CHEQUE
CHEQUE CRUZADO
ENDOSSO
RESPONSABILIDADE CIVIL
ASSINATURA
Sumário

I – O cruzamento geral de um cheque não impede o seu endosso, quando o mesmo tenho sido emitido à ordem de beneficiário, sem indicação de “não à ordem”.
II – O Banco apenas estava obrigado a verificar a regularidade formal do endosso, não sendo obrigado a conferir a assinatura atribuída à gerência da beneficiária.
III – O cheque podia ser recebido, como foi, por pessoa diferente do beneficiário, devendo o Banco identificar, como identificou, a pessoa que o recebeu (o seu cliente).
( Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I

Relatório

“A” – Ecografia e Radiologia, Lda
Instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum ordinário, a correr termos pela 5ª Vara Cível da Comarca de Lisboa (1ª secção), contra:
“Banco 1”, S.A. e
“Banco 2”, S.A.
Alegando, em síntese, o seguinte:
· Para pagamento de serviços que “B” lhe prestou, remeteu a esta, por correio, um cheque cruzado, no valor de 29 446,56 €, sacado sobre a co-R “BANCO 1”;
· A carta foi furtada e, terceiros apropriaram-se do cheque e apuseram no seu verso um carimbo, grosseiramente falsificado, com um erro ortográfico na expressão “condomínio”, duas vezes “Fora da Casa” e, a expressão “A Gerência” descentrada, como pertencendo à “B”;
· No verso do cheque não está identificado o número da conta a creditar, nem qualquer identificação de quem rubricou o verso do cheque;
· O cheque veio a ser apresentado a pagamento num balcão da 2ª R.;
· A autora teve de voltar a pagar a quantia titulada pelo cheque à “B”;
· As rés não foram diligentes na verificação da falsificação grosseira do cheque, nem na regularidade do endosso.
Concluiu pedindo a condenação solidária das rés a pagarem à autora a quantia de 29 446,56 €, acrescida de juros, à taxa de 4%, desde a citação.

Citadas regularmente, ambas as rés apresentaram contestação.

A ré “Banco 2” (2ª R, “BANCO 2”), alegou, em síntese, que recebeu o cheque para depósito numa sua agência e procedeu com cuidado e zelo verificando a regularidade do preenchimento do cheque e da sucessão de endossos; não tinha que conferir a morada constante do carimbo do endosso nem a assinatura do endossante; apresentou o cheque à 1ª R “BANCO 1” para decisão quanto a pagamento e esta autorizou esse pagamento.

A ré “Banco 1” (1ª R, “BANCO 1”) arguiu a excepção de incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, dizendo que competente para a acção é o tribunal criminal, por força do princípio da adesão ao processo penal e defendeu a suspensão da acção, por existência de questão prejudicial, dizendo que a decisão do processo penal em que se discute o crime de falsificação do cheque deve acontecer antes da decisão deste processo.
Além disso alegou que a R “BANCO 2” lhe solicitou o pagamento do cheque e a R “BANCO 1” verificou que o cheque estava bem preenchido, as assinaturas dos representantes da sacadora eram correctas e verificou a regularidade formal do endosso.

A autora apresentou réplica.

Foi julgada improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta e indeferida a questão prejudicial levantada pela 1ª ré.
Foi também proferido despacho saneador e foi efectuada a condensação da matéria de facto.
Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo a 1ª ré do pedido e condenando a 2ª ré a pagar à autora a quantia de 29.446,56 €, acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, desde a citação (28-11-07) até integral pagamento.


Não se conformando com aquela sentença, dela recorreu a 2ª ré, que nas suas alegações de recurso formulou as seguintes “CONCLUSÕES”:
1ª – A procedência da presente acção quanto ao “BANCO 2” implicava que da prova produzida tivesse resultado demonstrado:
(i) a ilicitude do seu comportamento (ou seja, a violação dos deveres que lhe cabiam no que concerne á verificação da regularidade do endosso do cheque dos autos), e
(ii) o nexo de causalidade entre tal comportamento ilícito e os prejuízos sofridos pela A.
2ª - Ora, no entender do ora recorrente, nenhum dos referidos pressupostos resultou demonstrado nos autos;
3ª - Assim, ficou provado que o cheque dos autos foi sacado sobre um outro Banco (o aqui também R. “BANCO 1”) e apresentado ao “BANCO 2” para depósito –vd. alíneas A) e C) dos Factos Assentes, pontos 1º e 3º da Fundamentação de Facto da Sentença;
4ª - Ou seja, na situação sub judice o “BANCO 2” actuou apenas como Banco tomador;
5ª - Ora, nos termos da lei, ao Banco tomador apenas é exigida a verificação da regularidade do preenchimento do cheque e da sucessão dos endossos –vd. artº 18º da Instrução nº 25/2003 do Banco de Portugal (Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI) e artº 35º da LUCH;
6ª - Tais operações foram, como resultou demonstrado nos autos, cabalmente efectuadas pelo “BANCO 2”;
7ª - Assim, ficou provado nos autos que “Os RR. (“BANCO 2” e “BANCO 1”) verificaram que no verso do cheque estava aposto um carimbo em que constava a palavra “B” e uma rubrica por baixo da expressão “A Gerência” –vd. resposta ao quesito 8º da Base Instrutória, ponto 12º da Fundamentação de Facto da sentença;
8ª - Por outro lado, a própria A. reconheceu que o cheque “encontrava-se correctamente preenchido” –vd. artº 3º da p.i.;
9ª - Ou seja, da prova produzida nos autos resulta límpido que, relativamente ao assunto em apreço (endosso do cheque dos autos), o “BANCO 2” cumpriu todas as obrigações que legalmente lhe incumbiam, prescritas pelos citados artºs 18º do SICOI e 35º da LUCH;
10ª - Aliás, a própria sentença assim o entendeu no que respeita ao Banco sacado (“BANCO 1”) -vd. pag. 7 da sentença- sendo que a factualidade a propósito provada nos autos quanto a este Banco foi exactamente a mesma que ficou demonstrada quanto ao “BANCO 2”;
11ª - Apesar do exposto, pretende, no entanto, a sentença recorrida que sobre o “BANCO 2” incidia um “especial dever de diligência”, resultante do facto de o cheque em causa ser um cheque cruzado;
12ª - E que, o “BANCO 2” não observou tal “especial dever de diligência”, uma vez que:
(i) não considerou suspeita a circunstância de o carimbo aposto no verso do cheque ter a expressão “A Gerência” descentrada relativamente aos demais dizeres do mesmo carimbo;
(ii) não considerou suspeita a expressão “Fora da Casa” duas vezes escrita no carimbo como morada da “B”, e
(iii) não “desconfiou” de “erros de escrita” constantes do “endosso”;
13ª - No entender do recorrente, é patente a falta de fundamento da tese da sentença recorrida;
14ª - Com efeito, ao contrário do que pretende a sentença impugnada, um cheque com cruzamento geral não oferece especiais garantias de segurança em termos de endosso, permitindo unicamente identificar o portador que o recebeu;
15ª - Identificação essa que in casu foi realizada pelo “BANCO 2” –vd. ponto 17º da Fundamentação de Facto da sentença, fls. 120;
16ª - Ou seja, do cruzamento do cheque não resultava nenhum “dever especial de diligência” para o “BANCO 2” em sede de verificação da regularidade dos endossos, e
17ª - E, não cabia, nos termos da lei, ao “BANCO 2” qualquer obrigação de conferir a morada constante do carimbo aposto no verso do cheque, e, muito menos, a geometria deste mesmo carimbo ou a ortografia dos respectivos dizeres;
18ª - Sem embargo, cumpre notar que a repetição da expressão “Fora de Casa” na morada inserta no carimbo, alcandorada pela sentença (certamente pelo seu cariz inusual em tal sede) como sinal de suspeita, não pode como tal ser considerado;
19ª - Por outro lado, nota-se que o facto de no carimbo aposto no cheque a palavra gerência estar ligeiramente descentrada também não configura, como se julga evidente, nenhum indício de falsificação;
20ª - O mesmo sucedendo quanto a eventuais erros de ortografia no carimbo, que, aliás, in casu não ficaram sequer provados nos autos –vd. Fundamentação de Facto da sentença;
21ª - Importa, assim, concluir que, mesmo que o “BANCO 2” tivesse a obrigação de conferir a morada aposta no carimbo, a simetria deste e a ortografia dos respectivos dizeres -o que se admite apenas academicamente- nunca a factualidade invocada na sentença teria a virtualidade de fundar a imputação ao Banco de uma actuação negligente;
22ª - Ao entender diversamente, a sentença sob recurso incorreu em violação da lei, designadamente dos artºs 18º do Regulamento do SICOI e artºs 35º e 38º da LUCH;
23ª - Sem prejuízo, ainda se alega, por cautela de patrocínio, que mesmo que se tivesse demonstrado a ilicitude do comportamento do “BANCO 2” -o que, repete-se, não ocorreu - também ainda assim a acção teria, quanto a ele, que improceder;
24ª - Com efeito, é patente a total ausência de nexo de causalidade entre tal hipotético comportamento ilícito e os danos alegados pela A.;
25ª - De facto, no caso dos autos o cheque foi enviado ao “BANCO 1”, enquanto Banco sacado, para decisão quanto ao pagamento –vd. resposta ao quesito 10º da Base Instrutória;
26ª - E, foi o “BANCO 1” que tomou a decisão quanto ao pagamento do cheque, tendo entendido em proceder ao mesmo;
27ª - Pelo que mesmo que se viesse a entender que o comportamento do “BANCO 2” foi ilícito -o que se admite apenas academicamente- nunca o mesmo seria susceptível de produzir os danos sofridos pela A.;
28ª - Isto porque sempre inexistiria o fundamental nexo de causalidade entre tal comportamento e os danos invocados pela A.;
29ª - Ao entender diversamente, a sentença sob recurso incorreu em violação da lei, designadamente dos artºs 483º CC, 18º do Regulamento do SICOI e 35º da LUCH;
30ª - Sem embargo de tudo o supra exposto, ainda se aduz, por extrema cautela de patrocínio, que, sendo o “BANCO 2” considerado responsável pelos danos sofridos pelo sacador do cheque, o mesmo sempre teria também que ocorrer com o Banco sacado (“BANCO 1”);
31ª - Com efeito, e como bem tem entendido a jurisprudência, apesar de, nos termos do artº 17º, nº 2, do Regulamento do SICOI, se considerar delegada no Banco tomador a responsabilidade pela verificação da regularidade da sucessão dos endossos, essa responsabilidade é, antes de mais do Banco sacado;
32ª - Ao decidir de forma inversa, a sentença recorrida incorreu em nova violação da lei, agora por ofensa dos artºs 18º do Regulamento do SICOI e 35º da LUCH.

II
- FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados assentes os seguintes factos:
a) A A é titular da conta nº ..., da sucursal de ..., “...”, do banco 1ª R (“BANCO 1”) e, com data de 19/03/07, emitiu o cheque nº ..., sacado sobre essa conta, pelo montante de 29 446,56 €, à ordem de “B”, tendo sido nele apostas as assinaturas dos seus dois gerentes, conforme ficha de assinatura, no espaço destinado à assinatura do sacador; constando nesse cheque duas linhas paralelas traçadas na sua face (alínea A) dos Factos Assentes);
b) No verso desse cheque, foi aposto um carimbo com os dizeres, entre outros, “B” e, por duas vezes “Fora da Casa”, referindo-se à localidade e, a expressão “A Gerência”, nesse carimbo, surge algo descentrada relativamente aos demais dizeres, constando uma rubrica ilegível por baixo dessa expressão “A Gerência” (alínea B) dos Factos Assentes);
c) A verba correspondente ao valor do cheque, 29 446,56 €, foi debitada na conta bancária da A, no dia 23/03/07 (alínea C) dos Factos Assentes);
d) O cheque referido em A, foi apresentado para depósito na agência de ... do banco 2ª R, “BANCO 2” (alínea D) dos Factos Assentes);
e) Em 19/03/07, a autora devia à ““B” – Instalações e Equipamentos Industriais Lda”, com sede na ... nº …, …, Lote …, Bloco …, Piso …, F…, o valor de 29 466,56 €, por virtude das relações comerciais que com essa empresa tinha (resposta ao quesito 1º da Base Instrutória);
f) A A enviou por correio, o cheque referido em A), para a referida “B” (resposta ao quesito 2º da Base Instrutória);
g) A carta contendo o cheque referido em A) não chegou à “B”, tendo sido subtraída por terceiros (resposta ao quesito 3º da Base Instrutória);
h) O carimbo referido em B), aposto no verso do cheque, não era o “carimbo da Gerência” da “B” (resposta ao quesito 4º da Base Instrutória);
i) A A pagou posteriormente a 28/03/07, à “B”, o valor de 29 446,56 € (resposta ao quesito 5º da Base Instrutória);
j) Os RR não atentaram na circunstância de o carimbo referido em B) ter a expressão “A Gerência” descentrada relativamente aos demais dizeres do carimbo (resposta ao quesito 6º da Base Instrutória);
k) Nem repararam na expressão “Fora Da Casa” duas vezes escrita no carimbo como morada da “B” (resposta ao quesito 7º da Base Instrutória);
l) Os RR verificaram que no verso do cheque estava aposto um carimbo em que constava a palavra “B” e uma rubrica por baixo da expressão “A Gerência” (resposta ao quesito 8º da Base Instrutória);
m) O cheque referido em A) foi apresentado pela 2ª R (“BANCO 2”) à 1ª R (“BANCO 1”) para decisão quanto ao pagamento (resposta ao quesito 10º da Base Instrutória);
n) E a 1ª R, “BANCO 1”, autorizou a 2ª R, “BANCO 2”, a pagar o cheque referido em a) (resposta ao quesito 11º da Base Instrutória);
o) A 2ª R, “BANCO 2”, creditou a conta onde o cheque referido em A) foi depositado pelo valor desse cheque (resposta ao quesito 12º da Base Instrutória);
p) A “B” nunca foi cliente da 2ª R “BANCO 2” (fls. 120);
q) O cheque referido em a), foi depositado na conta nº ..., titulada por “C”, a qual foi aberta no dia 07/12/01 (fls. 120);
r) A “B” em Março de 2007 era e continuou a ser até hoje cliente da 1ª R “BANCO 1” (fls. 109).

III

- FUNDAMENTAÇÃO

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

Nos termos do art.º 684º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é limitado e definido pelas conclusões da alegação dos recorrentes.

Assim, as questões a conhecer no âmbito do presente recurso são as seguintes:
1. Violação dos deveres da apelante – “BANCO 2” – quanto à verificação da regularidade do endosso e pagamento do cheque;
2. Nexo de causalidade.


1. Violação dos deveres da apelante – “BANCO 2” – quanto à verificação da regularidade do endosso e pagamento do cheque

Está em causa um cheque emitido pela autora a favor de “B”, sacado sobre o “BANCO 1”, depositado em conta de cliente do “BANCO 2”.
Do verso do cheque consta um carimbo com indicação de “B” e com uma assinatura ilegível por baixo da palavra “A Gerência”.

O cheque é transmissível por meio de endosso nos termos previstos na Lei Uniforme relativa ao Cheque (LUC).


Retenhamos, para já, as seguintes disposições da referida lei:

Artigo 14º
Formas de transmissão
O cheque estipulado pagável a favor duma determinada pessoa, com ou sem cláusula expressa "à ordem", é transmissível por via de endosso.
O cheque estipulado pagável a favor duma determinada pessoa, com a cláusula "não à ordem" ou outra equivalente, só é transmissível pela forma e com os efeitos duma cessão ordinária. O endosso pode ser feito mesmo a favor do sacador ou de qualquer outro co-obrigado. Essas pessoas podem endossar novamente o cheque.

Artigo 16º
Forma do endosso
O endosso deve ser escrito no cheque ou numa folha ligada a este (anexo).
Deve ser assinado pelo endossante.
O endosso pode não designar o beneficiário ou consistir simplesmente na assinatura do endossante (endosso em branco). Neste último caso o endosso, para ser válido, deve ser escrito no verso do cheque ou na folha anexa.

Artigo 17º
Efeitos do endosso. Endosso em branco
O endosso transmite todos os direitos resultantes do cheque.
Se o endosso é em branco, o portador pode:
1. Preencher o espaço em branco, quer com o seu nome, quer com o nome de outras pessoas;
2. Endossar o cheque de novo em branco ou a outra pessoa;
3. Transferir o cheque a um terceiro sem preencher o espaço em branco nem o endossar.

Artigo 18º
Responsabilidade do endossante

Salvo a estipulação em contrário o endossante garante o pagamento.
O endossante pode proibir um novo endosso, e neste caso não garante o pagamento às pessoas a quem o cheque for posteriormente endossado.

Artigo 37º
Cheque cruzado. Modalidades do cruzamento

O sacador ou o portador dum cheque podem cruzá-lo, produzindo assim os efeitos indicados no artigo seguinte.
O cruzamento efectua-se por meio de duas linhas paralelas traçadas na face do cheque e pode ser geral ou especial.
O cruzamento é geral quando consiste apenas nos dois traços paralelos, ou se entre eles está escrita a palavra "banqueiro" ou outra equivalente; é especial quando tem escrito entre os dois traços o nome do banqueiro.
O cruzamento geral pode ser convertido em cruzamento especial, mas este não pode ser convertido em cruzamento geral.
A inutilização do cruzamento ou do nome do banqueiro indicado considera-se como não feito.

Artigo 38º
Pagamento do cheque cruzado

Um cheque com cruzamento geral só pode ser pago pelo sacado a um banqueiro ou a um cliente do sacado.
Um cheque com cruzamento especial só pode ser pago pelo sacado ao banqueiro designado, ou, se este é o sacado, ao seu cliente. O banqueiro designado pode, contudo, recorrer a outro banqueiro para liquidar o cheque.
Um banqueiro só pode adquirir um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro. Não pode cobrá-lo por conta doutras pessoas que não sejam acima indicadas.
Um cheque que contenha vários cruzamentos especiais só poderá ser pago pelo sacado no caso de se tratar de dois cruzamentos, dos quais um para liquidação por uma câmara de compensação.
O sacado ou o banqueiro que deixar de observar as disposições acima referidas é responsável pelo prejuízo que daí possa resultar até uma importância igual ao valor do cheque.


Constata-se do documento junto a fls. 10 que o cheque dos autos era “à ordem”, pelo que o mesmo podia ser transmitido por endosso.
De acordo com as disposições legais citadas, podemos concluir também que um cheque cruzado se destina a ser depositado na conta do seu portador, que o pode ter recebido por uma série ininterrupta de endossos.
Nada impede, também, que o endosso seja feito em branco, ou seja, sem indicação do beneficiário.

Escreve Paulo Olavo Cunha o seguinte:
I. O cheque transmite-se por endosso (cfr. art. 14.°, I da LUCh) – inscrito no verso (do documento) – e pela simples entrega, se não for emitido à ordem de um determinado beneficiário (cfr. art. 16º, II).
O endosso é a forma típica de transmissão dos títulos de crédito à ordem (cfr. art. 483.” Do Código Comercial), constituindo o meio adequado de circulação do cheque, que – tal como a letra – também pode ser transmitido extracambiariamente, enquadrando-se no regime da cessão ordinária de créditos (cfr. art. 14.°, II da LUCh). Simplesmente, neste caso, deixam de se aplicar as regras próprias da tutela da circulação normal do título de crédito, nomeadamente as normas que tutelam o portador legitimado, por exemplo, ou que consubstanciam a autonomia do direito do portador (cfr. art. 21.° da LUCh).
O endosso é uma declaração unilateral feita, normalmente, no verso ou nas costas do título, embora não tenha de o ser necessariamente; todavia se essa declaração não for feita no verso do título terá de ser expressamente explicitado que a assinatura de um determinado interveniente é feita a título de endosso. De outro modo, qualquer assinatura constante da face anterior do título será entendida como uma garantia, garantia essa prestada em beneficio do sacador e à qual chamamos aval.

IV. Por sua vez, o endosso pode ser proibido pela inserção, ou pela inscrição, da cláusula “não à ordem” prevista no artigo 14° II, caso em que o endossante não garante o pagamento da quantia inscrita no cheque a quem ele vier a ser ulteriormente endossado nos termos do artigo 18.°, II. Naturalmente o endosso é proibido se se estipular a cláusula “não à ordem”, mas efectivamente não vai afectar o endosso que associado à inserção dessa mesma cláusula; proíbe é aquela pessoa que recebe por efeito do endosso o cheque de, ulteriormente, o alienar e continuar a beneficiar da tutela característica da Lei Uniforme, uma vez que a partir daí o cheque vai ser transmitido no puro regime da cessão ordinária de créditos.” (cfr. Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, 2009, pág. 122 e segs.).

Constata-se do documento junto a fls. 10 que o cheque dos autos era “à ordem”, pelo que o mesmo podia ser transmitido por endosso.
De acordo com as disposições legais citadas, podemos concluir também que um cheque cruzado se destina a ser depositado na conta do seu portador, que o pode ter recebido por uma série ininterrupta de endossos.
Nada impede, também, que o endosso seja feito em branco, ou seja, sem indicação do beneficiário.

Nos termos do art.º 35º da LUC, o “O sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes.”

Significa que a verificação da regularidade dos endossos é apenas formal.
No caso dos autos, nada há a apontar quanto ao comportamento da apelante, na medida em que foi aposto no verso do cheque um carimbo com a identificação do beneficiário do cheque – nome e domicílio – e assinatura imputável à gerência da beneficiária.
Contrariamente ao defendido pela sentença recorrida, não era exigível qualquer outro comportamento por parte da apelante “BANCO 2” no que respeita à verificação da regularidade do endosso único que foi feito em branco, sem indicação do novo beneficiário.
O facto de o carimbo conter a indicação “A Gerência” descentrada dos restantes dizeres é irrelevante, na medida em que nada impedia que fosse uma opção meramente gráfica. Não existe qualquer disposição legal ou regulamentar da actividade empresarial ou bancária que exija que os carimbos das sociedades tenham que ter uma determinada e precisa configuração.

Também no que respeita à indicação do domicílio, do cheque consta de forma mais legível, na medida em que parte do carimbo não é possível ler por sobreposição com outros dizeres, a seguinte configuração e dizeres:

………………...Condomio
do Fora da Casa
Lote .., Bloco …, Piso …
0000-000 FORA DA CASA
A GERÊNCIA

A primeira indicação relativa a “Fora da Casa” encontra-se referida à descrição do domicílio e a outra indicação encontra-se referenciada à localidade. Trata-se, portanto, de uma repetição perfeitamente admissível, sem qualquer elemento que permita fazer sobressair qualquer falsidade.

Resta, por fim, sobre esta mesma questão, analisar a relevância do cruzamento efectuado no cheque, que como se pode verificar, face às disposições legais citadas, se trata de um cruzamento geral.

Sobre esta questão refere Paulo Olavo Cunha que:
I. Tal como o cheque visado, também o cheque cruzado e o cheque para depósito em conta não constituem modalidades autónomas de cheque, mas subespécies do cheque simples, uma vez que determinam particularidades de regime que não se observam nos cheques comuns, nos quais os sujeitos não fazem uso das prerrogativas que conduzem a um regime específico do cheque.
II. O cheque cruzado é aquele em que figuram apostas, na face anterior do título, duas linhas paralelas, em regra, oblíquas.
Com o cruzamento, como vimos (supra, nº 4.5), o cheque passa a ter de ser pago a um banqueiro ou a um cliente de um banqueiro [se o cruzamento for geral (cfr. art. 38.°, I)] ou, sendo o cruzamento especial, ao banqueiro designado e a um cliente dele apenas se o sacado for o designado (cfr. art. 38 °, II).
O cheque cruzado – também designado cheque traçado ou barrado – é, assim, um cheque cujo pagamento está sujeito a um regime próprio, o qual pode ser mais ou menos limitativo.
Partindo de uma situação, de cruzamento geral, em que o cheque pode ser pago a qualquer banqueiro ou a um cliente do sacado, a lei admite que o cruzamento seja convertido em especial, mas já não o inverso (cfr. art. 37.°, IV in fine e V), e não permite que o cruzamento, qualquer que ele seja, possa ser desfeito (cfr. art. 37.°, V).
Para evitar que um banqueiro surja a cobrar um cheque por conta de um terceiro, defraudando o cruzamento feito, a Lei Uniforme apenas permite que um banqueiro adquira «um cheque cruzado a um dos seus clientes ou a outro banqueiro» e só em nome dessas pessoas o pode obrar (cfr. art. 38.°, III).
A inobservância das regras aplicáveis em matéria de cheque cruzado faz incorrer o banqueiro, sacado ou beneficiário do cruzamento, em responsabilidade pelo prejuízo que possa resultar do incumprimento, até ao montante máximo correspondente ao valor do cheque (cfr. art. 38.°, V).” (cfr. obra citada, págs. 171/173).

Face aos ensinamentos citados e às disposições legais citadas da LUC, nada obsta ao endosso de um cheque com cruzamento geral.
O cruzamento geral, como é o caso dos autos, impõe que o cheque seja pago apenas a cliente do banco a quem foi apresentado o cheque a pagamento.
O cruzamento visa um maior cuidado no pagamento do cheque, nos termos referidos e citados. Mas esse cuidado é meramente formal, não se exigindo a verificação da veracidade das assinaturas.
No caso em análise, a apelante teve os cuidados exigidos, verificando a regularidade formal do endosso e apresentando o cheque ao banco sacado – “BANCO 1” – para decisão quanto ao pagamento, o qual autorizou o “BANCO 2”, ora apelante, que o pagamento fosse efectuado.
A apelante efectuou o pagamento em conformidade com a lei, ou seja, pagou o cheque a um cliente seu.

A posição que aqui assumimos encontra-se também em consonância com o entendimento perfilhado no acórdão desta Relação de 2 de Março de 2004, citado na sentença recorrida, em que foi relator o Desembargador Pimentel Marcos, proferido no processo n.º 2969/2002-7, in http://www.dgsi.pt, ou seja, “o cheque cruzado tem por fim evitar os danos decorrentes de furto, falsificação ou extravio do título, impedindo, pela obrigação imposta ao banco de identificar o apresentante, o seu pagamento a um portador ilegítimo (cfr. José Maria Pires in “Direito bancário - as operações bancárias”, II vol. Pp. 343).
A verdade é que, como vimos, o cheque podia ser endossado e o Banco apenas estava obrigado a verificar a regularidade formal do endosso, não sendo obrigado a conferir a assinatura atribuída a um gerente da beneficiária. Portanto, o cheque podia ser recebido, como foi, por pessoa diferente do beneficiário, e o réu identificou a pessoa que o recebeu (o seu cliente). E o cruzamento referido não tem por finalidade evitar que o cheque seja furtado ou extraviado.”.

Não se encontram, portanto, verificados os pressupostos da responsabilidade civil, nos termos do art.º 483º e segs. do Código Civil, nomeadamente, quanto à existência de ilicitude do comportamento da apelante.

Procede, assim, esta primeira questão do recurso, o que implica a procedência da apelação, ficando prejudicada a outra questão colocada pela apelante.

Perante o exposto, a apelação terá de proceder.

IV

Decisão

Em face de todo o exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, e, consequentemente, julga-se a acção improcedente, absolvendo-se as rés do pedido.

Custas pela apelante.

Lisboa, 20 de Janeiro de 2011

Jorge Vilaça
Vaz Gomes
Jorge Leitão Leal