhas E… L…, M…, L…, J… L…, M… L…, M… L…, A… G…, M… D…, J… N…, I…, H… e E… F… não se encontravam na sala de banhos, não tendo presenciado os factos de que se fala.
A testemunha L… B… não demonstrou conhecimento dos factos de que se fala.
Ficamos com uma insuficiência manifesta de prova.
E não estando reunidas as provas, têm os factos de ser valorados a favor do arguido - formulação do princípio “in dubio pro reo” pelo que entendemos não estar demonstrado que o arguido tenha cometido os actos que lhe vêm imputados”.
No que nos interessa para a problemática do depoimento indirecto, disse o Tribunal a quo que as testemunhas E… L…, M…, L…, J… L…, M… L…, M… L…, A… G…, M… D…, J… N…, I…, H… e E… F… não se encontravam na sala de banhos, não tendo presenciado os factos de que se fala. E mais não disse.
Esta Relação ouviu as gravações da audiência nas passagens indicadas pelo recorrente.
A testemunha E… L… referiu ser enfermeira no Centro do P... e que, apesar de não ter presenciado o que ocorreu no balneário, chamou os utentes A… C…, F… C… e M… T…, que lhe contaram o que sucedeu e identificaram o ora arguido como o autor das agressões ao assistente – cfr. passagens da gravação a partir de 00.50 e, mais à frente, de 05.03 a 05.53, ambas do seu depoimento.
Também a Enfermeira M… M… não estava na zona dos banhos, mas ouviu os mesmos utentes contar o que se tinha passado e dizer que foi o P… (arguido) quem cometeu os factos – cfr. passagem da gravação a partir de 02.30 do seu depoimento.
Ora, A… C…. e F… C… foram ouvidos em julgamento, M… T… não, porque entretanto faleceu.
A… C… afirmou que o P… estava aos pontapés no R… e que não viu mais nada – cfr. passagem a partir de 01.40 do seu depoimento. F… R… disse que o R… caiu ao chão e que o P… deitou-lhe água quente, tendo aquele começado a chorar e a gritar. Esta testemunha referiu que o arguido não deu pontapés no assistente – cfr. passagens a partir de 00.50, 06.34 e 08.25, todas do seu depoimento.
Por conseguinte, do confronto entre os depoimentos prestados pelas enfermeiras E… L… e M… M… e o regime do artº 129º, do Código de Processo Penal, resulta claro que andou mal o Tribunal a quo ao não valorar aqueles depoimentos quanto ao que se passou na zona dos banhos. Primeiro, e desde logo, porque M… T… já faleceu. E, depois, porque A… C… e F… C… foram ouvidos em audiência, estando perfeitamente identificadas as pessoas a quem se ouviu dizer. Os depoimentos de E… L… e de M… M… deviam ter sido valorados em conjunto com os outros meios de prova, quanto aos factos ocorridos na zona dos banhos, bem como deviam ter servido para confrontar as testemunhas A… C… e F… C…. Todavia, o Tribunal a quo simplesmente os desprezou.
É vasta a jurisprudência que aprova a valoração do depoimento indirecto, quer quando as pessoas a quem se ouviu dizer são inquiridas em julgamento, quer sobretudo quando tais pessoas já faleceram – cfr. Relação de Lisboa, acórdãos de 11.10.2006 (processo nº 5998/2006-3) e 10.11.2005 (processo nº 8409/2005-9); Relação do Porto, acórdãos de 12.05.2010 (processo nº 402/07.1PBVRL.P1), 05.05.2010 (219/08.6GAMDB.P1), 07.11.2007 (processo nº 0714613), 12.02.2003 (processo nº 0240411), 09.02.2005 (processo nº 04450066) e 29.03.2006 (processo nº 0610480); Relação de Coimbra, acórdãos de 01.10.2008 (processo nº 3/07.GAVGS.C2) e 26.11.2008 (processo nº 27/05.6GPFND.C1); e Relação de Guimarães, acórdãos de 27.09.2010 (processo nº 18/07.2GEEMR-G1) e 11.02.2008 (processo nº 2181/07-1); todos estes acórdãos podem ser encontrados em dgsi.pt.
Aqui chegados, estamos perante uma violação do disposto no artº 129º, do Código de Processo Penal e, assim, um erro na apreciação da prova.
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Só que, e como veremos de seguida, ocorre nos autos um vício bem mais grave: a inconstitucionalidade.
Resulta da motivação da sentença que o ofendido, declarado interdito por anomalia psíquica por sentença de 13/3/02 (v: Sentença de fls 30 a 33), não foi ouvido em audiência.
O ofendido J… R…, que também se constituiu assistente, representado pelo seu Tutor, foi arrolado como testemunha quer na acusação pública, quer no pedido de indemnização cível.
O assistente compareceu em juízo no dia 19.01.2009, primeira data designada para o julgamento (fls. 365), que, porém, foi adiado.
No dia 13.02.2009 teve início o julgamento, conforme consta da respectiva acta (fls. 412 a 415). Acta que enferma de lapso, porque o assistente J… R… é simultaneamente dado como presente e ausente, não se sabendo, em rigor, se compareceu ou se faltou. Certo é que não foi ouvido nessa sessão.
Finalmente, a última sessão do julgamento decorreu no dia 25.02.2009. Da acta (fls. 426 a 428) dessa sessão não consta qualquer referência ao assistente – se compareceu ou não -, todavia, não foi ouvido.
Não consta dos autos – em acta de audiência ou fora dela - despacho a dispensar ou a indeferir a inquirição do assistente.
Por conseguinte, resta-nos o que resulta da motivação da sentença (“o ofendido, declarado interdito por anomalia psíquica por sentença de 13/3/02 (v: Sentença de fls 30 a 33), não foi ouvido em audiência”).
Dispõe o artigo 131º, nº 1, do Código de Processo Penal, que qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos casos previstos na lei.
Ora, o ofendido constituiu-se assistente (cfr. despacho de admissão de fls. 263), pelo que em nenhuma circunstância poderia prestar depoimento na qualidade de testemunha – 133º, nº 1, al. b), do CPP.
A tomada de declarações ao assistente está prevista no artº 145º, do CPP, onde se estipula, desde logo, que não há juramento, embora se mantenha a sujeição ao dever de verdade e a responsabilidade penal pela sua violação.
Resulta, no entanto, do nº 3, do artº 145º, do CPP, que a prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis fica sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, salvo no que lhe for manifestamente inaplicável e no que a lei dispuser diferentemente. Voltamos, deste modo, ao regime do artº 131º, do CPP.
O Tribunal a quo fundamentou a dispensa das declarações do assistente na interdição por anomalia psíquica, assim aplicando o regime das testemunhas por força do nº 3, do artº 145º, do CPP.
Conforme resulta da motivação do recurso – fls. 464 e 464 vº - e em conformidade com as passagens da gravação aí referidas (que este Tribunal também ouviu e confirmou), a testemunha A… G…, Directora do Centro de Apoio Social do P..., atestou que o assistente está em condições de prestar declarações, por ter capacidade intelectual e emocional para o efeito.
Aqui chegados, isto é, sabendo-se que podem ser tomadas declarações ao assistente, cumpre agora apreciar quais as consequências, para a protecção dos bens jurídicos próprios, de não ter sido ouvido em julgamento.
J… R… é a vítima, sofreu os factos aqui imputados ao arguido, está em situação ímpar para relatar o que ocorreu. A procura da verdade material, princípio basilar do direito processual penal, não pode dispensar o contributo de tão importante interveniente. E já vimos que esta vítima, embora interdito, tem capacidade intelectual e emocional para prestar declarações.
Acresce que o assistente tem o direito de trazer a sua versão a julgamento, a ser ouvido. Se o arguido presta declarações, se se pode defender, porque está o assistente interdito impossibilitado de o fazer, com o risco manifesto de ser tratado de modo desigual?
Um interdito, com capacidade intelectual e emocional para prestar declarações, tem o direito de vir a julgamento e narrar o que sofreu e como sofreu. Obviamente que tais declarações serão apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, concorrendo com todos os outros meios de prova, como determina o artº 127º, do CPP. O que não pode suceder é que esta vítima, só por se encontrar interdito, esteja impedido de trazer a julgamento a sua versão dos factos.
A Decisão-Quadro do Conselho Europeu da União Europeia Relativa ao Estatuto da Vítima em Processo Penal, determina:
- A vítima tem direito a ser respeitada e reconhecida enquanto titular de interesses legítimos que devem ser tidos em conta em todas as fases do procedimento criminal;
- A todas as fases de investigação e nas audiências judiciais, o interrogatório das vítimas e outras testemunhas deve ser conduzido com respeito pela sua dignidade pessoal. Devem ser adoptadas especiais precauções relativamente a crianças ou a testemunhas com perturbações do foro psiquiátrico, as quais deverão ser sempre interrogadas na presença de um dos pais, tutor ou pessoa da sua confiança;
- Frequentemente, as vítimas sentem que dispõem de informação que é ignorada pelas autoridades, por não constituir propriamente um elemento essencial de prova do crime. Este problema poderá ter menos relevância em sistemas de justiça onde vigore o princípio do inquisitório. Todos os sistemas judiciais devem reconhecer às vítimas o direito de fornecer informação directamente, e pelas suas próprias palavras, às autoridades policiais e judiciais responsáveis pela tomada de decisões. Tal informação poderá ser relativa à extensão dos danos económicos, físicos ou emocionais sofridos em consequência do crime, à existência ou não de qualquer relacionamento anterior ou actual com o autor do crime, bem como a eventuais receios pela segurança pessoal ou de intimidação por parte daquele. A vítima deve poder fornecer qualquer informação que deseje, devendo ter contudo consciência de que tal informação será comunicada ao arguido, podendo ser contraditada, se for caso disso. As declarações da vítima de crime devem ter por finalidade, entre outras, garantir que a vítima tem o direito a ser ouvida.
Também é evidente a protecção à vítima em recentes textos legais. A Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, dispõe que a vítima tem direito a requerer a sua constituição como assistente, oferecendo provas e requerendo diligências, colaborando com o Ministério Público de acordo com o estatuto do assistente em processo penal, e que a vítima tem direito a ser inquirida pelas autoridades, apenas na medida do necessário para os fins do processo penal.
Lei que assegura ainda dois princípios fundamentais da vítima: o da igualdade (toda a vítima, independentemente da ascendência, nacionalidade, condição social, sexo, etnia, língua, idade, religião, deficiência, convicções políticas ou ideológicas, orientação sexual, cultura e nível educacional goza dos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, sendo-lhe assegurada a igualdade de oportunidades para viver sem violência e preservar a sua saúde física e mental), e o do respeito e reconhecimento (à vítima é assegurado, em todas as fases e instâncias de intervenção, tratamento com respeito pela sua dignidade pessoal).
“ A exigência de um processo equitativo, constante no artigo 20º, nº 4, se não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, impõe, antes do mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e entre as partes na dialéctica que elas protagonizam; um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” – CRP Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros, 2005, tomo I, pg. 192.
“ O direito de acção ou o direito de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo; …o due process positivado na Constituição portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais; … um dos princípios do processo equitativo é o direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias” – CRP Anotada, Gomes Canotilho, Vital Moreira, 4ª Edição revista, Vol. I, pg. 415.
Aqui chegados, cumpre ponderar o que dispõe a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente:
a) Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária -artº 1º;
b) Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei – artº 13º; e
c) A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo – artº 20º, nºs 1 e 4.
E, finalmente, a seguinte jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (acórdão de 22.05.2007, em que é Relator Nuno Gomes da Silva, aqui Adjunto):
“Impedir-se a vítima de um crime que haja sido declarada incapaz e que, portanto, se encontre numa posição de debilidade significativa na tutela dos bens jurídicos próprios, de intervir no processo dando a conhecer a sua versão dos acontecimentos que tenham eventualmente levado à lesão desses bens constitui uma manifesta e notável diminuição do seu direito de protecção que afecta de maneira grave a sua dignidade de pessoa humana e, por conseguinte, uma violação quer da regulamentação supra-nacional quer, em especial, dos arts. 1º e 13º, nº 1 CRP.
2. É, pois, inconstitucional, por violação dos arts. 1º e 13º CRP, o art. 131º CPP quando interpretado no sentido de declarar incapaz para testemunhar uma pessoa que tenha num processo a condição de vítima ou ofendido de um crime se essa pessoa estiver interdita por anomalia psíquica. Quando, portanto, abranja nessa incapacidade além de terceiros, alheios aos factos, também a vítima na definição desta que supra se consignou pela circunstância de ter sido declarada incapaz.
3. Além disso e salvo melhor opinião, há também na situação que se aprecia violação do art. 20º, nº 1 CRP que consagra o direito de a todos ser assegurado o acesso ao direito para defesa dos seus direitos.
4. Acresce que, mesmo numa perspectiva de defesa dos direitos do arguido, impedir-se a vítima incapaz de depor pode, em algumas circunstâncias, redundar num prejuízo para o arguido por impedir um confronto de ambas as versões e restringir as possibilidades de ampla avaliação do tribunal (ressalvados os cuidados devidos e analisadas as especificidades do caso)”.
Tudo visto e ponderado, resta dizer que o Tribunal a quo deveria ter ouvido o assistente em declarações.
A dispensa da tomada de declarações só por que se encontra interdito, viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da defesa dos seus direitos e do processo equitativo.
O assistente, já numa situação de debilidade significativa na tutela dos bens jurídicos próprios em virtude da sua incapacidade, ficou ainda impossibilitado de trazer a sua versão a julgamento, com manifesta diminuição do seu direito de protecção e afectação grave da sua dignidade de pessoa humana.
Como foi ainda o assistente tratado de forma desigual relativamente ao arguido, que foi ouvido em julgamento e pode exercer a sua defesa, sem que aquele lhe pudesse confrontar a sua versão dos factos.
Acresce que ao assistente não foi assegurado o direito de defesa dos seus direitos, com clara violação do princípio constitucional do artº 20º, nº 1.
E, finalmente, houve uma clara desigualdade de armas, com prejuízo da exigência constitucional de um processo equitativo.
Pelo que se acorda, acompanhando o supra citado acórdão da Relação de Lisboa, e alargando-o, quer quanto às declarações do assistente, quer ao nº 4, do artº 20º, da CRP, que, no entendimento que se afigura mais correcto, o art. 131º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de declarar incapaz para testemunhar ou prestar declarações uma pessoa que tenha num processo a condição de vítima ou ofendido de um crime se essa pessoa estiver interdita por anomalia psíquica, é inconstitucional, por violação dos arts. 1º e 13º e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa.
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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, embora com diverso fundamento, e consequentemente:
a) Afastar, no caso presente, por inconstitucional, em virtude de violar os artigos 1º, 13º, nº 1 e 20º, nºs 1 e 4, da Constituição da República, a aplicação do artigo 131º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de abranger na incapacidade para testemunhar ou prestar declarações (por força do artº 135º, nº 4, do CPP) a pessoa que, tendo no processo a condição de vítima ou ofendida de um crime, está interdita por anomalia psíquica;
b) Em conformidade, declarar nula a sentença a quo e ordenar a reabertura da audiência, pelo mesmo Tribunal, a fim de serem tomadas declarações ao assistente; e
c) na prolação da nova decisão em primeira instância, em conjunto com a demais prova devem ser valorizados os depoimentos indirectos já produzidos em julgamento.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Novembro de 2010

Paulo Barreto
Nuno Gomes da Silva