PROVIDÊNCIA CAUTELAR NÃO ESPECIFICADA
INDEFERIMENTO LIMINAR
PEDIDO MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE
LESÃO GRAVE
Sumário

I - Em face do disposto no artº 234º-A nº 1 do Código de Processo Civil, a providência cautelar não especificada pode ser liminarmente indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente.
II - Deve reservar-se o indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido para quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente, indiscutível e irrefutável, que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial.
III - A recusa de entrega duma coisa móvel que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação.
(Sumário da autoria do Relator)

Texto Integral

O recurso é o próprio, sendo de manter o efeito que lhe foi atribuído e nada obstando ao conhecimento do seu objecto (artºs. 692º nº 1 e 700º nº 1, als. a) e b) do Código de Processo Civil.
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Dada a manifesta simplicidade da questão a decidir, irá proferir-se, de imediato, decisão sumária singular (artº 705º do Código de Processo Civil).
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I – Relatório
1- A, Ldª” interpôs providência cautelar não especificada contra B e contra “C, Ldª”, pedindo a anulação da venda do veículo automóvel de marca “Mercedes”, matrícula ..-EH-.., a sua imediata apreensão e entrega à Requerente, bem como a anulação da inscrição da propriedade no registo.
Para fundamentar a sua pretensão, alega, em resumo :
Em Julho de 2008 a Requerente adquiriu o veículo “Mercedes”, modelo ML320 CDI, matrícula ..-EH-.., para o que celebrou um contrato de crédito, no valor total de 66.540 € com o “Banco …, S.A.”, tendo o veículo ficado com reserva de propriedade a favor desta instituição.
Pretendendo a Requerente vender a viatura, entregou-a a um individuo, conhecido da pessoa que habitualmente conduz o dito veículo, indivíduo esse que o iria mostrar ao potencial comprador e que, entretanto, recebeu da Requerente cópia de documentos dos gerentes da Requerente, bem como, documentos atinentes ao veículo, com vista à aludida venda deste.
O mencionado indivíduo, que recebeu o veículo para o mostrar ao alegado potencial comprador, nunca mais apareceu, tendo o veículo sido posto à venda num “site” da “internet” e encontrando-se registado em nome do Requerido B e anteriormente em nome da Requerida “C, Ldª”, com os quais os representantes da Requerente não celebraram qualquer contrato de compra venda ou autorizaram a ceder a viatura.
Deste modo, a venda realizada entre os Requeridos é nula por ter por base uma venda fraudulenta e inexistente. Além do que o veículo automóvel é um bem perecível e desvaloriza-se, podendo ser vendido e levado para o estrangeiro ou desmantelado.
A Requerente continua devedora da quantia cedida pela acima referida instituição financeira.
2- Tal procedimento cautelar veio a ser indeferido liminarmente, constando da parte final da decisão :
“Nestes termos, entende-se que falha completamente o preenchimento do supra referido requisito : lesão dificilmente reparável do direito do requerente, pois que, a lesão, a existir, será, como se aludiu, de fácil reparação ; não podendo afirmar-se que o efeito prático da mencionada acção esteja comprometido pelo facto de a pretensão dos requerentes não ser atendida em sede de procedimento cautelar.
Pelas razões expostas – falta de preenchimento de pressuposto do procedimento cautelar requerido – constata-se que, a prosseguir, o presente procedimento, sempre viria a improceder, pelo que se torna inútil a prossecução dos termos dos autos.
DECISÃO – Nos termos e com os fundamentos expostos, e de acordo com o disposto pelos artºs. 234° n° 4, al. b) e 234°-A, n° 1, ambos, do C. P. Civil, decide-se indeferir liminarmente a petição.
Custas pela Requerente.
Notifique”.
3- Desta decisão interpôs recurso a Requerente, tendo apresentado a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1°- A decisão de que se recorre, indeferimento liminar da providência cautelar, viola o disposto no art° 381° do C.P.Civil, uma vez que do alegado pela requerente no requerimento inicial, ao contrário do decidido resulta preenchido o requisito lesão dificilmente reparável ao direito do requerente, mais, do alegado até resulta é a impossibilidade de reparação.
2°- Atendendo ao alegado pela recorrente resulta difícil se não impossível a restituição natural do veiculo, caso não seja decretada a providência, uma vez que se num curto espaço de tempo, desde 24 de Abril deste ano, o veiculo automóvel já tem dois registos de transmissões, aos quais a requerente é totalmente alheia, é mais que provável que se perca o seu rasto, podendo o mesmo ser desmantelado, vendido em peças ou ser levado para o estrangeiro, conforme alegado pela ora recorrente e que o que de modo algum foi tido em conta na decisão.
3°- Quanto à indemnização substantiva, como forma de reparação do prejuízo, para além do veiculo automóvel ser um bem altamente perecível, a requerente alegou o traquejo usado no desaparecimento do mesmo nos art° 10º a 15° do seu requerimento, ou seja, através de documentação falsa, logo tais sujeitos, pela natureza das coisas e pelas regras da experiência não tem qualquer capacidade de indemnizar, uma vez que todo o negócio que esteve na base das transmissões configura um ilícito com expediente de burla e de vigarice.
4°- Com o tempo decorrido e o que se prevê vir a decorrer até à decisão na sentença será muito difícil se não impossível o reparação da lesão.
5º- Até porque a indemnização, feita à data do desapossamento do mesmo, nunca terá a aptidão a ressarcir a requerente, uma vez que com esse valor não consegue adquirir um veículo idêntico.
Termos em que, nos melhores de Direito deve o presente recurso ser considerado procedente por provado e ser revogada a douta decisão de que se recorre pois assim se fará Justiça”.

4- Os Recorridos não apresentaram contra-alegações.

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II – Fundamentação
a) A matéria de facto a considerar é a seguinte :
1- “A, Ldª” interpôs providência cautelar não especificada contra B e contra “C, Ldª”, pedindo a anulação da venda do veículo automóvel de marca “Mercedes”, matrícula ..-EH-.., a sua imediata apreensão e entrega à Requerente, bem como a anulação da inscrição da propriedade no registo.
2- Alegou, como fundamento da sua pretensão, os factos narrados no requerimento inicial.
3- Tal procedimento cautelar veio a ser indeferido liminarmente.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação do recorrente a única questão em recurso consiste em apreciar se o procedimento cautelar em apreço podia ou não ter sido liminarmente indeferido.
c) Estamos perante um procedimento cautelar comum (artº 381º e ss do Código de Processo Civil).
Estipula o artº 381º nº 1 do Código de Processo Civil :
“Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado”.
Acrescenta o artº 387º nº 1 do Código de Processo Civil que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”.
São, assim, requisitos da providência cautelar não especificada (cf. Acórdão da Relação de Évora de 28/5/1998, in Col. 3/98, pg. 262) :
1º- Que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado – objecto da acção declarativa – ou que venha a emergir da decisão a proferir na acção constitutiva já proposta ou a propor ;
2º- Que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito;
3º- Que ao caso não convenha qualquer das providências tipificadas nos artºs. 393º a 427º do Código de Processo Civil ;
4º- Que a providência requerida seja adequada a remover o “periculum in mora” concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado;
5º- Que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar.
De tal enumeração facilmente se conclui que estamos perante pressupostos (de decretamento da providência cautelar) cumulativos.
Resulta daqui que, desde que falte um pressuposto, o procedimento não poderá ser decretado.
“In casu” verifica-se que o Tribunal de 1ª instância entendeu que não se verifica logo o segundo dos apontados requisitos, designadamente que não existe lesão dificilmente reparável do seu direito que a Requerente se arroga.
O indeferimento liminar nos presentes autos teve como base o disposto no artº 234º-A do Código de Processo Civil, segundo o qual, no caso dos procedimentos cautelares, “pode o juiz, em vez de ordenar a citação, indeferir liminarmente a petição, quando o pedido seja manifestamente improcedente (…)”.
Assim, tendo em atenção o citado preceito legal, o Juiz apenas poderá indeferir liminarmente a petição de um procedimento cautelar quando a falta de fundamento do pedido for evidente, ostensiva, indiscutível, irrefutável, numa palavra, manifesta. Ou seja, a pretensão formulada pelo autor/requerente é manifestamente improcedente ou manifestamente inviável quando a lei a não comporta ou porque os factos apurados, face ao direito, a não justificam.
“A ideia de manifesta improcedência corresponde à ostensiva inviabilidade o que raro se verifica, pelo que o juiz tem de ser muito prudente na formulação do juízo de insucesso” (cf. Salvador da Costa in “Processo Geral Simplificado. A injunção e as conexas acção e execução”, pg. 90).
No caso “sub judice” o Tribunal “a quo” entendeu que, manifestamente, não se mostram alegados factos tendentes a demonstrar a já referida lesão dificilmente reparável do seu direito que a Requerente se arroga.
d) Vejamos :
Sobre o mencionado requisito aqui posto em causa, salienta Abrantes Geraldes que “apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum (…) as lesões graves que sejam simultaneamente irreparáveis ou de difícil recuperação (…). Ficam afastadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento comum, ainda que se mostrem irreparáveis ou de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são excluídas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis” (in “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. III, 3ª ed., pgs. 101 e 102).
Quanto à probabilidade séria da existência do direito invocado pela Requerente, trata-se de questão que não oferece dúvida, não tendo merecido qualquer observação no despacho sob recurso, podendo deduzir-se, indiciariamente, que os Requeridos não têm título legítimo para se manterem na posse do veículo.
Questão discutível, pois, é a de saber se ocorre lesão grave e dificilmente reparável de tal direito – e, neste ponto, entendeu o Tribunal recorrido não se verificar prejuízo relevante, no que fundamentou o indeferimento liminar da providência cautelar requerida.
Ora, afigura-se-nos que a recusa de entrega de um bem móvel que não lhe pertence, nomeadamente um veículo automóvel, com risco sério de desvalorização significativa ou mesmo de perecimento, constitui o lesante, numa base indiciária, em situação susceptível de poder causar dano grave e de difícil reparação ao dono da coisa (cf. Acórdão da Relação de Évora de 8/3/2007, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Por outro lado, a retenção do veículo pelos Requeridos, ao impossibilitarem o Requerente de dar ao bem o destino que melhor se adeque aos seus interesses, torna “legítimo poder fazer-se um juízo, com algum grau de certeza, de que se está perante uma situação de lesão grave e de difícil reparação do direito” (cf. Acórdão da Relação do Porto de 30/10/2003, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
Mas no caso em apreço poderemos mesmo dizer, que não se trata meramente daquele risco de perda ou deterioração, inerente ao normal uso e gozo da viatura, e portanto do simples risco natural do próprio negócio. A este, risco especial que a circulação rodoviária envolve, acrescenta a Requerente, ainda, os comportamentos dos Requeridos (com sucessivas alterações no registo do veículo), bem como a suspeita do extravio da viatura para o estrangeiro.
Tudo isto conjugado (recusa da entrega, manutenção da viatura na posse dos Requeridos, circulação rodoviária com a mesma, suspeita de venda para o estrangeiro) tem a virtualidade de fazer emergir o fundado receio de lesão necessário ao decretamento da providência (cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 12/10/2010, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).
e) Note-se, ainda, que o critério de avaliação dos requisitos não deve assentar em juízos puramente subjectivos do juiz ou do credor, mas deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata, sob pena de total ineficácia da acção declarativa ou da acção exe­cutiva.
Com efeito, estamos no âmbito de procedimento cautelar, onde, para além de vigorar o princípio geral da livre apreciação das provas, é exigida apenas uma prova sumária, a “sumaria cognitio”.
As providências cautelares são decretadas desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre fundado o receio da sua lesão (artº 387° do Código de Processo Civil).
E a suficiência de um juízo de verosimilhança para o êxito da pretensão – o “fumus boni júris” – abrange não apenas os elementos fácticos, mas também a questão de direito. É solução imposta pela índole e função do procedimento cautelar.
Efectivamente, a providência não visa a resolução definitiva da questão jurídica que opõe as partes, mas somente uma regulação interina ou provisória de modo a conservar a “res” integra até que intervenha a decisão final, de acordo com o princípio de que a inevitável demora do processo não pode causar dano à parte que tem razão.
O tribunal só pode estatuir “sobre a base duma apreciação perfunctória ou sumária (...) e não segura ou definitiva, da necessidade da providência requerida” baseando-se, não “sobre a certeza do direito do requerente, mas sobre uma probabilidade séria da existência desse direito” ( cf. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, ed. 1976, pg. 9).
Quer a estrutura (contraditório, muitas vezes, diferido, urgência da decisão com encurtamento do tempo de reflexão) quer a função (de regulação cautelar e provisória) dos procedimentos cautelares impõem que o tribunal não exceda a “sumaria cognitio” no que respeita tanto à matéria de facto como à questão de direito substantivo subjacente ao pedido da providência.
f) Posto isto, diremos que no caso vertente, tomando em consideração os factos alegados no requerimento inicial, não vemos que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior ao requerimento inicial. Isto é, não se vê que o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser e seja um desperdício manifesto de actividade judicial.
Com efeito, e independentemente dos restantes requisitos, e tendo apenas em consideração aquele que motivou o indeferimento liminar, são alegados factos que têm, como acima dissemos, a virtualidade de fazer emergir o fundado receio de lesão necessário ao decretamento da providência.
Ora, toda essa matéria merece uma análise mais aprofundada (ainda que sumária, atenta a natureza do processo) que não apenas a do despacho liminar, pois os factos existem e mostram-se narrados no requerimento inicial.
A matéria alegada na petição inicial mostra, pois, que não é inútil o prosseguimento do procedimento para que, da sua instrução e discussão, resulte apurada a singela matéria de facto que, então apreciada no seu justo valor, permita concluir pela procedência ou improcedência da pretensão da Requerente.
g) Deste modo o despacho que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar não pode subsistir e deve ser substituído por outro que faça o procedimento prosseguir os seus termos, nomeadamente com a produção de prova tendente a demonstrar a existência da referida lesão dificilmente reparável do seu direito que a Requerente se arroga.
d) Sumariando :
I- Em face do disposto no artº 234º-A nº 1 do Código de Processo Civil, a providência cautelar não especificada pode ser liminarmente indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente.
II- Deve reservar-se o indeferimento liminar por manifesta improcedência do pedido para quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente, indiscutível e irrefutável, que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial.
III- A recusa de entrega duma coisa móvel que se desvaloriza pelo uso normal e decurso do tempo, indicia o receio fundado de lesão grave e de difícil reparação

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III – Decisão
Pelo exposto decide-se conceder provimento ao recurso e, nessa medida, revoga-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.

Sem custas (artºs. 446º do Código de Processo Civil e 7º nº 2 do Regulamento das Custas Processuais).

Processado em computador e revisto pelo relator

Lisboa, 25 de Janeiro de 2011

Pedro Brighton