CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
RESTITUIÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário

I. A restituição, pelo mutuário, da quantia mutuada, opera, no caso de nulidade do contrato, por actuação da declaração dessa nulidade e não do enriquecimento sem causa.
II. Como o sentido da decisão depende dos factos adquiridos para o processo, na falta de prova, pelo autor, da conclusão do contrato de mútuo e de entrega da quantia mutuada, deve proferir-se uma decisão contra ele, parte onerada com essa prova.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.
“A” e cônjuge, “B”, intentaram no 3º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, contra “C” e “D” – Instalações Electromecânicas Lda., acção declarativa de condenação, com processo comum, ordinário pelo valor, pedindo a condenação dos últimos a pagar-lhes a quantia de € 43 000,00, acrescidos de juro de mora, à taxa legal, vencidos, no valor de € 8 058,09, e vincendos, até pagamento.
Fundamentaram a sua pretensão no facto de, em meados de 1998, haverem emprestado ao réu “C”, € 50 000,00, que os réus ficaram de liquidar faseadamente, tendo liquidado algumas prestações, devendo-lhes, no dia 19 de Novembro de 2003, a quantia de € 43 0000,00, tendo-lhes o réu “C” dado, como garantia, um cheque, da “D” – Instalações Electromecânicas Lda., de que aquele réu e os filhos são sócios gerentes, com aquele valor, e de os réus terem deixado, por completo, de fazer qualquer pagamento.
Os réus defenderam-se alegando que os autores nunca lhes emprestaram qualquer quantia e que aquele cheque foi indevidamente emitido pelos gerentes da ré “D” - Instalações Electromecânicas Lda., que só se constituiu no dia 12 de Julho de 1999.
      Instruída, discutida e julgada a causa, a sentença final dela julgou a acção improcedente.
É esta sentença que os autores impugnam por via do recurso, no qual pedem a sua revogação e, implicitamente, a sua substituição por acórdão que julgue a acção procedente.
Para inculcar a falta de bondade da sentença apelada, os recorrentes extraíram da sua alegação, estas conclusões:
I. Conforme foi provado em audiência de discussão e julgamento o Apelado “C” recorria com frequência ao Apelante “A” para lhe pedir dinheiro, tendo sido referido pelas testemunhas “E” e “F” que o Apelante “A” emprestava o dinheiro ao Apelado “C” mediante um “acordo de cavalheiros”, ou seja, entregava o valor que lhe era solicitado e era apenas passado um “cheque garantia”, o qual não era metido ao Banco;
II- Considerou o Tribunal “a quo” que, tratando-se de um contrato de mútuo de valor superior a 20.000,00€ (vinte mil euros) só seria válido se celebrado por escritura pública (redacção conforme o Decreto-Lei 343/98, de 06 de Novembro), pelo que o mútuo seria nulo por não ter seguido a formalidade exigida;
III- Ora, não pode assistir qualquer razão ao Tribunal “a quo”,a mais que não seja, porque a haver nulidade do mútuo “…deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (artigo 289º, nº1 do Código Civil);
IV- Tal como defendido por Vaz Serra, (RLJ. 111º -148), anulado o negócio, devem as partes ser restituídas, à situação anterior a ele, restituindo uma à outra as prestações feitas em execução do negócio anulado, o que é ainda mais verdade para o negócio nulo, como seria o caso dos autos;
V- De referir que o mutuário não deve restituir apenas a quantia mutuada através do negócio nulo, mas também os frutos produzidos até ao termo da posse, podendo ter de pagar juros (RLJ, 107º -147);
VI- De referir que sendo o negócio nulo estaríamos sempre perante um enriquecimento sem causa, porquanto existe um enriquecimento, um empobrecimento, um nexo causal entre ambos, e a falta de causa jurídica justificativa para a deslocação patrimonial verificada, a qual se consubstancia na inexistência de uma relação ou de um facto que legitime o enriquecimento ou o empobrecimento, como é o caso dos autos;
VII- Os ora Apelantes (empobrecidos), mutuaram aos Apelados (enriquecidos), a quantia de 43.000,00€, cuja deslocação patrimonial não tem inerente qualquer causa jurídica justificativa, concluindo-se pela aplicação do nº1 do artigo 473º do Código Civil;
VIII-O mútuo em questão enquadra-se na categoria de Enriquecimento Sem Causa por Prestação, assim tipificada pelo Prof. Menezes Leitão, havendo lugar á restituição do valor mutuado de acordo com o com o nº 2 do artigo 473º do Código Civil.
Não foi oferecida resposta.
2. Factos provados.
O Tribunal de que provém o recurso julgou provados os factos seguintes:
2.1. O Autor, “A”, e familiar, por afinidade, do Réu “C”.
2.2. 1º Réu entregou ao Autor o cheque nº ..., sacado sobre o BPI, no valor de €43.000,00, sendo sacadora a aqui 2ª Ré, na pessoa dos seus gerentes, impresso este preenchido à ordem da A de “B” no ano de 2003, não datado quanto ao mês e ao dia – fls. 8.
2.3. O 1º Réu recorria com frequência ao Autor para pedir dinheiro.
2.4. A segunda Ré constituiu-se como sociedade em 12/07/1999 – certidão de fls. 61 e ss.
3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
Nestas condições, tendo conta a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo da decisão impugnada e das conclusões dos recorrentes, a questão concreta controversa que o acórdão deve resolver é e só esta: se aquela decisão deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção procedente.
A resolução deste problema reclama que se proceda à qualificação do acordo de vontades alegado pelos recorrentes a título de causa petendi, a determinação da consequência jurídica que se deve assinalar à sua invalidade e, por último, a ponderação da distribuição, na espécie concreta, do encargo da prova.
      Não deve oferecida qualquer dúvida, por mais leve que seja, para a conclusão de que os factos invocados pelos recorrentes a título de causa petendi são subsumíveis ao tipo contratual do mútuo (artº 1142 do Código Civil)[2]. Desde que, de harmonia com a alegação dos recorrentes, estes entregaram ao recorrido coisas fungíveis – uma dada quantidade de espécies monetárias, rectior, dinheiro – ficando o último – e outro - adstritos ao dever de as restituir, é indiscutível que concluíram entre si um contrato de mútuo.
      O mútuo tem sido considerado um contrato real quoad constitutionem, portanto, como um contrato cuja verificação depende da tradição da coisa que constitui o seu objecto mediato[3]. Trata-se de uma concepção em clara regressão: de todo o modo, não haverá dificuldades em admitir, ao lado do mútuo típico real – que é aquele que surge regulado no Código Civil - mútuos meramente consensuais[4].
      No caso, porém, deve assentar-se na natureza real quoad constitutionem do contrato de mútuo, devendo, por isso, exigir-se para a sua verificação da traditio – e a acceptio – da coisa mutuada.
      Relativamente à sua formação, o contrato de mútuo está sujeito às regras gerais (artº 224 e ss do Código Civil). Como, porém, o contrato é real quoad constitutionem, é necessária a tradição da quantia mutuada para o mutuário para que se considere efectivamente constituído: ainda que as partes tenham acordado sobre todas as condições do contrato, antes da traditio, não há mútuo.
      Celebrado o mútuo e entregue a coisa ao mutuário, este torna-se proprietário dela, ficando em contrapartida adstrito ao dever de pagar a retribuição – juros - quando, a ela haja lugar, e a restituir o tantundem, isto é, a coisa do mesmo género, quantidade e qualidade.
      O mútuo é um negócio consensual ou formal, conforme o seu valor, sendo exigível escritura pública ou documento particular autenticado se exceder 25 000,00€ e documento assinado pelo mutuário se exceder 2 500,00€ (artº 1143 do Código Civil, na redacção do DL nº 116/2008, de 24 de Julho). Todavia, à data em que se verificaram os factos invocados pelos recorrentes a título de causa petendi – meados do ano de 1998 e não 2001 como pode ler-se na sentença recorrida – era exigível escritura pública se o seu valor excedesse 200 000$00 ou documento assinado pelo mutuário se esse valor fosse superior a 50 000$00 (artº 1143 do Código Civil, na redacção do artº 2º do DL nº 163/95, de 13 de Julho).
      Trata-se, nitidamente, de uma formalidade ad substantiam cuja inobservância determina a nulidade do contrato (artº 220 do Código Civil).
      As razões justificativas do carácter formal do contrato – radicadas justamente na extrema falibilidade da prova testemunhal – levariam, em bom rigor, a impedir a prova da entrega ou da disponibilização do dinheiro através de testemunhas e a sua restituição ao abrigo da nulidade do contrato. Todavia, concebe-se sem dificuldade que a lei considere bastante a sanção da nulidade do contrato – sem prejuízo da prova testemunhal daquela entrega – para garantir a observância da forma que para ele prescreve.
      Na espécie sujeita, dado que a conclusão do contrato, de harmonia com a alegação mesma dos recorrentes, não foi documentada em escritura pública, e, portanto, não foi observada a forma exigida por lei, – a provar-se a causa de pedir apresentada pelos apelantes – é irremissível a conclusão da sua nulidade e a constituição do mutuário na obrigação de restituição da quantia mutuada.
      Mas sempre restaria, em todo o caso, determinar se essa restituição deveria operar com fundamento na nulidade do contrato – como parece sugerir a sentença apelada - ou antes com base no enriquecimento sine causa, como convictamente sustentam os recorrentes na sua alegação.
      A questão não é meramente académica ou dogmática visto que da sua resolução, à luz de um ou de outro daqueles institutos, derivam, designadamente para o âmbito da obrigação de restituição, consequências jurídicas diferenciadas.
O problema pode, em síntese conveniente, detalhar-se do modo seguinte.
Ao tribunal apenas é lícito servir-se dos factos alegado pelas partes (artº 664, 2ª parte, do CPC). Contudo, a tarefa de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, decorre, sob o signo da liberdade: ao juiz é livre a qualificação jurídica dos factos assentes por meios processualmente idóneos e a sua subsunção ao regime legal (artº 664, proémio, do CPC).
Tendo sido formulado o pedido de restituição, o tribunal investiga, com a liberdade assinalada, a existência do direito objectivo que o justifica, de julgar o seu mérito com base na interpretação e aplicação das normas jurídicas que entenda enquadrarem a situação em litígio, com inteira independência da qualificação jurídica efectuada pelas partes.
A obrigação de restituição fundada na invalidade do negócio jurídico tem um conteúdo diverso a obrigação de restituição coonestada no enriquecimento sem causa.
Desde logo porque, tendo o acto sido praticada em contrariedade à lei, esta procura destruir todos os seus efeitos directos, visando a restituição repor o status quo ante, ou seja a situação exactamente anterior à da prática do acto viciado, de modo a reintegrar a ordem jurídica violada. Daí a eficácia retroactiva ex tunc da nulidade, medindo-se a restituição pela prestação realizada, independentemente do destino que ela veio a ter no património de que a recebeu, da maior ou menor vantagem por ele obtida (artº 298 nº 1 do Código Civil).
Não assim no enriquecimento sine causa. Neste a obrigação de restituição é representada não por aquilo que saiu do património do empobrecido - mas sim pelo que está a mais na esfera juridico-patrimonial do enriquecido. E o que está a mais não é objecto da deslocação patrimonial em si, mas o enriquecimento que provocou no beneficiário dela. Isto explica a razão pela qual a restituição opera ex nunc, sem efeito retroactivo, procedendo-se a uma avaliação dinamicamente actualista do enriquecimento, que leva em conta as alterações verificadas até ao momento do cálculo da obrigação de restituir.
A confusão entre a restituição fundada na nulidade do negócio jurídico e a restituição derivada do enriquecimento sem causa monta à vigência do Código de Seabra[5].
Perante a divulgação de opiniões, apoiadas na letra do artº 1534 - O mútuo excedente a... só pode ser provado por documento assinado pelo próprio mutuário e reconhecido como autêntico e, se exceder a... só pode ser provado por escritura pública - no sentido de que não poderia ser invocado um contrato de mútuo inexistente por falta de forma, para fundar o pedido de restituição das prestações realizadas, perdendo cada um deles o que tivesse entregado, procurou certa corrente jurisprudencial, reagir às injustiças a que tal entendimento conduzia, utilizando o princípio, até então quase ignorado, do não-locupletamento à custa alheia, cuja consagração se fazia derivar no disposto no artº 697 do Código Civil de 1867, que dispunha que, rescincido o contrato por incapacidade, erro ou coacção, haveria cada um dos contraentes o que houvesse prestado, ou o seu valor se a restituição em espécie não fosse possível[6].
Este amparo da posição do mutuante nos mútuos nulos por falta de forma, apesar de bem-intencionada, contrariava claramente as definições doutrinais nacionais já existentes na altura e o conteúdo que as legislações estrangeiras assinalavam instituto do enriquecimento sem causa. Este tinha natureza subsidiária e não uma função de correcção de situações de injustiça e a obrigação de restituição do artº 697 nada tinha a ver com a obrigação derivada do enriquecimento sem causa[7].
      Daí que, outra corrente jurisprudencial mais esclarecida, já dominante no período que antecedeu a entrada em vigor do Código Civil de 1966, influenciada pela precisão de conceitos que se vinha efectuando na elaboração daquele diploma e pelas posições doutrinais, determinasse a restituição daquilo que tinha sido prestado na sequência de mútuo nulo por falta de forma, não como consequência do princípio do enriquecimento sem causa, mas como decorrência na nulidade do negócio, conforma estatuía o artº 697 do Código de Seabra, que deixou de ser associado àquele princípio, passando também a abranger a nulidade por inobservância da forma[8].
      No anteprojecto do Código Civil de 1966, relativo ao negócio jurídico, da autoria de Rui Alarcão, propôs-se a seguinte redacção, no artº 57: 1. A nulidade e a anulação dum negócio jurídico têm efeito retroactivo, devendo restituir-se o que tiver sido prestado, ou o seu valor, se a restituição em espécie não for possível. 2. A obrigação de restituição segue as normas relativas ao enriquecimento sem causa.[9]
      O autor do anteprojecto, seguindo a opinião de Vaz Serra, que defendia que, sendo a restituição provocada pela nulidade uma repetição do indevido devia seguir as regras do enriquecimento sem causa, numa operação legislativa tecnicamente correcta remeteu o funcionamento da restituição decorrente da nulidade do negócio, para os mecanismos do enriquecimento sem causa, ficando claro que a aquela restituição não derivava deste instituto, sendo apenas remetida para ele, por opção legislativa.
      Com esta solução tinha-se em conta que, normalmente, a culpa da inobservância da forma pertence a ambos os outorgantes - o que já efectuou a prestação a restituir e o que a recebeu - e que vida do contrato nulo até à declaração de nulidade não deve deixar de ser considerada.
      A solução manteve-se na 1ª revisão Ministerial, mas não passou na 2ª, ocorrência a que não terá sida estranha o pensamento de Antunes Varela, que eliminou a remissão para as regras do enriquecimento sem causa no funcionamento da restituição das prestações efectuadas no cumprimento do negócio nulo, e aditou, significativamente, o termo tudo na redacção do nº 1 do artigo projectado, versão que foi acolhida na actual redacção do artº 289 do Código Civil.
      Deste modo, atento a carácter subsidiário impresso ao instituto do enriquecimento sem causa e a ausência de remissão para as regras deste, deve a restituição operar segundos a regra específica contida no artº 289 do Código Civil, restituindo-se tudo o que tiver sido prestado, independentemente do destino que a prestação efectuada veio a ter no património de quem a recebeu[10].
      Castro Mendes, veio, contudo, retomar de novo a aplicação das regras do enriquecimento sem causa, argumentando que, sendo o contrato de mútuo um contrato real, em sentido romano, a entrega da quantia mutuada faz parte dos actos de celebração do contrato e não a sua execução pelo que, referindo-se a obrigação de restituição do artº 289 do CC apenas aos actos de cumprimento do contrato, aquela só poderá constituir-se a abrigo do instituto residual do enriquecimento sem causa[11].
      Como já se notou, como claro sintoma de alguma inércia legislativa, sem que nisso se veja algum interesse digno de tutela, o contrato de mútuo continua a ser caracterizado, à semelhança de outras legislações europeias, seguindo a vetusta tradição romanista, como um negócio real quoad constitutionem, exigindo-se, para a sua conclusão, além do consenso das partes, a entrega duma coisa[12].
      Isso não significa, todavia, que a entrega possa ser considerada um acto de forma do contrato de mútuo, até porque aquela ocorre posteriormente ao acordo das partes; a entrega é aqui parte integrante do próprio regulamento de interesses que integra o conteúdo do contrato de mútuo, constituindo uma mera antecipação do seu momento executivo, que assegura a concretização do negócio previamente acordado, tornando-o perfeito[13].
      Ora, sendo a lei terminante em estatuir que, decretada a nulidade, deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado, essa obrigação de restituição abrange também necessariamente a coisa entregue na conclusão do contrato de mútuo, dado que a entrega não deixa de ter a sua causa nesse contrato (artº 298 nº 1 do Código Civil).
      Daí vem que o direito à restituição, pelo mutuário, das quantias mutuadas não teria apoio no instituto do enriquecimento sem causa, mas sim na declaração de nulidade do contrato de mútuo, que fará regressar à esfera jurídico-patrimonial daquele tudo o que prestou à recorrente e ao co-réu.
      E essa declaração não obstaria à constituição do mutuário na obrigação acessória de pagamento de juros.
      Os juros revestem a natureza de fruto civil, visto que são interesses que, se prejuízo do capital, este produz periodicamente em consequência de certa relação jurídica (artºs 212 nºs 1 e 2, in fine, do Código Civil).
      À obrigação de restituição da quantia mutuada deveria, por isso, acrescer a de restituição dos juros legais, dada a sua natureza de fruto civil (artº 289 nº 3 do Código Civil)[14].
      Porém, a obrigação de restituição dos juros só existe se o mutuário estiver de má-fé ou a partir do momento em que cessou a boa-fé (artºs 1270 e 2171, ex-vi artº 298 nº 3 do Código Civil).
      O mutuário, por virtude da tradição material - entrega - da quantia pecuniária, objecto mediato do ajuizado contrato de mútuo, a posse sobre ela (artº 1262 b) do Código Civil).
      A posse do mutuário será de boa ou má-fé consoante, ao adquiri-la, tivesse ou não conhecimento que lesava o direito de outrem (artº 1260 nº 1 do Código Civil).
      A posse da quantia mutuada, decorrente do mencionado contrato de mútuo, dada a nulidade deste por falta de observância da forma legal, é não titulada (artº 1259 nº 1, a contrario, do Código Civil).
      A posse não titulada presume-se de má fé (artº 1260, in fine, do Código Civil).
      Se o mutuário não ilidir, como lhe cabe, uma tal presunção, cabe inferir que a posse da quantia mutuada é de má-fé (artºs 342 nº 1, 344 e 350 nº 1 do Código Civil).
      Haveria, assim, fundamento para concluir que o mutuário se encontraria adstrito à obrigação de restituição dos frutos civis – juros - produzidos pela quantia pecuniária traditada, desde a data dessa tradição (artº 1271 do Código Civil).
Seja como for, exacto é, decerto, que o Código Civil ao fixar o princípio geral da matéria do ónus da prova apelou, patentemente, à natureza funcional dos factos perante o direito do autor.
Assim, ao autor cabe a prova, não de todos os factos que interessem à existência actual do direito alegado – mas somente dos factos constitutivos dele; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito, incumbe à parte contrária, aquele contra quem a invocação do direito é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).
Numa questão de facto de que dependa o julgamento, a lei dá sempre a uma das afirmações alternativas que a compõem o carácter privilegiado de ser tomada como base da decisão em dois casos: se for provada em si ou então em caso de dúvida insanável ou irredutível; a afirmação contrária só será tomada em conta se for provada. Assim, numa acção de condenação – como é justamente o caso do recurso – na questão de facto emprestei – não emprestou, a primeira afirmação só é tomada em conta se for provada; a segunda é tomada em conta se for provada e ainda no caso de dúvida irredutível.
      De maneira que se o autor se propõe valer declarar e valer um direito à restituição de uma quantia pecuniária resultante de um contrato de mútuo, a aplicação daquele princípio resolve-se nestas regras: ao primeiro impõe-se o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação – a celebração do contrato entre as partes e a inclusão da prestação exigida entre os efeitos do contrato a cargo do devedor; o segundo está apenas adstrito a um simples ónus da contraprova, de tornar incerto o facto alegado pelo autor.
      E se esse contrato tiver – como é o nosso caso - a natureza de contrato real quoad constitutionem, então o autor deverá ainda demonstrar este facto relevantíssimo: a entrega da coisa objecto mediato dele, no mútuo, a entrega da coisa mutuada.
      E o caso não muda de figura se a pretensão de restituição em vez de assentar na invalidade do contrato, se fundamentar no enriquecimento sine causa.
      É acorde e patente, em face do texto da lei, que são exigíveis três requisitos para a verificação do enriquecimento sem causa: um enriquecimento; um empobrecimento ou dano; a falta de causa desse enriquecimento. A estes pressupostos pode acrescentar-se um outro: a existência de um certo nexo entre o enriquecimento e o dano, já que se exige que o enriquecimento se verifique à custa de outrem (artº 473 nº 1 do Código Civil).
      Por aplicação daqueles princípios, é ao autor que cumpre fazer a prova de qualquer destes pressupostos (artº 342 nº 1 do Código Civil). Assim, por exemplo, se o enriquecimento se tiver dado por transferência – i.e., quando a deslocação patrimonial de base se traduza na passagem de um direito de um património para outro – é ao autor que compete, desde logo, fazer a prova dessa deslocação. No caso do recurso são, portanto, os autores que se encontram vulnerado com o ónus de demonstrar a entrega do dinheiro cuja restituição reclamam dos recorridos.
      Como é evidente, o sentido da decisão – da acção e do recurso – depende dos factos fornecidos pelo processo, com observância do princípio da aquisição processual e da ponderação do cumprimento do ónus da prova (artºs 515 e 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil). Assim, se não estiverem adquiridos para o processo todos os factos que conduzam à aplicação da norma que faculta ao autor o direito alegado, a única solução possível é proferir uma decisão contra o demandante, parte onerada com a prova.
      Pois bem: a leitura dos factos que o tribunal de que provém o recurso julgou provados, mostra que entre eles não figuram os relativos à conclusão do contrato de mútuo alegado pelos recorrentes – desde logo o facto relativo à entrega pelos recorrentes do dinheiro mutuado a qualquer dos recorridos.    
      Realmente, de harmonia com o decisão da matéria de facto do tribunal a quo – a que não é sequer apontado qualquer erro de julgamento e que não vem impugnada no recurso – apenas se demonstrou a existência de uma relação de afinidade entre o autor e réu “C”, a entrega, por este réu, de um cheque, datado do ano de 2003, sem indicação do mês e do dia, sacado pela recorrida “D” – Instalações Electromecânicas Lda., a data da celebração do contrato de sociedade relativo a esta última, e que o réu “C” recorria com frequência ao autor para pedir dinheiro. Nada mais.
      É, portanto, patente a ausência dos factos relativos à conclusão do contrato de mútuo alegado pelos recorrentes, como causa de pedir e de que fazem derivar o direito à prestação cuja realização querem ver judicialmente imposta aos recorridos.
      E, na falta de prova daqueles factos, há que recorrer à ultima ratio de julgamento representada pelo ónus da prova, e, em consequência, decidir contra os recorrentes a questão correspondente.
      Nestas condições, o recurso não tem bom fundamento. Cumpre julgá-lo improcedente.
      O discurso argumentativo do acórdão, de que se extrai a improcedência do recurso, pode cristalizar-se nesta proposição simples: se não estiverem adquiridos para o processo todos os factos que conduzem à aplicação da norma jurídica de que decorre o direito alegado pelo autor, parte onerada com a prova, há que proferir uma decisão contra ele.
      As custas do recurso serão satisfeitas pelos sucumbentes: os autores (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2011

Henrique Antunes
Ondina Carmo Alves
Maria da Luz Borrero Figueiredo
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[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] João Redinha, Contrato de Mútuo, Direito das Obrigações, 3º volume, sob a coordenação de Menezes Cordeiro, AAFDL, 1991, págs. 187 a 190.
[3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 762.
[4] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 527 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo. Contratos de Troca, Almeida Coimbra, pág. 156, Vaz Serra, RLJ, Ano 93, pág. 65 e José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 497 e 498. A figura dos contratos reais é um efeito da inércia, um resquício da tradição romanista que parece não desempenhar hoje, designadamente quanto ao mútuo, qualquer função útil, i.e., não corresponde a qualquer interesse relevante, específico daquele tipo negocial. Neste sentido, Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra, 1970, pág. 11 a 13. Note-se, por último, que nada impede que o mútuo seja efectuado em moeda escritural, e não de moeda legal – notas, moedas. É o que, em regra, ocorre, por exemplo, com o mútuo (mercantil) bancário em que, como é da experiência comum, o banco só raramente entrega dinheiro ao cliente – entrega material – limitando-se a creditar-lhe a soma mutuada na respectiva conta bancária – entrega electrónica ou simbólica.
[5] Antunes Varela, RLJ Ano 102, pág. 250, Vaz Serra, Enriquecimento sem causa, 181, Alberto dos Reis, RLJ Ano 75, pág.306 e Diogo Leite de Campos, A Subsidiariedade da Obrigação de Restituir o Enriquecimento, Almedina, Coimbra, 2003 (Reimpressão), pág. 180.
[6] P. Pitta, Prova do Mútuo, Ver. Registos e Notariado, nº 7, 65 e 101 e Leite de Campos, cit., pág. 184 nota (2).
[7] Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, IV, pág. 731, Jaime de Gouveia, Responsabilidade Contratual, pág. 256, Paulo Cunha, Direito das Obrigações, pág. 168, Manuel Salvador, Os Empréstimos Formais Não Titulados e o Não Locupletamento, Justiça Portuguesa, 1959, pág. 49, Moitinho de Almeida, Do Não-Locupletamento à Custa Alheia, Jornal do Foro, pág. 226 e Salviano de Sousa, O Extracto de Factura e a Acção de Não Locupletamento, Justiça Portuguesa, 64, pág. 81.
[8] Leite de Campos, cit., pág. 189 nota (2).
[9] BMJ nº 105, pág. 276.
[10] Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, 1983, pág. 193. Carlos Alberto da Mota Pinto, Notas sobre Alguns Temas da Doutrina Geral do Negócio Jurídico Segundo o Novo Código Civil, pág. 241 e RGD Civil, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 140, Mário de Brito, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 364, Leite de Campos, A Subsidiariedade, cit., pág. 194, L.P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem causa, pág. 87, Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 266 e Acs. da RE 24.02.77, da RC 06.11.84,da RL 18.2.93 e da RC 22.6.93, CJ I, II, 413, IX, V, 56, XVIII, I, 147 e III, 64 e STJ 24.2.77, 3.2.83, 31.3.93, BMJ 245/279, 324/504 e CJ ( Ac. STJ), I, II, 55, respectivamente.
[11] Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, v GD Civil, AAFDL, vol. II, págs. 309 e 322.
[12]  Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, pág. 11, nota (1); artºs 1142 do Código Civil, 1892 do Código Civil Francês, 607 do BGB, 1753 do Código Civil Espanhol, 1813 do Código Civil Italiano; o artº 312 do Código Civil Suíço considera o mútuo concluído com o simples acordo das partes; assinalando ao contrato de mútuo natureza real quoad constitutionem, cfr. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 275, António Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, vol. II, pág. 60, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pág. 206, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6º ed., pág. 73, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 4º ed., pág. 190, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3º ed., pág. 680, e João Redinha, Contrato de Mútuo, pág. 194, Direito das Obrigações, vol. III, coordenado por Meneses Cordeiro; contra C. Mendes, cit. nota (14).
[13] Emílio Betti, Teoria Geral do Negócio Jurídico, vol. II, pág. 147 e João Redinha, cit., págs. 200 e 201.
[14]  Ac. da RL de 18.02.93, CJ VIII, 93, pág. 147.