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CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
PERIGO PARA A VIDA
VÍCIOS DA COISA
DANOS
Sumário
I - A resolução do contrato com fundamento em perigo para a vida ou para a saúde do arrendatário ou dos seus familiares, prevista no al. b) do art. 1050º do CC, é independente do regime dos vícios da coisa locada previsto nos arts. 1032º e 1033º do CC, sendo irrelevante que o locatário conhecesse o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa. II - Já a indemnização do locatário pelos danos provocados pelo vício da coisa locada, encontrar-se-á dependente da verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil do locador, nomeadamente, do incumprimento por parte do locador do dever de entregar a coisa locada isenta de vícios e da culpa. III - A não prova de um facto por parte de quem o alega não importa, por si só, a ocorrência de litigância de má-fé. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):
I. RELATÓRIO A…, intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo sumário contra B…, Lda.,
alegando, em síntese:
a A. deu de arrendamento à Ré uma fracção, em 31-2-2008, para ter início em 01-02-09, por 600€ mensais;
no início do mês de Março o gerente da Ré informou a Autora que não fazia tenções de pagar a renda porque o nível de ruído era intenso devido à passagem de comboios na estação ferroviária da Cruz Quebrada;
e, em 28 de Março, a Ré denunciou o contrato, tendo enviado as chaves do apartamento em Abril;
a Ré não pagou os consumos de água e energia eléctrica que efectuou.
Em consequência, pede a condenação da Ré:
a) ao abrigo dos n.°s 2 e 3 do artigo 1098° do Código Civil, no pagamento à Autora de dez meses de renda, no valor total de € 6.000,00 (seis mil euros);
b) no pagamento dos juros à taxa legal de 4%, que ascendem até ao presente momento o valor de € 300,00, acrescidos dos que vierem a vencer-se até efectivo pagamento;
c) no pagamento à Autora dos valores por esta despendidos relativamente ao pagamento de luz e água e que eram da inteira responsabilidade da Ré, no total de € 220,04 (duzentos e vinte euros quatro cêntimos);
d) a título de danos morais, num montante de € 1.000,00;
Veio esta, acompanhada de C…, "como interveniente principal", deduzir contestação e reconvenção, alegando, em síntese:
a ausência de insonorização do locado e a consequente falta de condições de habitabilidade fundamentam o incumprimento das condições contratuais e colocam em crise a manutenção do contrato, permitindo a sua resolução.
Concluem pela improcedência da acção, considerando-se o contrato resolvido com fundamento em incumprimento contratual pela Autora, no que respeita à falta de condições de habitabilidade do locado, pedindo, em reconvenção, a condenação da Autora:
a) no pagamento das despesas realizadas na sequência da falta de condições de isolamento acústico, nomeadamente, a despesa na compra de tampões para os ouvidos e medicamentação, no valor de 60 €, a realização de exame audiométrico no valor 605 €, no custo despendido com a mudança forçada para um outro local, no valor de 221,43 €, bem como nos honorários referentes a apoio jurídico no valor de 542 €;
b) no pagamento de juros, desde a data da notificação da contestação, sobre todas as quantias despendidas pela Ré e devidamente comprovadas nos autos até integral pagamento;
c) no pagamento de indemnização ao Sócio gerente da Ré, C…, no valor de 3.500 €, a título de danos morais decorrentes da perturbação e incómodo que toda a situação envolveu;
d) no pagamento de multa e de indemnização à Ré, no valor de 1.500€, por litigância de ma fé.
A Autora respondeu, pugnando, em síntese, pela improcedência da reconvenção, porquanto o Réu conhecia a fracção quando a arrendou e o nível de insonorização é razoável.
Foi indeferido o incidente de intervenção principal passiva espontânea suscitado por C… e indeferido o pedido reconvencional por este formulado, sob a alínea c).
Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que:
I. Julgou a acção parcialmente procedente, e em consequência:
a. condenou a Ré a pagar a Autora a quantia de 60 €, acrescida de juros a contar de 19 de Abril de 2008, à taxa de 4% ao ano, até integral pagamento;
b. absolvendo a Ré de todo o demais peticionado pela Autora.
II. Julgou a reconvenção parcialmente procedente e em consequência:
a. declarou resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre as partes;
b. condenou a Autora a pagar à Ré as quantias de 50,50 €, 151,50 €, 605 € e 221,43 €, num total de 1028,43 € (mil e vinte e oito euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros à taxa de 4% desde a data da notificação da contestação até integral pagamento.
c. absolvendo a Autora do demais peticionado pela Ré.
A Autora interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. O contrato de arrendamento celebrado entre as partes dispõe quanto à finalidade do arrendamento, prevê a possibilidade de o arrendado ser utilizado por um elenco alargado de pessoas, mas não prevê a possibilidade de o referido gerente o utilizar.
2. E desde logo, provindo as queixas de quem não constava entre os legítimos utilizadores do apartamento – estabelecendo o contrato que essas pessoas eram as únicas a poder utilizá-lo e sim de quem não podia legitimamente utilizá-lo, falece desde logo razão à Recorrida para sustentar a posição que sustenta.
3. A situação do prédio onde se situa a fracção arrendada era visível a olho nu, desde a sua idade à proximidade da linha férrea, á existência de quatro faixas de rodagem na via para a qual o mesmo deita e a que se poderia chamar de “marginal de Cascais”.
4. E, sendo assim, e tendo a Ré visitado o prédio onde se situa a fracção arrendada antes de celebrar o arrendamento, não estava a arrendar gato por lebre.
5. O anterior inquilino do locado, e que depôs na qualidade de testemunha, nunca se queixou de ruído ou que o ruído que chegava ao quarto andar, onde a fracção ajuizada se localiza, lhe prejudicasse o sossego ou o descanso.
6. Na correnteza que vai do Cais do Sodré até Cascais, todo ou quase todo o espaço é habitado, sendo publico e notório que a grande maioria dos prédios não são de construção recente, o que não obsta a que ali residam centenas de milhar de pessoas.
7. A Recorrente dotou a fracção dos autos de caixilharia de alumínio e de janelas com vidros duplos a fim de lhe garantir uma melhor insonorização.
8. Admitindo que o gerente da Ré tem uma hiper sensibilidade ao ruído, tal assim mesmo não coloca a Recorrente numa situação de incumprimento pela circunstancia de o arrendado não satisfazer as necessidades do arrendatário, pois do que se trata aqui não é de apurar qual a reacção ao ruído do referido gerente, mas de um homem médio colocado no seu lugar. Conforme é o caso do anterior arrendatário que no arrendado residiu durante mais de um ano e que nunca se queixou de ruído.
9. Os resultados apurados pelo exame audiométrico pela Recorrente junto aos autos não merecem qualquer credibilidade, porquanto o mesmo foi executado por uma empresa não certificada, não tendo a Recorrida requerido nos autos, conforme lhe competia, qualquer exame pericial a fim de suportar a bondade da sua tese.
10. As despesas alegadamente suportadas pela Recorrida e em cujo pagamento a Recorrente foi condenada são da responsabilidade da Recorrida pela razão de não ter sido a Recorrente a dar-lhes causa.
A decisão recorrida violou o disposto no artº. 762/1 do Cod. Civil, mas, em caso de assim se não entender e a decidir-se que houve incumprimento, então, tal decisão violou o disposto no artº 799/1 porquanto a mesma não teria procedido de culpa do devedor.
Conclui que deve a mesma ser revogada e substituída por decisão que acolha o pedido da Recorrente.
Apresentou a Autora as suas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, interpondo, ainda recurso subordinado, quanto à não condenação da Autora como litigante de má-fé, relativamente ao qual apresenta as seguintes conclusões:
1. No que respeita à inexistência de má fé processual da Autora, o tribunal a quo fez incorrecta aplicação e interpretação do artigo 456º do Código deProcesso Civil.
2. Com efeito, a Autora reclama o pagamento de quantia referente ao consumo de água na fracção que refere ser da responsabilidade da Ré juntando, contudo, carta de contagem referente a consumos anteriores ao período em que o contrato de arrendamento dos autos vigorou.
3. Não desconhecia, nem pode desconhecer esse facto, pois é a Autora que junta documento que contraria claramente a realidade que reclama.
4. Actua em claro abuso de direito – com dolo ou negligência grave – agindo em má-fé processual concreta e evidente.
5. A Autora deduz, pois, pretensão cuja falta de fundamento não pode ser por si ignorada, traduzindo-se num uso manifestamente reprovável do processo e dos meios processuais.
6. Devendo a decisão – neste único ponto – ser revogada e substituída por outra que condene a Autora como litigante de má-fé processual, condenando-a na indemnização peticionada.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, cumpre decidir do objecto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir são as seguintes:
A – Quanto ao recurso principal:
1. Resolução do contrato por ausência de insonorização do locado e consequente falta de condições de habitabilidade.
a. Impugnação dos resultados do exame.
2. Responsabilidade do senhorio pelos danos sofridos pela Ré e nexo de causalidade entre o incumprimento e o dano.
B – Quanto ao recurso subordinado:
1. Litigância de má-fé por parte da Autora.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DE RECURSO.
A. Os Factos.
São os seguintes os factos considerados como provados na sentença de que se recorre:
A) Através da empresa R (…), C…, na qualidade de sócio gerente da Ré, entrou em contacto com a Autora a fim de visitar a fracção autónoma designada pela letra “P”, que corresponde ao Quarto andar frente para habitação, com uma garagem na cave do prédio sito em ---, Avenida ---, nº 16, em ..., com o propósito de arrendar a mesma.
B) Após ter visitado o apartamento, a Ré decidiu arrendá-lo.
C) Em 31 de Janeiro de 2008, a Autora, na qualidade de senhoria e a Ré, na qualidade de arrendatária, celebraram o acordo cuja cópia consta a fls. 11-15, referente à fracção autónoma designada pela letra “---”, que corresponde ao quarto andar frente para habitação, com uma garagem na cave do prédio sito em ---, Avenida --- nº 16, em ---, freguesia de ---e, concelho de ---s, descrito na --- Conservatória do Registo Predial de --- sob o número -----, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da --- – D..., sob o artigo ---.
D) Ali se fez constar na Cláusula 3ª: "1- O presente arrendamento é celebrado pelo prazo de 1 (um) ano, com início em 1 de Fevereiro de 2008 e termo em 31 de Janeiro de 2009. 2- A SENHORIA e a ARRENDATÁRIA poderão opor-se à renovação do contrato nos termos, respectivamente, dos artigos 1097° e 1098°, nº 1 do Código Civil."
E) Ali se fez constar na Cláusula 4ª "O referido arrendamento destina-se ao fim especial e transitório de alojar os consultores da ARRENDATÁRIA que têm residência fora de Lisboa, quando os mesmos se deslocam a Lisboa, bem como de alojar os seus quadros ou outros recursos, nomeadamente estrangeiros, quando vêm a Portugal. Não lhe podendo ser dado outro fim ou destino, sob pena de resolução contratual, nem sublocar ou ceder em todo ou em parte ou gratuitamente."
F) Ali se fez constar na Cláusula 5ª "1- A renda anual é de € 7.200,00 (sete mil e duzentos euros), paga em duodécimos, no montante de € 600,00 (seiscentos euros), mensalmente, até ao primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito…3- Com a assinatura do presente contrato a SENHORIA recebe da ARRENDATÁRIA a importância de € 1.500,00, correspondentes ao primeiro mês de arrendamento, a um mês de caução e a meio mês como garantia pelas máquina existentes no interior da fracção autónoma…"
G) Ali se fez constar na Cláusula 6ª: "…2-A SENHORIA compromete-se, desde já, a dentro dos próximos 60 dias, tentar obter junto do condomínio da fracção autónoma, autorização para que a ARRENDATÁRIA possa proceder à instalação de um sistema de ar condicionado no local. Caso o condomínio, recusar a autorização da instalação do sistema cima indicado, e a ausência deste, tomar o local insuportável nos meses de calor, o contrato poderá ser denunciado pela arrendatária, respeitando os prazos legais… 4- A instalação do sistema de ar condicionado será realizada a expensas da ARRENDATÁRIA. 5- O valor da instalação do sistema de ar condicionado será deduzido no pagamento mensal das rendas, durante o primeiro ano de arrendamento. 6-Se a ARRENDATÁRIA desocupar o imóvel antes do sistema de ar condicionado ter sido integralmente deduzido através das rendas paga se, o mesmo ficará a fazer parte integrante do imóvel e a pertencer à SENHORIA, não podendo a ARRENDATÁRIA, alegar qualquer direito de indemnização ou direito de retenção."
H) Ali se fez constar na Cláusula 7ª "1. A ARRENDATÁRIA obriga-se a conservar no estado em que actualmente se encontram as instalações de luz e canalizações de água e saneamentos e demais equipamentos do local arrendado, suportando as custas inerentes a reparações efectuadas por sua culpa ou negligência, ressalvando o desgaste normal e prudente utilização no decurso do tempo. 2. A ARRENDATÁRIA, compromete-se a liquidar pontualmente e a comunicar leituras de água e electricidade, relativas ao período de vigência do presente contrato.
I) Ali se fez constar na Cláusula 9ª:" 1. Qualquer das partes pode resolver o presente contrato nos termos gerais de direito com base em incumprimento da outra parte que, pela sua gravidade ou consequências, tome inexigível a manutenção do arrendamento."
J) Após haver arrendado o referido apartamento, o representante da Ré queixou-se do estado da canalização, do esquentador e da instalação eléctrica.
K) A Autora pediu-lhe que contratasse os técnicos que procedessem a estas reparações, o que aquela fez.
L) Foram efectuadas as reparações à canalização, do esquentador e da instalação eléctrica e a Autora veio a pagá-las.
M) A Autora contratou uma empresa de limpeza para efectuar uma limpeza profunda ao apartamento.
N) Os serviços de limpeza ocorreram depois de 31 de Janeiro de 2008, uma vez que o locado esteve ocupado por anterior inquilino até esse dia.
O) Em 10 de Março de 2008 o representante da Ré, C…, enviou à Autora a seguinte mensagem electrónica:
"Como lhe comentei a semana passada, a ausência de insonorização no apartamento, e em particular no quarto, tem-me vindo a afectar de forma crescente, o conforto e a tranquilidade necessárias à minha saúde física e mental. Como calcula, esta situação desagrada-me profundamente, porque fiz investimentos em mobílias a pensar naquele apartamento e porque a perspectiva de nova prospecção e mudança de habitação ir-me-á ocupar tempo e disponibilidade de que não disponho. No entanto, a manutenção da situação actual não permite a minha permanência no apartamento por muito mais tempo, fundamentalmente porque a insonorização está a lesar a minha saúde, impossibilitando que eu consiga dormir adequadamente um período mínimo de horas por dia. Esse facto está a afectar negativamente e de forma drástica a minha actividade diária, não só profissional como pessoal. Como comentei com a M… durante a semana passada, e porque quero esgotar todas as possibilidades de resolução do problema para evitar a mudança de apartamento, fiz uma busca para tentar obter uma estimativa de custos de insonorização, e agendei uma visita de um técnico ao apartamento para elaboração de um orçamento pela seguinte empresa (www.---.pt), para amanhã, terça-feira, pelas 09:30. Fica desde já convidada para estar presente na visita do técnico da ---. No pressuposto de que a --- está disponível para resolver esta questão da insonorização, e se tiver outra entidade a quem solicitar um orçamento adicional, p.f. marque então uma visita e informe-me da mesma. Caso também subsista alguma dúvida sobre o nível de ruído dentro do apartamento diga-me, pois poderemos constatar da situação in loco ou efectuar também uma medição do mesmo. Se não tivermos uma solução nos próximos dias que obvie o problema da poluição sonora e me permita desfrutar do apartamento em condições mínimas de conforto, não poderei continuar no apartamento sob pena de agravar a minha condição de saúde e, terei de arranjar alternativas até ao final do mês de Março, data em que pretendo dar por findo o arrendamento (doc. fls. 56).
P) Em 13 de Março o representante da Ré, C…, recebeu o orçamento para alteração das janelas cuja cópia consta a fls. 62 a 64 e que dou por reproduzido, no valor de 4.225,15€.
Q) O advogado da Autora enviou ao representante da Ré a carta datada de 17 de Março de 2008 alertando-o "para o facto de ainda não ter sido efectuado o pagamento relativo à renda mensal do imóvel … Assim de acordo com o nº 1 do artigo 1041° do Código Civil, "o locador tem o direito de exigir, além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido". Acresce que até ao presente momento o montante em dívida perfaz o valor de € 900,00 (novecentos euros), que corresponde à renda mensal em atraso mais 50% a titulo de indemnização. Assim, espero que como forma de demonstração de boa fé V/Exa. opte por efectuar o pagamento devido, sendo que caso persista no seu incumprimento serão por nós accionados os meios legais necessários.", conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 23.
R) Em 20 de Março de 2008, o representante da Ré, C…, reencaminhou esse relatório à Autora onde além do mais escreve: " Tenho-me como uma pessoa razoável e flexível. Se lhe transmiti que a situação ao nível do ruído no apartamento é insustentável, é porque cheguei a um ponto limite da minha resistência ao efeito nefasto do nível de ruído existente. …O efeito do ruído na minha saúde está a agravar-se todos os dias. Para evitar tomar drogas que me forçassem a dormir mesmo com o nível de ruído existente no quarto, o médico aconselhou-me a dormir com uns tampões especiais nos ouvidos, que é o que tenho feito desde há uma semana, e assim reduzi o nível de ruído e tem-me permitido dormir algumas horas com algum descanso. Lamento não ter a experiência em situações anteriores de imobiliário e não ter antecipado o problema da insonorização quando visitei a casa. Lamento pelo transtorno que me vai causar, mas principalmente pelo efeito nocivo que me está a causar na saúde e no reflexo na minha vida profissional e pessoal…" conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 58.
S) Em 28 de Março de 2008, o representante da Ré, Maurício ---, enviou uma carta à Autora com, além do mais, o seguinte teor" Na sequência das minhas comunicações datadas de 10/03, 13/03 e 20/03/2008, e sem prescindir ou conceder no entendimento de que o contrato de arrendamento celebrado não pode produzir os efeitos pretendidos, tendendo a que a fracção não tem condições de habitabilidade, situação decorrente da total falta de insonorização da mesma, venho pela presente comunicar a V. Ex.s, independentemente da resolução do assunto, a denúncia do contrato, com efeitos a partir desta data" conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 26.
T) Em 18 de Abril de 2008, o representante da Ré enviou as chaves do apartamento à Autora.
U) Essa chave foi acompanhada de uma carta, onde se lê, além do mais " … não estão reunidas condições para lá permanecer, pelas razões que anteriormente expus. Tinha alguma expectativa em que o assunto pudesse ter tido resolução efectiva, através de um entendimento. A verdade é que a falta de isolamento acústico e o ruído exterior existente na fracção perturbaram e perturbam bastante o meu repouso, tendo que ter sido assistido médica e medicamentosa. Para que não reste qualquer dúvida sobre a minha razão, solicitei a empresa certificada a realiza testes audiométricos e os resultados são, conforme esperava, preocupantes, estando os níveis de ruído com resultados elevados e que violam as convenções de saúde mundial e outros parâmetros" conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 27.
V) Em 18 de Abril o representante da Ré, C…, recebeu relatório de exame audiométrico que havia encomendado onde além do mais se lê "Relativamente ao quarto do apartamento ---, localizado no Nº - da Avenida --- 0000-000 --, o Isolamento a Sons de Condução Aérea de Fachada (entre o exterior e o interior) é excedido o respectivo limite descrito no Decreto-Lei n. o 129/2002, Regulamento dos Requisitos Acústico dos Edifícios, nomeadamente no Artigo 5° Edifícios Habitacionais e Mistos, ponto 1º, qualquer que venha a ser a classificação de zona definida pela autarquia ". "Esta situação dever-se-á a um isolamento das janelas existentes no local (caixilharia de alumínio «de correr») insuficiente para garantir o isolamento mínimo preconizado na legislação nacional, necessário para um mínimo de conforto, principalmente em locais onde o ruído exterior é elevado (tráfego rodoviário na Avenida ---e ferroviário na linha de Cascais) e continuado". "Esta situação é confirmada pelos resultados obtidos na medição que foi realizada, em contínuo, das 20h do dia 74/04/2008 às 09hdo dia 76/04/2008, no interior do quarto, com janelas totalmente fechadas para o exterior e porta interior também fechada e sem presença humana durante este período", conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 66 a 76.
W) Ali também consta o quadro de fls. 69, relativo a "índices de isolamento sonoro": "valores medidos: 24db"; "valores medidos incluindo incerteza 27 db"; "valores limites (DL 129/2002) em zonas sensíveis maior ou igual a 28 db"; "valores em zonas mistas: maior ou igual a 33db", enquadramento dos resultados "excede os limites descritos no DL 129/2002."
X) Em nenhum momento da medição efectuada (com registos contínuos obtidos com Intervalos de 30 minutos) houve um registo inferior a 40 dB, registando-se a intensidade de ruído regularmente em valores próximos ou acima dos 50 dB.
Y) Em Junho de 2008 foi enviado pela EDP um aviso relativo ao atraso num pagamento, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 28.
Z) No referido aviso, a EDP alertava a Autora que caso esta não regularizasse os pagamentos em atraso, o fornecimento de energia eléctrica teria de ser interrompido.
AA) Pelo que, em 18 de Julho de 2008, a Autora teve de proceder ao referido pagamento, no valor de € 88,58.
BB) A Autora recebeu uma factura do SMAS no valor de € 131,46.
CC) A renda não incluía as despesas referentes à água e luz.
DD) Ao longo deste período, a Autora teve de pagar mensalmente a prestação ao banco, relativo ao empréstimo que contraiu aquando da aquisição do apartamento.
EE) A Autora sofreu alguma preocupação quando a renda deixou de ser paga por contar com esse pagamento para efectuar o pagamento da prestação bancária.
FF) O imóvel foi uma única vez visitado pelo representante da Ré.
GG) O representante da Ré, C…, dormiu mal e não descansou como esperava no apartamento por causa do barulho que naquele se fazia sentir, tendo chegado a usar tampões nos ouvidos para facilitar o sono.
HH) O ruído consoante a sua intensidade e continuidade pode provocar perda de concentração, perda de reflexos, irritação permanente, insegurança quanto à eficiência dos actos, interferência na comunicação, perda da inteligibilidade palavras; estado de tensão; depressão; perda auditiva até à surdez permanente; dores de cabeça; impotência; fadiga; demência; distúrbios cardiovasculares; distúrbios hormonais; gastrite; problemas na digestão e sistema digestivo.
II) A Ré despendeu por serviços de advocacia cobrados em 26-3-2008 a quantia de 50,50€ e em 28-3-08 a quantia de 151,50 €, conforme consta dos documentos que dou por reproduzidos e que dos autos são fls. 77 e 78,.
JJ) Estes pagamentos foram efectuados para se informar dos seus direitos no âmbito do acordo celebrado entre Autora e Ré e para a resolução do mesmo.
KK) Foi emitido com data de 16-9-09 o recibo cuja cópia é fls. 79, por serviços de advocacia à Ré, no valor de 250 €, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 79.
LL) A Ré na realização do exame audiométrico despendeu a quantia de 605 €, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 80.
MM) A mudança de mobiliário custou à Ré a quantia de 221,43 € com conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 81.
NN) O prédio tem aproximadamente quarenta anos, situa-se defronte da estrada da marginal, a qual tem quatro faixas de rodagem, e duas linhas de comboio.
OO) Está à vista de qualquer pessoa quer a idade do prédio, quer a sua localização.
PP) Sendo que as janelas do locado em apreço têm vidros duplos, contudo a construção do prédio tem materiais que eram utilizados na época.
QQ) O anterior inquilino da fracção não se queixou da insonorização da fracção.
B. O Direito.
1. Resolução do contrato por ausência de insonorização do locado e consequente falta de condições de habitabilidade.
Na sentença recorrida, reconheceu-se o direito da arrendatária à resolução do contrato com fundamento na existência de uma circunstância que põe em causa a saúde de quem habite na fracção arrendada (citado artigo 1050º do Código Civil).
Insurge-se a apelante contra tal entendimento, com fundamento nas seguintes questões:
- quem se queixa das condições de insonoridade do arrendado é o Sócio-Gerente da Recorrida, que alega não conseguir dormir no arrendado, sendo que este não se contava entre os legítimos utilizadores do apartamento – o contrato celebrado entre as partes, dispondo quanto à finalidade do arrendamento, previa a possibilidade de o arrendado ser utilizado por um elenco alargado de pessoas, mas não previa a possibilidade de o referido gerente o utilizar.
- a situação do prédio era visível a olho nu, pelo que a arrendatária não podia ter deixado, desde sempre, de conhecer o que estava a arrendar.
- o estado do locado terá de ser aferido por referência ao homem médio – os testes não apresentam qualquer credibilidade.
Face à primeira das questões levantadas pelo Autor – de que o gerente da Ré/arrendatária não se contava entre os legítimos utilizadores do apartamento, comecemos por analisar o objecto e a finalidade do contrato de arrendamento em causa.
As partes fizeram constar, da Clausula 4ª de tal contrato, que o referido arrendamento se destina “ao fim especial e transitório de alojar os consultores da arrendatária que têm residência fora de Lisboa, quando os mesmos se deslocam a Lisboa, bem como de alojar os seus quadros ou outros recursos, nomeadamente estrangeiros, quando vêm a Portugal”.
Como refere Jorge Henrique Pinto Furtado, “é o teor do contrato e não a utilização que dele faça o arrendatário, que deverá guiar o interprete na sua qualificação – mas a utilização em certo sentido, com a aquiescência do senhorio pode constituir um índice de que foi precisamente esse o fim que as partes tiveram em vista ao celebrarem o contrato Cfr., “Manual do Arrendamento Urbano”, Vol. I, Almedina, 2007, 4ª ed. Actualizada, pag. 144 e 145.”.
O teor da citada clausula aponta nitidamente para a verificação de um contrato de “arrendamento para habitação não permanenteou para fins especiais transitórios, designadamente por motivos profissionais, de educação, e formação ou artísticos”, de que tratam os arts. 1095º, nº3 e 1096º, nº1 do Código Civil (na redacção da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o NRAU), tendo as partes cumprido a exigência prevista na al. c) do art. 2º do DL nº 160/2006, de que seja exarado no próprios contratos o carácter não permanente da habitação e o motivo da transitoriedade.
Tal arrendamento não se encontra, assim, sujeito ao prazo mínimo de cinco anos de duração dos contratos com prazo certo, nem à renovação automática, nos termos do nº3 do art. 1095º, nº3 do 1096º do CC.
E, em conformidade com tal regime, as partes estipularam que o contrato era celebrado pelo prazo de um ano (o que só se mostra legalmente admissível precisamente dado o destino dado ao contrato – habitação não permanente) – clausula nº3 do contrato.
Assente que se trata de um contrato para habitação não permanente, vejamos se o gerente da arrendatária se encontrava legitimado a habitá-la.
Segundo a citada Clausula 4ª, o arrendamento destinava-se ao fim especial e transitório de alojar consultores da arrendatária que têm residência fora de Lisboa, quando os mesmos se deslocam a Lisboa, bem como de alojar os “seus quadros” ou outros recursos, nomeadamente estrangeiros, quando vêm a Portugal.
Ora, o teor de tal cláusula é de molde a abranger quaisquer funcionários, administradores ou gerentes da arrendatária.
Com efeito, o sentido dado por norma à expressão “quadros de uma empresa” é o de pessoas que pertencem à organização da uma empresa de um modo efectivo e não transitório Na definição do “Dicionário da Língua Portuguesa 2006”, da Porto Editora, corresponde ao “conjunto hierarquizado de lugares permanentes de um serviço para o desempenho dos quadros desse serviços”, ou à “lista de membros de uma sociedade ou corporação. Segundo o Dicionário da Bertrand, respeita ao “conjunto de funcionários de uma repartição ou profissão”., abrangendo não só os respectivos funcionários mas igualmente os seus dirigentes, directores ou gerentes.
Assim sendo, considerar-se-á que o gerente da Ré se inclui nas pessoas que, segundo o acordado no contrato, se encontrariam autorizadas a habitar tal apartamento sempre que tal se mostrasse necessário, sendo que da inúmera correspondência que o gerente da Ré enviou à A. deste o início da vigência do locado, resulta claramente que tal gerente tem vindo a permanecer no locado, sem que o senhorio tenha levantado qualquer questão a tal facto.
Passemos a analisar da licitude da resolução do contrato por parte da Ré/arrendatária e o seu enquadramento legal.
O fundamento geral da resolução do contrato de arrendamento por parte do arrendatário é idêntico àquele que vigora para o senhorio, ou seja, o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento (ns. 1 e 2, do art. 1083º do CC).
Segundo alguns autores, tal norma submete a resolução do contrato de arrendamento urbano a uma cláusula geral de justa causa Cfr., entre outros, David Magalhães, “A Resolução no Arrendamento Urbano”, Coimbra Editora, 2009, pag. 101, 134 e 165, e Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, Almedina, 2ª ed., pag. 343..
A lei prevê, contudo, alguns exemplos de fundamentos de resolução. Assim, no âmbito da locação em geral, refere a al. a) do art. 1050º, do CC:
“O locatário pode resolver o contrato, independentemente de responsabilidade do locador, se na coisa locada existir ou sobrevier defeito que ponha em perigo a vida ou a saúde do locatário ou dos seus familiares”.
Goza, assim, o arrendatário da possibilidade de resolução do contrato de arrendamento, com qualquer dos fundamentos previstos no art., 1050º do CC, independentemente da responsabilidade do locador.
Ou seja, uma vez reconhecida a ocorrência de alguma das circunstâncias aí previstas (a situação objectiva aí prevista), tem o locatário o direito à resolução do contrato, sem necessidade de apuramento da imputabilidade de tal situação, ou não, ao senhorio.
Segundo Pedro Romano Martinez, o art. 1050º consagra uma das raras hipóteses de resolução por incumprimento sem culpa, “no fundo, uma hipótese de resolução fundada em justa causa objectiva “Da Cessação do Contrato”, pag. 357. ”.
“Estamos perante a tutela de valores constitucionalmente consagrados (a vida e a integridade física: arts. 24º e 25º CRP) que permitem uma extinção imediata do negócio se a continuação deste os colocar em risco. Daí que se entenda que se trata de um preceito de natureza imperativa Cfr., David Magalhães, obra citada, pag. 202.”.
A resolução do contrato constitui, portanto, um meio de tutela, essencialmente preventiva, dos bens da “saúde” e “vida”, que o arrendatário pode accionar a qualquer momento, sem necessidade de pré-aviso e por via extra-judicial Cfr., Maria Olinda Garcia, “A Importância da Saúde do Arrendatário na Disciplina do Arrendamento Habitacional”, estudo publicado in Boletim da FD da UC, Vol. LXXVIII, 2002, pag. 596.”.
No caso em apreço, provou-se que o representante da Ré dormiu mal e não descansou como esperava no apartamento por causa do barulho que naquele se fazia sentir, tendo chegado a usar tampões nos ouvidos para facilitar o sono.
Mais se provou que, realizado um exame audiométrico, a pedido do legal representante da Ré, foi apresentado o relatório cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 66 a 77.
De tal relatório consta, nomeadamente: “relativamente ao quarto do apartamento (…), o Isolamento a Sons de Condução Aérea de Fachada (entre o exterior e o interior) é excedido o respectivo limite descrito no Decreto-Lei n. o 129/2002, Regulamento dos Requisitos Acústico dos Edifícios, nomeadamente no Artigo 5° Edifícios Habitacionais e Mistos, ponto 1º, qualquer que venha a ser a classificação de zona definida pela autarquia ". "Esta situação dever-se-á a um isolamento das janelas existentes no local (caixilharia de alumínio «de correr») insuficiente para garantir o isolamento mínimo preconizado na legislação nacional, necessário para um mínimo de conforto, principalmente em locais onde o ruído exterior é elevado (tráfego rodoviário na Avenida --- e ferroviário na linha de Cascais) e continuado". "Esta situação é confirmada pelos resultados obtidos na medição que foi realizada, em contínuo, das 20h do dia 74/04/2008 às 09hdo dia 76/04/2008, no interior do quarto, com janelas totalmente fechadas para o exterior e porta interior também fechada e sem presença humana durante este período.
Encontra-se ainda demonstrado que em nenhum momento da medição efectuada (com registos contínuos obtidos com intervalos de 30 minutos) houve um registo inferior a 40 dB, registando-se a intensidade de ruído regulamente em valores próximos ou acima dos 50 dB.
Ora, afirmando a OMS (Organização Mundial de Saúde) efeitos adversos para a saúde quando o ruído nocturno é de nível superior a 40 dB Cfr. estudo citado na sentença de que se recorre., e ultrapassando os resultados obtidos os valores limites impostos pelo Regulamento dos Requisitos Acústicos dos Edifícios, aprovado pelo DL nº 129/2002, de 11 de Maio, para os edifícios habitacionais e mistos (art. 2º do citado diploma), não se poderá afirmar, como pretende a recorrente, que o gerente da recorrente “tem uma hipersensibilidade ao ruído”.
É certo que a recorrente vem agora questionar o resultado dos exames audiométricos juntos aos autos, afirmando que os mesmos “não têm qualquer credibilidade porque foram executados por uma empresa não certificada, não tendo a recorrida requerido nos autos, conforme lhe competia, qualquer exame pericial a fim de suportar a bondade da sua tese.
Ora, da análise dos autos e correspondência enviada pelo gerente da Ré à A. constata-se que a Autora terá sido advertida da data da visita do técnico e convidada a estar presente no dia e hora em que o exame se iria iniciar (cfr. doc. de fls. 56).
Mais se encontra provado que o representante da Ré enviou cópia do relatório de tal exame à A. a 20 de Março de 2008.
E, notificada a A. da contestação/reconvenção juntamente com a qual foi junta aos autos cópia de tal relatório, o mesmo não foi objecto de impugnação por parte da Autora.
Ora, embora tal relatório não revista a força de um relatório pericial, constituiu um elemento de prova livremente valorável pelo julgador, em conjugação com a demais prova produzida em audiência.
Assim, e não tendo sido produzida qualquer prova em contrário, poderia o juiz a quo socorrer-se do mesmo para dar como provados os factos constantes das als. V) a x), por se tratar de documento não impugnado, como expressamente faz constar do despacho de fls. 178 e ss., pelo qual o tribunal fixa a matéria a considerar como provada.
Ou seja, embora o ónus da prova do vício do locado pertença ao locatário, por força do nº2 do art. 342º do CC, face à prova por si produzida mediante a junção do relatório audiométrico, poderia a autora, ela própria, ter requerido a realização de exame pericial ou indicado testemunhas com conhecimentos na área em causa, de modo a infirmar ou por de algum modo em causa a credibilidade de tal relatório.
Não o tendo feito, e não tendo sequer impugnado tal documento, tal relatório constituirá prova bastante dos factos dados como provados sob as alíneas V) a X).
E, da matéria acima descrita, ter-se-á de concluir que os níveis de ruído atingidos no apartamento em causa podem ser considerados objectivamente prejudiciais para o homem médio, sendo lesivos do direito ao sono, ao repouso e tranquilidade de quem lá possa permanecer.
Assim sendo, e considerando-se verificado o direito da Ré à resolução do contrato com fundamento no art. 1050º do CC, torna-se irrelevante a alegação da recorrente de que a situação do prédio era visível a olho nu, pelo que a arrendatária não podia ter deixado, desde sempre, de conhecer o que estava a arrendar.
Com efeito, tal circunstância só teria interesse no caso de vício da coisa locada previsto no art. 1032º, caso em que o respectivo regime é afastado se o locatário conhecia o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa – a al. a), do art. 1033º do CC.
Como expressamente defende David Magalhães, a possibilidade conferida pela al. b) do art. 1050º não se confunde com a existência de vícios da coisa locada: “a inaplicabilidade do regime dos vícios não impede que o locatário resolva o contrato: é o que acontece, v. g., se o locatário tiver conhecimento do defeito aquando da celebração do contrato ou da entrega da coisa ou, ainda, se o mesmo era facilmente reconhecível (art. 1033º, alíneas a) e b)), o que não obsta à aplicação da alínea b) do art. 1050º, atendendo aos bens jurídicos implicados Cfr., obra citada, pag. 202 e 203.”.
Em igual sentido se pronuncia Maria Olinda Garcia: “confrontando com o disposto nos arts. 1032º e 1033º (…), é de concluir que, aqui, o locatário não perde o direito de resolução mesmo que conhecesse o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu o imóvel, ou se o defeito já existente à data da celebração do contrato era facilmente reconhecível. Justifica-se que assim seja, dada a importância dos valores a proteger: a vida e a saúde “A Importância da Saúde do Arrendatário (…)”, estudo e local citado, pag. 596.”.
E, segundo David Magalhães, a formulação do preceito não indica qualquer caracterização especial do risco para a vida ou a saúde: ao contrário do direito alemão, não se exige sequer que o perigo seja importante e avaliado em função de parâmetros objectivos: basta que exista risco, que também não tem de ser caracterizado como continuado Obra citada, pag. 203 e 204..
E, por fim, segundo tal autor, a tutela legal abrange não só o locatário mas, no domínio dos arrendamentos para fins não habitacionais, também empregados e clientes: “se a finalidade prosseguida pelo arrendatário envolver a manutenção de colaboradores e um atendimento da clientela no espaço locado, o risco para a sua vida ou saúde não pode deixar de ser tido em conta como fundamento de resolução do contrato, por identidade de razão com a tutela dos familiares: a protecção do pessoal e dos clientes torna-se necessária ao adequado gozo da coisa, sem o qual é o próprio arrendatário que é lesado, através do prejuízo do fim que pretende Obra citada, pag. 207.”.
Dúvidas não haverá, assim, de que o comprovado perigo para a saúde do gerente da Ré, que aí vem pernoitando, e para a saúde em geral de qualquer um dos seus colaboradores que aí possam vir a permanecer ou a residir, face aos níveis de ruído registados, preencherá a factualidade prevista na al. b) do art. 1050º do CPC, conferindo à arrendatária o direito à resolução do contrato.
2. Responsabilidade do senhorio pelos danos invocados pela arrendatária.
Se para a resolução do contrato com fundamento na al. b) do art. 1050º, a lei prescinde da “responsabilidade do locador”, a atribuição ao arrendatário do direito à indemnização por danos encontrar-se-á dependente da verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, entre os quais se salienta o incumprimento culposo por parte do senhorio.
Segundo o art. 1032º, do CC, quando a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada, ou carecer das qualidades destinadas a esse fim ou asseguradas pelo locador, o contrato considera-se não cumprido:
a) se o defeito datar, pelo menos, do momento da entrega e o locador não provar que o desconhecia sem culpa;
b) se o defeito surgir posteriormente à entrega, por culpa do locador.
O regime previsto para os vícios da coisa constitui a consequência lógica da obrigação imposta ao locador pelo art. 1031º de assegurar o gozo da coisa – se a coisa apresentar vícios (quer de facto quer de direito) que lhe não permitam realizar o fim a que se destina, o locador é responsável pelo prejuízo causado ao locatário, nos termos do art. 798º do CC Cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. II, 4ª ed., pag. 360..
Segundo Pedro Romano Martinez, o regime previsto nos arts.1032º a 1034º enquadra-se na figura geral do cumprimento defeituoso das obrigações, valendo em tais casos a presunção de culpa do art. 799º do CC, presumindo-se a culpa do locador sempre que a coisa apresente vícios de direito ou defeitos Cfr., “Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos – Compra e Venda, Locação e Empreitada”, Almedina, 2ª ed., pag. 188..
Bastará, assim, ao arrendatário provar a existência do vício, incumbindo ao locador a prova de que o vício não provém de culpa sua.
No caso concreto, os índices de isolamento sonoro registados no locado excedem os limites permitidos por lei – devido a um isolamento insuficiente das janelas para garantir os mínimos exigidos por lei, face ao ruído exterior ocasionado pelo tráfego rodoviário da Av. --- e ferroviário da Linha de cascais –, pelo que se considera verificado um vício do locado para efeitos do art. 1032º.
Contudo, igualmente se provou que:
o prédio tem aproximadamente quarenta anos, situa-se defronte da estrada marginal, a qual tem quatro faixas de rodagem, e duas linhas de comboio;
está à vista de qualquer pessoa quer a idade do prédio, quer a sua localização;
as janelas do locado têm vidros duplos, tendo a construção do prédio matérias utilizados à época;
antes de arrendar o apartamento, o imóvel foi visitado uma vez pelo representante da Ré;
o anterior inquilino da fracção não se queixou da insonorização da fracção.
Ora, de tal matéria, é de concluir que, datando o defeito do momento da entrega da coisa (até de momento anterior), o locador logrou demonstrar que desconhecia o defeito sem culpa.
Com efeito, o facto de o próprio gerente do arrendatário, pela visita que fez ao mesmo e pelas características visíveis do locado, não se ter apercebido do defeito em causa, aliado ao facto de o anterior arrendatário não se ter queixado da insonorização da fracção, tornam credível o desconhecimento de tal situação por parte da autora.
Assim sendo, e entendendo-se que o não cumprimento ocorrido não se deveu a culpa da senhoria Segundo Pires de Lima e Antunes de Varela, em caso de desconhecimento, sem culpa dos vícios da coisa, o contrato considera-se cumprido (cfr., obra citada e local citados, pag. 361); já David Magalhães defende que a presença de vícios, perturbadora do fim a que se destina, se traduz sempre num incumprimento contratual, numa falta de correcta execução da prestação, pelo que, não se poderá afirmar que houve cumprimento, mas apenas que o não cumprimento ocorrido não se deveu a culpa do devedor – tratar-se-á de um não cumprimento não imputável ao devedor (obra citada, pag. 192)., afastada fica a responsabilidade da locadora (arts. 1032º, al. a)), pelo que, a locatária não terá direito a indemnização pelos danos decorrentes do não cumprimento da obrigação de entregar um locado isento de vícios.
3. Condenação da autora como litigante de má-fé.
Pretende a Ré ter a Autora litigado de má-fé pelo facto de, tendo reclamado na sua petição inicial o pagamento de quantias referentes a consumos de água e electricidade, e juntando aos autos vários documentos para sustentar a sua posição, decorrer do doc. 9 que o consumo de água cujo pagamento a Autora reclama diz respeito ao período que medeia entre 03-12-2007 a 06.02.2008.
E, quanto ao consumo de electricidade juntou apenas a carta referente a atraso no pagamento, não tendo junto o documento de contagem a que aquele aviso respeita.
Ora, respeitando o doc. de fls. 30 (doc. 9) aos consumos ocorridos entre 03-12-2007 a 06.02.2008, e encontrando-se o contrato de arrendamento datado de 31 de Janeiro, a conclusão mais óbvia a retirar de tal junção, será a de que se terá tratado de um mero lapso da Autora, quer ao peticionar o respectivo montante, quer ao juntar aos autos o documento em causa, lapso esse tanto mais justificável pelo facto de tal Factura/recibo ter como data limite de pagamento 03.03.2008.
Quanto ao facto de não ter juntado aos autos o documento de contagem respeitante aos consumos de electricidade que alega, a eventual consequência da não junção de tal documento consiste unicamente em ver dado tal facto como não provado.
Como se refere no Acórdão do TRP de 13.03.2008, “A simples falta de prova de factos alegados, ainda que de natureza pessoal, com a consequente improcedência da acção, não permitem concluir pela litigância de má-fé por banda da parte que os alegara e sobre quem impendia o respectivo ónus probandi, sob pena de se estar a coarctar o legítimo direito de as partes discutirem e interpretarem livremente os factos e o regime jurídico que os enquadra, por mais minoritários (em termos jurisprudenciais) ou pouco consistentes que se apresentem as teses defendidas Relatado por Fernando Baptista e disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp.”.
Por outro lado, ainda que o alegado comportamento da autora se integrasse em alguma das alíneas do art. 453º do CC, o que se rejeita, as circunstâncias em causa respeitam a uma parcela tão diminuta, relativamente ao objecto global da acção, que sempre seria desproporcionada qualquer condenação em litigância de má-fé.
Mostra-se, assim, manifesta a improcedência da pretensão da Ré de condenação da A. como litigante de má-fé.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar:
· parcialmenteprocedente a apelação interposta pela Autora, revogando-se a decisão recorrida na parte em que condena a Autora no pagamento à Ré das quantias de 50,50 €, 151,50 €, 605 € e 221,43 €, e respectivos juros,
· julgando-se improcedente o recurso subordinado interposto pela Ré,
· confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas pela apelante e pela apelada, na proporção do decaimento, quanto ao recurso principal, com taxa de justiça conforme a Tabela I-B, anexa ao RCP.
Custas pela Ré, quanto ao recurso subordinado por si interposto, com taxa de justiça prevista na Tabela I-B, anexa ao RCP.
V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.
1. A resolução do contrato com fundamento em perigo para a vida ou para a saúde do arrendatário ou dos seus familiares, prevista no al. b) do art. 1050º do CC, é independente do regime dos vícios da coisa locada previsto nos arts. 1032º e 1033º do CC, sendo irrelevante que o locatário conhecesse o defeito quando celebrou o contrato ou recebeu a coisa.
2. Já a indemnização do locatário pelos danos provocados pelo vício da coisa locada, encontrar-se-á dependente da verificação dos demais pressupostos da responsabilidade civil do locador, nomeadamente, do incumprimento por parte do locador do dever de entregar a coisa locada isenta de vícios e da culpa.
3. A não prova de um facto por parte de quem o alega não importa, por si só, a ocorrência de litigância de má-fé.