CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
APREENSÃO DE VEÍCULO
CONTRA-ORDENAÇÃO RODOVIÁRIA
Sumário

Iº A contra-ordenação prevista no nº7, do art.161, do Código da Estrada, reporta-se, apenas, à condução de veículo com os documentos apreendidos;
IIº Não existe coincidência entra a situação prevista naquele preceito legal, sancionada com coima e as hipóteses de apreensão de veículos previstas no art.162, do mesmo código, já que é possível a condução de um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, sem que aquele esteja, também, apreendido;
IIIº Não existindo coincidência entre aquelas duas situações, em caso de apreensão do veículo, nomeadamente, por falta de seguro de responsabilidade civil ou falta de regularização do registo de propriedade (als.e, e f, do citado art.162), com a designação do arguido, seu adquirente, como fiel depositário, é legítima a ordem de proibição da sua utilização, com a cominação de, não sendo a mesma respeitada, o fazer incorrer no crime de desobediência;

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

            I – Relatório
            1. No processo comum n.º 242/07.8PQLSB, do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, o arguido A...., melhor identificado nos autos, foi condenado, por sentença de 13 de Outubro de 2010, como autor material de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).
 
            2. Inconformado, o arguido recorreu desta sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1 Nos presentes autos, mostra-se o arguido condenado enquanto autor material do crime de desobediência, p.p. pelo art. 348.º n.º 1 alínea b) do C.P., na pena de 60 dias de multa à razão de 5,00;
2 Apesar do arguido haver praticado os factos dado como provados em sede de julgamento, não se conforma com a sua condenação, uma vez que, a mesma, não tem qualquer fundamento de facto nem de direito, mais não sendo do que um clamoroso erro de subsunção dos factos ao direito, motivado por erro notório na apreciação da prova produzida,
3 Pois que, o M. Juiz a quo, apreciando da prova produzida com particular relevância da verificação dos eventos descritos no art. 162.º n.º 2 do C.E., (o decurso do prazo de 123 dias e, a não regularização da situação que esteve na base da apreensão efectuada em 09.01.2007) e, os efeitos da sua verificação com referência à apreensão efectuada em 9 de Janeiro de 2007, (extinção ou não daquela), concluiu e, sic:
"O veículo não deixou de estar apreendido pelo decurso dos 90 dias, nem foi automaticamente, ope legis, declarado perdido a favor do Estado, pelo simples decurso daquele prazo;
Aliás, não se verificou qualquer facto que importasse a extinção da apreensão, nomeadamente a regularização da situação do veículo no que concerne ao seguro entre outros aspectos, o que incumbia ao arguido, não podendo este beneficiar do seu próprio incumprimento"
4 É pois evidente que na apreciação daquele específico segmento da prova, foram violadas as regras de experiência comum, pois que, referindo a lei que "não pode
manter-se", a afirmação do seu contrário por parte de um qualquer interprete é ilógico e contraditório.
5 Sendo ainda ilógico e contraditório afirmar-se que, qualquer sujeito beneficia do seu incumprimento - por via da extinção da apreensão - quando, do seu "incumprimento" resulta a perda da propriedade, pois que, perder-se o mais (a propriedade) em detrimento do menos (a manutenção da apreensão) não beneficia ninguém.
6 Contudo e, apenas para o caso de não ser o supra o douto entendimento de V. Exas, sempre se dirá que o doutamente decidido pelo M. Juiz a quo, deve ser revogado, porquanto se mostra ferido de erro de julgamento, motivado por erro na determinação da norma jurídica aplicável aos factos provados, pois que,
7 Atento ao princípio da fragmentariedade/subsidiariedade do Direito Penal, a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º do C.P., tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência pelos particulares a normas legais ou a ordens e proibições concretas determinadas por órgãos ou agentes da administração pública, nos quais se enquadra a actividade dos agentes fiscalizadores de trânsito, nestas se enquadrando as normas que prevêem a aplicação de uma coima, sanção contra-ordenacional, para a desobediência a ordens ou proibições relativas à legislação rodoviária;
8 Sendo que, a própria evolução da legislação rodoviária sobre a apreensão e imobilização de veículos por violação do tipo de normas supra referidas, permite concluir que existiu um movimento de descriminalização (excepto nos casos em que o legislador expressamente tipificou determinadas actuações como desobediências, e não foram poucas - arts. 138.º, n.º 2, 152.º, n.º 3, 154.º, n.º 2, 155.º, n.º 4, 160.º, n.º 3), das sanções às normas rodoviárias, as quais permitiram a transformação de muitas situações tipificadas como crime de desobediência em contra-ordenações;
9 Donde, abrir a possibilidade de o arguido ser punido com uma pena privativa da liberdade, através da norma penal em branco prevista no art. 348.º, n.º 1, al. b), do C.P. - por meio da cominação do agente fiscalizador do trânsito - numa situação que materialmente não justifica tal compressão dos direitos fundamentais do arguido e para a qual o próprio ordenamento jurídico prevê outras formas de resolver o problema da desconformidade do registo de propriedade automóvel, ausência de seguro de responsabilidade civil, constitui uma clara violação do art. 18.º, n.º 2, da C.R.P.
10 Deste modo, conhecendo-se que, nos termos do art. 162.º n.º 1 alíneas e) e f), do CE, constitui dever do agente fiscalizador apreender o veículo e, implicando tal apreensão, nos termos do art. 161.º n.º 1 alínea e) do CE, o dever de apreensão do documento de identificação do veículo bem como dos demais que à circulação do veículo digam respeito - cfr. o n.º 2 do mesmo preceito,
11 E, ainda, que a lei, art. 161.º n.º 7, do C.E., sem que excepcione (e, onde a lei não o faz não deve o interprete fazê-lo) a conduta de um qualquer fiel depositário estabelece que, quem conduzir veículo automóvel cujo documento de identificação tenha sido apreendido (situação a que se subsume a condução de veículo automóvel apreendido nos termos do art. 162.º, n.º 1, do Código da Estrada, uma vez que a alínea e) e f) do n.º 1 do art. 161.º do Código da Estrada prevê a apreensão dos documentos do veículo quando este for apreendido) é sancionado com uma coima de euros 300 a 1.500;
12 A utilização daquele em 12 de Maio de 2007, fez verificar apenas, o cometimento por parte do arguido da contra-ordenação fixada no art. 161.º n.º 7 do C.E.,
13 Ao assim não haver sido entendido pelo tribunal a quo, errou, na determinação da norma jurídica aplicável aos factos dados como provados e, por erro de julgamento, violou o tanto o disposto no art. 161.º n.º 7 do CE. (norma realmente aplicável) quanto no que se mostra fixado no art. 348.º n.º 1 alínea b) do C.P. (norma que aplicou)
14 Não se invoque sequer que face a argumentação que percorre o Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 5/2009, deverá fazer-se uma interpretação dinâmica e integrada dos art. 348.º, 1, b) C.P. e 161.º, 1, e) e 7 do CE, e, como tal concluir-se pelo cometimento do crime de desobediência simples por parte do depositário que faça circular o veículo apreendido, pois que tal ilação, sendo absurda é ainda reveladora do absoluto desconhecimento do objecto da decisão, uma vez que, tão douto arresto, conheceu apenas, do cometimento ou não do crime de desobediência qualificada, tendo concluído em sentido negativo e, arrematado afirmando que, quanto ao de desobediência simples o cometerá se se mostrarem preenchidos os seus elementos constitutivos, o que equivale a dizer-se que o cometerá se a conduta se subsumir ao disposto no art. 348.º n.º l alínea b) do CP.
15 Porém, e, se ainda assim, todo o supra não for o bastante para convencer V. Exas a revogar o doutamente decidido pelo M. Juiz a quo, ainda se dirá que tal revogação impõe - se porque o decidido está ferido de erro de julgamento por errónea interpretação da norma jurídica que aplicou (348.º n.º 1 alínea b) do CP).
16 Constitui requisito essencial para aplicação do disposto no art. 348.º n.º 1 alínea b) do C.P., a existência, no momento da prática do facto de uma ordem formal e substancialmente legítima.
17 Ora, conhecendo-se que a actividade policial está sujeita ao princípio da legalidade estrita das medidas de polícia, previsto no art. 272.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, os agentes da Polícia de Segurança Pública apenas podem determinar proibições aos cidadãos nas situações enquadradas nas suas competências específicas e nos termos expressamente previstos na lei, (constituindo vício de incompetência dar ordens ou determinar proibições sobre matérias incluídas na competência de outros órgãos públicos e vício de violação de lei dar ordens ou determinar proibições em situações não previstas nas normas legais) mostrando-se as mesmas sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos;
18 conhecendo-se - cfr. art. 161.º n.º 7 do CE - que quem conduzir veículo com o documento apreendido comete uma contra-ordenação, não possui o agente fiscalizador competência funcional para fixar a cominação com a prática do crime de desobediência. Consequentemente a mesma é ilegal (vide para maior conforto da ilação aqui reproduzida o disposto no art. 164.º n.º 5 do CE)
19 Deste modo, ao interpretar o disposto nos termos em que o fez, violou o disposto no art. 9.º do CC, 18.º n.º 1 e 2, 29.º n.º 1, 272.º n.º 1 todos da CRP e, ainda, art. 1.º n.º 1 do CP, tendo aliás encontrado uma interpretação materialmente inconstitucional, o que desde já se invoca, pois não há, no CE, outra qualquer norma que integre a referência a uma disposição legal cominatória, da previsão da alínea a) do n.º 1 do art. 348.º do CP, faltando em consequência aos agentes legitimidade funcional, não podem estes por uma declaração ad hoc proceder à alteração circunstancial dos tipos legais de crime abstractamente fixados.
20 Devendo em consequência o disposto no art. 348.º n.º 1 alínea b) do CP, ser interpretado no sentido de que, por ilegal e inconstitucional, a existência de uma qualquer cominação dos agentes policiais não faz verificar o preenchimento dos seus requisitos legais.
21 Por fim, mas não por último, ainda se dirá que o decidido deve ser revogado por haver erradamente interpretado o disposto no art. 162.º n.º 2 do CE, pois fê-lo no sentido de que, o aí disposto, serve para "alertar o cidadão infractor para o facto de, decorridos 90 dias sobre a apreensão sem que se mostre regularizada a situação que determinou a apreensão do veículo, este poder vir a ser declarado perdido a favor do Estado"
22 Quando de acordo com os melhores cânones interpretativos, tal preceito deve ser interpretado no sentido de que, verificada a condição e o termo nele fixado a apreensão efectuada deixa de produzir efeitos, por extinta.
23 Por último, verifica-se ainda que o tribunal a quo, não procedeu à investigação necessária à determinação da situação pessoal, económica e social do arguido/recorrente, a sentença padece, nesta parte, do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, não tendo em consequência efectuado urna conveniente interpretação do disposto nos artigos 47.°, 71°, 72°, 73° e 74° do C.P.
24 Tudo a concluir que, a sentença emanada violou dentre outros, o disposto nos art. 9.º, 270.º e 278.º todos do CC por referência ao art. 295.º do mesmo código e, ainda, os art. 1.º, 18.º n.º 1 e 2, 29.º n.º 1 e 272.° n.º 1 todos da CRP, os art. 1.º n.º 1, 3.º e 348.º n.º 1 alínea b) todos do CP e ainda os art. 162.º n.º 2 e 161.º n.º 7 todos do CE.
25 Pelo que, também por esta via (erro de julgamento), e, por tudo o que antecede, existe fundamento bastante para que a sentença ora posta em crise seja revogada e, substituída por acórdão em que, pura e simplesmente se absolva o arguido.
26 Por estes fundamentos ou, por outros cujo conhecimento não se mostra vedado a V.Exas., atendo ao disposto no art. 402.º do C.P.P., deverá a sentença ora sob recurso ser revogada e, substituída por acórdão em que, pura e simplesmente, se absolva o arguido, o que se peticiona. Pois, somente assim se fará a costumada Justiça!

3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, em que concluiu (transcrição):
1.º - No dia 9/01/07, o arguido foi nomeado fiel depositário do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula …, o qual foi apreendido nesta data.
2.º - Foi informado pelo sr. agente da GNR em exercício de funções de que incorreria na prática de um crime de desobediência caso viesse a utilizar a viatura, em virtude de não possuir seguro de responsabilidade civil e de não ter requerido o registo de propriedade no prazo de sessenta dias.
3.º - Em 12/05/07, cerca das 18h e 20 m na Rua de Campolide em Lisboa, o arguido conduziu o dito automóvel, sem ter regularizado a situação que originara a apreensão.
4.º - No caso em análise, verificam-se os elementos objectivo e subjectivo exigidos pelo artigo 348.º n.º 1 al. b) do CP.
5.º - O arguido alegou que poderia utilizar o veículo em 12/05/07, em virtude de ter já caducado a apreensão, independentemente de a situação não se encontrar regularizada.
6.º - Não lhe assiste razão, uma vez que decorre do artigo 162.º n.º 2 do CE que decorridos 90 dias sobre a apreensão sem que se mostre regularizada a situação que a determinou, o veículo pode vir a ser declarado perdido a favor do Estado.
 7.º - Deste modo, não caducou a apreensão, nem se verificou qualquer facto que importasse a extinção da mesma, ou seja, a regularização da situação do automóvel.
8.º - Pelas razões supra mencionadas, não se evidencia erro de julgamento, nem a violação de normas jurídicas.
9.º - A sentença recorrida não merece censura, devendo manter-se!

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu o parecer de fls. 166 e 167, no qual sustentou que o recurso não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, indo os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

            II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
            Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
             Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões a apreciar e decidir são: o invocado erro notório na apreciação da prova; o erro na determinação da norma jurídica aplicável; a errónea interpretação da norma jurídica aplicada – artigo 348.º, n.º1, alínea b), do Código Penal -, em desconformidade à Constituição da República; a insuficiência da matéria de facto para a decisão por falta de investigação dos elementos necessários à determinação da situação pessoal, económica e social do arguido.

            2. Da sentença recorrida
            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
- Da acusação:
No dia 9 de Janeiro de 2007, o arguido foi nomeado fiel depositário do automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, de marca Rover, o qual nessa data foi apreendido, pelos motivos constantes do auto de apreensão de fls. 8, aqui dadas por integralmente reproduzidas, ou seja, por permitir que a viatura circulasse na via pública não tendo requerido o registo da propriedade, no prazo de 60 dias, conforme o preceituado no n.º 1 do art. 42.º do Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro, com última alteração dada pelo Decreto-Lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro e por não possuir seguro de responsabilidade civil obrigatório.
Nesse dia 9 de Janeiro de 2007, ficou o arguido pessoalmente notificado por um agente da Brigada de Trânsito da GNR, no exercício das suas funções de que, como fiel depositário da viatura, incorria no crime de desobediência qualificada se utilizasse a viatura.
No dia 12 de Maio de 2007, pelas 18H20, na R. de Campolide, sita em Lisboa, o arguido conduziu a referida viatura, mantendo-se por regularizar a situação que originou a apreensão do dia 9 de Janeiro de 2007.
O arguido bem sabia que não podia utilizar a viatura enquanto se mantivesse a apreensão da mesma e das consequências legais em que incorria, agindo com intenção de desobedecer a uma ordem legítima de uma autoridade policial, que lhe foi regularmente comunicada.
Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punível por lei.
- Da discussão da causa e dos autos, com interesse para a decisão de mérito:
O arguido exerce a profissão de advogado, auferindo rendimento variável e não apurado, que o próprio situou em cerca de 700 a 800 € mensais; referiu ter a seu cargo um filho com a idade de 9 anos.
Nada consta do c.r.c. do arguido.
- Da contestação:
Desde a data em que foi efectivada a apreensão do veículo e a consequente constituição em fiel depositário do arguido (09.01.2007) e, a data em que, o Arguido foi interceptado a conduzir o veículo (12.05.2007) decorreram mais de 123 dias.
De acordo com o auto de apreensão a fls ... , o Arguido foi advertido que, "não podia utilizar ou alienar por doação venda ou por outra forma, enquanto a viatura se encontrar à sua guarda.

2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Não se provou que:
O arguido agiu na sequência de um erro que cometeu ao administrar a dose de insulina ao seu filho na altura com 7 anos e, com o único intuito de o colocar mais próximo do Hospital de Santa Maria, para o caso de, se necessário fosse, aí obter os tratamentos devidos.
Plenamente convicto que, a utilização da viatura outrora sua e, perdida a favor do Estado, por mais não ser que um acto demonstrativo da posse por si exercida, era lícito e, como tal permitido por lei.

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O Tribunal baseou a sua convicção:
Na prova documental junta aos autos, conjugada com as declarações produzidas pelo arguido em audiência.
No c.r.c. de fls. 64, indicativo da ausência de antecedentes criminais por parte do arguido.

            3. Apreciando
            3.1. Alega o recorrente que, apesar de «haver praticado os factos dados como provados em sede de julgamento, não se conforma com a sua condenação, uma vez que, a mesma, não tem qualquer fundamento de facto nem de direito, mais não sendo do que um clamoroso erro de subsunção dos factos ao direito, motivado por erro notório na apreciação da prova produzida
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
Explicitando: trata-se de vícios decisórios que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há-de necessariamente, como resulta claramente do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).
Analisado o recurso, afigura-se-nos que o recorrente confunde o vício decisório do erro notório com o invocado erro na aplicação do direito aos factos, questão bem diversa dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2.
A divergência do recorrente em relação à sentença recorrida centra-se, a este propósito, na interpretação que o tribunal a quo fez do disposto no artigo 162.º, n.º2, do Código da Estrada.
Ora, divergências na interpretação/aplicação da lei como as que o recorrente invoca situam-se ao nível do julgamento de direito e não no plano da decisão da matéria de facto – plano em que se insere a questão dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2 -, sendo manifesto, a nosso ver, que não se patenteia a existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.

3.2. Alega o recorrente a existência de erro na determinação da norma jurídica aplicável, sustentando que a sua utilização do veículo em causa, em 12 de Maio de 2007, apenas configura a prática da contra-ordenação prevista no artigo 161.º, n.º7, do Código da Estrada.

3.2.1. Está provado que no dia 9 de Janeiro de 2007, o arguido foi nomeado fiel depositário do automóvel ligeiro de passageiros de matrícula …, de marca Rover, o qual nessa data foi apreendido, pelos motivos constantes do auto de apreensão de fls. 8, ou seja, por permitir que a referida viatura circulasse na via pública não tendo requerido o registo da propriedade, no prazo de 60 dias, conforme o preceituado no n.º 1 do art. 42.º do Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro, com última alteração dada pelo Decreto-Lei n.º 178-A/2005, de 28 de Outubro, e também por não possuir seguro de responsabilidade civil obrigatório.
Dispõe o artigo 150.º, n.º1, do Código da Estrada:
 «1. Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efectuado, nos termos de legislação especial, seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.»

  A violação de tal comando constitui contra-ordenação, sancionada com coima, nos termos do n.º2 do mesmo artigo.
Por sua vez, o artigo 85.º do mesmo diploma, reportando-se aos documentos de que o condutor deve ser portador refere no seu n.º 2:
«Tratando-se de automóvel (…), o condutor deve ainda ser portador dos seguintes documentos:
a) Título de registo de propriedade do veículo ou documento equivalente;
b) (…)»

O n.º 4 desse artigo 85.º estabelece que se o condutor se não fizer acompanhar de um ou mais documentos referidos nos n.º 1 e 2 é sancionado com uma coima cujo valor será de € 60,00 a € 300,00, salvo se os apresentar no prazo de 8 dias, caso em que o valor da mesma passará a ser de € 30,00 a € 150,00.
Estabelece, finalmente, o artigo 162.º, n.º 1, alíneas e) e f), do Código da Estrada, sob a epígrafe «Apreensão de veículos»:
«1. O veículo deve ser apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando:
(…)
e) O respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação não tenham sido regularizados no prazo legal;
f) Não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei; (…)»

Verificado tal condicionalismo, devem ser os documentos do veículo (de identificação e respeitantes à circulação), igualmente, apreendidos [cf. artigo 161.º, n.º 1, al. e) e 2, do Código da Estrada].
De harmonia com o n.º 7 do artigo 161.º, do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 113/2009, de 18 de Maio, quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido é sancionado com coima de € 300 a € 1500. Com as alterações introduzidas por aquele Decreto-Lei, o anterior n.º7 passou a n.º8, mantendo-se a redacção.
Temos, assim, quatro situações distintas:
a) a circulação na via pública de veículo a motor sem que tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil, que constitui ilícito contra-ordenacional, nos termos do artigo 150.º, n.º 2, do Código da Estrada;
b) a circulação na via pública de veículo automóvel sem que o respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação tenham sido regularizados no prazo legal, o que constitui ilícito contra-ordenacional, nos termos do artigo 85.º, n.º4, do Código da Estrada;
c) a condução na via pública de veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, o que constitui ilícito contra-ordenacional, nos termos do artigo 161.º, n.º 7, do Código da Estrada (na redacção então vigente, que corresponde ao n.º8 do mesmo artigo da redacção actualmente em vigor);
d) a circulação/condução na via pública de veículo que se mostre apreendido (artigo 162.º do Código da Estrada).
No que respeita às três situações indicadas sob as alíneas a), b) e c), não se suscitam dúvidas quanto à natureza de contra-ordenação da violação dos respectivos comandos.
A questão posta no recurso exige que se tome posição sobre se numa situação como a dos autos, de apreensão do veículo automóvel em função de não ter sido efectuado seguro de responsabilidade civil e de não ter sido regularizado o registo da propriedade, a condução do mesmo na via pública redunda, tão só, na contra-ordenação sancionada nos termos do artigo 161.º, n.º 8 do Código da Estrada, na sua actual redacção, não consentindo, por isso, que a autoridade ou agente de autoridade faça a cominação no sentido de que a sua utilização fará incorrer a pessoa investida na qualidade de depositário no crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b) do Código Penal.
Tal questão coloca-se em virtude da apreensão do veículo, de acordo com o disposto na alínea e), do n.º l, do artigo 161° do Código da Estrada, determinar a apreensão do documento de identificação do veículo, razão por que alguns entendem que a condução deste nessa situação constitui tão-somente contra-ordenação sancionada com coima [nos termos da hipótese supra indicada sob a alínea c)].

3.2.2. Dispõe o artigo 348.º do Código Penal:
«1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimo, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2. A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal comine a punição da desobediência qualificada.»

O que significa que o crime de desobediência ocorre quando se verifica a falta de obediência a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente (corpo do n.º 1), seja porque uma disposição legal comina no caso a sua punição como desobediência simples [alínea a) do n.º 1], seja porque a correspondente cominação foi feita pela entidade competente [alínea b) do n.º 1]. Se uma disposição legal como tal a cominar, a desobediência será qualificada (n.º 2).
Na falta de disposição legal que comine a punição como desobediência simples ou qualificada da condução pelo depositário do veículo apreendido, resta a cominação efectuada pelo agente da Brigada de Trânsito da GNR que, no exercício das suas funções, notificou o arguido, na ocasião da apreensão do veículo automóvel, de que, como fiel depositário da viatura, incorria no crime de desobediência qualificada se a utilizasse. E provou-se que «o arguido bem sabia que não podia utilizar a viatura enquanto se mantivesse a apreensão da mesma e das consequências legais em que incorria, agindo com intenção de desobedecer a uma ordem legítima de uma autoridade policial que lhe foi regularmente comunicada», tendo agido «deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que tal conduta era proibida e punível por lei».
Quanto à cominação «funcional» como desobediência qualificada, inexistindo norma legal que suporte tal qualificação, teremos de entender que a mesma se reporta ao tipo legal simples e não ao qualificado.
Pois bem: reconhecendo-se que não existe unanimidade de posições, entendemos que a apreensão do veículo, concretamente por falta de seguro de responsabilidade civil e de regularização do registo de propriedade, com a designação do arguido, seu adquirente, como fiel depositário, legitima a ordem de proibição da sua utilização com a cominação de, não sendo a mesma respeitada, o fazer incorrer no crime de desobediência (simples).
A fonte de legitimidade da competente autoridade de trânsito para, ao apreender o veículo por falta de seguro e de regularização do registo de propriedade, «proibir» o depositário de o fazer transitar, assenta claramente, desde logo, no que à falta de seguro concerne, no disposto no artigo 150.º, n.º1, do Código da Estrada, não se colocando qualquer dúvida quanto à regularidade da comunicação efectuada.
A este propósito, importa lembrar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 1.ª série — N.º 55 — 19 de Março de 2009, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
«O depositário que faça transitar na via pública um veículo automóvel apreendido por falta de seguro obrigatório comete, verificados os respectivos elementos constitutivos, o crime de desobediência simples do artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal e não o crime de desobediência qualificada do artigo 22.º, n.º 1 e 2, do Decreto -Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro.»
No entanto, há quem entenda, em situações similares à dos autos, que tendo a apreensão do veículo tido por base o disposto nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada, e implicando ela, de acordo com a alínea e) do n.º 1 do artigo 161º do mesmo diploma, a apreensão do documento de identificação do automóvel, a condução do veículo nessa situação constitui contra-ordenação e é sancionada com uma coima de 300 a 1500 € (n.º 7 do artigo 161.º, do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 113/2009, de 18 de Maio). Por isso, dado o carácter subsidiário da incriminação do artigo 348.º, n.º1, alínea b) (apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica, seja qual for a sua natureza, prevê um comportamento desobediente), sustenta-se – é o caso do recorrente – que o agente da autoridade não podia efectuar a cominação do crime de desobediência.
Discordamos desse entendimento.
Diz-se no Acórdão da Relação do Porto de 13 de Janeiro de 2010, proferido no Processo 10452/08.5TDPRT.P1 (disponível em www.dgsi.pt), a propósito da legitimidade da cominação como desobediência da conduta de condução de veículo apreendido:
«É sabido que só podem ser objecto de incriminação as condutas que violem bens jurídicos carecidos de tutela jurídico-penal, como decorre dos artigos 29.º da CRP e 1.º do C. Penal. O Direito Penal só deve, pois, intervir quando a sua protecção se revele imprescindível à salvaguarda dos bens jurídicos que sejam fundamentais à defesa do Estado de Direito. E só intervém se e quando os outros ramos do Ordenamento jurídico se revelem incapazes de os defender eficazmente, o que vale por dizer que o Direito penal constitui a ultima ratio.
(…)
É neste sentido que se afirma que o Direito Penal é subsidiário dos outros ramos de direito: o que é adequadamente tratado pelos outros ramos do Direito, não deve ser objecto de tutela penal. E é também neste sentido que se considera o Direito Penal fragmentário pois que, “de toda a gama de acções proibidas e bens jurídicos protegidos pelo Ordenamento Jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte ou fragmento, se bem que da maior importância.
Este carácter fragmentário do Direito Penal aparece numa tripla forma em todas as actuais legislações penais: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico só contra ataques de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punição da comissão negligente nalguns casos, etc.; em segundo lugar, tipificando só uma parte do que nos demais ramos do Ordenamento Jurídico se considera como antijurídico; e, por último, deixando sem castigo, em princípio, as acções meramente imorais”.
(…)
No caso dos autos, como se referiu, a apreensão visou uma dupla finalidade:
- Coagir o proprietário a celebrar contrato de seguro, que é obrigatório e sem o qual não pode circular com o veículo;
- Manter o estado do veículo para poder garantir o pagamento das indemnizações resultantes do acidente de viação em que foi interveniente e que, naturalmente, sejam da responsabilidade do seu proprietário e do seu condutor.
Para alcançar tal desiderato, o legislador – art.ºs 150.º, n.º 1 e 162.º, n.º 1, alínea f), ambos do C. da Estrada - incumbiu os agentes de autoridade de apreenderem o veículo, conferindo-lhe poderes para o efeito, isto é, legitimou-os para efectuarem a apreensão, podendo ordenar tudo quanto seja necessário ao cumprimento das funções que lhe estão cometidas.
Efectuada a apreensão, esta só pode ser levantada se e quando a lei o permitir.
Porque a ordem de apreensão e de manutenção da apreensão é legítima e provém da entidade a quem a lei conferiu poderes para a dar, é óbvio que o desrespeito tem de ser punido. E é punido como desobediência, afirmamos nós, pois que, ao conduzir-se um veículo apreendido, viola-se a proibição cautelar de não condução, transmitida por agente de autoridade, investido de podres para o efeito.
Não está em causa a simples condução com veículo apreendido, mas a ordem de não poder com ele circular, legítima porque ancorada em lei expressa.»

Esta argumentação é aplicável ao caso em apreço:
- a apreensão efectuada visou coagir o proprietário a celebrar contrato de seguro - que é obrigatório e sem o qual não pode circular com o veículo – e a regularizar o registo de propriedade;
- o legislador, através dos artigos 150.º, n.º 1 e 162.º, n.º 1, alíneas e) e f), ambos do Código da Estrada, incumbiu os agentes de autoridade de apreenderem o veículo, conferindo-lhe poderes para o efeito;
- porque a ordem de apreensão e de manutenção da apreensão é legítima e provém da entidade a quem a lei conferiu poderes para a dar, o seu desrespeito é punido como desobediência, pois que, ao conduzir-se um veículo apreendido, viola-se a proibição cautelar de não condução, transmitida por agente de autoridade, investido de poderes para o efeito.
Não está em causa a mera condução de veículo apreendido, mas a desobediência à ordem de não poder com ele circular, legítima porque alicerçada em lei expressa.
Como se lê no mencionado Acórdão da Relação do Porto (que seguimos de perto):
«O bem jurídico protegido com a incriminação não é já (ou não é só) o da segurança rodoviária, mas antes o da protecção da autoridade pública, da autoridade do Estado. O qual, é apodíctico, é bem jurídico axiologicamente relevante, protegido constitucionalmente e cuja violação pode por em causa o próprio Estado de Direito.
Não deve, por isso, afirmar-se que, na sequência de uma apreensão e sua manutenção, em obediência à lei, o desrespeito da ordem dada pelo agente de autoridade não possa ser punida como incriminação.
(…)
Porque, como se referiu, a apreensão é legítima, foi comunicada por agente de autoridade no exercício das suas funções, o não acatamento da ordem consubstancia uma desobediência: à ordem transmitida pelo agente de autoridade.
O bem jurídico tutelado – defesa da autoridade pública - carece de tutela. E de tutela jurídico-penal já que só o Direito Penal protege de forma eficaz tais bens.
Porque assim, está assegurado o princípio da mínima intervenção.»

Acresce que, ao contrário do que pretende o recorrente, a conduta em causa não é punida a título de contra-ordenação.
Como é sabido, de acordo com o Código da Estrada, é obrigatório o seguro de responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização para os veículos a motor e reboques quando transitem na via pública, devendo, na sua falta, ser o veículo apreendido pelas competentes autoridades, constituindo a falta de seguro um ilícito contra-ordenacional.
Está também instituído o regime de obrigatoriedade de porte de documentos, dentre os quais sobressai o título de registo de propriedade do veículo ou documento equivalente, nos termos do artigo 85.º, n.º 1 e 2, alínea a), do Código da Estrada, que visa individualizar os respectivos proprietários e publicitar os direitos inerentes aos respectivos veículos automóveis, sendo que, quem violar tal obrigatoriedade fica incurso em coima de € 60,00 a € 300,00 ou de € 30,00 a € 150,00 se o condutor apresentar o título do registo no prazo de 8 dias à autoridade indicada pelo agente de autoridade.
As alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 162.º do Código da Estrada determinam que o veículo seja apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes quando não tenha sido efectuado seguro de responsabilidade civil nos termos da lei, ou o respectivo registo de propriedade ou a titularidade do documento de identificação não tenham sido regularizados no prazo legal.
Se e quando o veículo for apreendido, prescreve a alínea e) do n.º 1 do art.º 161º que o documento de identificação do veículo seja também apreendido pelas autoridades de investigação criminal ou de fiscalização ou seus agentes.
A condução de veículo sem que o condutor seja portador do documento de identificação do veículo, estando este (documento único) apreendido, é punida com coima de 300€ a 1500€, conforme já se disse supra.
Da leitura destes preceitos resulta que o legislador distingue duas situações:
1. A apreensão do veículo;
2. A apreensão de documentos do veículo, mesmo que esta tenha na sua origem a apreensão do veículo.
Com efeito se a apreensão do veículo determina a apreensão do documento único, a inversa não é verdadeira: é possível fazer-se a apreensão dos documentos sem que se faça também a apreensão do veículo, como ocorre no caso da alínea c) do art.º 161º do Código da Estrada que manda apreender o documento único quando o mesmo “se encontre em estado de conservação que torne ininteligível qualquer indicação ou averbamento”, e sem que o veículo seja apreendido.
 Por outras palavras: nem todos os casos de apreensão dos aludidos documentos implicam a apreensão do veículo (cf. os n.º 3, 4 e 5 do artigo 161.º) e nem todos os casos de apreensão do veículo conduzem à investidura do titular do respectivo documento de identificação como seu fiel depositário (cf. os n.º 4 e 5 do artigo 162.º).
Disse a Relação do Porto, em Acórdão de 15 de Dezembro de 2010, proferido no processo 222/10.6GFVNG.P1 (disponível em www.dgsi.pt, assinalando-se que o respectivo sumário não está conforme ao seu conteúdo):
«Assim haverá forçosamente que concluir que a condução do veículo com os documentos apreendidos nada tem que ver com a condução de veículo estando este apreendido, embora esta possa implicar aquela e não já o contrário.
Trata-se, por isso, de condutas diversas, distintas, a reclamar distinto tratamento jurídico sendo que a apreensão, em cada uma das situações, visa fins diferentes:
- Enquanto que a apreensão dos documentos tem por finalidade primordial facilitar a fiscalização, evitando “a circulação do veículo desacompanhado do documento de identificação”, a finalidade da apreensão do veículo é de evitar “a prossecução de uma situação antijurídica, que consiste na condução em via pública de veículo a motor”, neste caso sem o registo de propriedade ter sido regularizado no prazo legal.
Assim, enquanto que à data dos factos a circulação com os documentos apreendidos é punida com coima de 300€ a 1500€ - n.º 7 do art.º 161º do C. da Estrada -, o certo é que o mesmo código não sanciona com qualquer coima a circulação/trânsito com o veículo apreendido.
Neste caso, porque a apreensão foi efectuada por agente de autoridade que, em cumprimento do disposições do Cód. da Estrada, transmitiu a ordem de não circulação enquanto se mantiver a apreensão, uma vez desobedecida, e verificados os restantes requisitos do tipo, o agente fica incurso em crime de desobediência.
Assim e atento o exposto resultar a nosso ver claro que a contra-ordenação p. e p. pelo n.º 7 do art.º 161º do C. da Estrada sanciona apenas a condução de veículo com documentos apreendidos, já que prevê a aplicação de uma coima apenas para quem conduzir veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido.
Mas já não prevê nem sanciona a situação de quem conduzir ou transitar com veículo apreendido, sendo que conforme supra se referiu é possível conduzir um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, e sem que aquele esteja, também, apreendido.»

Do que se conclui que a contra-ordenação p. e p., à data dos factos, pelo artigo 161.º, n.º7, do Código da Estrada (a que corresponde o n.º8 do mesmo artigo, na redacção do Decreto-Lei n.º 113/2009, de 18 de Maio) reporta-se apenas à condução de veículo com documentos apreendidos, sancionando-a com coima, não prevendo nem sancionando a situação de quem conduzir ou transitar com veículo apreendido, sendo que é possível conduzir um veículo cujo documento de identificação tenha sido apreendido, sem que aquele esteja, também, apreendido.
Por conseguinte, a referida contra-ordenação, por não ser coincidente o respectivo campo de aplicação, não obsta à cominação (funcional) no acto de apreensão do veículo, concretamente por falta de seguro de responsabilidade civil ou falta de regularização do registo de propriedade, do crime de desobediência para o fiel depositário caso o veículo venha a ser utilizado em violação da ordem/proibição, legítima e regularmente comunicada.
Não coincidindo o âmbito de aplicação das normas em confronto, nem tão-pouco o interesse que visam proteger (no crime de desobediência está em causa o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade), não há que fazer apelo ao princípio da fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal.
Neste sentido, para além dos dois Acórdãos já citados, vejam-se os Acórdãos: da Relação de Guimarães, de 29 de Novembro de 2010, processo 532/10.2GAFLG.G1; da Relação do Porto, de 27 de Outubro de 2010, processo 628/09.3PTPRT.P1. Também com interesse, os Acórdãos: da Relação de Évora, de 19 de Dezembro de 2006, processo 1752/06-1; da Relação de Coimbra, de 7 de Março de 2007, processo 15/04.0GAVGS.C1; da Relação do Porto, de 10 de Novembro de 2010, processo 14/07.0PTPRT.P1 – 1.ª Secção (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Conclui-se que, por um lado, não se coloca a questão do carácter meramente subsidiário da incriminação prevista na alínea b) do artigo 348.º, n.º1, do Código Penal, já que a conduta em causa nos autos não se encontra prevista por qualquer disposição legal, designadamente de natureza contra-ordenacional; por outro, o bem jurídico violado carece de tutela jurídico-penal, nada obstando a que tal conduta seja punida por desobediência, se estiverem reunidos os restantes elementos do tipo, como ocorre no caso face aos factos assentes.
Não se identifica em tal interpretação qualquer violação dos artigos 1.º, 18.º, n.º 1 e 2, 29.º, n.º1 e 272.º da Constituição da República, ao contrário do que o recorrente invoca sem o mínimo de sustentação.

3.2.3. Argumenta o recorrente com o disposto no artigo 162.º, n.º2, do Código da Estrada, pretendendo que, por terem decorrido mais de 123 dias desde a data em que foi efectivada a apreensão do veículo e a consequente constituição como fiel depositário (09.01.2007) e a data em que foi interceptado a conduzir o veículo (12.05.2007), a apreensão efectivada havia cessado.
Discordamos desse entendimento.
Não obstante a redacção algo deficiente da disposição em apreço, afigura-se-nos que a apreensão efectuada pelas autoridades mantém-se até que tenha sido reconhecido que cessou o motivo que lhe deu origem ou até à declaração de perda do veículo a favor do Estado, pelo que, até qualquer desses momentos, o fiel depositário nomeado nos termos do n.º 5 do mesmo artigo mantém-se, com as respectivas obrigações e responsabilidades.
Atente-se que o prazo de 90 dias fixado no n.º 2 do artigo 162.º, só vale para os casos em que há negligência do titular em promover a regularização da situação. Nesse caso, ultrapassado o prazo de 90 dias, deve ser proferida decisão, julgando verificados os fundamentos da cominação e decretando o perdimento do veículo a favor do Estado.
Não havendo negligência do titular do respectivo documento de identificação em promover a regularização da sua situação, a cominação da perda a favor do Estado não pode ser desencadeada.
Em ambos os casos, não ocorre, a nosso ver, a caducidade da apreensão, que se mantém até à cessação do motivo que lhe deu origem ou até à declaração de perda do veículo a favor do Estado.
Do próprio auto de apreensão de veículo consta, além do mais, que «a apreensão se manterá enquanto não for feita a prova da efectivação do contrato de seguro».
Em suma: o prazo de 90 dias referido na mencionada disposição legal quer apenas significar, como advertência, que a manutenção da situação de apreensão por mais de 90 dias por negligência (e há sempre que apurar se houve ou não negligência) do titular determina a perda do veículo, não havendo qualquer cessação automática da apreensão passado esse tempo.
Face ao exposto, conclui-se, facilmente, que estando preenchidos, com a conduta do arguido/recorrente, os elementos do tipo de crime de desobediência simples por que foi condenado, e claudicando todos os argumentos que em contrário foram deduzidos no recurso, este terá de improceder quanto à reivindicada absolvição do recorrente.

3.3. Invoca-se, por fim, que a sentença recorrida enferma do vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão por falta de investigação necessária à determinação da situação pessoal, económica e social do recorrente.
Como vem considerando o Supremo Tribunal de Justiça, em relação ao vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º2, alínea a), do C.P.P., o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. - e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena (entre outros, cfr. Acórdão de 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678 - 3.ª Secção, em www.dgsi.pt;  Acórdão de 05-09-2007, Proc. n.º 2078/07 - 3.ª Secção e Acórdão de 14-11-2007, Proc. n.º 3249/07 - 3.ª Secção, sumariados em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -Secções Criminais).
            Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (artigos 369.º e segs. do C.P.P.), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais. A lei prevê até a possibilidade de produção suplementar de prova, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência (artigo 371.º do C.P.P).
             Nos termos do artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, é por apelo aos critérios da culpa e da prevenção – geral e especial – que deve ser encontrada a medida concreta da pena, dentro da respectiva moldura abstracta, sendo certo que o n.º3 do mesmo artigo prescreve que «na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena».
            Da leitura da sentença recorrida, mais concretamente dos factos provados, resulta que se apurou que o arguido exerce a profissão de advogado, auferindo rendimento variável e não apurado, que o próprio situou em cerca de 700 a 800 euros mensais, ter a seu cargo um filho com a idade de 9 anos; nada constar do seu certificado do registo criminal.
            Neste quadro, o tribunal condenou o arguido/recorrente na pena de 60 dias de multa, fixando a razão diária desta em apenas €5,00.
Ainda que resulte dos princípios da investigação e da verdade material que ao tribunal cumpre investigar, independentemente da acusação e da defesa, com os limites previstos na lei, os factos sujeitos a julgamento, de forma a criar as bases necessárias para a decisão, afigura-se-nos que a sentença recorrida contém elementos ainda assim bastantes para fundamentar adequadamente a determinação da pena, não incorrendo, consequentemente, no invocado vício decisório.
            Conclui-se que não merece censura a condenação do arguido, improcedendo o recurso na totalidade.

4. Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do C.P.P., na redacção anterior à Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro).
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 87.º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UC (por se tratar de recurso julgado em conferência).
Tendo em conta a situação económica do arguido e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.

            III – Dispositivo
            Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
           
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2011

            (o presente acórdão, integrado por vinte e três páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

Jorge Gonçalves
Carlos Espírito Santo