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FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário
I - Não estamos perante insuficiência da motivação da matéria de facto, quando o primeiro grau não se limita a fazer uma indicação seca e genérica dos meios probatórios produzidos, antes faz menção a todas as testemunhas ouvidas em audiência, segundo a respectiva ordem da inquirição, enunciando, caso a caso, as razões da credibilidade do depoimento ou da falta dela. II - Relativamente aos pontos de facto impugnados da decisão de primeira instância, a Relação deve procurar a sua própria convicção, formular o seu juízo quanto aos factos impugnados; «apenas acontece que o deve fazer com redobradas cautelas, justamente porque em princípio não goza das prerrogativas da oralidade e imediação que beneficiou a 1.ª instância». III - No artigo 458.º do CC não se está em face de um acto abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
A--- instaurou acção declarativa, com processo sumário, contra B ---, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 7 381,80, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que:
- Atendendo a uma premente solicitação da Ré, emprestou-lhe, em 21 de Fevereiro de 1993, a quantia de 1.000.0000$0O (um milhão de escudos);
- A Ré garantiu ao Autor que lhe pagaria os juros legais devidos desde a data do empréstimo até à data do pagamento;
- o Autor compreendeu o apelo e, compadecido pela situação da sua sobrinha afectiva, acedeu ao pedido e concedeu-lhe o empréstimo como ela solicitou;
- A Ré recebeu do Autor um milhão de escudos e, deste dinheiro veio, depois, a entregar 500 contos a sua irmã e 500 contos à mãe das duas;
- O Autor tem vindo a solicitar o pagamento, mas a Ré não lhe dá qualquer resposta.
A Ré contestou. Alegou, também em súmula, que:
- se limitou a recolher, da casa do Autor e a transportar o cheque no valor de 1 000 000$00;
- apenas assinou o documento de fls. 11 dos autos por ter acedido a essa exigência por parte do Autor;
- essa quantia foi emprestada pelo ora Autor a M--- ;
- dois ou três anos após a data do empréstimo, o ora Autor afirmou que aquele empréstimo feito a M --- devia ser visto por esta como uma doação.
O Autor apresentou resposta, pugnando pela procedência da acção.
Após audiência de discussão e julgamento foi proferida decisão que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
Inconformado, interpôs o Autor competente recurso de apelação, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
«1 – Foram incorrectamente julgados os pontos 4.°, 5.°, 6.° 7.° e 8 ° da base instrutória.
2 – Não só porque a prova testemunhal débil e imprecisa não justifica as respostas dadas a estes pontos da matéria de facto. mas, e acima de tudo, porque as testemunhas não podiam produzir força probatória superior à que a lei atribui ao documento de dívida de fls. 11.
3 - Na verdade, o art° 376° do CC confere ao documento de declaração de dívida da Ré prova plena quanto à declaração dela nele feita.
4 – O Tribunal ocorre. de certo modo. em contradição entre os pontos 1..
e 3. dos factos provados porque. se a Ré esteve perante o A. que lhe exigiu uma declaração e ela a subscreveu, não se limitou a mesma a recolher e transportar o cheque.
5 - A Ré celebrou com a A. um negócio jurídico válido, segundo o qual aquela se declarou devedora a este de 1.000.000$00, não tendo a sua vontade sido afectada por qualquer vício que a contaminasse.
6 - Não há nos autos indícios de contacto da M --- com o A. e muito menos de requisitos, ou mesmo elementos deles, relativos a um qualquer negócio tendo por objecto o dinheiro.
7 - Por isso não podia o Tribunal dar como provado que dois ou três anos após a data do empréstimo, o ora Autor afirmou que aquele empréstimo feito a M --- devia ser visto por esta como uma doação porque para tal exigia a lei documento escrito.
8 – Um documento assinado incondicionalmente pela Ré não podia deixar de ser apreciado pelo Tribunal (artigo 653°, n° 2, do CPC), que conferiu mais valor a uma afirmação sem relação de lugar e espalhada por um espaço temporal de dois ou três anos não devidamente precisada pelas testemunhas.
9 - O tribunal não viu o art° 342°. n° 1 no seu verdadeiro sentido porque o A. fez prova plena com o documento. a qual não podia ser afastada como foi.
10 – O Tribunal não integrou correctamente os factos no artigo 458°, n° 1 do CC. Porque existe nos autos a “simples declaração unilateral” pela qual a Ré “reconhece urna dívida”, como diz a lei, e não aplicou a norma ao facto
11 - O Tribunal omitiu a apreciação da força probatória do documento de dívida, cometendo, assim, mais uma nulidade, porque se trata de uma questão que devia apreciar e não considerou que uma pessoa que assina uma declaração não pode depois, vir com testemunhas dizer que não declarou porque isso e proibido pelo que foi violado art. 376° do CC.
12 – Finalmente, nunca poderia o tribunal pura e simplesmente dizer, sem qualquer elemento circunstancial concreto, que o A. “afirmou que aquele empréstimo feito a M ---deveria ser visto por esta como uma doação” e muito menos considerar isso como prova contra o disposto no artigo 947.º, n° 2, in fine do CC.
13 - Tal doação seria nula (artigo 220° do CC) e não admitia prova testemunhal (artigo 364° do CC).
14 – Para uma integral compreensão e correcto apuramento da situação não parece despicienda a ponta do iceberg (os “recentes desentendimentos familiares”) que emerge no final do artigo 4° da contestação e da qual noticia em juízo se deu aqui.
15 – Existe, em todo o caso insuficiência de fundamentação porque não são mostradas razões para a convicção do julgador da prova de uma doação feita dois ou três anos depois. o que conduz à nulidade do julgamento por falta da observância do art° 653°, n° 2 do CPC.
16 – Foram violados os artigos artigos 1142 °, 342°. n° 1, 458°, n° 1, 364.º, 947°, n° 2, in fine e 220° do CC e art° 653°. n° 2 do (PC.
17 – O art° 1142° do CC devia ter sido aplicado na interpretação do documento de dívida como um empréstimo do A. à Ré.
18 – O art 342°, n° 1, do CC devia ter sido aplicado na interpretação do documento de dívida como sendo este a prova que cabia ao A. fazer do seu direito
19 – O art° 458°, n° 1, do CC deveria ter sido interpretado no sentido da existência de um dívida devidamente formalizada (n° 1 do mesmo artigo).
20 – O Tribunal devia ter aplicado ao caso a norma do art° 364° porque. havendo um documento escrito, exigido para o mútuo e para o reconhecimento de dívida, não podia
ele ser substituído por outro meio de prova, sendo. portanto inadmissível a prova testemunhal que o Tribunal considerou.
21 – O Tribunal não podia dar como provada uma doação feita dois ou três anos depois sem determinar uma norma que o permitisse e há a norma do art° 947° n° 2 in fure do CC que não o permite porque o A. nada entregou à M---, nem antes, nem na altura. nem depois. ocorrendo aqui a nulidade por falta de fundamentação de direito.
22 – Por isso, aplicando o art° 220° do CC, tal declaração, a existir seria nula.
23 – O exame crítico das provas pressupõe uma fundamentação convincente que não ocorreu. tendo, por isso. sido violado o art° 653°, n° 2 do CPC.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, anulando-se a decisão recorrida e condenando-se a Ré no pedido, assim se fazendo inteira e sã Justiça
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São três as questões decidendas:
i) Da insuficiência de motivação do julgamento de facto;
ii) Do erro de julgamento de facto;
iii) Do erro de julgamento de mérito.
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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1. A ora Ré assinou o documento cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 11 (alínea A) dos factos assentes.
2. A ora Ré limitou-se a recolher, da casa do Autor e a transportar o cheque no valor de 1 000 000$00 (resposta ao ponto 5.º da base instrutória).
3. Apenas assinou o documento acima referido (de fls. 11 dos autos) por ter acedido a essa exigência por parte do Autor (resposta ao ponto 6.º da base instrutória).
4. Essa quantia foi emprestada pelo ora Autor a M --- (resposta ao ponto 6.º da base instrutória).
5. Dois ou três anos após a data do empréstimo, o ora Autor afirmou que aquele empréstimo feito a M--- devia ser visto por esta como uma doação (resposta ao ponto 8.º da base instrutória).
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Da insuficiência de fundamentação da matéria de facto
Nas suas conclusões, o apelante considera insuficiente a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, face às exigências do n.º 2 do artigo 653.º c.p.c.
Segundo este normativo a decisão sobre a matéria de facto «declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador».
O DL 39/95, de 15 de Fevereiro, e, depois, a reforma de 95/96 aprofundaram o dever de fundamentação das decisões judiciais sobre matéria de facto.
Por um lado, a fundamentação passou a abranger os factos não provados. Por outro lado, «a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador – só assim se realizando verdadeiramente uma «análise crítica das provas» (Lopes do Rego).
Em consequência destas novas exigências dispõe o n.º 5 do artigo 712.º CPC. que «se a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa não estiver devidamente fundamentada, pode a Relação, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados ou repetindo a produção de prova, quando necessário».
A deficiência ou insuficiência da motivação não constitui uma nulidade, antes configura uma questão prévia ao conhecimento do mérito factual da decisão recorrida.
Se a Relação entender que é insuficiente a fundamentação quanto a algum facto essencial para o julgamento da causa, determina à 1.ª instância que cumpra o dever de boa fundamentação (José Rainho, «Decisão da matéria de facto – exame crítico das provas», Revista do CEJ, 4 (2006):165).
Perante a prova produzida, a Sr.a Juiz formou a sua convicção e decidiu a matéria de facto conforme resulta de fls. 84 ss..
O julgador não pode limitar-se a fazer uma simples e genérica indicação aos meios probatórios produzidos. É seu dever analisar criticamente a prova.
Tal análise consiste numa apreciação criteriosa e comparada das provas, sem preconceitos e com equilíbrio, em que intervêm, sem dúvida, elementos emocionais e intuitivos, mas que não se pode esgotar nessa emoção ou intuição, antes exige que tais elementos sejam passados pelo crivo da racionalidade.
Intervêm aqui necessariamente as regras da lógica e da experiência, cumprindo ao julgador explicar porque deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, porque um documento se deve sobrepor a outro, porque um laudo pericial deve prevalecer sobre o outro, etc. (José Rainho, op. cit.:158).
O juiz de 1.ª instância não se limitou, in casu, a fazer uma indicação seca e genérica dos meios probatórios produzidos.
Fez menção a todas as testemunhas ouvidas em audiência, segundo a respectiva ordem da inquirição, enunciando, caso a caso, as razões da credibilidade do depoimento ou da falta dela.
E fê-lo de uma forma cabal e esclarecedora, e diremos até que com minúcia bastante.
Nenhum juízo de desvalor merece, por conseguinte, a motivação agora em causa.
De resto, o apelante não peticiona que seja dado cumprimento ao disposto no artigo 712.º, n.º 5, CPC.
A questão consistente em saber se houve ou não erro de julgamento coloca-se noutro plano, que teremos oportunidade de apreciar em momento ulterior.
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Do julgamento de facto
De acordo com o artigo 712.º, n.º 1.º, alínea a), CPC a decisão do tribunal de 1.ª instância pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria da causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida.
Por sua vez, o n.º 2 do mesmo normativo, dispõe que, no caso supra referido, a Relação reaprecia as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, o que quer dizer que está vedado à 2.ª instância reexaminar a causa, com recurso a novos meios de prova.
A Relação reaprecia, não cassa, devendo substituir-se, quando se justifique, ao tribunal recorrido.
Não constitui novidade para ninguém que antes das reformas de 1995 o nosso sistema processual não garantia um efectivo segundo grau de jurisdição, tais eram os limites impostos à reapreciação da matéria de facto.
A apelação acabava na prática por se equiparar ao recurso de revista.
Ora, com as reformas de 95, designadamente com o DL n.º 39/95, procurou-se criar na perspectiva das garantias das partes no processo, «um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito» (cfr. preâmbulo do citado diploma de 15 de Fevereiro).
A garantia de um duplo grau de jurisdição deve ser genericamente entendida como a possibilidade de se obter uma plena reponderação da decisão, de facto e de direito, por parte de um tribunal superior.
O sistema português em vigor está longe de ser ideal.
Vários estudos de psicologia têm vindo a demonstrar que existe uma hierarquia nos diferentes canais e modalidades comunicativos.
De entre os canais disponíveis o mais informativo é seguramente a voz.
A comunicação facial encontra-se no último patamar, situando-se os elementos gestuais e corporais numa posição intermédia (Claudine Biland, Psychologie du menteur, Odile Jacob, Paris, 2004:206).
Quanto à modalidade de comunicação é a transcrição escrita a que mais ajuda o receptor a compreender/descodificar uma mensagem, vindo depois a modalidade vídeo, que permite ver o emissor, a modalidade áudio, que permite ouvir o que disse o emissor e, por fim, a modalidade áudio+vídeo (ibidem).
Se dermos crédito a estes estudos, a prática hoje comummente seguida de registo da voz das testemunhas em sistema áudio e a sua reapreciação sem transcrição pelo tribunal de 2.ª instância, pode ser considerada insatisfatória e longe de conduzir aos melhores resultados.
Acresce um outro aspecto muito importante e muitas vezes ignorado ou esquecido na prática forense.
Na apreciação do depoimento de uma testemunha dá-se uma excessiva relevância aos aspectos verbais.
Ora a voz está longe de ser o único veículo de comunicação, e nem sempre é o meio mais eficaz para se comunicar. Basta pensar como se comunica um determinado itinerário.
Aqui entra de forma decisiva e quase imprescindível a comunicação gestual
São também muito importantes os comportamentos não verbais e paraverbais.
São indíces paraverbais o tom de voz (alterações na frequência vocal), o débito verbal (número de palavras pronunciadas pelo sujeito num tempo determinado) os erros de discurso (palavra ou frase repetidas, voltar a uma frase, não terminar uma frase, etc.), as hesitações («hum», deixe-me ver, vejamos…, etc.), o período de latência (período de silêncio entre a pergunta e a resposta), a frequência das pausas (frequência dos períodos de silêncio no decurso do discurso), e a duração das pausas (duração de todos os silêncios durante o discurso).
Quanto aos índices não verbais há que distinguir os indicadores faciais dos índices corporais.
Os indicadores faciais são a direcção do olhar (voltado para o interlocutor ou para qualquer outro lugar) os sorrisos (risos ou sorrisos do sujeito), as manipulações (contactos entre partes do corpo), o pestanejar, os movimentos da cabeça, etc.
No que se refere aos índices corporais assinalem-se as manipulações, os autocontactos (por exemplo cruzar as mãos), gestos ilustrativos (todos os gestos que fazemos com as mãos quando falamos), movimentos das mãos e dos dedos (por exemplo, fazer estalar os dedos), movimentos dos pés e das pernas (por exemplo, cruzar e descruzar as pernas e/ou os pés), movimentos do tronco (tronco mais para trás ou para a frente), mudanças de posição (passar de uma posição a outra), etc.
Todos estes indicadores são importantes e podem ser reveladores de muita coisa, até da mentira.
É claro que o registo áudio não pode captar, muito longe disso, todos estes elementos.
Mais ou menos ciente desta realidade, uma parte significativa da nossa jurisprudência sustenta que o juiz de segundo grau, a quem está, em princípio, vedada a imediação, não pode sobrepor uma nova convicção à convicção do juiz da primeira instância.
Em matéria de facto, a reapreciação de segundo grau deveria, nesta óptica, limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da 1.ª instância e da aplicação do princípio
da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão.
Dito de outro modo: no conhecimento do recurso da matéria de facto, o tribunal de segundo grau não vai à procura de uma nova convicção, mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal recorrido tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si.
Seguindo esta orientação a Relação só poderá alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova.
Será o caso, por exemplo, de o depoimento de uma testemunha ter um sentido absolutamente diferente daquele que lhe foi dado pelo julgador a quo ou de não terem sido considerados declarações ou depoimentos relevantes.
Alguns argumentam até que o processo de apreciação crítica das provas tem uma insuprível componente intuitiva, tese que levada às últimas consequências conduziria a uma total impossibilidade de sindicar o julgamento de facto do primeiro grau.
Esta tese restritiva não decorre de qualquer imperativo de sistema e dificilmente se compatibiliza com a noção de processo equitativo, constitucionalmente consagrada (artigo 20.º, n.º 4 CRP).
Não resulta da lei que a apelação seja uma impugnação de crítica vinculada quanto ao julgamento da matéria de facto, no sentido em que, sendo de admitir amplamente qualquer reclamação de direito, já no que tange ao sindicato da reconstrução do facto (extraprocessual) apenas se possa admitir um controlo por via indirecta, através da apreciação crítica da congruência lógica da motivação.
Esta maneira de ver acaba, no fundo por aproximar a apelação do recurso de revista e por restringir, ao ponto de praticamente o neutralizar, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Acresce que raros são os casos em que o juiz de primeiro grau atribui relevância, deixando-o expresso, para a sua convicção, a elementos não verbais, paraverbais, faciais ou corporais, esses sim em geral fora do controlo da Relação, no actual quadro.
O Supremo Tribunal de Justiça, afastando-se da «sensibilidade» que tem prevalecido no segundo grau, tem seguido a orientação de que relativamente aos pontos de facto impugnados da decisão de primeira instância, a Relação deve efectuar um «exercício crítico substitutivo», o que implica a sobreposição da sua convicção sobre cada um daqueles pontos de facto, individualmente considerados (cfr., entre muitos outros, Acs. de 19.04.01, Sumários de Jurisprudência do STJ, 2001, 2.º Vol.; de 14.09.2006, www.dgsi.pt e de 11.07.2007, www.dgsi.pt).
A 2.ª instância deve pois procurar a sua própria convicção, formular o seu juízo quanto aos factos impugnados. «Apenas acontece que o deve fazer com redobradas cautelas, justamente porque em princípio não goza das prerrogativas da oralidade e imediação que beneficiou a 1.ª instância» (José Rainho, op. cit.:173).
Isto dito, vejamos então se merece censura a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto.
O recorrente submete à reponderação deste tribunal a matéria de facto relativa aos n.ºs 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 8 da base instrutória.
Nestes quesitos perguntava-se:
Quesito 4.º : O ora Autor tem vindo a solicitar o pagamento da sobredita quantia à Ré, sem que esta lhe dê qualquer resposta?
Quesito 5.º : A ora Ré limitou-se a recolher, da casa do autor e a transportar o cheque no valor de 1 000 000$00?
Quesito 6.º: Apenas assinou o documento acima referido (de fls. 11 dos autos) por ter acedido a essa exigência por parte do Autor?
Quesito 7.º Essa quantia foi emprestada pelo Autor a M--- ?
Quesito 8.º: Dois ou três anos após a data do empréstimo, o ora Autor afirmou que aquele empréstimo feito a M--- devia ser visto por esta como uma doação?
A esta matéria o tribunal respondeu:
Quesito 4.º: Não provado.
Quesito 5.º: Provado.
Quesito 6.º: Provado.
Quesito 7.º Provado.
Quesito 8.º: Provado.
Ouvido o registo de prova e à excepção de um único ponto, podemos concluir não merecer qualquer alteração o julgamento de facto feito no primeiro grau.
Aquele ponto refere-se ao quesito 8 e tem a ver com o primeiro segmento. Na verdade, tal como referiram as testemunhas M--- --- e Pinto ---, a afirmação do autor e mulher quanto à doação, não ocorre «dois ou três anos após a data do empréstimo», mas sim «dois ou três meses após essa data».
Quanto ao mais, como dissemos, concordamos com a valorização das provas feita na primeira instância.
Vejamos, em síntese, porquê.
Comecemos por referir que o depoimento de parte é absolutamente inócuo, porquanto não houve qualquer confissão.
Acresce, por outro lado, que o depoimento de S---, mulher do autor, não merece qualquer credibilidade.
Esta testemunha começou por não querer depor e, mais tarde, reconsiderou, tendo feito um depoimento confuso, repleto de hesitações e imprecisões. Acresce que não escondeu a sua animosidade para com a ré, com quem se deu aliás muito bem até um passado recente, ao ponto de ter estado em casa da sua sobrinha e afilhada para recuperar da saúde.
Foi notória a sua dificuldade em situar os factos no tempo e de os concatenar («não tenho as coisas na cabeça»; o marido emprestou à sobrinha (pausa…) «mil euros, já não me lembro», etc.».
As vicissitudes que rodearam o seu depoimento, aliás pouco comuns, com repetidas advertências da Sra. Juiz, pouco ou mal compreendidas, são apenas o reflexo da referida falta de segurança que a idade só por si não explica.
Depôs também como testemunha arrolada pelo autor, Paulo ---, sobrinho do demandante e primo da ré.
Esta testemunha não tem qualquer conhecimento directo dos factos. Não assistiu a qualquer empréstimo, pedido do mesmo, condições que o presidiram, etc. O que sabe advém-lhe do que os tios lhe terão dito, a saber, a versão que consta da petição inicial.
Começou por dizer que os tios falavam num empréstimo à sobrinha M--- (a ré) e interrogado sobre o destino dado ao dinheiro, hesitou, tendo começado por dizer que, na altura [93] ambas as primas compraram uma casa, para logo depois acrescentar que «pelo menos na altura a M--- estava em partilhas com o marido…. A conclusão tirada pelo primeiro grau de que este depoimento se revelou pouco sincero e credível não merece censura.
Leopoldino --- é irmão do autor. Revelou, como também se diz na primeira instância, escasso conhecimento dos factos. Relatou que, nos anos idos de 93 pediu um empréstimo ao autor para realizar umas obras, e que este lhe terá dito que não podia ajudá-lo porquanto havia emprestado dinheiro à ré. Não sabe se o empréstimo terá sido em dinheiro ou em cheque, não sabe se era para a ré ou para a irmã, nada sabe sobre eventuais juros, não sabe qual o destino que foi dado ao dinheiro, não esteve presente quando foi entregue a quantia em causa...
Como se constata, o seu depoimento ficou essencialmente marcado pela ênfase posta na
reconstrução de uma capela da família B--- a que manifestamente se encontra emocionalmente ligado.
Do lado da ré depuseram José ---, cunhado do autor e tio da ré, M---, irmã da ré e sobrinha/afilhada do autor e C---.
José --- afirmou de forma convicta que a sua irmã lhe disse que os 1000 contos tinham sido dados à sobrinha M--- para pagar uma casa; referiu ser frequentador assíduo da casa da irmã, tendo-lhe sido dito por esta, diversas vezes, na presença do cunhado, que haviam dado o dinheiro à irmã da ré para esta não ficar sem a casa. Teve conhecimento da situação há cerca de 20 anos. Teve conhecimento de um documento assinado pela ré, que seria na altura da emissão para segurança do cunhado, mas que depois da doação seria para inutilizar.
C--- --- foi, em tempos, frequentador assíduo da casa, quer do autor, quer da ré, de quem se conserva amigo. Pois ambos lhe contaram que o autor e mulher tinham emprestado 1000 contos à sobrinha M---, mas que ao fim de 3 meses lhe ofereceram o dinheiro. Tal foi várias vezes falado entre eles.
Finalmente M --- . Apesar de ter sido a beneficiária do empréstimo dos seus padrinhos, não foi demandada nesta acção. O seu estatuto de testemunha não lhe pode ser negado, nem transmutado em parte «encoberta». Mas também não pode deixar de se levar em conta aquele mesmo benefício.
Frequentes vezes acontece que uma testemunha está de tal modo envolvida nos factos da causa que perde toda a credibilidade. Tal não pode ser erigido em regra geral. Nada impede que, sozinha, ou acompanhada com outros elementos de prova, uma testemunha com as referidas características, possa convencer o tribunal contribuindo para a descoberta da verdade.
Foi o que aconteceu nos presentes autos. Na verdade, M --- foi, de longe, quem fez um depoimento mais firme e informado, sem contradições, contando com todo o pormenor e detalhe o que de facto aconteceu (a necessidade que teve, em 93, de 1000 contos, para celebrar uma escritura em 24 de Fevereiro; o recurso, para esse efeito aos seus padrinhos; a deslocação a casa destes, acompanhada da irmã e da mãe para formular o pedido; a reacção favorável dos padrinhos, 3 ou 4 dias antes da celebração da escritura; a impossibilidade dela própria se deslocar a casa do autor para receber o cheque; o pedido à irmã para o fazer; a concretização do empréstimo; a assinatura pela ré de um documento; a oferta que lhe passados 2/3 meses lhe foi feita pelos padrinhos, etc.).
O seu testemunho, que é o único que assenta num conhecimento directo dos factos, não é desmentido, antes é corroborado, pelos anteriores dois depoimentos, não sendo de estranhar que o primeiro grau lhe tenha atribuído a credibilidade que, com efeito, merece.
Entende o recorrente que na falta de documento escrito, não podia o primeiro grau ter dado uma resposta afirmativa ao quesito 8.º (ex artigos 364.º e 947.º CC).
É verdade que de acordo com o artigo 947.º, n.º 2, do CC a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição de coisa, só pode ser feita por escrito.
No entanto, como já no seu tempo e à luz do Código de Seabra (artigo 1458.º, § 1.º) explicava Cunha Gonçalves, a frase «acompanhada da tradição da coisa» «não deve ser interpretada, porém, no sentido de que a coisa doada deve ser, forçosamente, entregue de mão em mão, depois de manifestado o mútuo consenso das partes, pois, se essa coisa já estava em poder do donatário, por qualquer título (locação, empréstimo, depósito, mandato), a doaçãoserá igualmente válida, porque se verifica a chamada brevi manu traditio» (Tratado de Direito Civil, Vol VIII:154).
À excepção, como dissemos, da alteração a que aludimos, entendemos, pois, inexistir qualquer razão para alterar o julgamento do primeiro grau, em sede de facto
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Do mérito do recurso
Sendo assim os factos, importa indagar se ocorre erro de direito.
Provou-se, como vimos, que a Ré assinou o documento de fls.11, com o seguinte teor: «Declaração: Para os devidos efeitos, declaro que devo a importância de 1 000 000$00 ao Sr. A---.
Abaixo assino
..., 21 de Fevereiro de 1993».
Em termos técnicos estamos perante um reconhecimento de dívida feita pela ré a favor do autor.
Dispõe o artigo 458.º do CC: «1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.
2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental».
Comentando este normativo diz Pessoa Jorge: «Significa este preceito que o credor que disponha de um documento escrito do devedor em que este unilateralmente declara prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, não precisa de provar a causa da obrigação, cuja validade e existência se presume.
Não se está, portanto, em face de um acto abstracto, mas sim de um acto causal, embora com presunção de causa, presunção que, sendo ilidível, determina a inversão do ónus da prova: não será o credor quem terá de demonstrar a existência e a licitude da causa, mas será sim ao devedor que caberá provar que a prestação que prometeu ou reconheceu não tem causa ou esta é ilícita» (Lições de Direito das Obrigações, 1975/76:219/220).
No caso vertente, o autor estava dispensado de provar a validade e licitude do invocado mútuo, pois beneficiava da presunção derivada do citado preceito.
Acontece que a ré logrou demonstrar «que se limitou a recolher, da casa do autor e a transportar o cheque no valor de 1 000 000$00, que apenas assinou o documento acima referido por ter acedido a essa exigência por parte do autor, que essa quantia foi emprestada pelo ora autor a M --- e ainda que, dois ou três meses após a data do empréstimo, o ora autor afirmou que aquele empréstimo feito a M --- deveria ser visto por esta como uma doação».
Segue-se, por conseguinte, que a demandada logrou afastar a presunção de causa, do citado preceito, o que deve conduzir, como conduziu à improcedência da acção, e neste grau à improcedência do recurso.
E não se diga que a tal obsta o disposto no artigo 376.º do CC porquanto a força probatória do documento particular aí referida se refere tão-só «às declarações atribuídas ao seu autor».
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Pelo exposto acordamos em julgar improcedente o recurso, e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 3 de Fevereiro de 2011
Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
Carlos Marinho