PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ARRESTO
JUSTO RECEIO DE PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Sumário

I - O arresto deve ser decretado se, através do mecanismo sumário, próprio dos procedimentos cautelares, for de concluir pela probabilidade séria da existência do crédito e pelo receio da perda da garantia patrimonial.
II - Integra o conceito de “justo receio de perda da garantia patrimonial” qualquer actuação do devedor que levasse, à luz das regras da experiência comum, um homem normal, colocado na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito.
III - Estando provado, além da existência de crédito dos requerentes no valor de € 17.956,80 de rendas de dois apartamentos de 2007 e 2008, que a requerida, através do seu procurador, entregou a chave dos mesmos apartamentos, em Junho de 2008, porque deixou de ter condições para continuar a pagar as rendas e também porque já não tinha intenções de voltar a Portugal, tendo ido residir para o Brasil há já alguns anos; e que a requerida assumiu o compromisso de efectuar o pagamento da importância de € 16.000,00 (já reduzida, consoante acordo com a senhoria) em prestações mensais, mas nunca o fez, deve ter-se como provado o receio de perda de garantia patrimonial, exigido para decretamento de procedimento cautelar de arresto.
( Elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

1 - Na 3ª Secção do 7º Juízo Cível de Lisboa, José T. e outros, na qualidade de herdeiros de Élia T. , requereram procedimento cautelar de arresto contra Maria G ., pedindo que seja decretado o arresto de um bem imóvel, único bem conhecido à requerida.
Produzida a prova apresentada com gravação dos depoimentos, foi posteriormente proferida decisão que denegou a providência em causa (cfr fls 848 a 864).
2 - Inconformados, os requerentes deduziram recurso contra essa decisão, pedindo que deverá ser revogada “a douta Sentença recorrida e decretando-se a requerida providência cautelar de Arresto”, tendo, nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:
“1.ª Da prova produzida (v.g. do depoimento da testemunha José), claramente resulta indiciado que a Requerida não tem qualquer património para além do imóvel objecto do presente Arresto, pelo que deveria o Tribunal «a quo» ter considerado provado o facto alegado no art. 43.º do r.i..
2.ª Da prova produzida (v.g. do depoimento das testemunhas José e António ) resultou também demonstrado que, além de ter incumprido sucessivos acordos de pagamento, a Requerida, em vez de amortizar ao menos uma parte da dívida, preferiu protelar o incumprimento através do envio de advogados do Brasil a Portugal, custeando os respectivos honorários, viagens e estadias em hotéis de cinco estrelas, o que claramente revela que não tem a Requerida qualquer intenção de vir a regularizar o seu débito para com os Requerentes.
Além do que,
3.ª Tendo sido declarado caducado o Arresto decretado no processo n.º 000/08.0YXLSB-A, da 3.ª Secção do 9.º Juízo Cível de Lisboa, poderá, em caso de improcedência do recurso interposto pelos Requerentes da decisão de caducidade, vir a perder-se definitivamente a única garantia patrimonial por força da qual poderão vir a obter o pagamento do seu crédito.
4.ª A d. Sentença recorrida enferma, assim, de violação da norma do art. 408.º, n.º 1 do CPC, já que, em face dos factos considerados provados, deveria o Tribunal «a quo», segundo a correcta interpretação da mesma norma, ter considerado demonstrado o justo receio da perda da garantia patrimonial do crédito dos Requerentes.
Por conseguinte,
5.ª A d. Sentença recorrida enferma também de violação da norma do art. 655.º, n.º 1 do CPC, já que, segundo o entendimento vertido pelo Tribunal «a quo» na mesma decisão, a prova do justificado receio da perda da garantia patrimonial do crédito dos Requerentes exigiria a criação no espírito do julgador de uma absoluta certeza de não pretender a Requerida pagar a sua dívida para com aqueles, quando, de acordo com a correcta interpretação da citada norma, bastará que os Requerentes demonstrem uma suficiente probabilidade ou verosimilhança de, segundo a experiência comum, não vir a Requerida a regularizar o seu débito.
Até porque,
6.ª Por virtude das restrições impostas pelo sigilo bancário e também do facto de as Conservatórias do Registo Predial não efectuarem, a pedido dos interessados, pesquisas de imóveis por titular activo, não têm os Requerentes possibilidade de obter informações sobre a existência de aplicações financeiras sobre outros imóveis de que a Requerida fosse titular.”
Verificados que estão os pressupostos de actuação deste Tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.
                                               *
II – AS QUESTÕES DO RECURSO
À tramitação e julgamento do presente recurso é aplicável o novo regime processual introduzido pelo Dec-Lei nº 303/2007, de 24-08, porquanto respeita a acção instaurada após 01-01-2008 (cfr. art 12º do mesmo diploma).
Tendo presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts 684º nº3 e 685º-A nºs 1 e 2 do CPC), que nos recursos se apreciam questões e não razões e que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, são as seguintes as questões suscitadas no recurso:
1ª -  impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
2ª- existência dos pressupostos legais para o decretamento do arresto.
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III – FUNDAMENTOS DE FACTO
Vem dada como indiciariamente provada a seguinte factualidade:
“1 - Tendo-se vencido a renda referente ao mês de Julho de 2007 não procedeu a Requerida ao seu pagamento nem à realização de qualquer depósito liberatório (art. 10° do requerimento inicial).
2- Permanecem em dívida, relativamente ao arrendamento do rés-do-chão esquerdo do prédio sito, em Lisboa, as rendas referentes aos seguintes meses:
1. Julho de 2007, no valor de € 748,20;
2.Agosto de 2007, no valor de € 748,20;
3.Setembro de 2007, no valor de € 748.20;
4.Outubro de 2007, no valor de € 748.20:
5.Novembro de 2007, no valor de € 748,20;
6.Dezembro de 2007, no valor de € 748.20;
7.Janeiro de 2008, no valor de € 748,20;
8.Fevereiro de 2008, no valor de € 748,20;
9.Março de 2008, no valor de € 748.20;
10.Abril de 2008, no valor de € 748,20;
11.Maio de 2008, no valor de € 748,20;
12.Junho de 2008, no valor de € 748,20;
13.Julho de 2008, no valor de € 748,20; (art. 11 º do requerimento inicial).
3 - Encontram-se também em dívida, relativamente ao arrendamento do 2.° andar esquerdo do prédio supra identificado, as rendas referentes aos seguintes meses:
1.Julho de 2007, no valor de € 748,20;
2.Agosto de 2007, no valor de € 748,20;
3.Setembro de 2007, no valor de € 748,20;
4.Outubro de 2007, no valor de € 748,20;
5.Novembro de 2007, no valor de € 748.20;
6.Dezembro de 2007, no valor de € 748.20;
7.Janeiro de 2008, no valor de € 748.20;
8.Fevereiro de 2008, no valor de € 748.20;
9.Março de 2008, no valor de € 748.20;
10. Abril de 2008, no valor de € 748.20;
11. Maio de 2008, no valor de € 748.20;
12.Junho de 2008, no valor de € 748,20;
13.Julho de 2008, no valor de € 748.20 (art. 120 do requerimento inicial).
4 - Há já alguns anos a Requerida deixou de ter residência em Portugal, tendo ido residir para o Brasil (art. 140 do requerimento inicial).
5 - No entanto, como se deslocava frequentemente a Portugal, nomeadamente para aqui passar alguns períodos de férias, a Requerida manteve o arrendamento dos apartamentos referidos (art. 15° do requerimento inicial).
6 - Como a Requerida mantém um imóvel no Algarve (o prédio cujo o arresto se requer) e dado que se encontrava ausente de Portugal por longas temporadas, entregou a gestão dos seus assuntos patrimoniais pendentes em Portugal ao Sr. José G., Técnico Oficial de contas, com domicílio profissional em Faro (art. 16° do requerimento inicial).
7 - Como tal, era o referido Sr. José G. que, em representação da Requerida, processava o pagamento, aos senhorios, das rendas relativas aos apartamentos supra referidos (art. 17° do requerimento inicial).
8 - Entretanto, como deixou de ter condições para continuar a pagar a renda dos dois apartamentos supra referidos, e também porque já não tinha intenções de voltar a Portugal, a Requerida encarregou o Sr. José G. a de entregar à senhoria a chave dos mesmos apartamentos (art. 22° do requerimento inicial).
9 - Entrega essa que teve lugar durante o mês de Junho de 2008 (art. 23° do requerimento inicial).
10 - Propôs o Sr. G., em nome da Requerida, a redução da dívida para a importância de € 16.000,00, a ser paga em quatro prestações mensais, iguais e sucessivas de € 4.000.00 cada (art. 24° do requerimento inicial).
11 - Proposta essa que, numa derradeira tentativa para ao menos receberem parte das rendas em dívida, a senhoria veio a aceitar (art. 25° do requerimento inicial).
12 – Todavia, mais uma vez não efectuou a Requerida qualquer pagamento, tendo ficado sem efeito o acordo para pagamento supra referido (art. 26° do requerimento inicial).
13 - Por contrato celebrado por escrito em 1 de Fevereiro de 2001, tomou a Requerida de arrendamento, para habitação, as fracções correspondentes ao rés-do-chão e 2º andar do prédio sito na Rua ..., , em Lisboa renda mensal de € 748,20 – cfr. doc. de fls. 36-40.
14 - Consta do contrato aludido em 13. que os arrendamentos foram celebrados pelo período de cinco anos, com início em 1 de Fevereiro de 2001, renovando-se, no fim do prazo convencionado, por períodos de um ano, enquanto não fossem denunciados por nenhum dos contratantes – cfr. doc. de fls. 36-40.
15 - Foi acordada a renda mensal de € 748,20, cujo pagamento se vencia no primeiro dia útil do mês anterior ao qual respeitasse, em casa de um dos senhorios ou no local e a quem estes, por escrito, indicassem ao senhorio – cfr. doc. de fls. 36-40.
16 - Élia T. intentou contra a Requerida a acção de condenação para cobrança das rendas em dívida, que corre termos na 3ª Secção do 9º Juízo Cível de Lisboa, sob o n.º .../08.0YXLSB – cfr. doc. de fls. 46-54.
17 - Élia T.  faleceu em 11.01.2010 – cfr. doc. de fls. 83-86.
18 -Por escritura pública celebrada em 21.01.2010 foram os ora Requerentes habilitados como sucessores da falecida Élia T. – cfr. doc. de fls. 83-86.”
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IV – APRECIAÇÃO
Conforme resulta das transcritas conclusões dos recorrentes, estes pretendem, em primeira linha, atacar a decisão de facto quanto ao seu acerto; e em segunda, quanto à sua fundamentação.
Começa o A./recorrente por se insurgir contra a decisão da matéria de facto, impugnando-a, aduzindo para tanto que, em face do depoimento da testemunha José  , deve ser dado como provado o facto alegado no art 43º do requerimento inicial (a Requerida não tem qualquer património para além do imóvel objecto do presente arresto) e em face dos depoimentos das testemunhas José  e António  resultou também demonstrado que, além de ter incumprido sucessivos acordos de pagamento, a Requerida, em vez de amortizar ao menos uma parte da dívida, preferiu protelar o incumprimento através do envio de advogados do Brasil a Portugal, custeando os respectivos honorários, viagens e estadias em hotéis de cinco estrelas.
Mas a impugnação da decisão de facto fica prejudicada, porque não serão necessárias longas considerações para se concluir que ressalta claramente dos autos que se mostram reunidos os pressupostos legais indispensáveis ao decretamento da providência cautelar de arresto requerida.
Como é sabido, a providência cautelar de arresto - art 406º do CPC -, exige, para ser decretada, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) probabilidade séria da existência do direito de crédito invocado pelo requerente;
b) justo receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito.
O que se procura evitar com o decretamento do arresto é que o facto receado - a perda da garantia patrimonial do crédito -, possa ocorrer caso se não decrete a medida e se evite essa perda, incidente em bens do próprio devedor, o que se consegue com a apreensão desses mesmos bens.
Daí que este instituto do arresto se encontre integrado num procedimento cautelar, cuja alegação e prova serão necessariamente sumários e cujos requisitos serão apenas indiciadores, apontando quer para uma provável existência do crédito e justificado receio, o que se reconduz a uma aparência do direito e a um periculum in mora.
Quanto à probabilidade da existência do crédito, a sentença de que ora se recorre deu-a como provada, face à prova produzida, restando, assim, averiguar face à prova produzida, se se considera verificado o requisito do justificado receio.
Sobre a questão do justo receio, considera Lebre de Freitas (Código Processo Civil Anotado, Vol 2º, pag 119) “que qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio é concretamente invocável pelo credor, constituindo o periculum in mora”, concluindo ainda que, genericamente, existe também desde que se esteja perante uma actuação do devedor “que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a perder a garantia patrimonial do seu crédito”.
Trata-se, em todo o caso, de um juízo provisório e não juízo de certeza, bastando, por isso, que se mostre razoavelmente fundado esse pressuposto numa averiguação e juízo perfunctório dos factos alegados.
No caso dos autos, estamos perante sucessivos incumprimentos da requerida para com os requerentes, cada um no valor € 748,20, que se têm sucedido em largo lapso temporal e cujo passivo acumulado ascende já à quantia de mais de dezasseis mil euros. E, como deixou de ter condições para continuar a pagar a renda dos dois apartamentos e também porque já não tinha intenções de voltar a Portugal (tendo ido residir para o Brasil há já alguns anos), a requerida, através do seu procurador, entregou a chave dos mesmos apartamentos, em Junho de 2008. A requerida assumiu o compromisso de efectuar o pagamento em prestações mensais da importância de € 16.000,00 ( já reduzida, consoante acordo com a senhoria), mas nunca o fez.
A requerida é proprietária de um prédio urbano e vendido ou dissipado esse imóvel, o que pode acontecer antes de estar decida a acção de incumprimento contratual, os requerentes ficam completamente privados de qualquer garantia patrimonial para o seu crédito.
Daí que, atenta as regras da experiência, o sentir do comum e vulgar cidadão, numa perspectiva objectiva do problema, acompanhamos o receio dos requerentes, caso não se decrete o arresto, que a requerida possa alienar o imóvel, colocando em causa a satisfação do seu crédito.
Mostra-se, portanto, justificado o receio dos credores.
Provada a existência do crédito e o fundado receio de os requerentes perderem a garantia patrimonial do seu crédito, há que decretar o arresto sobre o imóvel pertencente à requerida.
O que afecta, irremediavelmente, a validade da decisão recorrida, que aqui tem, forçosamente, que ser revogada.
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V – DECISÃO
 Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, determinando-se o arresto no bem indicado pelos requerentes.

Sem custas.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora) 
                     
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2011

ANA GRÁCIO  ( Relatora )                                                    
PAULO RIJO
AFONSO HENRIQUE