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SERVIDÃO DE PASSAGEM
CONSTITUIÇÃO DA SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
ABUSO DO DIREITO
Sumário
I - A desnecessidade, para o prédio dominante, de uma servidão de passagem é uma conclusão, não devendo afirmar-se em sede da decisão sobre a matéria de facto, mas inferir-se de factos que, a esse propósito, resultem provados. II - Uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família é uma servidão voluntária, de criação ope legis, mas não uma servidão legal. E, por isso, não é susceptível de extinção por desnecessidade. III - O instituto jurídico do abuso de direito jamais poderá servir para se alcançar um resultado substantivo que o específico regime jurídico aplicável claramente rejeita. Designadamente não pode servir para se declarar a extinção de uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, por ter deixado de ser necessária para o prédio dominante, quando a lei prevê que a desnecessidade não pode servir para justificar tal extinção.
Texto Integral
PROC. nº 3546/15.2T8LOU.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4
REL. N.º 427
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
1 - RELATÓRIO
B..., posteriormente acompanhado pela chamada, sua mulher, C..., residentes na ..., n.º .., ..., Lousada, intentou a presente acção declarativa comum, contra D... e marido E..., residentes na Rua ..., n.º ..., ..., Lousada, alegando, em síntese, que foi constituída uma servidão de passagem por destinação do pai de família a favor do seu prédio, através de um caminho que percorre o prédio dos RR, sem prejuízo do que tal servidão sempre haveria de ter-se por constituída por usucapião. Mais referiu que os RR. colocaram um portão junto a esse caminho, que os impede de circular pelo mesmo, o que lhes causa transtornos.
Conclui, pedindo que:
I) seja reconhecido seu o direito de propriedade sobre o prédio que descreve como seu;
II) seja reconhecido que seu prédio e os identificados prédios dos RR pertenceram ao mesmo dono, até à data da uma escritura de partilha, celebrada em 4 de Junho de 1954, no Cartório Notarial de Lousada, na qual declararam os outorgantes dividir e partilhar um prédio em três lotes, em que o segundo lote foi adjudicado aos (ali) segundos outorgantes F... e esposa G... (pais do aqui A.) e o terceiro lote foi adjudicado aos (ali) terceiros outorgantes H... e marido I... (avós da R. mulher);
III) seja reconhecido que em data anterior (04/06/1954) à separação de domínios do actual prédio (319/...) do A. e dos atuais prédios (220/R e 218/U) dos RR., a serventia de passagem já existia, ou seja, o actual prédio do primeiro já beneficiava, para acesso à via publica e vice-versa, de uma serventia, sobre os actuais prédios dos RR. identificados em a) e b) do artigo 8º da p.i., direito esse que sempre se exerceu por uma faixa de terreno em linha reta, com uma extensão de cerca de 57 metros e com uma largura aproximada de 4 metros, melhor descrita e caracterizada em 9º, 10º e 11º da p.i. e com a configuração e traçado constante na planta topográfica junta.
IV) seja reconhecido Judicialmente a existência a um direito de servidão de passagem, constituída por destinação de anterior proprietário (destinação do pai de família) a favor do (agora) prédio (319/...) do A., gozando de uma servidão permanente de pé, carro e gado, por um caminho (faixa de terreno) existente no (agora) prédio dos RR. (218/U) e que o onera.
Caso assim não se entenda:
Seja Reconhecido Judicialmente a existência a um direito de servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor do (agora) prédio (319/...) do A., gozando de uma servidão permanente de pé, carro e gado, por um caminho (faixa de terreno) existente no (agora) prédio (218/U) dos RR. e que o onera.
V) se condene os RR. a permitir que o acesso, da via publica ao prédio do A. e vice-versa, se faça pela faixa de terreno existente no seu prédio e que se abstenham de praticar actos que impeçam ou perturbem o aludido acesso.
VI) se condene os RR a removerem o portão que colocaram, abusivamente, no início do caminho de servidão, na estrema em que o mesmo confronta com a via pública (foto5), permitindo o livre exercício do direito de servidão de passagem a favor do prédio do A..
Caso assim não se entenda:
Se condene os RR. a entregarem ao A. uma chave do portão;
E cumulativamente,
VII) Requereu a condenação dos RR. no pagamento de uma quantia pecuniária, de acordo com o prudente arbítrio do Tribunal e na máxima amplitude legal permitida, mas nunca inferior a 50€/dia, por cada acto de perturbação do direito à servidão de passagem e/ou por cada dia de atraso na remoção dos obstáculos que impedem o livre exercício do referido direito, nos termos do artigo 829º-A do C.C..
VIII) Requereu a condenação dos RR. a pagarem ao A. uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, com vista a ressarcir os prejuízos por este sofridos por força da actuação daqueles.
Citados, contestaram os RR. alegando, em suma (além da ilegitimidade, sanada coma intervenção), que não existe servidão por destinação do pai de família, que a existir a mesma deve ser extinta por desnecessidade e para o caso de se considerar que existe servidão, deduzem pedido reconvencional conducente à sua extinção por desnecessidade ou abuso de direito.
Concluem pela improcedência da acção ou caso se considere a existência de um caminho de servidão, seja julgada procedente a reconvenção e o A./reconvindo condenado:
A) a ver judicialmente declarado que a servidão predial de passagem constituída sobre o prédio dos Reconvintes descrito no art. 36º da reconvenção a favor e em proveito do prédio discriminado no art. 1º da petição inicial se tornou desnecessária ao prédio dominante, consequentemente;
B) a ver, igualmente, declarada a extinção da identificada servidão por desnecessidade;
C) Ou, na hipótese de se entender que a servidão constituída por destinação do pai de família não pode ser extinta por desnecessidade, ser declarada extinta a mesma servidão por manifesto abuso do direito;
D) em qualquer das hipóteses, a abster-se, de futuro, de utilizar o referenciado prédio dos RR./reconvintes para quaisquer fins.
O A. replicou, mantendo, em suma, o alegado na petição inicial e impugnando a existência de outro caminho que sirva igualmente as suas necessidades.
Foi, depois, realizada a audiência de julgamento no termo da qual foi proferida sentença que, julgou procedente a acção, excepto quanto ao pedido indemnizatório e à remoção do portão, considerando, quanto a este, suficiente a entrega de chave ao autor. Consequentemente, julgou improcedente a reconvenção.
É desta decisão que vem interposto recurso pelos RR. Dada as extensíssimas conclusões com que os apelantes o terminam, não se procederá à sua transcrição, destacando-se apenas as questões que nelas vêm suscitadas, divididas por grupos, para mais fácil tratamento:
I
a. - reversão do juízo de comprovação sobre os factos descritos sob os pontos 7, 8 e 9 e sua contradição com o facto provado sob o ponto 28º
b. - reversão do juízo de comprovação sobre os factos descritos sob os pontos 20, 22, 25 e 26 e do juízo negativo sobre o facto descrito sob a al. A) dos factos não provados.
c. - improcedência da acção, em função do novo elenco de factos provados;
II
a. - extinção da servidão constituída por destinação de pai de família, por desnecessidade;
a.1. - viabilidade dessa extinção por tal servidão dever ser qualificada como servidão legal e não voluntária;
a.2. - viabilidade dessa extinção por tal servidão constituir compressão injustificada e intolerável do direito de propriedade dos apelantes;
III
a. - se não tivesse sido constituída a servidão, em 1954, o prédio do A. estaria encravado, pelo que a essa servidão se devem aplicar as mesmas regras de extinção que às servidões legais; tendo deixado de estar encravado, se deve extinguir-se a servidão;
a.1. - se esta questão pode ser apreciada, por não ser uma questão nova;
IV
a. se a extinção deve ser extinta por abuso de direito, face á desproporção entre o benefício que a servidão traz ao A. e o sacrifício que importa para os RR.
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Não foi oferecida qualquer resposta a este recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Foi, depois, recebido, nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitidos, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.
2- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. art. 639º e nº 4 do art. 635º, ambos do CPC).
No relatório que antecede, já se identificaram essas questões, que agora compete apreciar.
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Para esse efeito, é útil ter presente a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto em discussão, que se passa a transcrever.
1º- O A. é possuidor do prédio urbano, constituído por uma casa de habitação de R/chão com logradouro, sito no ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, sob o n.º 319/... e inscrito na actual matriz no artigo 1441U da União de Freguesias ..., que proveio do anterior artigo 598U da extinta Freguesia ....
2º- O A., desde o seu nascimento que habita o referido prédio.
3º- Posteriormente adquiriu tal prédio por adjudicação em partilha, por óbito de seus pais F... e G... e registou pela Ap. 15 de 18/05/2000.
4º- O A., por si e antepossuidores há mais de 60 anos, extraiu, do referido bem, todas as utilidades que o mesmo pode permitir, designadamente habitando-o, nele confeccionando refeições, dormindo, recebendo familiares e amigos, plantando quintal e vinha, colhendo os respectivos frutos, guardando lenhas, alfaias agrícolas e veículos motorizados, fazendo obras de conservação e remodelação e pagando os impostos.
5º- Tudo, e durante o referido período de tempo, tem sido feito à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, inclusive dos RR., de forma ininterrupta, dia a dia e ano após ano, na convicção de ser seu único proprietário, de que exerce poderes sobre a coisa que lhe pertence e de que não está a lesar direitos ou interesses alheios.
6º- Os RR. são possuidores dos prédios também sitos no ... da dita freguesia ..., conforme documentos juntos de fls. 21 a 29 e 171 e ss., cujo teor aqui se dá por reproduzido:
a) Um prédio rústico, denominado J..., sito no ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, sob o n.º 220/... e inscrito na actual matriz rústica no artigo 665 da União de Freguesias ..., que proveio do anterior artigo 503R da extinta Freguesia ....
b) Um prédio actualmente urbano composto por casa de R/Chão e andar com logradouro, sito no mesmo ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada, sob o n.º 218/... e inscrito na actual matriz urbana no artigo 1535 da União de Freguesias ..., que proveio do anterior artigo urbano 665 da extinta Freguesia .... 7º- Desde tempos imemoriais, há mais de 60 anos, que o acesso da via pública ao agora prédio do A. e vice-versa se faz por uma faixa de terreno – situada na estrema Norte do actual prédio Urbano (218/...) dos RR., na parte em que este confronta com a estrema Sul do prédio Rústico (220/...) também dos RR. – que o atravessa no sentido nascente/poente e no sentido inverso, ou seja desde a via pública até entrar no prédio do A., pelo seu lado nascente, e desde o prédio do A. até chegar à via pública. 8º- Essa faixa de terreno, em linha recta, com uma extensão de cerca de 57 metros e com uma largura de pelo menos 2,5 metros, murado e gradeado, nas suas laterais e com uma ramada aérea, que o percorre em toda a sua extensão, desde a via pública até atingir o agora prédio do A. (319/...), apresentava-se em terra batida, pisada, com ausência de vegetação, pela passagem contínua de carros, tractores e pessoas a pé, nomeadamente o A., sua família e amigos, para acesso e saída da sua habitação. 9º- Sempre, pela referida faixa de terreno – que outrora constituía, juntamente com a demais porção de terreno, a totalidade do prédio mãe, antes de operada a sua divisão – existente no agora prédio (218/U) dos RR., se fez o acesso ao agora prédio do A., sendo que quer o A., sua família e amigos, quer os seus antepossuidores, o utilizavam a pé ou de carro, dia a dia, ano a ano, sem oposição de quem quer que fosse, sem oposição dos RR. e anteriores donos do prédio destes, à vista de toda a gente e na convicção de que está a exercer um direito de que beneficia o seu prédio e onera o prédio dos RR.
10º- O prédio do A. e os prédios dos RR., entre outros, integravam um único prédio mãe, sito no ..., freguesia ..., a confinar de Poente com ..., Nascente com o caminho publico, Norte com Leira de L... e M..., Sul com adro do ..., descrito na Conservatória sob o número 19.686 do Livro B51, a fls. 168, conforme documento junto de fls. 38 e ss. cujo teor se dá por integramente reproduzido.
11º- O prédio do A. e os prédios dos RR. pertenceram outrora, conjuntamente com outros, ao mesmo dono, até ao momento da separação de domínios e todos os prédios, no seu conjunto, englobavam um único prédio que pertencia ao casal N... e O....
12º- Em Escritura de Partilha, celebrada em 4 de Junho de 1954, no Cartório Notarial de Lousada, declararam os seus outorgantes, filhos do dissolvido casal N... e O..., dividir e partilhar o referido prédio em três lotes, que ficaram a confrontar entre si.
13º- Nessa escritura, o segundo lote – ficou a confrontar do Nascente com terreno do terceiro lote, Poente com terreno do primeiro lote, Sul com P... e respectivo Adro, Norte com leira da casa do recanto – foi adjudicado aos segundos outorgantes F... e esposa G..., pais do aqui A. e o terceiro lote – ficou a confrontar de Nascente com caminho público, Poente com terras do segundo lote, Norte L... e leira da casa do recanto, Sul caminho publico da ... – foi adjudicado aos terceiros outorgantes H... e marido I..., avós da R. mulher.
14º- Mais foi declarado nesta escritura de partilha de 04/06/1954 “Que o terceiro lote fica obrigado a dar servidão permanente de pé, carro e gado, a favor do segundo lote, por um caminho já muito antigo, como de resto já é uso e costume”.
15º- Posteriormente o ... lote – identificado na escritura de partilha 04/06/1954 – foi dividido em dois prédios rústicos [218/R e 220/R], cada um deles com a denominação de “J...”, que foram adquiridos pelos RR., com as servidões, águas e demais pertenças, incluindo uma ramada na estrema, aos pais e tios da R. mulher, na escritura de compra e venda e partilha, celebrada em 7 Julho de 1994, conforme documento junto de fls. 171 e ss. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16º- E, por força da separação de domínios, na escritura celebrada em 04/06/1954:
- O prédio 220/R de ... passou a ter a composição de cultura a mato e a confrontar Norte ... e Q..., Sul caminho, Nascente caminho público, Poente Herdeiros de F....
- O prédio 218/R passou a ter a composição de cultura, ramada e pinhal, a confrontar de Norte I... e outro, Sul F..., Nascente caminho publico, Poente F..., sendo que, posteriormente, este prédio rústico deu origem ao prédio urbano 218/U e passou a ter a composição de casa de rés-do-chão e andar com logradouro, mantendo as anteriores confrontações.
17º- O segundo lote – identificado na escritura de partilha 04/06/1954 – foi objecto de partilha entre o A. e seus irmãos, em virtude das heranças abertas por falecimento de F... e G..., pais do A..
18º- Nessa Escritura de Partilha, celebrada em 20 de Novembro de 1998, no Cartório Notarial de Lousada, ao A. foi adjudicado, entre outros, o prédio constante da verba dois da relação de bens anexa à escritura, que corresponde ao prédio descrito em 1º.
19º- Declararam ainda os outorgantes na Escritura de Partilha, celebrada em 20 de Novembro de 1998, no Cartório Notarial de Lousada que “… o prédio da verba dois goza de servidão de passagem já constituída há muitos anos, sobre caminho situado a nascente do mesmo e que passa por terrenos da herança de I... …”. 20º- Tal caminho, que hoje comporta a serventia para o prédio do A., foi criado há mais de 60 anos por N..., o anterior proprietário dos prédios hoje de A. e RR..
21º- Os RR. iniciaram um processo de calcetamento do referido caminho e, com a conclusão da obra de calcetamento, no final de Setembro 2014 colocaram um portão de duas folhas, munido de fechadura, no início do aludido caminho, na estrema em que o mesmo confronta com a via pública.
22º- Impedindo, desta forma, que o A. e sua família acedam, como sempre acederam, há mais de 60 anos, pelo dito caminho, ao seu prédio.
23º- O referido portão encontra-se permanentemente fechado à chave.
24º- Os RR. não entregaram ao A. uma chave da fechadura do dito portão. 25º- A manutenção do portão fechado ou sem a entrega de uma chave ao A., impede que este, sua família e amigos utilizem o caminho para acesso e saída do seu prédio, de e para a Rua ..., a pé e de automóvel, como vem a suceder ao longo de mais de 60 anos. 26º- Obrigando o A. e sua família a entrar e sair do seu prédio, por outro lado, sujeitando-os a percorrer cerca de 190 metros a mais, (alteração introduzida pela apreciação do recurso sobre a matéria de facto)do que poderiam fazer(alteração introduzida pela apreciação do recurso sobre a matéria de facto), para chegarem da Rua ... à sua habitação e vice-versa.
27º- O prédio do Autor, que constitui agora o Lote nº . do Alvará nº ./96, confronta directamente, pelo lado sul, com a Rua ..., aberta pela Junta de Freguesia ..., há pelo menos 16 anos, onde tem colocada a sua caixa de correio.
28º- O prédio do A. tinha também serventia pelo .º Lote, que confrontava pelo poente com o caminho público, o caminho da ..., que também era utilizado pelo A. e seus antecessores para se dirigirem da sua casa e viceversa, à escola, à mercearia e ao correio e, para a Igreja e cemitério, localizados a sul, serviam-se de uma carreira onde hoje se situam os Lotes da ... e a rua com o mesmo nome.
29º- Do prédio do A. até ao caminho da ... distam cerca de 6 metros.
30º- Desde há mais de 30 anos que, por si e antecessores, os reconvintes estão no uso, fruição e disposição, sempre repetidos e renovados, do prédio aludido em 6º, designadamente cultivando-o, construindo a casa de habitação, habitando-o, percebendo os respectivos rendimentos e pagando as correspondentes contribuições, direitos adquiridos na ignorância de lesar outrem, sem emprego de qualquer violência e de modo a poderem ser conhecidos pelos interessados, agindo, igualmente, na convicção de exercitar um direito próprio e como se proprietários fossem.
(…)
Não se provaram todos os demais factos (…) nomeadamente, que:
A) O caminho de servidão é desnecessário por existir outro caminho do lado contrário.
B) Antes das obras dos RR. encontrava-se fechado o portão do dito caminho e um portão de madeira junto da entrada do denominado S... dos RR., com cerca de 2 metros de largura e que tinha a altura da entrada deste, ou seja, 2,30 metros.
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As questões colocadas no recurso independente, da autora, reconduzem-se, antes de mais, à alteração da decisão proferida pelo tribunal a quo sobre alguns pontos da matéria de facto, no sentido do afastamento dos pressupostos do direito que acabou por ser reconhecido aos AA (designação que abrange o autor e sua mulher, chamada aos autos por intervenção).
Os apelantes, além de identificarem concretamente os pontos da matéria de facto a reavaliar (graficamente destacados na transcrição anterior), indicaram os meios de prova em que se deve basear a alteração do decidido. No respeitante aos depoimentos e declarações gravados, precisaram os segmentos a considerar.
Assim, por terem satisfeito o ónus processual prescrito no art. 640º, nºs 1 e 2 do CPC, cumpre apreciar o seu recurso.
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O primeiro argumento com fundamento no qual os apelantes vêm pretender que se dê por não provada a matéria dos pontos 7º, 8º e 9º da decisão positiva sobre a matéria de facto é a sua alegada contradição com o ponto 28º.
A matéria daqueles 3 primeiros pontos traduz-se, em suma, na identificação de uma faixa de terreno em linha recta, com uma extensão de cerca de 57 metros e com uma largura de pelo menos 2,5 metros, murado e gradeado nas suas laterais, com uma ramada aérea que o cobre em toda a sua extensão, desde a via pública até atingir o agora prédio do A. (319/...), faixa essa que antes se apresentava em terra batida, pisada, com ausência de vegetação, pela passagem contínua de carros, tractores e pessoas a pé, nomeadamente o A., sua família e amigos, para acesso e saída da sua habitação, através da qual, desde há mais de 60 anos, se fazia o acesso da via pública até ao prédio do A. e vice-versa. E ainda que essa faixa de terreno, existente no agora prédio (218/U) dos RR., que antes integrava um prédio único com outros, incluindo o dos AA, sempre foi usada pelo A., sua família e amigos, bem como pelos seus antepossuidores, a pé ou de carro, dia a dia, ano a ano, sem oposição de quem quer que fosse, sem oposição dos RR. e anteriores donos do prédio destes, à vista de toda a gente e na convicção de que está a exercer um direito de que beneficia o seu prédio e onera o prédio dos RR.
Já o art. 28º refere que o prédio do A. tinha também serventia de “uma carreira”, onde hoje se situam os Lotes da ... e a rua com o mesmo nome, ”, através do .º lote que confrontava pelo poente com o caminho público, o caminho da ..., que o A. e seus antecessores também usavam para se dirigirem da sua casa, à escola, à mercearia, ao correio e, para a Igreja e cemitério, localizados a sul, e vice versa. Ou seja, aqui se expressa que o mesmo prédio dos AA. tinha acesso a diversos locais por outra via, que não a faixa de terreno de 57 m., identificada no prédio dos RR.
O argumento dos apelantes traduz-se a salientar que se o A., família e amigos, bem como antepossuidores utilizavam um caminho através do actual lote nº ., para irem à escola, à mercearia e ao correio e para a igreja e cemitério, nenhum objectivo restava que justificasse o uso a faixa de terreno relativamente à qual invocam a servidão de passagem, não podendo aí haver os apontados sinais de passagem.
Não é correcta, porém, a interpretação feita pelos ora apelantes, da conjugação dos referidos factos dados por provados. Por um lado, literalmente, a utilização do conector de adição “também” no texto do ponto 28º, impede essa interpretação. O que ali se expressa é que, além do acesso através da faixa de terreno sobre o prédio dos RR., um outro havia que “também” era usado para ir e vir do prédio dos AA. e seus antecessores. Por outro lado, a afirmação sobre ser este último usado para idas e vidas de e para a escola, a mercearia, o correio, a igreja e o cemitério não comporta a especulação de que só a estes destinos os AA. e seus antecessores se deslocavam, nem que, ao fazê-lo, sempre usassem esse carreiro e não a faixa da alegada servidão.
Assim, sem necessidade de outras considerações, que a objectiva interpretação das asserções constantes da sentença em crise dispensa, resta concluir pela não verificação da apontada contradição entre os factos em questão.
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De seguida, alegam os apelantes que a prova testemunhal produzida não permite dar por provada essa mesma factualidade, descrita nos pontos 7º a 9º dos factos provados, cumprindo reapreciá-la com total amplitude, designadamente com atenção aos segmentos que especificou.
Essa é, obviamente, a tarefa que importa empreender, na busca de uma convicção própria, não limitada à sindicância da motivação da decisão da 1ª instância, mas sem descurar a análise já aí concretizada sobre a prova produzida, tão mais importante quanto se verifique – como se verifica nessa decisão – que essa análise foi completa, criteriosa e crítica, facultando a perfeita compreensão do resultado decretado.
Nessa tarefa, mesmo antes da ponderação dos depoimentos testemunhais indicados e dos demais tidos por úteis, é imprescindível apreender o conteúdo da prova documental oferecida. E entre esta, o teor da escritura de partilha de 1954, através da qual se operou a divisão de um prédio original (o prédio-mãe) em diversos prédios mais pequenos, com expressa referência a um caminho de servidão.
Com efeito, a situação predial anterior a 1954 e a sua alteração para os termos resultantes da escritura de 4 de Junho desse ano mostram-se perfeitamente descritas nos pontos 10º a 13º da matéria provada, daí resultando a constituição do prédio dos AA, que o herdaram de seus pais, e a constituição de um outro prédio (então designado por lote .), entretanto dividido em dois [218/R e 220/R], que são os agora pertencentes aos RR.
De extrema relevância é o facto de logo nessa escritura se ter referido a existência de um caminho já muito antigo, que ficou incluído no tal lote ., para “servidão permanente de pé, carro e gado, a favor do segundo lote [prédio dos AA] … como de resto já é uso e costume.” (cfr. ponto 14º).
A servidão de passagem aqui em discussão surge, pois, perfeitamente identificada na referida escritura, a qual revela, além do mais, a antiga e clara pré-existência do correspondente passagem. Com efeito, não foi ao tempo da separação do prédio, ocorrida por efeito dessa escritura, que se constituiu a passagem, para beneficiar um dos prédios então autonomizados, à custa da serventia de um outro; a passagem real já ali se identificava como um “caminho muito antigo”.
É certo que – como alegam os apelantes – se pode admitir que a declaração dessa realidade ao notário que outorgou a escritura não faz prova plena do correspondente substrato factual – a efectiva existência de um tal caminho muito antigo - mas tão só da própria declaração. Porém, a força probatória de um tal documento é massiva, exigindo uma assinalável actividade probatória de sinal contrário para que se possa afastar o seu teor.
No caso, não só os RR. não lograram afastar a eficácia probatória desse documento, como ela surgiu reforçada a partir dos depoimentos de T..., U..., V... e W..., devidamente descritos e apreciados criticamente pelo tribunal recorrido, em termos que entendemos não merecerem qualquer crítica, depois de os termos ouvido integralmente. Entre eles foi particularmente relevante do de T..., irmão do autor, que viveu na cassa até casar e continuou a frequentar a casa, proporcionando uma descrição dos acessos para e a partir da casa dos AA., mas descrevendo uma realidade absolutamente compatível com o teor daquela escritura. Referiu que o carreiro descrito no ponto 28º era só para trânsito a pé e que a entrada de carros sempre foi feita pela passagem em relação à qual é invocada a servidão. Esse era o único caminho para carros de bois, para a lavoura e por onde ele próprio entrava de carro quando, nos anos 80 e 90, ia visitar a mãe.
Tal depoimento foi isento, sereno e credível e a sua coerência com o teor da escritura potencia o teor probatório de ambos. De resto, essa isenção é bem revelada na admissão feita sobre ter deixado de usar aquela passagem a partir do momento em que foi feito o caminho asfaltado, através daquilo que podemos designar lado sul do prédio dos AA, por ter passado a ser “mais cómodo” aceder a tal prédio por esse lado (a partir de 11’26’’ do depoimento). No entanto, desde antes e depois da divisão do prédio, em 1954, todos usavam “pacificamente”, aquela passagem, ao longo de mais de 40 e 50 anos (a partir de 19’ do seu depoimento).
Aliás, é ainda significativa a explicação que T... dá à pergunta do Il. Mandatário dos RR., o qual, contextualizando a questão sobre a utilidade da passagem de servidão, afirmou que ninguém (isto é, os RR., por si representados) estava a negar que o lote . estivesse sujeito a servidão de pé e carro e bois (23’), nos termos resultantes da escritura. Sobre tal utilidade, T... referiu que aquele acesso era útil para quem viesse a casa dos pais desde aquela zona da freguesia. “Entrava por ali muita gente”, respondeu, explicando ainda que o outro caminho, a pé, através do lote ., não servia para acesso de carros, tudo redundando numa solução nos termos da qual o acesso ao prédio ora dos AA. se fazia pelo caminho de servidão ou pelo carreiro, conforme desse mais jeito, sempre recusando a afirmação –insistentemente tentada pelo Il. Mandatário – de que só visitas ocasionais usavam a passagem em discussão. Em suma, a pretensão de conformação do depoimento, através das perguntas feitas, no sentido da conclusão de que só muito ocasionalmente (um ou duas vezes por ano) passavam carros de bois no caminho de servidão, pois que tudo o resto era feito através do carreiro pelo lote um, faliu em absoluto perante o depoimento de T....
Acresce que, ao contrário do que parecem pretender os apelantes, com a argumentação que desenvolvem neste recurso, num esforço de desvalorização desse depoimento, não deve exigir-se um rigor ou uma pormenorização absolutos a depoimentos que têm por objecto factos e circunstâncias verificados há múltiplas dezenas de anos atrás. Daí que, para que se dê por provado que algo acontecia há mais de 60 anos, não tenha de identificar-se um concreto depoimento, prestado por alguém com idade compatível, que o relate com precisão. Haverá de bastar – como basta no caso em apreço – a verificação de circunstâncias que tornem plausível, verosímil, que tal aconteça. É, como se deixou antever, o que resulta da conjugação desse depoimento com uma escritura de 1954, que descreve a mesma situação e a situa já bem para o passado.
Para além disso, os outros depoimentos indiciam, cada um à sua maneira, essa mesma situação, como bem elencou o tribunal recorrido. São eles os prestados por U..., que levava lá o seu filho, porquanto a interveniente foi ama do seu filho, mas que já usava esse caminho antes, para ir a casa dela, sem prejuízo de também usar o carreiro sobre o lote ., designadamente ao vir da escola; por V..., e W... (que lá passava de bicicleta, motorizada e carro, jamais usando outro acesso, já que lá não ia a pé – 20’ do seu depoimento), todos, enfim, descrevendo a utilização daquela passagem, em termos que reconhecem manter-se inalterados desde que se conhecem (agora com portão), tudo nos precisos termos analisados pelo tribunal a quo, que aqui seria fastidioso repetir, já que com eles se concorda integralmente, e cuja aptidão para convencer se não pode considerar afectada pelas respostas que, em sede de contra-instância, possam parecer não coincidir integralmente com o declarado anteriormente.
X..., irmão do R, descreveu os dois acessos, mas referiu igualmente que o carreiro pelo lote um era para circulação a pé e que a passagem em relação à qual se reivindica a servidão era a usada para acesso com carros de bois, sem prejuízo de o seu pai, quando ia cultivar tais terrenos, entrar por qualquer lado, já que havia pouca gente e ninguém se opunha a tais acções. Mas desse depoimento não resultou excluída a serventia que a faixa em discussão proporcionava ao prédio agora dos AA. E tal exclusão não resulta, igualmente do desconhecimento manifestado por Y..., que não coloca em questão os restantes depoimentos.
Inexiste, pois, qualquer fundamento para se alterar a resposta positiva à matéria descrita nos pontos 7º a 9º da decisão recorrida.
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Também contra a decisão de comprovação da factualidade descrita sob os pontos 20º, 22º, 25º e 26º se insurgem os RR.
Tal conjunto factual traduz-se, em suma, no facto de existir aquela passagem em favor do prédio agora dos AA. há mais de 60 anos, criada pelo anterior dono do prédio a partir de cuja divisão se criaram os prédios de AA. e RR. (ponto 20º), cuja utilização histórica está agora impedida (ponto 22º), se esse impedimento leva a que os AA, para chegarem ao mesmo ponto por onde acediam através desse caminho, na Rua ..., tenham de circular 500 m. a mais. (pontos 25º e 26º).
Os meios de prova já referidos, segundo a análise efectuada, a par do exame dos documentos de fls. 203 a 205, constituídos por impressões de imagens de “street view” e de imagem aérea do Google Earth, levam à conclusão pelo acerto do juízo em causa, quanto à matéria dos pontos 20º, 22º e 25º. Já se referiram as circunstâncias que levam a dever ter-se por adquirido o uso da faixa em questão há mais de 60 anos, não se vendo utilidade na repetição dessa verificação.
Porém, também é certo que X... refere que a passagem à volta do prédio dos RR., em vez do seu atravessamento pela passagem em discussão, além de ser mais confortável e rápida, só os leva a percorrer uma distância de 250 m., em vez dos 500 m. a mais referidos no ponto 26º.
Para além disso, apreciando a imagem aérea constante de fls. 205, se tivermos por adquirido que a passagem de serventia em discussão tem 57 m. de comprimento, como provado no ponto 8º, somos forçados a concluir que o percurso que os AA. têm de percorrer, se quiserem chegar ao termo dessa passagem, pelo percurso que parte do lado sul da sua casa para nascente e depois volta para poente , fazendo como que um “U”, como referiu o Il. Mandatário dos RR na sua instância à testemunha X..., só terá cerca de 250 m., como referido por tal testemunha. É o que proporciona um exame, à escala, dessa fotografia. Ou seja, a alternativa verifica-se entre 57m e 250 m., numa diferença de cerca de 190 m.
Por esse motivo, alterar-se-á em conformidade o teor do ponto 26º, onde passará a constar a distância de “cerca de 190 metros a mais”, onde constava “cerca de 500 metros a mais”.
Por outro lado, também não foi produzida prova de que tal actuação – a circulação pela passagem, a pé ou de carro, pelos AA. e família, decorresse quotidianamente, como se deu por provado nesse mesmo ponto 26º, o que nos deve levar a limitar a asserção constante desse ponto à equivalente possibilidade, como alternativa a uma realidade de ocorrência quotidiana.
Procederá, nessa medida, esta parte da apelação, com o que se altera desde já, no local próprio (ponto 26º) e em termos assinalados também graficamente, a redacção da factualidade provada.
Por fim, impugnam os RR a decisão negativa subjacente à afirmação constante da al. A) dos factos não provados, i. é, “O caminho de servidão é desnecessário por existir outro caminho do lado contrário”.
Porém, o carácter absolutamente conclusivo desta asserção sempre impediria a sua classificação como elemento factual, eventualmente merecedor de um juízo positivo. É da restante factualidade discutida e provada que, sendo caso disso, se deverá extrair uma tal conclusão, a qual, desprovida de natureza fáctica, não poderá ser alvo de um juízo sobre a sua efectiva e natural ocorrência. Não procederá, por isso, também nesta parte, a presente apelação.
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Fixada está, nos termos anteriormente enunciados, a matéria de facto a considerar, cumpre passar à decisão das restantes e subsequentes questões colocadas pelos apelantes, sendo a primeira constituída por uma eventual falência dos pressupostos factuais do direito reconhecido aos AA., em virtude da alteração ocorrida em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto.
A única alteração introduzida no teor do ponto 26º não faculta, no entanto, qualquer alteração do decidido, pois que o que estava em causa, nesta parte do recurso, era não se chegar sequer a identificar a faixa de terreno mencionada na escritura de 1954 e, por isso mesmo, a ausência de qualquer área usada e destinada ao atravessamento dos prédios dos RR., em benefício do prédio dos AA. Pelo contrário, manteve-se a conclusão sobre a existência dessa faixa de terreno, destinada a passagem a pé e de carro, desde a casa dos AA. até à rua que fica a norte do prédio dos RR., tudo como supra descrito, incluindo no respeitante ao seu destaque relativamente ao resto do prédio, resultante dos sinais que bem revelam a sua existência, destino e efectiva utilização. E manteve-se igualmente a conclusão sobre a história dessa faixa, sobre a sua sobrevivência à divisão do prédio em que se incluía e sobre as acções que AA. e RR. vêm recentemente exercendo sobre ela.
Por conseguinte, em virtude da reapreciação da matéria de facto, nenhuma alteração cabe realizar na sentença sob recurso, improcedendo, também nesta sede, a presente apelação.
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É útil ponderar que a conclusão do tribunal sobre a constituição da servidão invocada pelos AA., por destinação de pai de família, só vinha posta em causa pelos apelantes em função da negação dos respectivos pressupostos factuais. A não alteração destes, sem prejuízo da irrelevante (pelo menos por ora) modificação decretada, implica o reconhecimento da constituição da servidão de passagem, nos termos invocados e admitidos na sentença, pois esta solução não foi posta em causa à luz de quaisquer outras razões. As demais questões que, sucessiva e subsidiariamente, integram o objecto do recurso reportam-se à extinção de uma efectiva e actuante servidão de passagem e já não à sua rejeição.
Será, pois, na consciência desse pressuposto que se conhecerão as demais questões enunciadas.
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Assim, num segundo grupo de questões, com o pressuposto da existência da servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, tal como invocado pelos AA e reconhecido pelo tribunal recorrido, defendem os apelantes que a mesma deve ser declarada extinta, por desnecessária. E isso à luz de dois argumentos que supra se identificaram: dever tal servidão classificar-se como uma servidão legal e dever ter-se por uma compressão não tolerada do direito de propriedade dos AA., face a tal desnecessidade.
A este propósito, o tribunal recorrido qualificou a servidão de passagem em questão como uma servidão constituída por destinação de pai de família e, nessa medida, voluntária e insusceptível de extinção por desnecessidade.
Antes de se analisar essa hipótese, no contexto legal aplicável, deverá verificar-se se se pode concluir pela alegada desnecessidade, em face dos factos apurados, pois que, como se referiu em momento anterior, a afirmação de uma eventual desnecessidade da servidão para o prédio dominante é uma conclusão, a carecer de ser extraída de outros factos através de um processo lógico, e não um facto em si mesmo.
Tal desnecessidade, que possibilita a extinção das servidões legais e das constituídas por usucapião, encontra-se prevista nos nºs 2 e 3 do art. 1569º do C. Civil. Não se fixando, em qualquer das normas, o conteúdo desse conceito de desnecessidade, cabe defini-lo em concreto.
Nessa tarefa, a jurisprudência vem reconhecendo situações de desnecessidade quando o prédio dominante pode alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia (STJ, 11/12/12, proc. 3303/07.0TBBCL.G1.S1), ou quando a servidão “tiver perdido aptidão para proporcionar ao prédio dominante qualquer utilidade concreta que não possa ser alcançada por outra via ou quando a utilidade que dela ainda possa advir é insignificante ou irrisória quando comparada com o encargo imposto ao prédio serviente; não ocorre, porém, tal desnecessidade e consequente extinção se a servidão puder ainda proporcionar ao prédio dominante uma utilidade que, não podendo ser obtida por outra via, é relevante por facilitar o uso normal e regular do prédio e por proporcionar uma comodidade que, de outro modo, não poderia ser obtida e cuja eliminação seja susceptível de determinar um incómodo significativo ou relevante.” – Ac. do TRC de 27/5/2014, proc. nº 377/12.5T2ALB.C1, em www.trc.pt.
Também noutro Ac. do TRC, de 13/5/2014 (proc. nº 4054/11.6TJCBR.C1), se salientou, para este efeito, a relevância da desproporção entre a utilidade para o prédio dominante e o sacrifício, ou limitação ao correspondente direito de propriedade, imposto ao prédio serviente, nos seguintes termos: “(…)2 - Embora seja imanente e essencial à servidão que a mesma traga proveito ao prédio dominante, esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente e à utilidade/proveito que proporciona ao prédio dominante; nesta hipótese, há que efectuar um juízo de proporcionalidade actualizado sobre os interesses em jogo e caso haja alternativa – caso, com um mínimo de prejuízo para o prédio dominante, esteja garantida uma acessibilidade, em termos de comodidade e regularidade, ao prédio dominante, sem onerar, desnecessariamente, o prédio serviente – deve permitir-se a extinção, por desnecessidade, da servidão. 3 - Não basta pois (para a extinção da servidão por desnecessidade) que, para além da passagem objecto da servidão, exista outra via de acesso do prédio dominante para a via pública, porquanto é necessário que esse outro acesso ofereça condições de utilização similares, ou, pelo menos, não desproporcionalmente agravadas.”
Na situação sub judice, os factos apurados revelam que o prédio dos AA. beneficia de uma servidão de passagem através dos prédios dos RR., que se estende por 57 m, com uma largura de, pelo menos 2,5 metros, murado e gradeado, nas suas laterais e com uma ramada aérea, que o percorre em toda a sua extensão, desde a via pública até atingir aquele prédio dos AA. Esse caminho permite aos AA. e a quem os visita a comunicação com a Rua ... que, assim, dista desse prédio 57 m. E esse acesso pode fazer-se a pé ou de carro, sendo que um carro que entre de frente tem de sair em marcha atrás, pois a largura do caminho – 2,5 m. - não permite a inversão de marcha.
Mas o prédio dos AA. tem actualmente outro acesso à via pública e, mesmo para chegar ao mesmo ponto da R. ..., os AA. só terão de percorrer mais 190 m. Com efeito, o prédio do Autor confronta directamente, pelo lado sul, com a Rua ..., aberta pela Junta de Freguesia ..., há pelo menos 16 anos, e é lá que ele tem colocada a sua caixa de correio. Por outro lado, é para esse lado que ficam várias valências da freguesia, tais como escola, mercearia igreja e cemitério.
Verifica-se assim, que por via de uma obra de urbanização, o prédio dos AA. confronta agora com uma rua, sendo através desta que, naturalmente, se lhe acede. As fotografias juntas aos autos, utilizadas pelo tribunal na sua motivação revelam bem como o prédio dos AA. se define agora claramente em função do seu posicionamento em relação a essa rua e o próprio B1... o deixou perceber, referindo como agora é muito mais cómodo chegar ao prédio por essa via, por esse lado, em vez de fazer o percurso pelo caminho de servidão. E se é certo que este caminho continua a facultar o acesso do prédio à Rua ..., ou seja, para o lado contrário da Rua ..., através de um percurso de 57 m., também se verifica que, sem o uso deste, os AA. conseguem chegar ao mesmo local, palas ruas da freguesia, apenas percorrendo mais 190 m.
Em suma, podemos afirmar que se é certo que tal caminho ainda representa uma utilidade para o prédio dos AA., a restrição que ele comporta ao direito de propriedade dos RR. sobre os seus prédios é por demais elevada, quando comparada com aquela utilidade, que é objectivamente diminuta. O prédio dos AA. consegue agora ter acesso fácil e cómodo por outra via, que não o caminho de servidão, e tem, em função disso, a mesma ou melhor aplicação ou aproveitamento que antes lograva através da servidão de passagem.
É em função disso que se pode concluir pela desnecessidade da referida servidão de passagem, na percepção de que a sua continuidade comporta um sacrifício desproporcionado e injustificado para o direito de propriedade dos RR. sobre os seus prédios, face à reduzida utilidade que assegura para o prédio dominante, dos AA.
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A conclusão que acaba de se enunciar remete-nos de imediato para a questão seguinte, que é a da possibilidade de se declarar a extinção da referida servidão de passagem, em razão dessa desnecessidade que lhe foi apontada.
O primeiro argumento apontado pelos RR. para esse efeito é o da classificação da servidão constituída por destinação de pai de família como uma servidão legal e não constituída por forma voluntária. A razão desse argumento é óbvia, face à limitação das hipótese de extinção de servidão por desnecessidade às servidões constituídas por usucapião e às servidões legais, nos termos referidos nos nºs 2 e 3 do art. 1569º do C.Civil.
Os próprios apelantes reconhecem a dificuldade da sua argumentação. E, com efeito, entendemos não terem razão: resulta claramente do disposto nos arts. 1547º, nºs 1 e 2 e 1549º o que sejam servidões legais – constituídas por decisão judicial ou administrativa, em resultado do exercício de um direito potestativo sustentado na realização da facti species legalmente prevista – e as servidões constituídas voluntariamente, como é o caso da constituição por destinação de pai de família. Neste caso, a serventia de um prédio em benefício de outro, ou de uma parte de um prédio em benefício de outra, resulta de uma opção voluntária do seu dono comum, a qual se expressa por sinais visíveis, que demonstram tal opção. Opção que, em momento de separação do prédio, se mantém, ao não ser expressamente excluída, assim nascendo a servidão.
Pode, assim, afirmar-se que a servidão por destinação de pai de família “representa uma verdadeira aquisição ope legis” (Tavarela Lobo, Destinação do Pai de Família, Coimbra, 1964, pg. 3), mas a sua génese exclui que se possa considerar uma servidão legal, para efeitos do disposto no art. 1569º, nº 3 do C. Civil, pois que não deriva da mera verificação judicial ou administrativa de uma hipótese legal, sendo sim o produto de uma opção voluntária. E é nesse sentido que não podemos concluir estarmos perante uma servidão legal ou algo que se lhe equipare, mas antes de natureza voluntária, o que é solução inequívoca por parte da doutrina e da jurisprudência.
Neste sentido, veja-se a assertiva lição de Pires de Lima e A. Varela, CC. Anotado, III, 2ª ed, 635, salientando a circunstância de a servidão constituída por destinação de pai de família não ter uma origem negocial, mas, sem prejuízo, uma natureza voluntária. Na jurisprudência, veja-se, por ex., o Ac. do STJ de 13/12/2007, onde se afirma: “A servidão por destinação do pai de família não é uma servidão legal e constitui-se no momento em que os prédios ou fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes, tendo na origem um acto voluntário consistente na colocação de sinal ou de sinais permanentes. O acto constitutivo é o da separação jurídica de dois prédios do mesmo proprietário (destinação do anterior proprietário) ou da separação jurídica de duas fracções do mesmo prédio (destinação do pai de família propriamente dita), (…).”
Adquirida, nestes termos, a natureza voluntária da servidão sob análise, é forçoso concluir pela insusceptibilidade da sua extinção, mesmo que em face da sua desnecessidade, por falta de tutela legal dessa pretensão, à luz das regras citadas do art. 1569º do Código Civil.
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Para além disso, alegam ainda os apelantes que a desproporção entre o benefício resultante da servidão para o prédio dos AA. e a compressão que determina ao seu próprio direito de propriedade sobre os prédios servientes deve determinar a respectiva extinção.
Apreciamos já a essência desse argumento, quando concluímos pela desnecessidade actual da servidão constituída em favor do prédio dos AA., então se tendo identificado a alegada desproporção.
Porém, como acabamos de verificar, essa desnecessidade não pode determinar a extinção da servidão voluntariamente constituída e de tendência perene, salvas as hipóteses do nº 1 do art. 1569º, maxime o não uso ou a renúncia.
Não deixam de se conhecer ensaios favoráveis à implementação de solução divergente (Rita Valente Ribeiro e Castro Teixeira, Dissertação de Mestrado em Direito, Da Extinção por Desnecessidade das Servidões por Destinação do Pai de Família, http://repositorio.ucp.pt, 2012). Todavia, a nosso ver, tais propostas só podem defender-se deiure condendo, por frontalmente impedidas pelas soluções legais em vigor.
Improcede, pois, por falta de tutela legal, também esse argumento da apelação.
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Sucessivamente, vem os apelantes questionar que se não tivesse sido constituída a servidão, em 1954, o prédio dos AA. estaria encravado, pelo que a essa servidão se devem aplicar as mesmas regras de extinção que às servidões legais. Tendo deixado de estar encravado, deverá extinguir-se a servidão.
Os apelantes, no entanto, logo identificaram o problema da arguição desta questão: a sua novidade, na lide.
Revista a sua contestação, constata-se que, tal como admitido no próprio recurso, a questão de o prédio dos AA. ter ficado ou não encravado, ao tempo da escritura de 1954, com a separação do prédio mãe em três lotes, jamais foi suscitada. E daí, também, que não tenha sido discutida a base factual desta alegação e, sendo caso disso, a legitimidade da pretensão dos RR à luz da hipótese de cessação da servidão por ter cessado a situação de encravamento.
A arguição desta questão não se traduz, pois, na invocação de uma mera qualificação jurídica distinta para a pretensão formulada, mas na colocação de uma nova questão, que jamais foi sequer alvo de contraditório, inclusive no respeitante à definição da sua premissa menor, i.é, à fixação da factualidade correspondente.
Essa questão não pode, por isso, ser apreciada neste recurso, pois que o respectivo objecto é necessariamente limitado à reapreciação de questões previamente colocadas, discutidas e decididas em primeira instância.
Relembramos aqui o que já se escreveu no proc. nº 247167/11.6YIPRT.P1, desta mesma secção do TRP, em acórdão de 13/1/2015: “(…), o recurso de apelação, tal como está consagrado no nosso sistema processual civil, está formatado por um modelo de reponderação, destinado à reapreciação da decisão recorrida quanto às questões que lhe foram endereçadas, e não à reformulação da decisão perante novo contexto e novas questões. Sem prejuízo, ainda que novas, sempre poderão ser apreciadas pelo tribunal de recurso questões que sejam objecto de conhecimento oficioso. Mas esse não é o caso da questão em análise, (…) (cfr. Ac. do TRC, de 8/11/2011, proferido no processo nº 39/10.8TBMDA.C1, in dgsi.pt: "(...) IV - Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas. V - Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância. VI - Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado. VII - A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. (...)".
Não haverá, pois, de conhecer-se a questão suscitada ex novo, pelos apelantes, neste recurso, referente a uma eventual adequação da equiparação da situação sub judice à de um prédio que estava e deixou de estar encravado, e subsequente extinção de uma servidão que, por isso, tenha deixado de se justificar, pois que tal questão não chegou a constituir objecto da presente acção, jamais tendo chegado a ser colocada, como hipótese, para decisão pelo tribunal recorrido.
Não procederá, assim, também por esta via a pretensão dos apelantes.
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Por fim, alegam os apelantes que à luz do instituto do abuso de direito deve tutelar-se a sua pretensão e, por abusivo, declarar-se a extinção do direito dos AA. à servidão de passagem pelos seus prédios, que quanto a ela são servientes.
Com relevo para a apreciação desta questão já evidenciamos, por um lado, a desnecessidade da servidão de passagem, para o prédio dos AA., desnecessidade essa aferida em função de um juízo de desproporção entre a sua utilidade para o prédio dominante e o sacrifício imposta aos prédios servientes.
Mas também já verificamos como essa situação é indiferente para a manutenção da servidão, já que não habilita à sua extinção, perante o regime legal aplicável.
Nestas circunstâncias, o instituto jurídico do abuso de direito jamais poderá servir para se alcançar um resultado substantivo que o específico regime jurídico aplicável (designadamente o regime da servidão constituída por destinação de pai de família) claramente rejeita. Isso mesmo se explicita no Ac. do TRG de 15/3/2016 (proc. nº 262/14.4TJVNF-F.G1, em dgsi.pt), ou no Ac. do mesmo tribunal, de 19/10/2006, (proc. nº 1859/06-1, em dgsi.pt), sob a seguinte formulação: “(…) se a desnecessidade (…), não pode fundamentar a extinção da servidão constituída por destinação do anterior proprietário, não se concebe que possa servir de fundamento para considerar abusiva a conduta do proprietário de um prédio a que seja reconhecida tal servidão sobre outro prédio que pertenceu ao mesmo anterior proprietário, sob pena de a lei estar a deixar passar pela janela (do abuso de direito) aquilo que não consente que entre pela porta (da extinção da servidão por destinação do pai de família).
No caso, nenhum elemento adicional se revela, que traduza um qualquer caracter abusivo e intolerável, para a ordem jurídica, do exercício do direito à servidão de passagem dos AA., sobre os prédios dos RR. que transcenda aquilo em que se efectiva esse direito. Os AA. limitam-se a pretender aceder e sair ao e do seu prédio através da passagem criada para servidão, no exercício de um direito que, como vimos, a própria ordem jurídica lhes confere e não pretende ver extinto.
Inexiste, pois, fundamento para qualquer recurso ao regime constante do art. 334º do CPC.
Pelo exposto, também no âmbito desta questão resulta desprovido de razão o recurso dos apelantes.
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Resta, em suma, concluir pela improcedência da presente apelação, na confirmação da douta decisão recorrida.
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Sumariando:
- A desnecessidade, para o prédio dominante, de uma servidão de passagem é uma conclusão, não devendo afirmar-se em sede da decisão sobre a matéria de facto, mas inferir-se de factos que, a esse propósito, resultem provados.
- Uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família é uma servidão voluntária, de criação ope legis, mas não uma servidão legal. E, por isso, não é susceptível de extinção por desnecessidade.
- O instituto jurídico do abuso de direito jamais poderá servir para se alcançar um resultado substantivo que o específico regime jurídico aplicável claramente rejeita. Designadamente não pode servir para se declarar a extinção de uma servidão de passagem constituída por destinação de pai de família, por ter deixado de ser necessária para o prédio dominante, quando a lei prevê que a desnecessidade não pode servir para justificar tal extinção.
3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, na confirmação da douta decisão recorrida.
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Custas pelos apelantes.
Registe e notifique.
Porto, 12/07/2017
Rui Moreira
Fernando Samões
Vieira e Cunha