CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
QUESTÃO NOVA
MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE SENTENÇA
ÓNUS DA PROVA
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
PRESUNÇÃO DE CUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE DO GERENTE
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário

I. Dado que, do ponto de vista da sua finalidade, a apelação é um recurso de reponderação, não é lícita a alegação no recurso, de questão novas – que não sejam de conhecimento oficioso.
II. A deficiência da selecção da matéria de facto não constitui causa de nulidade da sentença mas um erro sobre o objecto da prova;
III. A nulidade da decisão impugnada deve ter-se por irrelevante sempre que ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão recorrida se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogá-la ou confirmá-la, ainda que por outro fundamento.
IV. O carácter negativo do facto probando é indiferente para as regras de distribuição do ónus da prova;
V. Todas as despesas realizadas pelo profissional no âmbito do contrato de prestação de serviço estão sujeitas a prescrição presuntiva;
VI. Não é incompatível com a presunção do pagamento a alegação desse mesmo pagamento;
VII. A dúvida irremovível sobre a realidade do facto extintivo do pagamento deve ser resolvida contra o devedor;
VIII. A responsabilidade civil do gerente de sociedade comercial relativamente aos credores sociais tem carácter delitual, competindo àqueles credores o ónus da alegação e da prova dos respectivos pressupostos.
XIX. O ónus da prova do abuso do direito, designadamente, na modalidade do venire, vincula a parte que o opõe;
IX. A litigância de má fé não decorre da simples circunstância de a parte não ter cumprido o ónus da prova que a grava.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório.

      “A” pediu ao Sr. Juiz de Direito da Vara Mista da Comarca de ... a condenação, solidária, de “B”, “C”, A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda. e Tasca “E” Lda., a pagar-lhe a quantia de 61 113.63€, ou subsidiariamente, a condenação da terceira e quarta a pagar-lhe as quantias de 15 196,92€ e de 45 273,00€, respectivamente.
      Fundamentou esta pretensão no facto de, por incumbência dos réus “B” e “C”, ter, no exercício da sua actividade profissional de técnico oficial de contas, assumido a responsabilidade da elaboração das contas daquelas sociedades comerciais, de ter feito despesas com o registo e certidões relativas à 3ª ré, tendo a haver, pelos serviços prestados a esta, nos anos de 2005 e de 2006, as quantias de 2 625,00€ e de 2 600,00€, respectivamente, e as quantias que pagou, nos anos de 2005 e 2006, relativas IRS, segurança social e a coima, de ter procedido, nos anos de 2003 a 2005, ao pagamento de encargos fiscais e com a segurança social da 4ª ré, tendo a haver desta os honorários, no valor global de 13 587,50€, relativos aos nos de 2003 a 2006, e de os réus “B” e “C”, que se comprometeram, pessoalmente, a reembolsá-lo de tais despesas, terem, por força do seu divórcio, partilhado o seu património, de modo a que a primeira ficasse com o andar onde reside e o segundo com as sociedades, que não têm património suficiente para garantir o pagamento devido.
      A ré “B” defendeu-se, por impugnação - alegando, designadamente, que é educadora de infância, nunca tendo exercido outra actividade, que o único gerente das sociedades comerciais foi o ex-cônjuge, o réu “C”, desconhecendo contabilidade, a gestão e o que se passava naquelas sociedades, que nunca solicitou ao autor que pagasse quaisquer quantias em nome daquelas sociedades nem se comprometeu a reembolsá-lo de tais despesas, que não contratou contabilista e ignora se os valores apresentados pelo autor estão ou não em dívida e o valor da avença acordada, que, em 2007, porque estava em processo de divórcio procurou o autor para saber do estado das empresas, tendo-lhe este fornecido uma listagem das dívidas e três documentos manuais - e por excepção dilatória, invocando a sua ilegitimidade ad causam, por nunca ter sido gerente da sociedade a Tasca “E” Lda. e esta dispor de património suficiente para liquidar a sua dívida.
      Os restantes réus invocaram, em contestação, a ilegitimidade ad causam do réu “C”, por o autor não ter alegado factos que permitam concluir pela actuação dolosa deste, de que tenha resultado a insuficiência do património das sociedades comerciais, o pagamento, por estas dos valores adiantados e facturados pelo autor e, relativamente aos valores anteriores a 23 de Janeiro de 2006, a prescrição presuntiva.
      O autor pediu, na réplica, a condenação dos réus por litigância de má fé, em multa e em indemnização.
      A excepção dilatória da ilegitimidade ad causam dos réus “B” e “C” foi logo julgada improcedente no despacho saneador.
      Seleccionada a matéria de facto, procedeu-se – com registo sonoro dos actos de prova levados a cabo oralmente – à audiência de discussão e julgamento, no terminus da qual se decidiu, sem reclamação, a matéria de facto.
      A sentença final da causa absolveu os réus “B” e “C” e Tasca “E” Lda. do pedido e condenou a ré A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda. a pagar a autor apenas a quantia de 3 151,85€ e juros de mora, contados à taxa legal desde 6 de Fevereiro de 2006.
      O autor apelou, pedindo no recurso a revogação daquela sentença e a sua substituição por outra que condene os réus no pedido.
Por despacho do relator, o processo foi devolvido à instância recorrida para o Sr. Juiz de Direito se pronunciar sobre a arguição da nulidade da decisão impugnada e, do mesmo passo, verificar o valor processual da causa.
      Segundo o recorrente, o mal fundado da decisão impugnada torna-se patente nestas conclusões:
      Reapreciando a matéria de facto objecto de julgamento, devem ser alteradas as respostas à base instrutória pela forma seguinte:
a) Os artºs 9º, alínea f) – 773,33 Euros, artº 10º. Alínea f) IVA 4º trimestre – 1 175,48 e artº 11, alíneas d) IVA 1º trimestre – 531,56 Euros, e) 2º trimestre – 480, 88 Euros e f) IRC pagamento extraordinário 73,14 Euros, devem ser tidos por provados com base na mesma motivação pela qual o tribunal deu resposta positiva à matéria das restantes alíneas dos mencionados artigos da base instrutória, isto é, os artºs 9°, 10° e 11°, devem ter, sem qualquer restrição, a resposta de PROVADOS.
b) É contraditório dar por provados os valores reclamados nas alíneas a) a e) do artº 9º, a) a e) do artº 10° e a) a d) do artº 11° e não se terem por provados os restantes créditos, quando a motivação pela qual se deu a resposta positiva devia igualmente servir de fundamentação para estas questões, ou seja, o teor dos documentos com os nºs 40 a 43, 64 a 68 e 83, 93 a 96 da petição, não impugnados pelas Rés, corroborado pelo depoimento da testemunha, “F”, mencionada no despacho em causa.
c) Os artigos 12°, 13° e 14° (honorários reclamados pelo Autor) devem merecer a resposta de "PROVADOS", sem restrição, pelo que ficou dito supra, resulta da prova documental e testemunhal, “F”, pois, ao contrário do afirmado, no despacho impugnado, se mostra assinalada a quadrícula correspondente a -Honorários".
d)     O artigo 15° deve ter por resposta de "PROVADO" ou, quando muito, PROVADO "que o 2° Réu pessoalmente se comprometeu a reembolsar o Autor de todas as despesas por ele suportadas", uma vez que os Réus alegaram o pagamento das quantias devidas e o depoimento do Réu, “C”, não merece o mínimo de credibilidade, por ser contra os critérios da experiência comum de vida.
e) Os artigos 18° e 19º devem ter a resposta de "PROVADO", face à posição dos Réus, nas suas contestações.
f) Os artºs 1° e 2°, por tudo o que dissemos supra, têm de ser considerados "PROVADO", ou, quando tal se não entenda, ao artº 2° deve ser respondido PROVADO "que os actos descritos em F), G) e H) foram praticados pelo Autor no interesse da 1ª e 2° Réus".
g) Os artºs 22°, 23°, 25°, 27° e 28°da petição, face à prova documental, devem merecer a resposta, no conjunto e pela mesma motivação de "PROVADOS".    
h) Deve ser aditado um novo quesito com a matéria do artº 6° da petição, valores incluídos no pedido final de 15.196,92 Euros, com a seguinte redacção "tem a haver pelos serviços prestados à 38 Ré, no ano de 2005, 2.625,00 Euros e 2.600,00 referente ao ano de 2006", o qual, com base na motivação das Conclusões das alíneas b) e c), deve ter a resposta de PROVADO.
i) Os Réus não impugnaram especificadamente os factos alegados na petição pelo Autor, como causa de pedir, limitando-se a excepcionar a legitimidade passiva e a extinção das dívidas, pela dupla perspectiva, do reembolso e pagamento ao Autor dos créditos reclamados (ou despesas por ele desembolsadas e honorários devidos) ou por prescrição presuntiva.
j) É incompatível, contraditória e abusiva, a alegação do pagamento dos honorários reclamados pelo Autor, com os restantes créditos devidos pelos 1º e 2° Réus e as 3ª e 4ª Rés, segundo o regime da prescrição presuntiva do cumprimento das obrigações do artº 317°, alínea c) do CC, conforme a jurisprudência dos acórdãos RL de 18.10.1972, BMJ 220-204 e do STJ de 8.11,1974, BMJ 237-182 a 186 e de 24.5.74 BMJ 237-182.
k) Não se aplica ao caso o regime do artº 317°, c) do CC, uma vez que os Réus "praticaram actos incompatíveis com a presunção do cumprimento” artº 314° do CCivil, pois não provaram o pagamento de todos os créditos eventualmente sujeitos, ou não, ao indicado regime legal.
I) As quantias desembolsadas (emprestadas) pelo Autor no interesse do casal, 1º e 2° Réus, e das sociedades, as 3º e 4º Rés, têm natureza diferente dos créditos de honorários, e não podem, nem devem ser qualificadas como despesas inerentes à actividade profissional do Autor, como TOC das ditas sociedades.
m)     A 1ª e 2° Réus partilharam os bens comuns do casal na pendência do processo, em 30.07.2008, para dissimular o património imobiliário do casal, ficando ela com o andar, casa morada de família, e o dito Réu com as sociedades. As quais não têm actividade, nem património conhecido.
n) Aos Réus competia a prova dos factos negativos alegados pelo Autor nos artºs 22°,23°,25°, 27° e 28° da petição – artº 342, nº 2 e 346º do CC - ou seja competia-lhes alegar e provar a existência de bens e património que fosse tido por suficiente para pagar o devido e reclamado na acção pelo Autor.
o) Os factos tidos por provados na acção, por integrarem condutas típicas do abuso de direito (artº 334° do CC), ou do crime de burla, consumada no decurso do processo, por dissimulação do património do casal – artºs 27° e 28º da petição e Conclusão c) - e, além disso, possibilitarem à 1ª e 2° Réu a dissipação do património social das sociedades, tomando-o insuficiente (é inexistente) para satisfazer os créditos do Autor, constituíram a 1º e 2° Réus na obrigação solidária do pagamento dos créditos peticionados pelo Autor – artº 78° do Código das Sociedades Comerciais e artº 483° do CCivil.
p) Acresce que os Réus não impugnaram a prova documental apresentada com a petição, pelo que tem de se considerar por provada a versão dos factos apresentada pelo Autor e os Réus condenados nos pedidos formulados – artºs 488°, 489° e 490° do CPC.
q) Os pedidos formulados pelo Autor fundamentam-se no disposto nos artºs 334°,465°,483°,1.142°,1157° e 11610, alíneas c) e d) e artº 1154°,1156° e 1158° e ainda, quanto ao ónus da prova (factos modificativos e negativos) no artº 342°, nº 2 do Código Civil.
r) Quando tal se não entenda, as quantias relativas às despesas da 1º e 2° Réus, e às dividas das sociedades Rés, suportadas pelo Autor, seriam devidas com base no enriquecimento sem causa, nos termos do disposto no artº 473° do CC.
s) Além disso, os Réus devem ser condenados como litigantes de má fé e serem condenados em multa e indemnização a fixar segundo o critério do tribunal.
t) A sentença em apreço é nula por ter omitido a apreciação das quantias dispendidas pelo Autor em benefício do casal, por outro lado, há erro de apreciação dos factos em julgamento e na sentença, pelo que, além das disposições legais indicadas, se mostram violadas as normais legais nos artºs 650°, nº 2, alínea 1), 653°, nºs 2 e 3, 659° nº 3, 660°, nº 2, 663°, nºs 2 e 3, das alíneas d), 1ª parte, c) do artº 668° do CPC.
u) Nestes termos e nos mais de direito deve ser revogada a sentença em recurso e serem julgados procedentes por provados os pedidos formulados pelo Autor contra os Réus, por forma a que a 1º e 2° Réus sejam condenados no pagamento de 691,73 Euros, com juros de mora à taxa legal, desde as datas indicadas nos documentos respectivos, a 3ª Ré ser condenada na quantia de 15.196,92 Euros e a 4ª Ré no montante de 45.273,00 Euros, quantias estas acrescidas de juros à taxa legal, desde a entrada em juízo, até integral pagamento, e a 1º e 2° Réus sejam condenados solidariamente com as 3ª e 4ª Rés nos montantes peticionados às sociedades, com base na responsabilidade civil, assim se fazendo, como se pede.
      Só o réu “C” respondeu ao recurso, tendo concluído pela improcedência dele.
      Por despacho do relator, o processo foi devolvido à 1ª instância para que o Sr. Juiz de Direito suprisse a nulidade, arguida no recurso, da sentença impugnada ou a manter e, do mesmo passo, fixar o valor processual da causa.

      2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.
      2.1. O recorrente alegou, na petição inicial, sob os artºs 22º, 23º, 27º e 28º, que os 1ª e 2º réus deixaram de explorar o estabelecimento onde a 3ª ré exercia a sua actividade e tinha a sua sede social, o qual se encontra ocupado por outra sociedade, que a 3ª ré não tem qualquer actividade conhecida, que o 1ª e 2º réus, por força do divórcio, partilharam o património de forma que o 1ª ré ficou com o andar onde reside e o 2º réu com as sociedades, as quais não têm património suficiente para garantir o pagamento do devido e que as 3ª e 4ª rés não têm bens conhecidos que permitam garantir o pagamento das dívidas suportadas pelo cumprimento de obrigações fiscais, que igualmente impedem sobre os sócios e gerentes no processo de execução e reversão fiscal, respectivamente.
      2.2. Declarou-se, no despacho saneador, que a prova dos factos alegados nos artºs 22º, 23º, 27º e 28º da petição inicial terá de ser feita através de documento idóneo.
      2.3. Foram insertos na base instrutória, entre outros, estes enunciados de facto:
                             1º
      Foi por incumbência pessoal da 1ª e 2º réus que o autor aceitou elaborar as contas das sociedades, 3ª e 4ª rés?
                             2º
      Os actos descritos em F), G) e H) foram praticados pelo autor a pedido da 1ª e do 2º réus?
                             9º
      Relativamente a encargos fiscais e sociais da 4ª ré, o autor, no ano de 2003, pagou as seguintes quantias (…): f) IVA, 777, 33€?
                             10º
      E no ano de 2004, o autor pagou as seguintes quantias de (…): f) IVA do 4º trimestre, 1 175,48€?
                             11º
      Igualmente o autor, no ano de 2005, pagou as seguintes quantias de (…) d) IVA, 1º trimestre, 531,56€; e) IVA 2º trimestre, 480,88€; f) IRC, pagamento extraordinário, 73,14€?
                             12º
      O autor tem a haver dos réus, a título de honorários prestados como técnico de contas, a quantia de 2 587, 50€, relativa ao ano de 2003?
                             13º
      O valor de 2 800,00 por cada um dos anos de 2004, 2005 e 2006?
                             14º
      E a quantia de 2 600,00€ referente ao ano de 2007?
                             15º
      A 1ª e o 2º réus comprometeram-se, pessoalmente, a reembolsar o autor de todas as despesas supra referidas por ele suportadas?
                             18º
      O 2º réu, variadas vezes, comprometeu-se a pagar os valores relacionados nesta acção?
                             19º
      O que sucedeu pela última vez em 15 de Outubro passado de 2007?
      2.4. O tribunal da audiência decidiu os pontos de facto referidos em 2.3., nos termos seguintes:
      Artº 1º: Provado que o autor aceito elaborar as contas das sociedades A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda. e Tasca “E” Lda., por incumbência do respectivo sócio e gerente, o ora réu “C”.
Artº 2º: Provado que os actos descritos nas alíneas F), G) e H) foram praticados pelo autor a pedido do réu “C”
      Artºs 9º f), 10º f), 11º d), e) e f), 12º a 15º, 18º e 19º: Não provados.  
      2.5. O tribunal da audiência motivou o julgamento mencionado em 2.4., nestes exactos termos:
      A convicção do Tribunal quanto aos factos provados e não provados assentou na análise crítica e conjugada, segundo as regras da lógica e da experiência comum, do teor dos documentos constantes dos autos e de todos os depoimentos prestados em audiência.
Para a formação da convicção do julgador expressa nas respostas dadas aos artigos 3°, 4°, 5°, 9°, 10° e 11 ° da base instrutória (BI), contribuíram, relevantemente, os documentos seguintes oferecidos com a petição inicial:
- Na resposta dada ao artigo 3° da BI atendeu-se aos documentos n.os 8 a 14 e 15 a 29 (fls. 22 a 43);
      - Na resposta dada ao artigo 4° da BI atendeu-se aos documentos n.os 30 e 31 (fls. 44 a 46);
      - Na resposta dada ao artigo 5° da BI atendeu-se aos documentos n.os 32 a 39 (fls. 47 a 54);
      - Na resposta dada ao artigo 9° da BI atendeu-se aos documentos n. Os 40 a 63 (fls. 55 a 78);
      - Na resposta dada ao artigo 10° da BI atendeu-se aos documentos nºs 64 a 92 (fls. 79 a 107);
- Por fim, na resposta dada ao artigo 11º da BI atendeu-se aos documentos nºs 93 a 107 (fls. 108 a 122).
      Tais documentos, não comprovam, no entanto, os pagamentos a título de IV A (anos de 2003, 2004 e 2005) e de IRC (pagamento extraordinário no ano de 2005), da responsabilidade da 4ª Ré, que o Autor alega ter suportado por conta e em nome da 4ª Ré.
A reforçar a relevância do mencionado acervo documental na convicção do julgador concorreram as declarações prestadas pela testemunha “F”, mulher do Autor e sua colaboradora na prestação de serviços de contabilidade, as quais neste segmento se revelaram isentas e objectivas, para além de emergirem do conhecimento pessoal dos factos, atendendo àquela colaboração. Segundo a testemunha, o Autor ainda não foi reembolsado daquelas quantias que adiantou em pagamento de obrigações fiscais, prestações devidas à segurança social e outros encargos, por conta e em nome das sociedades ora Rés.
Não é despiciendo salientar que nem o próprio Réu “C” contestou, no seu depoimento, que o Autor adiantou do seu bolso o pagamento de tais encargos da responsabilidade das 3ª e 4ª Rés. Afirmou, porém, que aquelas sociedades o reembolsaram de todos os pagamentos que suportou, que em diversas ocasiões saldou as dívidas das sociedades por si geridas entregando-lhe quantias em numerário que retirava das caixas dos respectivos estabelecimentos comerciais. Esclareceu que depositava inteira confiança no Autor e que por essa razão entregou-lhe quantias em dinheiro nas diversas ocasiões em que este o procurou e solicitou pagamentos no âmbito das suas incumbências.
Não se olvida que “G”, alegado fornecedor de tabaco ao estabelecimento da 3ª Ré, afirmou em audiência que numa ou em duas das suas visitas à "“D”- Snack-Bar e Pastelaria" viu o Réu “C” retirar dinheiro da caixa e entregá-lo a um indivíduo que aquele dizia ser o contabilista. Nem que “H”, que disse ter sido cliente do estabelecimento da 4ª Ré, asseverou que em algumas ocasiões, que não soube ou foi capaz de quantificar, viu o Réu “C” retirar dinheiro da caixa da "Tasca “E”" e entregá-lo a um indivíduo que aquele dizia ser o "guarda-livros". Como quer que seja, os depoimentos do Réu “C” e de “G” e “H” revelaram-se vagos, genéricos e inconclusivos, sem qualquer referência a datas ou valores monetários - ainda que por aproximação, para além de nada esclarecerem quanto à causa de tais entregas em dinheiro.
Tais circunstâncias obstam a uma convicção sobre a veracidade destes depoimentos neste particular, não sendo, pois, suficientes para infirmar a convicção do julgador que se deixou expressa.
Na falta de credibilidade de tais depoimentos e na ausência de outros meios de prova concludentes assenta o fundamento da resposta negativa dada ao artigo 24° da BI.
Sem embargo, as declarações prestadas pela mulher do Autor, “F”, não se revelaram convincentes e suficientemente conclusivas para infirmarem o que em contrário foi dito pelo Réu “C” quer relativamente à alegada dívida de honorários reclamada nos autos, quer quanto ao compromisso pessoal alegadamente prestado pelos Réus “C” e “B” de reembolsarem o Autor das despesas por si suportadas e pagarem os honorários.
O Autor juntou aos autos cinco "recibos verdes" de honorários (Docs. 108, 109, 110, 111 e 112 da PI) emitidos em nome da 48 Ré, pelas quantias de € 2 587,50€, 2 800,OO € 2800,00 € 2 800,OO e € 2.600.OO e datados, respectivamente de 31/12/2003, 31/12/2004, 31/12/2005, 31/12/2006 e 01/12/2007.
A inspecção ocular a tais "recibos verdes" (Modelo n.º 6 - art. 115° do CIRS) revela-nos que todos eles foram extraídos do mesmo livro (série AHG) e apresentam numerações muito próximas (0462560t 0462566t 0462573, 0462577 e 0462579). Apelando às regras da lógica e da experiência comum logo se alcança que os recibos em causa foram provavelmente emitidos pelo Autor já em 2007 (na data aposta no último recibo emitido ou em data posterior).
Depois, importa dar nota que, curiosamente o Autor, que manuscreveu e assinou tais "recibos verdes" (a letra daquele foi reconhecida pela mulher no decurso do respectivo depoimento), assinalou nos mesmos, com uma cruz, a opção «Adiantamento por conta de honorários», o que inculca a ideia de que se fez cobrar previamente dos honorários.
Por outro lado, como conciliar o espaçamento temporal da datação de tais recibos com a circunstância de o Autor ter prestado serviços como profissional liberal a outros clientes e os "recibos verdes" em causa pertencerem ao mesmo livro (série AHG) e apresentarem numerações quase sequenciais, muito próximas umas das outras?
E sendo o Autor contabilista com mais de 20 anos de prática, é plausível que tenha organizado a contabilidade da 48 Ré ("Tasca “E”, Lda.") durante cinco anos consecutivos sem receber quaisquer honorários pelos seus serviços? E que só em Janeiro de 2008 (cf. documento a fls. 129-130) tivesse renunciado à nomeação como TOC daquela sociedade, cerca de três meses depois da renúncia à nomeação como TOC da 38 Ré (documento citado)?
Por fim, importa referir que as regras da experiência ensinam-nos que os "recibos verdes" apenas são emitidos após o recebimento dos honorários a que dão quitação. Em suma, a dúvidas que subsistem sobre a realidade deste facto (falta de pagamento de honorários) têm de ser resolvidas contra o Autor sobre quem impende o ónus da prova (artigos 342°/1 do CC e 516° do CPC), princípio em que assentou a resposta dada aos artigos 13° e 14° da BI. Já a convicção do julgador no que tange às respostas dadas aos artigos 15°, 18° e 19° radicou na ausência de prova conclusiva da verificação dos factos neles descritos.
A prova de que o Autor aceitou elaborar as contas das sociedades "A “D”, Snack-Bar e Pastelaria, Lda." e "Tasca “E”. Lda,", apenas por incumbência do respectivo sócio e gerente, o ora Réu “C” (resposta ao artigo 1 ° da BI), de que os actos descritos nas alíneas F), G) e H) foram praticados pelo Autor a pedido exclusivo daquele (resposta ao artigo 2° da BI) e de que o Réu “C” conduzia os negócios da 38 Ré com completa autonomia, sem interferência dos restantes sócios, sendo ele quem tudo decidia em relação à sociedade "A “D”, Snack-Bar e Pastelaria, Lda.", no interesse desta e do casal dissolvido (respostas aos artigos 6°, 7° e 8° da BI), emergiu da análise crítica dos depoimentos prestados pelos Réus “C” e “B”, pela filha do casal, “I”, pelo pai da 18 Ré, “L”, e pela mulher do Autor, “F”. Nesta matéria, os referidos depoimentos revelaram-se concordantes e clarividentes.
Os depoimentos da co-Ré “B”, do seu pai “L” e da filha “I”, conjugados com a certidão da sentença de divórcio (fls. 272 e segs.), contribuíram, ainda, na formação da convicção do julgador que se surpreende das respostas dadas aos artigos 20°, 21°, 22° e 23° da BI, posto que dos mesmos resultou inequívoco que aquela trabalha como educadora de infância, em exclusividade, há mais de 15 anos e que só após a ruptura do casal, no ano de 2007, mas anteriormente ao divórcio e partilha que tiveram lugar em 23 de Maio de 2007, contactou o Autor e foi por este inteirada da situação da gestão das sociedades e do estado da contabilidade.
A resposta dada ao artigo 17° da BI fundamentou-se nos depoimentos dos Réus “C” e “B” e, obviamente, nas regras da lógica e da experiência comum, sendo certo que nenhuma prova, necessariamente documental, foi produzida por forma a ser confirmada a distribuição de dividendos pelos sócios da 3ª e 4ª Rés. E essa prova competia ao Autor e estava facilmente ao seu alcance dada a sua qualidade de contabilista daquelas sociedades (artigo 342°, n.º 1, do CC).
A prova da factualidade vertida nos artigos 22° e 23 da petição inicial resultou do teor das certidões juntas aos autos de fls. 329 a 348. Por sua vez, a convicção do julgador relativamente à resposta dada à matéria do artigo 27° da petição inicial baseou-se no teor das certidões constantes de fls. 272 a 273 e de fls. 274 a 279.
As declarações prestadas por “M”, amigo e cliente do Autor, nenhum contributo deram para o esclarecimento dos factos e, consequentemente, não relevaram na formação da convicção do julgador, por radicarem no conhecimento indirecto dos factos, sendo um testemunho de "ouvir dizer".
      2.4. Não foi objecto de selecção para a base instrutória a alegação do autor – contida no artº 6º da petição inicial – de harmonia com a qual tem a haver dos ditos réus, pelos serviços prestados à 3ª ré, no ano de 2005, 2 625,00€ e 2 600,00€ referente ao ano de 2006.
      2.6. O Tribunal de que provém o recurso julgou provada, no seu conjunto, a factualidade seguinte:
      2.6.1) O Autor exerce a sua actividade profissional como técnico oficial de contas (A/FA).
2.6.2) No âmbito dessa sua actividade profissional, aceitou assumir a responsabilidade da elaboração das contas das 3ª e 4ª Rés (B/FA)
2.6.3) A 1ª e o 2º Réus, ela por si e ambos em representação das suas filhas menores “I” e “J”, por escritura pública outorgada em 7 de Março de 2005, no 11º Cartório Notarial de Lisboa, lavrada de fls. 48 a 51 verso do Livro ...-D, adquiriram as quotas da sociedade comercial com a firma “A “D”, “N”, Lda.” (3ª Ré) – alínea C) dos Factos Assentes (C/FA).
2.6.4) Após reforço e aumento de capital, as quotas da referida sociedade comercial passaram a se detidas pelos valores de 30.000,00 Euros para a 1ª Ré e de 10.000,00 Euros para cada uma das filhas menores (D/FA).
2.6.5) Naquela escritura, o 2º Réu foi nomeado gerente da dita sociedade – cf. documento de fls. 9 a 17 e certidão de fls. 169 a 174, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (E/FA).
2.6.6) O Autor procedeu ao registo dos actos titulados pela escritura supra mencionada, com o que gastou 455,49 Euros (F(FA).
2.6.7) Com a certidão de matrícula da sociedade, o Autor despendeu 17,25 euros, em 02/06/2005 (G/FA).
2.6.8) Para instruir o pedido de empréstimo ao Banco Português de Investimentos, S.A., como financiamento para obras nos estabelecimentos comerciais das sociedades, o Autor procedeu à apresentação de pedidos de certidões prediais, na Conservatória do Registo Predial de ..., pelas apresentações n.ºs 14, de 15/03/2005 e 22 de 14/04/2005, com o que gastou 218,99 Euros (H/FA).
2.6.9) Através da Apresentação 62, de 22/07/1988 mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial/Comercial de ..., a constituição da sociedade comercial por quotas com a firma “Tasca “E”, Lda.”, tendo como sócios a 1ª e o 2º Réus, com uma quota de 24.939,89 Euros, cada um (I/FA).
2.6.10) Para a gerência da dita sociedade foi designado o 2º Réu – cf. documento de fls. 167-168 cujo teor se dá por integralmente reproduzido (J/FA).
2.6.11) Em Setembro de 2007 e Janeiro de 2008, respectivamente, o Autor comunicou às Finanças a sua renúncia à nomeação como Técnico Oficial de Contas responsável pela contabilidade das 3ª e 4ª Rés (L/FA).
2.6.12) O Autor aceitou elaborar as contas das sociedades “A “D”, Snack-Bar e Pastelaria, Lda.” e “Tasca o “E”. Lda.”, por incumbência do respectivo sócio e gerente, o ora Réu “C” (1º/BI).
2.6.13) Os actos descritos em 6), 7) e 8) foram praticados pelo Autor a pedido do Réu “C” (2º/BI).
2.6.14) Relativamente à 3ª Ré, o Autor, nos anos de 2005 e 2006, pagou s seguintes quantias:
- a) IRS retenção de rendas/ordenados – 2.211,00 Euros;
- b) Segurança Social – 4.860,86 Euros (3º/BI).
2.5.15) O Autor pagou igualmente as quantias de € 100 (cem euros) e € 222,25 (duzentos e vinte e dois euros e vinte e cinco cêntimos), respectivamente, de coimas e custas aplicadas à 3ª Ré em processo de contra ordenação fiscal, por falta de apresentação, dentro do prazo legal, de declarações periódicas do IVA (4º/BI).
2.6.16) Em Abril e Maio de 2005 o Autor pagou o montante total de € 1.197,12 (mil cento e noventa e sete euros e doze cêntimos), relativo à retenção na fonte de IRS. As quantias pagas já se encontravam vencidas eram da responsabilidade da 3ª Ré (5º/BI).
2.6.17) O Réu “C” conduzia os negócios da 3ª Ré com completa autonomia, sem interferência os restantes sócios (6º e 7º/BI).
2.6.18) Era o Réu “C” quem tudo decidia em relação à sociedade “A “D”, Snack-Bar e Pastelaria, Lda.”, no interesse desta e do casal dissolvido que foi constituído por si e pela co-ré “B” (8º/BI).
2.6.19) No ano de 2003 o Autor pagou, relativamente a encargos fiscais e sociais da 4ª Ré, as seguintes quantias de:
a) IRC pagamento por conta – 600,00 Euros;
b) IRC pagamento extraordinário – 1.296,00 Euros;
c) IRS sobre ordenados – 367,79 Euros;
d) IRS de rendas – 683,48 Euros;
e) Segurança Social – 7.269,60 Euros (9º/BI).
2.6.20) No ano de 2004, o Autor pagou igualmente as seguintes quantias de:
a) IRC pagamento por conta -1.365,00 Euros;
b) IRC pagamento extraordinário - 824,38 Euros;
c) IRS sobre ordenados -360,00 Euros;
d) IRS de rendas - 708,68 Euros;
e) Segurança Social - 7.037,03 Euros (10º/BI).
21) No ano de 2005, o Autor pagou também as seguintes quantias de: a) IRS sobre ordenados -504,00 Euros;
b) IRS de rendas - 721,74 Euros;
c) Segurança Social - 3.405,77 Euros (11º/BI).
2.6.22) O Autor tratava igualmente de todos os assuntos fiscais dos Réus “C” e “B”, relativos à elaboração e entrega de declarações de IRS (16º/BI).
2.6.23) O Réu “C” contribuía para o sustento da família e pagamento das despesas comuns do casal com as retribuições salariais que auferia como gerente das sociedades 3ª e 4ª Rés (17º/BI).
2.6.24) A 1ª Ré é educadora de infância, no ensino especial, há mais de vinte anos (20º/BI).
2.6.25) E sempre exerceu exclusivamente esta actividade (21º/BI).
2.6.26) Até data indeterminada de 2007, anterior a 23 de Maio, a Ré “B” desconhecia em absoluto os negócios do co-Réu, “C”, assim como desconhecia a gestão e contabilidade das sociedades 3ª e 4ª Rés (22º e 23º/BI).
2.6.27) A 1ª e 2º Réus deixaram de explorar o estabelecimento onde a 3ª Ré exercia a sua actividade e tinha a sede social, o qual se encontra ocupado por outra sociedade (Artigo 22º da petição inicial).
2.6.28) A 3ª Ré já não tem qualquer actividade conhecida (Artigo 23º da petição inicial).
2.6.29) O casamento dos Réus “C” e “B” foi dissolvido em 23 de Maio de 2007, por decisão da Conservadora da 9ª Conservatória do Registo Civil de Lisboa, proferida em processo de divórcio por mútuo consentimento, e que por força da partilha de bens que faziam parte do património do casal a 1ª Ré ficou com a fracção autónoma onde reside e o 2º Réu ficou com as sociedades 3ª e 4ª Rés (artigo 27º da petição inicial).

3. Fundamentos.
3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.
Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).
Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].
Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.
No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[2].
No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.
Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.
Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[3].
Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[4].
Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.
A função do recurso ordinário é, no nosso direito – insiste-se - a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame.
Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.
A primeira e significativa excepção a esse modelo, é a representada pelas questões de conhecimento oficioso[5]: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).
Embora o articulado de petição inicial apresentado pelo recorrente não seja, em largos espaços, absolutamente líquido, a verdade é que ele abre com a alegação de que concluiu, por incumbência dos réus “B” e “C”, com as recorridas sociedades comerciais, um contrato de prestação de serviços – que teve por objecto mediado a elaboração das contas das últimas – e de que, na execução desse contrato realizou várias despesas; todos os recorridos seriam – solidariamente – responsáveis pelo pagamento da sua remuneração e pelo reembolso daquelas despesas: as sociedades comerciais por força daquele contrato, o recorrido “C” por força da sua responsabilidade aquiliana, enquanto gerente daquelas sociedades, perante os credores sociais, e aquele e a recorrida “B”, designadamente, por se haverem comprometido pessoalmente no reembolso das despesas com a satisfação dos encargos das sociedades.
Esta é, no seu sentido mais relevante e na sua expressão mais simples, a causa petendi desenhada pelo recorrente na petição inicial.
Face à sua larga sucumbência, o recorrente, resolveu, na sua alegação, multiplicar os eventuais fundamentos de procedência da acção, invocando um contrato de mútuo e outro de mandato – de que também seriam parte os apelados “B” e “C” - a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e o abuso de direito.
Se o abuso de direito, por se tratar de questão de conhecimento oficioso, constitui objecto admissível do recurso, por representar, sempre, um objecto implícito dele, o mesmo já não sucede, porém, com a alegação relativa ao contrato de mútuo, à gestão de negócios e ao enriquecimento sine causa. Qualquer destes fundamentos não foi alegado na instância recorrida nem, evidentemente, submetido à apreciação da decisão impugnada.
Nenhuma destas questões foi colocada na instância de que provém o recurso – podendo tê-lo sido - e, por isso, esta Relação não pode ser chamada a pronunciar-se sobre elas. Tratam-se, notoriamente, de questões novas, por não terem sido alegadas na instância recorrida e, como tal insusceptíveis de constituir objecto admissível do recurso.
Relativamente à questão – nova – do enriquecimento sine causa, uma outra razão sempre, obstaria, decisivamente, à admissibilidade, nesta instância, do seu conhecimento.
Para o bom julgamento do recurso não é suficiente que a alegação tenha conclusões. Estas deverão ser precisas, claras e concisas de modo a habilitar o tribunal ad quem a conhecer quais as questões postas e quais os fundamentos invocados.
As alegações poderão ser extensas, prolixas e confusas; importa que, no fim, a título de conclusões, o recorrente indique, de forma sintética, os fundamentos da impugnação. 
Mas a verdade é que, muitas vezes, suscita embaraços a questão de saber se o fecho da alegação merece realmente a qualificação de conclusões e, com uma frequência igualmente indesejável, as conclusões são deficientes, obscuras ou complexas ou não contêm as especificações exigidas por lei. Quando as conclusões padeçam destes vícios, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, a esclarecê-las ou sintetizá-las, sob pena de não conhecimento, na parte afectada, do recurso (artº 685-A nº 3 do CPC). Este convite ao aperfeiçoamento das conclusões pode ser sugerido ao relator por qualquer dos adjuntos (artº 708 nº 1 do CPC).
O completamento, o esclarecimento ou a condensação das conclusões não deve, porém, ser pretexto para que o recorrente ofereça nova alegação que exorbite a anterior: o convite destina-se a suprir o vício de que padecem as conclusões e não a modificar as questões suscitadas e os fundamentos invocados pelo recorrente.
A lei prevê o aperfeiçoamento das conclusões – mas não das alegações. Por mais obscuras, complexas e deficientes que estas sejam, a lei não admite que o recorrente seja convidado a corrigi-las ou a ampliá-las.
As conclusões consistem na enunciação de proposições que sintetizam os fundamentos do recurso. A exigência de que a alegação conclua pela indicação sintética dos fundamentos, pressupõe necessária e logicamente que se expuseram mais desenvolvidamente esses fundamentos: a lei exige não só que o recorrente conclua senão também que alegue. O recorrente deve expor ao tribunal ad quem as razões da sua impugnação, a fim de que este tribunal decida se tais razões procedem ou não.
As conclusões devem condensar as razões da discordância do recorrente relativamente à decisão impugnada - expostas na alegação: as conclusões não podem, por isso, extravasar as razões invocadas no corpo das alegações.
Quando isso não suceda, i.e., quando as conclusões contenham um fundamento ou uma razão que não tinha sido exposta nas alegações, em face da impossibilidade de convidar o recorrente a ampliá-las, deve considerar-se não impugnada, nessa parte, a decisão recorrida, com a consequente impossibilidade de conhecimento, nesse segmento, do objecto do recurso[6].
O recorrente dedica uma das conclusões da sua alegação – a f) – ao fundamento do recurso representado pelo enriquecimento sem causa. Simplesmente esta conclusão não resume – acrescenta. Realmente, no corpo da sua alegação o recorrente não gastou uma só palavra no tocante a tal fundamento da impugnação. A consequência é a assinalada: o não conhecimento, nesse ponto – ainda que outro fundamento não existisse - do objecto do recurso.
De resto, o recorrente incorreu igualmente no erro inverso, i.e., invocação no corpo das alegações de um fundamento que não levou às conclusões.
Está nessas condições a alegação da nulidade da sentença impugnada com fundamento na omissão de pronúncia resultante da omissão de selecção para a base instrutória da alegação produzida no artº 6º da petição inicial, que não surge indicada nas conclusões: nestas, o recorrente cingiu aquele valor negativo da decisão impugnada à omissão de pronúncia relativamente ao pedido de condenação dos réus pessoas singulares no pagamento das despesas com o registo comercial dos actos relativos à aquisição das quotas e à matrícula da sociedade comercial A “D” Lda. e aos pedidos de certidões do registo predial.
Em face dessa atitude do recorrente, há que concluir que renunciou, tacitamente, àquele fundamento da impugnação – a nulidade da decisão recorrida assente na deficiência da selecção da matéria de facto, embora, seja evidente a sua falta de bondade (artº 317 do Código Civil e 684 nº 3 do CPC).
No ver do recorrente, aquele vício da nulidade assentaria nisto: a omissão de selecção para a base da prova da sua alegação relativa aos honorários que lhe são devidos pela ré A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda., referentes aos anos de 2005 e 2006, nos valores de 2 625,00€ e de 2 600,00€, respectivamente.
Esta alegação do recorrente é exacta: realmente, aquele enunciado de facto não foi seleccionado para a base instrutória. Simplesmente, essa omissão não constitui causa de nulidade da sentença – mas antes um erro na selecção da matéria de facto e, portanto, num erro sobre o objecto da prova.
Esse erro na selecção da matéria de facto desde que se resolva numa insuficiência do julgamento e da matéria de facto – por aquele e esta não cobrirem toda a matéria de facto alegado pela parte, por ter sido omissa na base instrutória - justifica ou autoriza o uso por esta Relação dos poderes de controlo que lhe permitem mandar ampliar a decisão de facto, em regra, com a consequente anulação da decisão dessa matéria do tribunal recorrido, e a devolução a este do processo para que proceda a novo julgamento (artºs 712 nº 4, 1ª parte, e 650 nº 2 f), por analogia, do CPC)[7].
Quer dizer – e como melhor se procurará mostrar – aquela deficiência da base instrutória, constitui, em regra, fundamento de cassação da decisão da matéria de facto – mas não causa de nulidade da sentença.
Nestas condições, tendo em conta o conteúdo da decisão recorrente e das alegações do recorrente, a questão controversa que importa resolver é de saber se a sentença impugnada se encontra ferida com o vício da nulidade e, em qualquer caso, se deve ser revogada e substituída por outra que condene todos os recorridos na totalidade do pedido.
A resolução deste problema exige que se toquem, ainda que levemente, as causas de nulidade da sentença, a qualificação do acordo de vontades que, segundo o autor, foi concluído entre ele e as recorridas sociedades comerciais, os fundamento de ilisão da presunção de cumprimento em que assenta a prescrição presuntiva, os pressupostos da responsabilidade dos administradores das sociedades relativamente aos credores sociais, do abuso de direito e da condenação por litigância de má fé, e os poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância.
3.2. Nulidade da sentença apelada.
Como é comum, o recorrente imputa à sentença o vício grave da nulidade. De todas as causas possíveis de nulidade, assaca-lhe esta: a omissão de pronúncia.
Convém, portanto, relembrar, em traços largos, o regime das nulidades da decisão.
O regime das nulidades da decisão diverge do regime geral das nulidades em pontos em três aspectos muito importantes.
Em primeiro lugar, existe aqui um numerus clausus de causas de nulidade[8]. Corolário deste princípio da tipicidade é a de quem nem todo e qualquer vício, de forma ou de conteúdo, da sentença produz nulidade. Estão nessas condições, nomeadamente, os vícios formais diversos da falta de assinatura do juiz, resultantes, por exemplo, da infracção das regras processuais relativas à forma externa da sentença: a sentença que a que falte o nome das partes ou identificação do litígio, encontra-se decerto ferida com um vício formal, mas essa patologia não é causa de nulidade da sentença (artº 659 nºs 1 e 2 do CPC).
Em segundo lugar, com excepção da nulidade formal decorrente da omissão da assinatura do juiz, as demais nulidades da decisão não são de conhecimento oficioso, exigindo, portanto, a arguição das partes (artº 668 nº 3 do CPC).
Por último, todas as nulidades são supríveis ou sanáveis. Deste princípio apenas se afasta a nulidade por falta de assinatura do juiz que proferiu a sentença, quando se mostrar impossível colhê-la (artº 668 nº 2, a contrario do CPC).
A falta de impugnação da sentença nula importa a sanação da nulidade de que se encontra ferida e, consequentemente, o seu trânsito em julgado (artº 677 do CPC).
Uma distinção que o regime dos vícios da decisão judicial inculca é a que separa os vícios formais dos vícios substanciais ou de conteúdo. Exceptuando o vício formal da falta de assinatura do juiz todas as demais causas de nulidade – omissão e excesso de pronúncia, falta de fundamentação e contradição entre os fundamentos e a decisão - têm por objecto vícios de substância ou de conteúdo.
O tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas, claro, aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras[9]. O tribunal deve, por isso, examinar toda a matéria de facto alegada e todos os pedidos formulados pelas partes, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tenha tornado inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta dada a outras questões. Por isso é nula, a decisão que deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar, ou seja, quando se verifique uma omissão de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 1ª parte).
Face a este enunciado não é difícil concluir que a sentença impugnada não se encontra ferida com o vício feio da nulidade que o recorrente lhe imputa.
De harmonia com a alegação do recorrente, a nulidade da sentença impugnada, por omissão de pronúncia, radicaria nesta causa: a falta de conhecimento do pedido de condenação dos apelados “B” e “C” no pagamento das despesas ocasionadas pela prática dos actos descritos nas alíneas F) a H) da matéria de facto assente.
Todavia, a verdade é que seria difícil que a sentença não se pronunciasse sobre tal pedido dado que o recorrente pediu a condenação solidária, também daqueles apelados, no pagamento de todas as quantias que julga serem-lhe devidas por qualquer dos recorridos.
E, realmente, a sentença apelada não deixou de se pronunciar sobre aquele pedido. Fê-lo, porem, levando as despesas correspondentes à conta responsabilidade da recorrida A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda., como linearmente decorre do ponto I., als. a) c), do nº IV dos fundamentos da sentença impugnada.
E compreende-se esta atitude da sentença apelada. Tais despesas, tal como foram alegadas na petição inicial, diziam respeito ao registo de actos societários ou com eles conexos e, de harmonia com a mesma alegação, foram realizadas no âmbito do contrato de prestação de serviços, invocado pelo autor logo no artº 1º daquele articulado.
Só na alegação do recurso é que o recorrente tratou de alegar que um daqueles actos dizia respeito ao registo ao registo da aquisição da casa que foi morada da família dos recorridos “B” e “C”, e de salientar, que, afinal, aquelas despesas não relevam da execução do contrato de prestação de serviços – mas, designadamente, do contrato de mútuo e do instituto da gestão de negócio e das regras do mandado civil.
É claro que esta atitude do recorrente se mostra finalisticamente orientada para obviar à actuação da excepção peremptória da prescrição presuntiva, que lhe foi oposta por alguns dos recorridos. Todavia, não o é menos que – como se notou já – tal atitude se resolve na alegação de questões que, por não terem sido suscitadas ou colocadas na instância recorrida, não constituem objecto admissível do recurso, dado que a função deste é a reapreciação da decisão recorrida – nos exactos condicionalismos em que foi proferida – e não um novo julgamento da causa.
Seja como for, no que à arguição do vício da nulidade diz respeito, exacto é, em todo o caso, que não há a mínima razão para a julgar procedente. É claro que a sentença apelada pode ter-se equivocado quanto à responsabilidade pelo reembolso daquelas despesas. Mas neste caso, a decisão recorrida terá incorrido num error in iudicando e não, decerto, no error in procedendo, como é aquele que, caracteristicamente, está na base da nulidade substancial da sentença.
Um pedido que a sentença apelada não apreciou – incorrendo, portanto na nulidade por omissão de pronúncia – foi o de condenação dos recorridos por litigância de má fé, formulado pelo recorrente na réplica. Essa omissão fere com o valor negativo da nulidade aquela decisão. Mas como não a arguição não assenta nesse fundamento específico, não é admissível a declaração correspondente.
De resto, a arguição da nulidade da sentença não toma em devida e boa conta o sistema a que, no tribunal ad quem, obedece o seu julgamento.
O julgamento, no tribunal hierarquicamente superior, da nulidade obedece a um regime diferenciado conforme se trate de recurso de apelação ou de recurso de revista.
Na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC).
No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC).
Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. Exemplo desta última eventualidade é disponibilizado pelo recurso subsidiário. O vencedor pode, na sua alegação, invocar, a título subsidiário, a nulidade da decisão impugnada e requerer a apreciação desse vício no caso de o recurso do vencido ser julgado procedente (artº 684-A nº 2 do CPC). Neste caso, o tribunal ad quem só conhecerá da nulidade caso não deva confirmar a decisão, regime de que decorre a possibilidade de conhecimento do objecto do recurso, sem o julgamento daquela arguição.
Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).
A arguição da nulidade da decisão – embora muitas vezes assente numa lamentável confusão entre aquele vício e o erro de julgamento – é uma ocorrência ordinária. A interiorização pelo recorrente da irrelevância, no tribunal ad quem, que julgue segundo o modelo de substituição, da nulidade da decisão impugnada, obstaria, decerto, à sistemática arguição do vício correspondente.
Por este lado o recurso é, portanto, infundado.
3.3. Qualificação do acordo de vontades concluído entre o autor e as recorridas sociedades comerciais.
De harmonia com a matéria de facto apurada na instância recorrida – a que não é apontado qualquer error in iudicando - o autor, no exercício da sua actividade profissional de técnico oficial de contas (TOC), aceitou assumir, por incumbência do recorrido “C”, a responsabilidade de elaboração das contas das recorridas que têm a natureza de sociedades comerciais.
O contrato que vinculava a recorrente e aquelas recorridas é, decerto, um contrato de prestação de serviço, mas um contrato de prestação de serviço atípico e inominado. Por esse motivo, são-lhe aplicáveis, com as necessárias reconformações, as disposições sobre o contrato de mandato, protótipo, por disposição expressa da lei, dos contratos de prestação de serviço, e, por natureza, dos contratos de gestão (artºs 1154, 1554 e 1155 do Código Civil)[10].
Por força desse contrato o recorrente vinculou-se, relativamente às recorridas sociedades comerciais, a realizar esta prestação fundamental: elaborar as respectivas contas.
O conteúdo exacto do contrato e os deveres de prestar relevam, em primeiro lugar, natural e inteiramente, da autonomia privada (artº 405 nº 1 do Código Civil).
Simplesmente, a especificidade da prestação a que recorrente se adstringiu em face da particular qualidade funcional que lhe assiste – técnico oficial de contas - há que lidar com o conteúdo estatutário, legalmente definido, da respectiva profissão.
Efectivamente, dada a vocação estatutária do técnico oficial de contas (TOC) de interlocutor privilegiado com a administração fiscal, não é de estranhar que a lei se preocupe em definir, com precisão, o exacto âmbito das suas funções. Assim, ao TOC são atribuídas, ex-lege, as funções de planificação, organização e execução a contabilidade das entidades sujeitas ao imposto sobre o rendimento, que possuam ou devam possuir contabilidade organizada, e das entidades obrigadas a dispor de técnicos oficiais de contas; de assunção da responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, daquelas entidades; de subscrição, conjuntamente com o representante legal daquelas entidades, das respectivas declarações fiscais e dos seus anexos, fazendo prova dessa qualidade (artº 6 nº 1 a) a c) do Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (ECTOC), aprovado pelo DL nº 452/99, de 5 de Novembro)[11]. Constitui ainda competência do TOC, o exercício das funções de consultadoria, nas áreas da respectiva formação; quaisquer outras, definidas por lei, adequadas ao exercício das respectivas funções, designadamente as de perito nomeado, pelo tribunais ou outras entidades, públicas ou privadas (artº 6 nº 2 a) e b) do ECTOC).
A matéria de facto que o tribunal da audiência teve por provada, mostra que o autor também tratava das declarações fiscais dos recorridos, “B” e “C”. Mas este ponto em nada releva para o julgamento da causa e do recurso, dado que – como notou a decisão impugnada – o recorrente não deduziu, contra aqueles, com base na prestação desse serviço, qualquer pretensão.
Aquele contrato presume-se, iuris tantum, gratuito, excepto se tiver por objecto actos que o mandatário pratique por profissão: para este caso, vale a regra inversa, quer dizer, uma presunção, também iuris tantum, de onerosidade (artºs 350 nº s 1 e 2, 1158 nº 1, ex-vi artº 1156 do Código Civil).
No caso, como a prestação de serviço tem por objecto actos que relevam da profissão do recorrente, o contrato presume-se oneroso; como esta presunção não foi objecto de ilisão, há que concluir pela onerosidade do contrato.
Sendo o contrato oneroso, a medida da retribuição é, em primeiro lugar, a que resultar do ajuste das partes; na falta de convenção, recorrer-se-á às tarifas profissionais; na falta delas, pelos usos e, finalmente, em última extremidade, pela equidade (artº 1158 nº 2 do Código Civil).
Por força deste contrato, e do carácter oneroso dele, as recorridas a que assiste a natureza de sociedades comerciais ficaram vinculadas a duas obrigações fundamentais: a de pagar ao recorrente a respectiva remuneração; a de indemnizar o autor de todas as despesas que aquele tenha fundamente considerado indispensáveis para o cumprimento do contrato: a obrigação de reembolso abrange, além das quantias dispendidas, os respectivos juros, calculados à taxa legal, juros que têm aqui uma natureza compensatória e não moratória (artº 1167 b) e c), ex-vi artº 1156 do Código Civil).
Por seu lado, o autor está vinculado a estoutra obrigação: a de findo o contrato, prestar contas (artº 1161 d), ex-vi artº 1156 do Código Civil). Esta obrigação postula, evidentemente, negócios patrimoniais, com movimentos recíprocos e, na generalidade dos casos, possivelmente, uma conta-corrente.
Seja qual for a sua fonte do crédito, o autor goza do direito de retenção sobre as coisas e documentos envolvidos na execução da gestão, pelo crédito proveniente desta (artº 755 nº 1 c) do Código Civil). Em contrapartida, os créditos pelos serviços prestados pelo autor e pelo reembolso das despesas correspondentes – seja qual for sua fonte – estão sujeitos à prescrição presuntiva de dois anos (artº 317 c) do Código Civil).
Importa reter este ponto.
Realmente, o recorrente sustenta veementemente no recurso que os pagamentos das dívidas, fiscais e parafiscais das sociedades comerciais, que realizou não constituem despesas que relevam da execução do contrato de prestação de serviço – mas antes empréstimos. Também esta alegação – que repete-se, constitui a invocação de uma questão nova – tem este fito preciso: subtrair o direito à restituição à prescrição presuntiva de curto prazo.
Todavia, é evidente que o adiantamento que qualquer prestador de serviço, maxime, o mandatário, que não teve a cautela ou o cuidado de exigir da contraparte a indispensável provisão, faça para satisfazer despesas relacionadas com a execução do contrato, não se resolve num contrato de mútuo, mas naquilo mesmo: despesas. Assim, por exemplo, é claro que o advogado que, no exercício do mandato judicial, satisfaz, do seu bolso, a taxa de justiça ou uma multa processual devida pelo seu constituinte não celebra, com este um contrato de mútuo, que tenha por objecto mediato a quantia pecuniária correspondente, antes realiza uma despesa de que deve ser adequadamente reembolsado logo que finde o mandato.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos (artº 405 nº 1 do Código Civil).
Se a parte a quem foi prestado o serviço se constituir, no tocante ao cumprimento da obrigação de pagamento da remuneração, em mora, fica adstrito a uma outra obrigação: a de reparar os danos causados à contraparte com o retardamento do cumprimento (artºs 804 nºs 1 e 2 e 805 nº 1 do Código Civil).
A indemnização moratória consiste, dada a natureza pecuniária da obrigação, aos juros contados desde a constituição do comprador em mora (artº 806 nº 1 Código Civil). Esses juros são os legais, salvo se antes da mora for devido juro mais elevado ou se se houver estipulado um juro moratório diferente do legal (artº 806 nº 2 do Código Civil).
De harmonia com o princípio geral sobre a matéria do ónus da prova – que apela à natureza funcional dos factos perante o direito do autor – é este que está vinculado à demonstração dos factos constitutivos do direito que invoca; a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito já incumbe à parte contrária, àquele contra quem a invocação é feita (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil).
Maneira que se o autor alega a existência de um crédito insatisfeito sobre o demandado, nascido de um contrato, é ele que está adstrito ao ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação: celebração do contrato entre as partes; inclusão da prestação exigida entre as cláusulas do contrato a cargo do devedor. Feita a prova destes factos pelo autor, cabe ao réu fazer a prova do facto extintivo do direito do demandante, como, por exemplo, o cumprimento.
Se o autor não demonstrar, v.g., a celebração do contrato com o devedor, o tribunal profere uma decisão contra essa parte, visto que é ela quem está onerada com o ónus da prova do facto correspondente (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil). O mesmo ocorre, mutatis mutandis, com o demandado no tocante ao facto do cumprimento.
Assim, na espécie sujeita, é decerto o recorrente que está onerado com a prova de que concluiu com – alguns - dos recorridos um contrato de prestação de serviço e de que entre as prestações emergentes desse contrato se conta a obrigação daqueles recorridos de lhe pagarem a remuneração convencionada e de o reembolsarem das despesas que suportou, competindo aos recorridos a prova de que realizaram qualquer destas prestações.
3.4. Prescrição presuntiva.
A prescrição – de que o Código Civil não dá uma noção – assenta num facto jurídico involuntário: o decurso do tempo. A ideia comum que lhe preside é a de uma situação de facto que se traduz na falta de exercício dum poder, numa inércia de alguém que, podendo ou porventura devendo actuar para a realização do direito, se abstém de o fazer[12].
O instituto da prescrição visa, no essencial, tutelar o devedor, relevando-o da prova. À medida que o tempo passa, o devedor terá maior dificuldade em fazer a prova do cumprimento. Na falta da prescrição, qualquer pessoa poderia ser demandada novamente a todo o tempo por débitos que foi pagando ao longo da vida. A não ser a prescrição, o devedor ficaria numa posição permanentemente fragilizada, dado que nunca estaria seguro de ter deixado de o ser. Complementarmente, a prescrição serve ainda objectivos de ordem geral, atinentes à certeza e segurança jurídicas[13].
Verificada a prescrição, o seu beneficiário tem a faculdade de, licitamente, recusar a prestação a que estava adstrito (artº 304 nº 1 do Código Civil).
A prescrição não tem, portanto, uma eficácia extintiva, antes de limita a paralisar o direito do credor, dado que apenas confere o direito de a invocar: se este direito não for exercido, a obrigação mantém-se civil, não se produzindo quaisquer efeitos; se a prescrição for invocada, a obrigação converter-se-á em obrigação natural – como tal inexigível, mas com solutio retendi[14].
A prescrição comporta duas modalidades: a prescrição ordinária ou extintiva e a prescrição presuntiva[15].
A prescrição presuntiva é uma simples presunção de pagamento e justifica-se pelo facto de se referir a obrigações que são, habitualmente, liquidadas em prazo curto, não sendo usual exigir-se quitação do pagamento: decorrido o prazo legal, a lei presume que o pagamento foi realizado, dispensando o devedor da respectiva prova que, dada a ausência de quitação, seria extraordinariamente difícil (artº 312 do Código Civil)[16].
A prescrição presuntiva assenta numa presunção de que a dívida foi paga.
A presunção é, porém, extraordinariamente sólida. Ao contrário do que decorre das regras gerais relativas às presunções iuris tantum, o credor não pode ilidir a presunção, provando que, afinal o devedor não pagou: apenas o devedor, por confissão, o poderá fazer (artºs 350 nº 2 e 313 do Código Civil)[17].
A confissão consiste no reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que a desfavorece e que favorece a parte contrária e, por isso, no tocante à ilisão da prescrição presuntiva a confissão – que tanto pode ser feita pelo devedor originário como por aquele a quem dívida se tenha transmitido por sucessão - consistirá justamente no reconhecimento de que a dívida não foi paga (artºs 313 nº 1 e 352 do Código Civil).
Essa confissão, do devedor ou do seu sucessor, pode, todavia, ser meramente tácita. Os facta concludentiam que permitem inferir, tacitamente a confissão, assumem, porém, neste domínio uma feição específica dado que apenas podem consistir na recusa do devedor em depor ou em prestar juramento ou na prática, em juízo, de actos incompatíveis com a presunção de cumprimento (artº 314 do Código Civil).
A ilisão da presunção, assente em o devedor praticar em juízo actos incompatíveis com a presunção do cumprimento, deu lugar a uma casuística infindável. Assim, por exemplo, o devedor que discute o valor da dívida ou que nega a sua existência ilide a presunção do cumprimento[18]. Do mesmo modo, também ilide a presunção o devedor que, na contestação, reconheça não ter feito o pagamento[19]. O réu que não cumpra o ónus de impugnação especificada dos factos invocados pelo autor, ilide igualmente aquela presunção[20]. Contrariam também a presunção do cumprimento, designadamente, a invocação de uma causa de nulidade ou de anulabilidade da obrigação, a alegação da gratuitidade dos serviços prestados, a remessa da determinação da dívida para o tribunal, a contestação da solidariedade da dívida, invocando o benefício da divisão, a alegação de pagamento de quantia inferior à reclamada, sob o pretexto de que aquele pagamento corresponde à satisfação integral da dívida, etc.
Para fazer valer a prescrição presuntiva, o réu terá de alegar, de forma clara e inequívoca, que pagou a dívida[21].
Uma das previsões de uma prescrição de dois anos é a relativa aos créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes (artº 317 c) do Código Civil).
Por profissões liberais devem entender-se as actividades de carácter intelectual e que sejam desenvolvidas sem subordinação jurídica. Realmente, numa perspectiva própria do direito civil, pode bem dizer-se que, dentro da prestação laboral, a profissão liberal se caracteriza por duas notas principais: trata-se, de um lado, de trabalho não subordinado, e há, de outro, um predomínio do aspecto intelectual sobre o esforço físico ou o carácter mecânico na natureza do trabalho prestado.
Nestas condições, a prestação de serviços na área da contabilidade resolve-se no exercício de uma profissão liberal e, por isso, os créditos resultantes da prestação dessa actividade liberal – designadamente a remuneração e as despesas realizadas no exercício dessa actividade e por causa dela, estão sujeitos à prescrição presuntiva de dois anos[22].
Diversamente da verdadeira prescrição, a prescrição presuntiva não produz a paralisação do direito, antes constitui, em benefício do devedor, uma presunção, meramente iuris tantum, mista ou sui generis, de ter realizado a prestação a que estava adstrito (artº 350 nºs 1 e 2 do Código Civil)[23].
Os prazos da prescrição presuntiva caracterizam-se pela sua exiguidade, sendo nalguns casos de seis meses e, noutros, de dois anos (artºs 316 e 317 do Código Civil). A contagem do prazo de prescrição presuntiva obedece, porém, às regras comuns, pelo que o curso desse prazo só se inicia no momento em que o credor puder exercer o seu direito, exigindo do devedor a realização da prestação devida (artº 306 nº 1, ex-vi artº 315, do Código Civil).
3.5. Pressupostos da responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais relativamente aos credores sociais.
Seja qual for a natureza jurídica que, em definitivo, deva reconhecer-se à situação jurídica de administração[24], é irrecusável que o administrador da sociedade comercial está, por força da lei, adstrito a um dever de diligência, a que a lei, ela mesma, assinala este conteúdo: o dever de actuar com a diligência de gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores (artº 64 do Código das Sociedades Comerciais)[25].
A violação pelo administrador dos deveres a que, legalmente e contratualmente está adstrito, fá-lo em responsabilidade perante os credores sociais, os sócios[26] e terceiros - e perante a sociedade (artºs 72 nº 1, 78 nº 1 e 79 nº 1 do Código das Sociedades Comerciais).
Os gerentes das sociedades comerciais respondem perante os credores sociais quando o património social, pela inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas a protegê-los, se torne insuficiente para a satisfação dos respectivos créditos (artº 78 nº 1 do CSC)[27].
Esta imputação é delitual, assente numa das modalidades de ilicitude previstas na cláusula geral de responsabilidade civil aquiliana: a violação de normas de protecção (artº 483 nº 1 do Código Civil)[28]. Para que a responsabilidade fosse obrigacional, necessário seria que entre o gerente e o credor social se mostrassem constituídos vínculos característicos dessa forma de responsabilidade. Tais vínculos não existem, dado que a personalidade jurídica de que, indubitavelmente, gozam as sociedades comerciais, coloca a relação entre o gerente e o credor social num plano diferenciado.
Exige-se, portanto, para este tipo de responsabilidade, a violação de normas de protecção dos credores, infracção que seja causa de insuficiência patrimonial[29]. Além, disso, são exigíveis, evidentemente, a presença no caso dos demais requisitos da imputação aquiliana, com especial relevo para a ilicitude, a culpa e o nexo causal[30]. Nenhum destes elementos constitutivos da responsabilidade se presume: o ónus da prova da sua verificação incumbe, nos termos gerais, ao credor social que se diz lesado (artº 487 do Código Civil)[31].
3.6. Abuso de direito.
Apesar de o abuso do direito ser de conhecimento oficioso[32], o mais distraído dos operadores ou observadores judiciários não pode deixar de notar que quase não há processo em que as partes, per abundantiam, ou á míngua de outros argumentos, não invoquem o abuso do direito. Por contraste – e por certo também em consequência da erosão que o instituto sofre com a sua indevida convocação - há casos em que tal arguição de todo se justificaria, mas em que, inexplicavelmente, se omite a sua invocação.
O abuso do direito deve ser usado sempre que necessário. O que não deve é ser banalizado, exigindo-se sempre uma ponderação cuidadosa dos seus requisitos e, portanto, a correcção, no caso concreto, da sua intervenção, sobretudo quando esta conduza a uma solução contrária à lei estrita[33].
De outro aspecto, o abuso do direito, exprimindo um nível último e irrecusável de funcionalização dos direitos à realização dos interesses que justificam o seu reconhecimento, é um instituto de carácter poliédrico e multifacetado como logo se depreende a partir da tipologia dos actos abusivos que se incluem na categoria e com os quais se procura densificar a indeterminação do conceito correspondente.
Assim, são reconduzidos ao abuso do direito, por exemplo, o venire contra factum proprium, quer dizer, a proibição do comportamento contraditório e a supressio (supressão)[34], ou seja, a neutralização de um direito que durante muito tempo se não exerceu, tendo-se criado, pela própria conduta, uma expectativa legítima de que não iria ser exercido, e a surrectio, i.e., o surgimento de um direito por força de um comportamento contraditório qualificado pelo decurso do tempo[35].
Dos vários tipos de actos abusivos possíveis, a conduta dos recorridos é, segundo a alegação do recorrente, reconduzível a uma situação de venire contra factum proprium nulli conceditur.
Segue-se, por isso, que o controlo da adequação material da solução disponibilizada pelo abuso do direito exige uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima.
Como já se notou, na doutrina portuguesa, a proibição do venire contra factum próprio tem sido localizada dentro dos quadros do abuso do direito[36]. Mas não falta quem o situe na tutela da confiança - formulando como requisitos para a proibição do comportamento contraditório a existência de uma situação objectiva de confiança, o investimento de confiança do lado da pessoa a proteger e a imputabilidade ao agente daquela situação[37] - ou o análise no quadro das regulações típicas de comportamentos abusivos[38]. Neste último enquadramento, a locução venire conta factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Reclama, portanto, dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo - o primeiro - o factum proprium - é contrariado pelo segundo[39]. Trata-se de tutelar uma situação de confiança, enquanto factor material da boa fé[40]. Deste modo, há venire contra factum proprium, por exemplo, quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não praticar determinado acto e, depois, pratica-o, violando a confiança da contraparte de que isso não ocorreria.
 Assim, uma pessoa que manifeste a intenção de não exercer um direito potestativo ou um simples direito subjectivo, mas acaba por exercê-lo, actua contra facta propria. O exercício do direito, nestas condições, é inadmissível. Haveria abuso do direito (artº 344 do Código Civil)[41].
Na jurisprudência, a proibição do venire é também reconduzida ao abuso de direito. Faz-se notar, aliás, que dentro da boa fé em sentido objectivo, o instituto com que com mais frequência se depara na jurisprudência é o venire contra factum proprium[42]. Está nessas condições, por exemplo, a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através do abuso de direito[43].
O venire contra factum proprium - que constitui reflexo do afinamento ético do Direito moderno - é um tipo não compreensivo de exercício inadmissível de direitos e, como tal, tem uma grande extensão.
Mas nem toda conduta contraditória do exercente lhe é redutível. Exige-se, para que essa redução seja possível, um investimento de confiança realizado pela contraparte contra quem o direito é exercido, fundado na expectativa, lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria, uma qualquer situação de confiança que deva ser protegida contra o exercício do direito pela contraparte.
Assim, em primeiro lugar, reclama-se um comportamento anterior do exercente do direito que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança; exige-se, depois, a imputabilidade aquele quer do comportamento anterior quer do comportamento actual; de seguida, há que verificar a necessidade e o merecimento do prejudicado com o comportamento contraditório; por último, há que averiguar a existência do investimento de confiança ou baseado na confiança, causado por uma confiança subjectiva, objectivamente justificada.
O principal efeito do venire é, naturalmente, o da inibição do exercício de poderes jurídicos ou de direitos, em contradição com o comportamento anterior.
3.7. Litigância de má fé.
Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, as partes estão adstritas a um dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos (artºs 266, 266-A e 456 nºs 1 e 2 a) a e) do CPC).
A infracção do dever de honeste procedere pode, pois, resultar de uma má fé subjectiva, se é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta a violação dos padrões de comportamento exigível.
O dever de cooperação assenta, quanto às partes, no dever de litigância de boa fé (artº 266-A nº 1 do CPC). Sobre as partes recai um dever de verdade, não como mero dever moral - mas como verdadeiro dever jurídico. Insiste-se neste ponto, uma vez que a observação da realidade judiciária, mostra que as partes parecem, às vezes, comportar-se como se lhes fosse inexigível o cumprimento do dever de verdade ou mesmo como se lhes assistisse um direito de mentir, que servisse como causa justificativa da falsidade.
Note-se, no entanto, quanto ao dever de verdade, que ele apenas implica a obrigação para a parte de apresentar os factos tal como, em sua opinião, eles ocorreram, de modo que, para aferir a boa fé da parte o que releva é, portanto, uma verdade subjectiva, dado que só litiga de má fé a parte que alega o que não conhece ou que omite o que conhece.
A litigância de má fé apresenta especificidades quer quanto à conduta sancionada, quer quanto à culpa e quanto às consequências.
No tocante à conduta reprimida, comporta três tipos de actuação substancial e uma de conduta processual. Tem a ver com a primeira a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não se deva ignorar, a alteração dos factos ou a omissão de factos relevantes para a decisão da causa e a omissão grave do dever de cooperação (artº 456 nºs 2 a) a c) do CPC); no domínio da conduta processual, o tipo legal relata um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais, com um de três fins: conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, protelar, sem fundamento sério o trânsito em julgado da decisão (artº 456 nº 2 d) do CPC).
Portanto, a má fé processual tanto pode ser substancial como instrumental. É substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (artº 456 nº 2 a) e b) do CPC); é instrumental nos casos restantes (artºs 456 nºs 1 e 2 c) e d) e 720 do CPC).
O dano não é pressuposto da má fé: castiga-se a litigância de má fé independentemente do resultado; apenas releva o próprio comportamento mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada[44].
Só se penaliza a conduta cometida com dolo ou com negligência grave[45]; a negligência comum não releva. Além disso, o alargamento da relevância da negligência grave ou grosseira restringe-se às prevaricações substanciais (artº 456 nº 2 d) do CPC); nas processuais apenas releva o dolo[46].
A litigância de má fé opera oficiosamente; apenas a indemnização – que está sujeita a regras mais restritivas de que o princípio geral do direito das obrigações – exige um pedido da parte[47] (artº 456 nº 1 e 457 do CPC e 562 e ss. do CC)[48].
A indemnização deve ser fixada na própria acção, não podendo a sua liquidação se relegada para momento ulterior[49] e pode ser simples ou agravada (artº 457 nº 1 b), 2ª parte, in fine, do CPC). É simples quando consiste apenas no reembolso das despesas a que a má fé obrigou a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos (artº 457 nº 1 a) do CPC); é agravada quando consiste no reembolso daquelas despesas e na satisfação dos demais prejuízos sofridos pela parte contrária (artº 457 nº 1 b) do CPC). A opção pela indemnização limitada ou plena cabe ao tribunal que deve, na escolha, ter em conta, por exemplo, a intensidade do dolo do litigante de má fé (artº 457 nº 1 b), 2ª parte, do CPC).
A situação económica do litigante de ma fé deve ser considerada na determinação do valor da multa, mas nenhuma influência deve exercer sobre a questão da indemnização: quando a esta releva apenas a conduta do litigante.
3.8. Parâmetros do controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância.
A apelação destina-se também a facultar o controlo da decisão do tribunal de 1ª instância relativamente à matéria de facto e, pode, de resto, ter por único fundamento, um error in judicando dessa matéria. Um tal error in judicando da matéria de facto pode radicar em duas causas diversas: pode tratar-se simplesmente de um erro na selecção do objecto da prova ou de um erro na apreciação dessa prova.
3.8.1. Erro sobre o objecto da prova.
Um primeiro caso em que a Relação pode ser chamada a censurar o julgamento da matéria de facto realizado na 1ª instância não respeita à violação dos critérios de apreciação da prova – mas à infracção das regras relativas à selecção da matéria de facto. Não se trata, portanto, de controlar a correcção do procedimento de apreciação da prova da matéria de facto – mas a exactidão da operação de selecção dessa matéria.
A selecção da matéria de facto desdobra-se em duas operações diversas: a primeira é a escolha, a partir do mole de factos articulados pelas partes, dos factos relevantes, i.e., dos factos que correspondem a todos os possíveis enquadramentos jurídicos da causa (artº 511 nº 1 do CPC); a segunda é a separação, no conjunto factos julgados relevantes para a decisão da causa, segundo qualquer das soluções plausíveis da questão de direito, daqueles que devem considerar-se assentes e dos que se mostram controvertidos, i.e., dos que devem constituir objecto da prova e, como tal, devem figurar na base instrutória (artºs 508-A nº 1 e 511 nº 1 do CPC).
Esta selecção deve incidir sobre todos os factos que sejam relevantes segundo todos os possíveis enquadramentos jurídicos do objecto da acção. Assim, qualquer facto não deve deixar de ser seleccionado, ainda que ele só possa ser relevante se, em relação a uma questão controversa na doutrina ou na jurisprudência, o tribunal vier a adoptar um determinado entendimento ou a preferir uma certa solução: ao juiz da causa não cabe, no momento da selecção dos factos relevantes, antecipar qualquer solução jurídica e, menos ainda, excluir da escolha os factos que não forem relevantes segundo esse enquadramento.
A decisão de selecção da matéria de facto pode encontrar-se ferida dos vícios da deficiência, excesso ou da obscuridade (artº 511 nº 2 do CPC).
Aquele despacho é deficiente quando omite factos relevantes para a decisão da causa, i.e., facto articulado controvertido pertinente à causa e indispensável para a resolver; sofre do vício oposto, i.e., do excesso, se versa sobre factos não articulados ou sobre factos alegados mas que não pertencem à categoria dos factos controvertidos; padece do defeito da obscuridade, quando se encontra redigido em termos tais, que suscita dúvida legítima sobre o verdadeiro sentido ou alcance dos pontos de facto objecto de selecção ou quando de todo em todo não se apreende o seu sentido ou aqueles se prestam a interpretações diferentes.
A cada um destes vícios corresponde um simétrico fundamento de reclamação contra a selecção da matéria de facto, que é decidida por despacho. Mas o despacho que recai sobre essa reclamação não é autonomamente recorrível, só podendo ser impugnado no recurso interposto da decisão final (artº 511 nº 3 do CPC).
Ao despacho que decida a reclamação contra a matéria de facto não se associa, portanto, o efeito de caso julgado, que torne indiscutível, a exactidão do procedimento quer da escolha dos factos relevantes quer da sua repartição entre os que devem desde logo considerar-se assentes e os que devem reputar-se controvertidos (Assento do STJ nº 14/94, de 4 de Outubro, BMJ nº 437, pág. 35, hoje com a autoridade diminuída de acórdão de uniformização de jurisprudência – artº 17 nº 2 DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Todavia, a impugnação do erro na selecção do objecto da prova, não está sequer na dependência da dedução de reclamação contra o despacho correspondente, dado que a selecção da matéria de facto, mesmo quando contra ela não tiver sido deduzida qualquer reclamação, não transita em julgado e, por isso, não se torna vinculativa no processo (artº 511 nº 2 do CPC).
Portanto, a inclusão de um facto na base instrutória não impede que o tribunal entenda – maxime na sentença final – que o facto está provado ou admitido por acordo e, por isso, não deveria ter sido incluído nessa base[50]. Se isso se verificar, é irrelevante o eventual julgamento do tribunal da audiência – singular ou colectivo – sobre esse facto, pelo que a contradição entre um facto assente e a resposta daquele tribunal é sempre resolvida, por uma razão que se compreende por si, a favor daquele.
 Da mesma maneira, a consideração pelo tribunal de que o facto está admitido por acordo ou provado, também não significa que ele não seja realmente controvertido. Consequência desta asserção é a competência de ampliação da base instrutória que a lei reconhece ao presidente do tribunal da audiência final, ao Tribunal da Relação e, mesmo, ao Supremo (artºs 650 nº 2 f), 712 nº 4 e 729 nº 3 do CPC).
A selecção da matéria de facto, tenha ou não sido impugnada através de reclamação, não transita em julgado e, portanto, não impede o exercício, mesmo oficiosamente, pela Relação do poder de controlo da correcção do procedimento correspondente.
Esta patologia da decisão da matéria de facto, proveniente de erro na selecção da matéria de facto, pode dar lugar à alteração, pela Relação, daquela decisão ou à anulação mesmo do julgamento correspondente. No primeiro caso a apelação é julgada de harmonia com o modelo de substituição; no segundo, o julgamento desse recurso segue, nitidamente, o sistema de cassação.
Sempre que considere deficiente obscura ou contraditória a decisão sobre determinados pontos de facto ou quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto – por se ter omitido o julgamento de um facto relevante, designadamente por não constar da base instrutória – a Relação anula a decisão da 1ª instância e reenvia-lhe o processo para que proceda a novo julgamento (artº 712 nº 4, 1ª parte, do CPC)[51].
O julgamento do recurso de harmonia com o modelo de cassação justifica-se pelo facto de a decisão da matéria de facto se encontrar ferida de um erro de julgamento, mas de este erro não resultar de um erro na apreciação da prova - mas de um erro sobre o objecto dessa prova.
3.8.2. Erro na apreciação da prova.
As dificuldades na exacta delimitação dos poderes de controlo da Relação no tocante ao julgamento da matéria de facto sobem, porém, de tom no caso de o erro da decisão dessa matéria radicar, não no erro sobre o objecto da prova - mas no erro na apreciação da prova.
É indiscutível a afirmação de que, a par da utilização de um processo justo e da escola e interpretação correctas da norma jurídica aplicável, um dos fundamentos de uma decisão justa é o da verdade na reconstituição dos factos objecto do processo.
De nada vale ao juiz uma compreensão exacta da norma aplicável ao caso se, do mesmo passo, se deixa equivocar na apreciação da matéria de facto. O error in judicando da questão de facto traz consigo, inevitavelmente, um erro de direito; erro esse que, nem por ter aquela causa, resultará menos sensível para os destinatários lesados.
A reconstrução da espécie de facto, o saber na realidade como as coisas são ou se passaram, quando este conhecimento dependa de elementos de prova cuja apreciação é deixada ao prudente critério do juiz, é uma actividade extraordinariamente delicada – que ele terá de levar a cabo sem nenhuma ou quase nenhuma ajuda, pode dizer-se, da ciência do direito, que, nada ou quase nada, lhe pode dizer[52].
As dificuldades do controlo da exactidão do julgamento da questão de facto resultam, fundamentalmente, da falta de homogeneidade da assunção das provas pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação e da natureza da actividade de julgamento da questão de facto.
Durante largos anos prevaleceu entre nós uma errónea parificação entre a oralidade e proibição do registo do acto levado a cabo oralmente. O equívoco é manifesto: mesmo quando os actos de produção de prova pessoal são objecto de registo, o juiz a quo não deixa de os receber oralmente e é nessa base que os valora, sendo o seu registo mera formalidade complementar.
Oralidade não é, portanto, sinónimo de exclusão de registo, no sentido de proibição de todos os actos que tenham lugar oralmente fiquem registos, a servir, por exemplo, fins de controlo de assunção da prova, maxime em matéria de recursos.
Isto foi esquecido pelo legislador do nosso CPC de 1939, ao tomar o princípio da oralidade como base justificativa da impossibilidade de se fazer registo da prova prestada em julgamento[53]. A combinação desta circunstância com o facto de, por um lado, o sistema de recursos ser o da escrita, com absoluta exclusão da oralidade, e, por outro, haver tribunais de recurso – por exemplo, a Relação – que conhecem também da questão de facto, tornava o sistema absurdo, por dar como uma mão – possibilidade de recurso da decisão da matéria de facto – aquilo que tirava com a outra – proibição de registo da produção oral da prova.
A Relação é normalmente um tribunal de 2ª instância. Pela sua própria índole, a Relação tem competência para apreciar e conhecer tanto de questões de direito como de questões de facto. O recurso de apelação é precisamente aquele que, segundo a sua natureza de recurso amplo, deveria ter eficácia e alcance para submeter à consideração da Relação toda a matéria da causa.
Todavia a verdade é que, até há relativamente pouco tempo, o recurso que se interpusesse da sentença final da causa, incidia, em regra, unicamente sobre questões de direito, funcionando, por isso, a Relação também como tribunal de revista (artº 712 do CPC de 1939).
Absurdo ou não o sistema foi com ele que viveu, durante décadas, o direito processual português.
A atribuição ao recurso de apelação da natureza de recurso verdadeiramente global e, correspondentemente, a possibilidade de a Relação conhecer da matéria de facto, pressupõe que a esse Tribunal são garantidas, pelo menos, as mesmas condições que são asseguradas ao tribunal recorrido.
O sistema actual de recursos procurou conciliar as garantias da oralidade e da imediação – que contribuem decisivamente para o bom julgamento da causa, em especial, no que se refere à apreciação da matéria de facto – com algumas exigências práticas.
Estas exigências conduzem, por exemplo, a que o controlo sobre um decisão relativa ao julgamento de um facto supostamente provado pelo depoimento de uma testemunha, não requeira a presença dessa testemunha perante o tribunal ad quem. É suficiente, na lógica da lei, que seja disponibilizado a este tribunal o registo ou a gravação desse depoimento (artº 685-B nºs 1, b) e 2 e 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).
O registo dos actos de produção da prova é feito por gravação, em regra, por meios sonoros (artºs 522-B e 522 C) nºs 1 e 2 do CPC). Essa gravação é efectuada, também em regra, por equipamentos existentes no tribunal e por funcionário de justiça (artºs 3 nº 1 e 4 do DL nº 39/95, de 15 de Fevereiro).
O controlo efectuado pela Relação sobre o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal da 1ª instância, pode, entre outras finalidades, visar a reponderação da decisão proferida.
A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e, portanto, substituir - a decisão da 1ª instância se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de facto da matéria em causa ou se, tendo havido registo da prova pessoal, essa decisão tiver sido impugnada pelo recorrente ou se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por qualquer outra prova (artº 712 nºs 1 a) e b) e 2 do CPC).
Note-se, porém, que não se trata de julgar ex-novo a matéria de facto - mas de reponderar ou reapreciar o julgamento que dela foi feito na 1ª instância e, portanto, de aferir se aquela instância não cometeu, nessa decisão, um error in judicando[54]. O recurso ordinário de apelação em caso algum perde a sua feição de recurso de reponderação para passar a ser um recurso de reexame.
Mas para que a Relação altere e, portanto, substitua, a decisão da matéria de facto da 1ª instância não é suficiente um qualquer erro. Este erro há-de ser manifesto, ostensivamente contrário às regras da ciência, da lógica e da experiência, que aponte, decisiva e inequivocamente, para, o julgamento do facto, um sentido diverso daquele que lhe imprimiu o decisor da 1ª instância - e não, simplesmente, que se limite a sugerir ou a tornar provável ou possível esse outro sentido[55].
Nem, aliás, é difícil explicar a exactidão de um tal entendimento dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto que a lei adjectiva actual reconhece à Relação.
De um aspecto, porque esse controlo e a reponderação correspondente da matéria de facto é efectuado, em regra, a partir da reprodução de registos sonoros, rectior, gravações áudio, de depoimentos, ou da leitura fria e inexpressiva da sua transcrição. Ora, é irrecusável que depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode alguma vez ser medido pelo tom em que foram proferidos; a palavra é simultaneamente um meio de exprimir conteúdos de pensamento e de os ocultar; todas as formas de comunicação não verbal do depoente influem, quase tanto como a sua expressão oral, na força persuasiva do seu depoimento[56]. Existem aspectos e reacções dos depoentes que apenas podem ser apreendidos e apreciados por quem os constata presencialmente e que a gravação sonora, e muito menos a transcrição, não tem a virtualidade de registar e que, por isso, são irremissivelmente subtraídos à apreciação do último tribunal relativamente ao qual ainda seja lícito conhecer da questão correspondente[57]. Tratando-se de prova pessoal, rectius, testemunhal, o registo – sonoro ou escrito - comporta o risco de tornar formalmente equivalentes declarações substancialmente diferentes, de desvalorizar depoimentos só aparentemente imprecisos e de atribuir força persuasiva a outros que só na superfície dela dispõem.
A decisão da matéria de facto, respeita, por definição, à averiguação de factos – i.e., a ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos, a qualquer mudança do mundo exterior, ao estado, qualidade ou situação real das pessoas e coisas[58] – e o resultado dessa actividade pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Todavia, essa actividade não se traduz num juízo silogístico-formal de subsunção, não é uma operação pura e simplesmente lógico-dedutiva – mas uma formação lógico-intuitiva. A dificuldades que daqui decorrem para o controlo dessa actividade são meramente consequenciais.
Por último, convém ter presente que o controlo da matéria de facto tem por objecto uma decisão tomada sob o signo da livre apreciação da prova, atingida de forma oral e por imediação, i.e., baseada numa audiência de discussão oral da matéria a considerar e numa percepção própria do material que lhe serve de base (artºs 652 nº 3 e 655 nº 1 do CPC)[59].
Decerto que liberdade de apreciação da prova não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade e, portanto, que essa apreciação há-de ser reconduzível a critérios objectivos: a livre convicção do juiz, embora seja uma convicção pessoal, não deve ser uma convicção puramente voluntarista, subjectiva ou emocional – mas antes uma convicção formada para além de toda a dúvida tida por razoável e, portanto, capaz de se impor aos outros. Mas não deve desvalorizar-se a circunstância de essa convicção sobre a realidade ou a não veracidade do facto provir do tribunal mais bem colocado para decidir a questão correspondente.
O procedimento desenvolvido para estabelecer os factos sobre os quais o tribunal deve construir a sua decisão não é puramente cognitivo, o que explica a inevitável relatividade da certeza histórica de um facto que a prova disponibiliza.
Contudo, esse procedimento, na medida em que assenta num esquema lógico, permite estabelecer uma regra de valoração da prova que se analisa nas proposições seguintes: a valoração da prova é uma operação mental que resolve num silogismo em que a premissa menor é a fonte ou o meio de prova – o depoimento, o documento, etc. - a premissa menor é uma máxima de experiência e a conclusão é a afirmação da existência ou a inexistência do facto que se pretendia provar; as regras de experiência são juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos. Deste ponto de vista, a única diferença entre um sistema de prova livre e um sistema de prova legal, consiste no facto de na última, a máxima de experiência, que constitui a premissa menor do silogismo, ser estabelecida ou objectivada pelo legislador, ao passo que, no primeiro, se deixa ao juiz a determinação da máxima de experiência que deve aplicar no caso. Em ambos os casos, o método de valoração da prova não deve ser contrário à lógica, devendo antes ser actuado de harmonia com um critério de normalidade jurídica, derivado do id quod plerumque accidit - daquilo que normalmente sucede[60].
Nestas condições, a apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference. Os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis[61].
O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis – a realidade ou a inveracidade de um facto – tem menor probabilidade de não ser a correcta.
3.8.1.1. Erro sobre o objecto da prova.
Um dos fundamentos do recurso respeita, precisamente, à actividade preparatória do julgamento da prova – o erro na selecção dos factos que integram o objecto probatório ou base instrutória.
Esse erro traduz-se, de harmonia com a alegação da recorrente, na omissão de selecção para a base instrutória dos factos que alegou no artº 6º da petição inicial relativos aos honorários dos anos de 2005 e 2006 a que se julga com direito pela prestação do serviço convencionado à recorrida A “D” Snack-Bar e Pastelaria Lda.
Esta alegação do recorrente é inteiramente exacta: aquele facto controvertido e relevante para a decisão da causa não foi, por erro, seleccionado para a base da prova. A selecção da matéria de facto é, portanto, deficiente e essa deficiência comunicou-se ao julgamento que, por essa razão é também ele deficiente, já que não cobre toda a matéria de facto alegada pelo recorrente, relevante segundo os vários enquadramentos jurídicos possíveis do objecto da causa.
Não é necessário prodigalizar mais razões para mostrar que importa ordenar quanto a esses pontos a ampliação da base instrutória de modo que os factos correspondentes sejam submetidos a instrução e julgamento (artº 712 nº 4 do CPC).
Todavia, a deficiência da selecção da matéria de facto – e a correspondente omissão de julgamento - é mesmo mais ampla, dado que se omitiu a inserção na base instrutória também dos factos relativos à insuficiência do património das recorridas sociedades comerciais para a satisfação dos créditos alegados pelo autor nos artºs 27 e 28º do articulado de petição inicial. Omissão que deve a um claro erro do despacho de selecção da matéria de facto: o de que tais factos só documentalmente podem provar-se.
Todavia, é bem inútil que se ordene a ampliação da matéria de facto a tal ponto. Por esta razão: aquele facto releva nitidamente para o problema da responsabilidade aquiliana do apelado “C”, enquanto gerente das sociedades comerciais recorridas, face aos credores sociais. Porém – como melhor se procurará mostrar – essa responsabilidade depende da prova de outros pressupostos que no caso, o recorrente, não demonstrou e mesmo nem sequer alegou.
De outro aspecto, como a questão da remuneração que, segundo a alegação do recorrente, lhe é devida pela prestação dos serviços à recorrida A “D”, Snack-bar e Pastelaria Lda. é apenas um dos objectos do recurso, nada obsta a que se conheça dos demais objectos dele, designadamente, a que se conheça do fundamento da impugnação representado pelo erro de julgamento, por equívoco na valoração da prova, dos factos que relevam para apreciação daqueles outros objectos.
3.8.2.1. Reponderação da decisão relativa à matéria de facto da 1ª instância.
Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação do tribunal, no sentido já apontado. É o caso, por exemplo, da prova testemunhal (artº 396 do Código Civil). Essa apreciação baseia-se – já se notou – na prudente convicção do tribunal sobre a prova produzida, quer dizer, em regras de ciência e de raciocínio e em máximas de experiência (artº 655 nº 1 do CPC). Neste contexto, nada impede, por exemplo, que a convicção do juiz se funde no depoimento de uma única testemunha[62].
Constitui património comum dos operadores judiciários a extraordinária cautela com que deve ser manejada a prova testemunhal, dado o perigo da sua infidelidade, seja ela involuntária – v.g., por erro de percepção ou de retenção do facto – ou voluntária – por vício de parcialidade.
Dadas todas as possíveis causas de erro que actuam sobre a prova testemunhal, é natural um atitude de desconfiança e desânimo por parte de quem se vê forçado a decidir sobre a base de semelhante prova e uma atitude de desconforto por banda de quem tem de controlar uma decisão assente numa prova a que se associa uma tão larga falibilidade. O desencanto é tanto mais lamentável quanto é certo que na prática dos tribunais a prova por testemunhas vem à cabeça de todas as outras, é a prova de uso mais frequente porque é, na maioria dos casos, a única que se pode produzir.
Considerada a enorme variedade de causas que podem dar lugar a que a testemunha não possa ou não queria dizer a verdade, deve usar-se de grande cautela em relação a esta prova e só a sua valoração sob o signo estrito da oralidade e da imediação permite estabelecer, adequadamente, o efeito persuasivo que, em cada caso, lhe deve ser assinalado. De resto, aquele princípio e este seu corolário são comprovadamente adequados a extirpar um dos maiores males da prova testemunhal: a mentira.
Como já se reparou, o resultado da actividade de julgamento da matéria de facto pode exprimir-se numa afirmação susceptível de ser considerada verdadeira ou falsa. Contudo, essa verdade não é uma verdade absoluta ou ontológica, sendo antes uma verdade judicial, jurídico-prática.
No julgamento da matéria de facto não se visa o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, tanto mais que intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes possíveis de erro, quer porque se trata de conhecimento de factos situados no passado, quer porque assenta, as mais das vezes, em meios de prova que, pela sua natureza, se revelam particularmente falíveis. Está nestas condições, notoriamente, a prova testemunhal.
A prova de um facto não visa, pois, obter a certeza absoluta, irremovível, da verificação desse facto. A prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade de contentar-se com certo grau de probabilidade do facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas, para convencer o decisor, conhecer das realidades do mundo e das regras de experiência que nele se colhem, da verificação da realidade do facto[63].
As provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca do facto a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida. Nestas condições, uma prova, considerada de per se ou criticamente conjugada com outras, é suficiente para demonstrar a realidade – não ontológica mas jurídico-prática – de um facto quando, em face dela seja de considerar altamente provável a sua veracidade ou, ao menos, quando essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
Lê-se, a dado passo da alegação do recorrente – referida tanto quanto parece à questão do erro no julgamento da matéria de facto – que os réus nada alegaram sobre os factos negativos alegados pelo recorrente, designadamente os relativos à insuficiência do património das sociedades comerciais para a satisfação dos créditos alegados pelo apelante. Segundo este, era aos recorridos que competia a prova da existência de património suficiente para a satisfação dos respectivos créditos, por se tratar de factos negativos.
Nada de menos exacto.
O primeiro aspecto que se impõe à atenção é que tais alegações do autor nem sequer foram seleccionadas para a base instrutória. Por nítido erro, de resto, visto que ao contrário do que se pode ler no despacho de condensação, é evidente que a insuficiência do património social para a satisfação dos credores sociais pode demonstrar-se por qualquer meio de prova admitido em direito e não apenas documentalmente.
Seja como for, a verdade é que a prova da insuficiência do património social para a satisfação dos credores sociais, enquanto facto constitutivo da responsabilidade delitual dos gerentes da sociedade relativamente aqueles constitui, nitidamente, um facto cuja prova compete ao credor social, no caso, ao recorrente (artº 342 nº 1 do Código Civil).
Na lógica, porém, do recorrente, a prova desse facto competia aos apelados, pelo que o ponto, na dúvida sobre a realidade dele, deveria ter decidido a seu favor. Esta alegação da recorrente bem pode resumir-se assim: o carácter negativo do facto a provar importa a inversão do ónus da prova. Mas esta proposição é inteiramente desacertada.
No tocante à prova dos factos, sejam constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos, quer sejam positivos quer sejam negativos, a distribuição do ónus da prova observa as regras gerais sobre a matéria, cabendo a sua prova àquele que invoca o direito ou àquele contra quem o direito é invocado, conforme o caso (artº 342 nºs 1 e 2 do Código Civil). À resolução do non liquet aplica-se também, quer o critério geral, quer eventuais critérios especiais (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil).
Não vale, portanto, entre nós, a velha máxima de negativa non sunt probanda[64]. A solução especial acolhida pela lei para o ónus da prova das acções de simples apreciação negativa – explicada pela ideia de que, por via de regra, é mais fácil provar a existência de um direito ou de um facto, do que demonstrar a sua inexistência – não envolve, na verdade, a aceitação geral daquela máxima (artº 343 nº 1 do Código Civil). Assim, sempre que fora desse caso ou de outros especialmente regulados na lei no mesmo sentido, um facto constitua fundamento da pretensão deduzida pelo autor, é a este, de harmonia com o critério geral de repartição do ónus da prova, que compete a prova dele; como é ao réu, de acordo com o mesmo critério, que compete demonstrar o facto que impede, modifica ou extingue aquela pretensão do autor (artº 342 nºs 1 e 2).
O carácter negativo de um facto não importa, portanto, como regra, qualquer modificação ou inversão do ónus da prova[65]. A dificuldade de prova de um facto seja ele positivo, ou seja ele negativo, não constitui critério relevante de distribuição do ónus da prova; quando muito, essa dificuldade poderá relevar no momento da decisão da matéria de facto, devendo o juiz ser menos exigente quanto ao grau de prova suficiente para a demonstração do facto[66].
A solução para uma situação de non liquet é a normal: o proferimento de uma decisão contra a parte onerada com a prova (artº 516 do CPC).
O recorrente sustenta que os factos que alegou nos artºs 22, 23, 27 e 28 da petição devem julgar-se provados. Quanto aos dois primeiros factos e à primeira parte do alegado no artº 27, não são patentes as razões pelos quais o apelante impugna o seu julgamento, dado que o decisor de facto da 1ª instância os julgou provados. O que o tribunal não julgou provado – pelas razões já explicitadas - foi o facto relativo à insuficiência do património das sociedades comerciais recorridas para a satisfação dos créditos alegado pelo autor. Mas também pelos motivos já apontados não existe fundamento para ordenar a ampliação, quanto a tal facto, da base instrutória.
O recorrente discorda, desde logo, do julgamento dos pontos de facto inserto na base instrutória sob os nºs 1º e 2 - nos quais se perguntava de se foi por incumbência dos réus “B” e “C” que o recorrente aceitou elaborar as contas das sociedades comerciais e praticou os actos descritos nas alíneas F) a H) – que obtiveram do tribunal da audiência esta resposta restritiva: o autor aceitou elaborar as contas das sociedades comerciais e praticar aqueles actos por incumbência e a pedido do recorrido “C”. No ver do recorrente, tais factos devem ser julgados irrestritamente provados, ou se assim não se entender, deve ao menos julgar-se provado que os factos mencionados nas alíneas F) a H) foram praticados no interesse dos réus, “B” e “C”.
De harmonia com a alegação do apelante, relativamente a tais questões há uma total omissão e ausência de fundamentação na resposta dada.
Esta alegação é, a um tempo, injusta e infundada.
É injusta, dado que a leitura, ainda que de soslaio, da fundamentação adiantada pelo decisor de facto da 1ª instância para justificar o seu julgamento, mostra a motivação daquelas respostas e torna patentes as provas que exerceram no seu espírito uma influência decisiva: os depoimentos dos recorridos, “C” e “B”, da filha destes, “I”, do pai da segunda, “L”, e do cônjuge do recorrente, “F” – que segundo o apelante, ele mesmo, depôs com idoneidade e isenção, detalhadamente e com conhecimento directo dos factos.
É infundada, dado que a impugnação do recorrente é marcada pela falta de motivação – e de convicção - dado que ne sequer indica as provas que, ao menos no seu ver, impunham decisão diversa da encontrada pelo tribunal da audiência para aqueles enunciados de facto ou que foram erroneamente valoradas por aquele tribunal. E realmente, os depoimentos indicados na motivação do julgamento da questão de facto inculcam a exactidão do seu julgamento pelo tribunal da 1ª instância.
Assim, por exemplo, o cônjuge do recorrente foi terminante em declarar, logo no interrogatório fundamental a que foi sujeita pelo Exmo. Advogado do apelante, que a mulher do Sr. “C” não sabia mesmo nada dos negócios e, nas instâncias a que foi submetida pela Exma. Advogada da apelada, “B”, e pelo Exmo. Advogado do recorrido, “C”, asseverou que ela não sabia que o marido – o apelado “C” – devia esse dinheiro todo ao meu marido, e que o réu solicitou o serviço ao autor enquanto gerente das sociedades e prestava serviços às sociedades e não a eles pessoalmente, respectivamente.
De resto, tal depoimento harmoniza-se na perfeição com a resposta que o tribunal da audiência encontrou para outros factos – cujo julgamento não merece do recorrente a mínima discordância. Estão nessas condições, as respostas dadas aos pontos de facto insertos na base instrutória sob os nºs 6, 7 e 8, 22 e 23, que mostram o alheamento da recorrida “B” da condução negócios sociais e a autonomia e a exclusividade da gestão desses negócios pelo recorrido “C”. Se era este recorrido que geria de forma autónoma todos os negócios sociais – porque era ele, de resto, o gerente dessas sociedades - seria deveras desrazoável admitir que a recorrida “B” tivesse participado no processo de decisão da escolha do responsável pela elaboração das contas das sociedades comerciais.
Mal vale a pena perder uma palavra para explicar que a impugnação da decisão da matéria de facto não deve ser pretexto para alegar factos novos, como sucede, com a alegação do recorrente que praticou os referidos actos com vista à aquisição da casa de morada da família e que a recorrida, “B”, e os filhos almoçavam na Tasca “E”.
É às partes que cumpre alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir ou que fundamentam a excepção (artº 264 nº 1 do CPC). No tocante aos factos essenciais vale, por inteiro, o princípio da disponibilidade objectiva: o tribunal não os pode considerar se não foram alegados pelas partes.
A esse poder de disposição quanto aos factos da causa, corresponde um limite do julgamento: o juiz não pode utilizar factos que as partes não tragam ao processo (artº 664 do CPC). Correspondentemente, o decisor da matéria de facto não pode pronunciar-se sobre facto que as partes não tenham alegado. Caso o faça, essa resposta deve considerar-se não escrita, portanto, inexistente (artº 646 nº 4, por interpretação extensiva)[67].
Seja qual for, em definitivo, a solução exacta para o problema das respostas restritivas – i.e., que declaram provado menos de que o alegado – e explicativas – i.e., que julgam provada a causa do facto declarado assente – no tocante às respostas excessivas ou exorbitantes, a única doutrina admissível é a de as ter por não escritas, e, logo, por inexistentes[68]. O tribunal só pode conhecer da matéria de facto abrangida pelos pontos insertos na base instrutória e não pode responder ao que lhe não foi perguntado. Em boa lógica, impõe-se que não se tomem em consideração, pelo menos, as respostas exorbitantes, isto é, as respostas que excedam ou ultrapassem os factos compreendidos nos quesitos.
No ponto de facto inserto na base instrutória sob o nº 2 perguntava-se o autor levou a cabo os actos referidos nas alíneas F) a G) a pedido dos apelados “B” e “C”. Sendo essa a pergunta, o tribunal da audiência não poderia responder que tais actos foram praticados no interesse daqueles apelados, visto que se o fizesse a resposta seria duplamente excessiva: por ultrapassar o facto inserto no quesito; por se tratar de facto que não foi objecto de oportuna alegação.
Seja como for, não há razão para admitir que, quanto aos pontos discutidos, o tribunal da audiência incorreu num error in iudicando e, correspondentemente, para modificar o seu julgamento, no sentido propugnado pelo recorrente.
O recorrente discorda também da resposta de não provado encontrada pelo tribunal da audiência para o facto relativo ao pagamento, por si, do IVA e do IRC extraordinário, objecto dos pontos nºs 9, f), 10 f), 11 d) e) e f).
A primeira razão que adianta para justificar a sua discordância è esta: as rés não impugnaram as contas correntes da respectiva contabilidade, as rés não contestaram tais créditos, que alegaram o pagamento e reembolso em causa. Por rés, o recorrente tem patentemente em vista as recorridas com a qualidade de sociedades comerciais.
É justo que se diga que realmente aquelas recorridas – e o apelado “C” - não impugnaram tais créditos. Mas também é exacto que se afirme que eles foram impugnados, na sua contestação separada, pela recorrida “B”.
Do ponto de vista material, a contestação da oposição pode revestir as modalidades de defesa por excepção e por impugnação (artº 487 nº 1 do CPC). A defesa por impugnação pode ser directa ou de facto e indirecta ou de direito. A impugnação directa ou de facto consiste na contradição pelo exequente dos factos articulados pelo opoente na petição inicial (artº 487 nº 2, 2ª parte, do CPC).
A impugnação directa deve abranger os factos principais articulados pelo autor ou opoente no articulado de petição ou equivalente; se assim não suceder, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados (artºs 490 nº 1 e 490 nº 2, 2ª parte, do CPC). Esta admissão dispensa a prova do facto, porque ele não se torna controvertido e, por isso, não integra o objecto da prova.
Problema particularmente sensível neste domínio é o do quantum da impugnação, ou seja, da suficiência da impugnação. Esse quantum exige a exposição pelo demandado dos motivos da sua oposição ao autor e das razões da controvérsia entre as partes – mas não pressupõe a impugnação de cada facto alegado pelo autor ou requerente. Para que o réu ou demandado cumpra o ónus da impugnação, basta que apresente uma versão contraposta à do autor ou opoente, ou seja, é suficiente que torne explícita a controvérsia entre as partes na oposição à execução.
Só é exigível que o réu ou demandado tome posição sobre os factos que conhece ou que deva conhecer, segundo as regras da experiência comum ou em cumprimento de um dever de informação[69]. É o que sucede, por exemplo, quanto à actividade de um seu empregado ou de qualquer auxiliar.      Isto significa que a ignorância aqui não é meramente psicológica, mas também ética. Se o demandado não sabe porque, reprovavelmente, não se procurou informar, a ignorância não lhe aproveita.
Sempre que não deva conhecer o facto alegado pelo autor ou opoente, justifica-se uma declaração evasiva. Se o réu ou demandado não tem o dever de conhecer o facto, porque, por exemplo, ele respeita a condutas ou a percepções de terceiros, essa parte não tem de o impugnar; aliás, se o fizer, viola o dever de verdade, dado que ninguém pode negar a veracidade de um facto que não conhece (artº 456 nº 2 b) do CPC).
Inversamente, se o demandado não pode ignorar o facto ou se o ignora em violação de um dever de informação, de nada lhe serve afirmar que o desconhece. Neste caso, embora a lei fale, indevidamente, em confissão, a declaração do demandado de que não sabe se determinado facto é real equivale à admissão por acordo, quando se trate de facto pessoal ou de que devia ter conhecimento; só no caso contrário é que vale como impugnação (artº 490 nº 3 do CPC).
Além dos casos em que o réu não tem o dever de conhecer o facto, alguns motivos determinam que a falta de impugnação não implique admissão por acordo do facto. É o que sucede quando essa admissão seja incompatível com a defesa considerada no seu conjunto (artº 490 nº 2, 2ª parte, do CPC).
Em tal caso, o facto não é expressamente impugnado, mas a sua impugnação torna-se desnecessária ou supérflua pela impugnação de outros factos. Tal situação verifica-se sempre que o facto não impugnado seja incompatível com qualquer outro que tenha sido impugnado. Assim, por exemplo, se o réu impugnar o recebimento de certos fornecimentos de mercadorias, há que considerar impugnadas as verbas respeitantes a cada um deles[70].
Ora, a recorrida “B” foi terminante no articulado em que deduziu a sua defesa em alegar, por exemplo, que desconhecia o que se passava nas sociedades, sempre desconheceu a existência de quaisquer dívidas, que desconhecia em absoluto a gestão das sociedades, que desconhece se os valores apresentados pelo autor estão ou não dívida, que nada sabe sobre a contabilidade das referidas empresas, porque não as geria, qual o valor do IVA que liquidavam, etc.
Portanto, aqueles factos foram objecto de adequada impugnação por um dos recorridos e essa impugnação aproveita aos demais apelados. O aproveitamento pelos não impugnantes da oposição deduzida pelos contestantes justifica-se - à semelhança do que acontece nas situações de revelia no caso de apresentação de contestação por um dos réus – tanto pelo propósito de evitar a solução desrazoável de os mesmos factos se terem, na mesma acção, como provados em relação a um dos réus – e não provados em relação a outros, como pelo objectivo de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de impugnar no interesse de todos[71].
Portanto, ao contrário do que sustenta o recorrente, o facto da realização, por si, da despesa representada pelo pagamento do IVA e do IRC de que eram sujeitos passivos as recorridas sociedades comerciais deve ter-se realmente por controvertido e, correspondentemente, carecido de prova. E o encargo dessa prova, i.e., de que procedeu ao pagamento daquelas dívidas fiscais, cabe, por inteiro, ao recorrente, dado que se trata de facto constitutivo do seu direito ao reembolso da despesa correspondente; aos recorridos compete, por sua vez, a prova de que o reembolsaram dessa despesa, dada a nítida feição extintiva daquele mesmo direito do recorrente (artº 342 nº 1 do Código Civil).
A razão pela qual o decisor da 1ª instância não julgou provados os actos de pagamento, pelo recorrente daquelas dívidas resume-se nisto: a não produção dos documentos comprovativos desse pagamento à administração fiscal.
Este fundamento é inteiramente exacto. Na verdade, ao contrário do que sucedeu com outros créditos da recorrida A Tasca “E” Lda. que o autor satisfez ao fisco, o recorrente não produziu os documentos do pagamento daqueles débitos fiscais.
Abstraindo da qualidade funcional do recorrente, o facto é tanto mais inexplicável quanto é certo que aquele alega que satisfez aqueles créditos por meio de cheque das suas contas pessoais – mas também não apresentou tais cheques, e que o cônjuge do apelante foi peremptório em garantir, no seu depoimento, que o meu marido tem os comprovativos dos pagamentos, para ter uma prova se necessário.
Se, realmente, como assevera aquela testemunha, o recorrente tem na sua posse os documentos comprovativos do pagamento daquelas dívidas fiscais, por que motivo não os juntou ao processo ou, ao menos, os exibiu?
É exacto que o recorrente alegou, na petição tê-los entregue ao recorrido “C” – embora não seja patente o motivo pelo qual entregou aqueles documentos mas reteve outros - e pediu mesmo que este os apresentasse. Todavia, a verdade é que o processo não documenta que aquele tenha sido notificado para os apresentar ou que o apelante tenha arguido, na instância recorrida, a nulidade da omissão correspondente. De resto, sempre seria possível ao recorrente obter junto da administração fiscal o documento comprovativo daquele pagamento e da sua autoria.
O cônjuge do recorrente assegurou, no seu depoimento, que o recorrente procedeu a tais pagamentos. Mas trata-se de uma afirmação puramente genérica, que não permite estabelecer, para além de toda a dúvida razoável, as exactas dívidas que foram efectivamente satisfeitas pelo recorrente.
Sendo isto exacto, então não há razão para se decidir que ao julgar aqueles factos não provados, o tribunal da audiência violou uma qualquer regra de avaliação prudencial da prova.
Perguntava-se nos ponto insertos na base instrutória sob o nº 15, 18º e 19º se os apelados “B” e “C” se comprometeram, pessoalmente, a reembolsar o autor de todas as despesas relativas às recorridas sociedades comerciais, se o segundo se comprometeu, várias vezes, a pagar os valores pedidos na acção e se este facto ocorreu, pela última vez, em 15 de Outubro de 2007. O tribunal da audiência declarou também todos estes factos não provados.
É claro que – ao contrário do que sustenta o apelante – a realidade destes factos não decorre da alegação do pagamento feita por alguns dos recorridos. Decerto que o cônjuge do apelante afirmou, embora apenas no tocante ao recorrido “C”, a sua veracidade: o Sr. “C” dizia que pagava, declarou. Todavia – e abstraindo das declarações de sentido asperamente contrário do réu “C” - é bem pobre ou parca a razão de ciência indicada por aquela depoente: as declarações do próprio recorrente. Efectivamente, logo ao responder às perguntas do Exmo. Advogado do recorrente, a depoente logo indicou como fonte de conhecimento, o cônjuge – o meu marido contou-me. E nas instâncias com que foi apertada esclareceu que o marido contactava com o gerente, só com o Sr. “C” e que nunca presenciou qualquer conversa, nunca assistiu pessoalmente a qualquer conversa e resumiu que sabia que o que marido lhe contou.
Não há, assim, a mais leve prova de que a recorrida “B” assumiu o compromisso do pagamento nem prova bastante da assunção pelo apelado “C” desse mesmo compromisso.
Em face da prova apontada o julgamento deste ponto facto do tribunal da audiência mostra-se inteiramente exacto.
Resta aferir da exactidão desse julgamento no tocante aos pontos de facto individualizados na base instrutória sob os nºs 12º a 14º que têm por objecto a remuneração devida ao recorrente pelos serviços prestados à recorrida, A Tasca “E” Lda. nos anos de 2003 a 2007, que o decisor da questão de facto do tribunal recorrido, julgou não provados.
E foi de caso pensado que se deixou para o fim a reponderação do julgamento destes pontos de facto.
Como linearmente decorre da motivação do julgamento da questão de facto, o Sr. Juiz de Direito não consegui remover do seu espírito a dúvida sobre a realidade ou a inveracidade desses factos o que levou, de um aspecto, a julgar não provado aqueles factos e bem assim aquele onde se quesitava o facto contrário – o pagamento – inserto na base instrutória sob o nº 24.
E, na verdade, a prova não permite desfazer a dúvida sobre o facto do não pagamento ou sobre o facto contrário. De um lado temos o cônjuge do recorrente a afirmar terminantemente, no seu depoimento, que os honorários estão em dívida, de outro, temos o recorrido “C” a sustentar, nas suas declarações o facto contrário, asseverando que por diversas vezes entregou quantias em dinheiro ao recorrente, depoimento que é corroborado pelo das testemunhas “G” – fornecedor, há mais de 10 anos, de tabaco do estabelecimento a Tasca “E” e que ele se deslocava uma a duas vezes por semana – e “H” – que toma o pequeno-almoço e o almoço naquele mesmo estabelecimento – que declararam, una voce, ter visto o Sr. “C”, por diversas vezes, a entregar dinheiro ao recorrente, embora nenhum deles tivesse especificado nem a quantidade do dinheiro nem a finalidade da sua entrega. Para espessar ainda a mais a dúvida, concorrem os recibos verdes produzidos pelo recorrente que foram extraídos todos do mesmo livro, com numerações muito próximas, o que inculca – como notou o tribunal da audiência - que foram emitidos no ano de 2007 ou em data posterior.
O facto do pagamento é, portanto, exasperadamente duvidoso.
E contra quem é que o tribunal recorrido resolveu esta dúvida insanável? Contra o recorrente. Por este preciso argumento: as dúvidas que subsistem sobre a realidade deste facto (falta de pagamento de honorários) têm de ser resolvidas contra o autor sobre quem impede o ónus da prova (artºs 342 nº 1 do CC e 516 do CPC).
Mas não. Tratando-se nitidamente de facto extintivo do direito alegado pelo autor a sua prova compete aos demandados (artº 342 nº 2 do Código Civil). A dúvida irredutível sobre tal facto deve, portanto, ser resolvida contra os recorridos (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil.).
Quanto a estes pontos é patente – até pela simples leitura da motivação - o erro de julgamento. Importa, por isso, modificar o julgamento de não provado – para provado.
Resta, porém, determinar a exacta consequência desta modificação da decisão da matéria de facto no julgamento da questão de direito.
3.9. Reponderação da matéria de direito.
O sentido da decisão depende, evidentemente, dos factos fornecidos pelo processo – de harmonia com o princípio da aquisição processual e do exame do cumprimento do ónus da prova (artºs 515 e 516 do CPC e 346, 2ª parte, do CPC)
O recorrente deduziu, a título principal, contra todos os recorridos uma pretensão material de condenação solidária no pagamento de uma quantia pecuniário – mas por fundamentos diferentes.
Relativamente às apeladas sociedades comerciais por lhes ter prestado, na execução de um contrato atípico, serviços de elaboração das respectivas contas e de ter suportado despesas, designadamente, com a satisfação de débitos fiscais e para fiscais de que eram sujeitos essas mesmas sociedades comerciais; no tocante ao recorrido “C” na responsabilidade ex aquilia relativamente aos credores sociais por força da sua qualidade de gerente daquelas sociedades comerciais e por ter assumido, ele mesmo, a responsabilidade pelo pagamento dos débitos daquelas; no que concerne a apelada “B”, por ter assumido compromisso igual e por força da comunicabilidade das dívidas contraídas por aquele apelado, resultante do facto de, ao tempo, ser casada com aquele, segundo um regime de comunhão de bens.
No entanto, a amarga verdade para o direito do autor é que não há o mínimo fundamento para julgar os recorridos pessoas singulares vinculados ao um dever de prestar relativamente a ele.
Como se notou, os gerentes das sociedades comerciais respondem, ex delicto, perante os credores sociais, pela violação de disposições legais ou estatutárias de que resulte a insuficiência do património social para a satisfação dos respectivos créditos (artº 78 nº 1 do Código das Sociedades Comerciais).
Ora, o recorrente, se alegou a insuficiência do património social para a satisfação dos seus créditos, não individualizou sequer a norma, legal ou estatutária, ordenada para a sua protecção, os deveres, legais ou contratuais, que o recorrido “C” terá violado – ofensa de que resultou aquela insuficiência – nem a imputação objectiva (nexo causal) deste resultado àquela violação (artºs 483 nº 1 e 563 do Código Civil).
A operação pela qual um terceiro – assuntor – se obriga perante o credor a uma prestação devida por outrem resolve-se, juridicamente, numa assunção de dívida (artº 595 nº 1 do Código Civil). Se a assunção for liberatória, i.e., se assunção da dívida pelo novo devedor envolver a exoneração do primitivo obrigado – o caso é de simples transmissão da obrigação do primitivo devedor para o assuntor; se a assunção for cumulativa, e, portanto, o primitivo devedor permanecer vinculado ao lado do terceiro, o caso é já, verdadeiramente, de constituição de uma nova obrigação que tem por fonte o contrato celebrado entre o antigo e o novo devedor; se assunção não for liberatória, a responsabilidade do antigo e do novo devedor é solidária (artº 595 nº 2 do Código Civil)[72].
Na espécie do recurso, o recorrente alegou que os recorridos pessoas singulares se comprometeram, pessoalmente, a reembolsá-lo da dispêndio que suportou na execução do contrato de prestação de serviço que concluiu com as apeladas sociedades comerciais. Porém, também não cumpriu, quanto a tal facto, o ónus de prova que o vinculava.
A responsabilidade de um dos cônjuges pelas dívidas contraídas pelo outro exige, naturalmente, que o credor prove desde logo, a vinculação daquele cônjuge ao dever de prestar (artº 169º nºs 1 e 2 e 1691 nº 1 do Código Civil). Ora, como o recorrente não demonstrou que o recorrido “C” fosse seu devedor, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que não se coloca sequer, evidentemente, o problema da responsabilidade da recorrida “B”, em razão da comunicabilidade, por força do regime de bens, das dívidas contraídas pelo primeiro.
À míngua de melhor fundamento, o recorrente imputa aos recorrentes o abuso do direito, na modalidade, parece, do venire contra factum proprium.
Todavia, a matéria de facto disponível não torna patentes as condutas – anterior e subsequente - dos recorridos que supostamente estariam em colisão nem a existência, como o venire também exige, de uma conduta anterior daqueles apelados que tivesse criado, no apelante, uma situação de confiança legítima ou fundada.
Não há, portanto, o mínimo fundamento para que se deva concluir que, num qualquer momento, aqueles recorridos agiram contra facta propria e, portanto, com abuso do direito.
Numa palavra: não estão adquiridos para o processo os factos que, relativamente aos recorridos pessoas singulares, permitam proferir uma decisão favorável para a parte onerada com a prova: o recorrente. Há, portanto, que proferir uma decisão contra ele (artºs 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil).
A matéria de facto disponível – com a modificação resultante da reponderação do julgamento correspondente - torna patente que o apelante prestou às recorridas sociedades comerciais, na execução do contrato correspondente, os serviços a que se vinculou, próprios da sua profissão, e suportou, por força da realização dessa prestação, diversas despesas, e que o recorrente não foi reembolsado destas despesas nem pago, pela recorrida, A Tasca “E” Lda. da respectiva remuneração.
Aquelas recorridas – e o apelado “C” - porém, defenderam-se alegando a prescrição presuntiva do direito ao reembolso daquelas despesas e ao percebimento desta remuneração.
Todavia, segundo o apelante, a presunção deve considerar-se tacitamente ilidida. Razão: a prática pelos recorridos de factos incompatíveis com a presunção do cumprimento. E qual foi o facto praticado pelos recorridos que segundo o apelante, incompatíveis com a presunção do pagamento? Este: a alegação do pagamento.
Nada de menos exacto. Bem pelo contrário: a alegação do pagamento não só não é incompatível com a presunção do cumprimento como constitui pressuposto indispensável à invocação da prescrição correspondente[73].
Ora, dado que a acção se considera proposta em 23 de Janeiro de 2008 e a prescrição se considera interrompida nos cinco dias posteriores, os créditos alegados pelo autor – designadamente os relativos à remuneração pelos serviços prestados à recorrida a Tasca “E” Lda. – constituídos anteriormente a 28 de Janeiro de 2006 foram indubitavelmente atingidos pela prescrição presuntiva invocada pelos recorridos, que torna lícita a recusa da realização da prestação pecuniária correspondente (artºs 267 nº 1 do CPC e 323 nºs 1 e 2 do Código Civil).
Nestas condições, há que julgar parcialmente procedente a excepção correspondente e, consequentemente, absolver a recorrida a Tasca “E” Lda. do pagamento da remuneração do autor relativa aos anos anteriores a 2006.
O autor não demonstrou – nem alegou sequer – que o pagamento da remuneração convencionada tinha prazo certo ou que interpelou, em momento anterior ao da proposição da acção, aquela recorrida para a realização da prestação pecuniária correspondente. Por essa razão, aquela só se deve considerar-se constituída na situação de mora – e na obrigação correspondente de reparar os danos resultantes do atraso no cumprimento, indemnização que, no caso consiste, nos juros legais – desde a sua citação para a acção (artº 804 nºs 1 e 2, 805 nº 1 e 2 a) e 806 nºs 1 e 2 do Código Civil).
O recorrente pediu – tanto na instância recorrida como no recurso – a condenação dos apelados como litigantes de má fé, em multa e em indemnização.
Mas não há fundamento, em face dos factos adquiridos para o processo, para uma tal condenação.
É exacto que os recorridos não lograram provar alguns dos factos que alegaram como, por exemplo, os relativos, à satisfação dos créditos alegados pelo apelante.
Simplesmente, do facto de – alguns - dos apelados não terem conseguido livrar-se do ónus da prova que os vinculava, demonstrando, por exemplo, o cumprimento da prestação que lhe exigida pelo recorrente, não decorre, como corolário que não possa ser recusado, que adulteraram a realidade de que tinha necessário conhecimento, alegando um conjunto de factos inteiramente supostos.
A circunstância de a parte não ter demonstrado um facto ou factos que tenha alegado, não é, inelutavelmente, sinónimo de violação do dever de verdade, antes constitui, frequentemente, simples consequência do carácter contingente - e mesmo aleatório – da prova[74].
A litigância de má fé deve deixar incólume o direito das partes de discutirem e interpretarem livremente os factos. Assim, não é suficiente, para que a parte seja irremediavelmente considerada litigante de má fé, uma qualquer divergência ou desarmonia entre os factos, tal como a parte os descreve e como, ulteriormente, vêm a ser julgados provados e qualificados[75].
De resto, entendimento contrário imporia a condenação como litigante de má fé, ao menos na pena processual de multa – também do recorrente, visto que também ele não demonstrou, como lhe competia, todo um conjunto, de resto, bem extenso, de factos que alegou.
Nestas condições, não há motivo para concluir que os recorridos – ou o recorrente - actuaram com má fé substancial dolosa, por violação do iniludível de verdade e de honeste procedere que a todos vincula. Tanto um como outros alegaram factos que não se provaram; mas daí não decorre a conclusão de que tais factos são falsos, dado que a resposta negativa sobre a prova de um facto não implica que se tenha por demonstrado o facto contrário, tudo se passando como se o facto não tivesse sido articulado, devendo o juiz resolver a questão contra a parte onerada com a prova (artº 516 do CPC e 346, 2ª parte, do Código Civil).
O recurso deverá, pois, proceder – mas apenas parcialmente.
No tocante a um dos aspectos dessa procedência – a ampliação da base instrutória – importa precisar o seguinte: a ampliação terá por objecto a alegação relativa à dívida dos honorários devidos pela recorrida A “D”, Snack-bar e Pastelaria Lda. tendo em vista a condenação desta – sem prejuízo evidentemente da prescrição presuntiva oposta pelos recorridos – na realização da prestação pecuniária correspondente. Mas só daquela apelada, dado que relativamente aos demais recorridos, maxime, as pessoas singulares, a improcedência do pedido do autor se deve ter por definitivamente decidida.
Duas palavras mais para condensar a feição mais relevante da retórica argumentativa do acórdão: dado que, do ponto de vista da sua finalidade, a apelação é um recurso de reponderação, não é lícita a alegação no recurso, de questão novas – que não sejam de conhecimento oficioso; a deficiência da selecção da matéria de facto não constitui causa de nulidade da sentença mas um erro sobre o objecto da prova; o carácter negativo do facto probando é indiferente para as regras de distribuição do ónus da prova; todas as despesas realizadas pelo profissional no âmbito do contrato de prestação de serviço estão sujeitas a prescrição presuntiva; não é incompatível com a presunção do pagamento a alegação desse mesmo pagamento; a dúvida irresolúvel sobre a realidade do facto extintivo do pagamento deve ser resolvida contra o devedor; a responsabilidade civil do gerente de sociedade comercial relativamente aos credores sociais tem carácter delitual, competindo àqueles credores o ónus da alegação e da prova dos respectivos pressupostos; o ónus da prova do abuso do direito, designadamente, na modalidade do venire, vincula a parte que o opõe; a litigância de má fé não decorre da simples circunstância de a parte não ter cumprido o ónus da prova que a grava.
Recorrente e as recorridas A Tasca “E” Lda. e A “D” – Pastelaria e Snack-bar Lda., sucumbem, reciprocamente, no recurso. Deverão, por isso, satisfazer, na exacta proporção dessa sucumbência, as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).


4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se o recurso parcialmente procedente, revoga-se, em parte, a sentença apelada e consequentemente:
a) Condena-se a recorrida, A Tasca “E” Lda., a pagar ao recorrente, “A”, a quantia de 5 400,00€, acrescida de juros, contados, à taxa legal, desde a citação;
b) Determina-se, a ampliação da base instrutória com a finalidade exclusiva, de julgar da procedência do pedido de condenação da apelada, A “D”, Snack-bar e Pastelaria Lda., e só desta, e sem prejuízo da excepção peremptória da prescrição presuntiva oposta, no pagamento dos honorários do recorrente, a ampliação da base instrutória no tocante à alegação deste contida no artº 6 da petição inicial.

As custas do recurso serão suportadas pelo recorrente e pelas recorridas A Tasca “E” Lda. e A “D”, Snack-Bar e Pastelaria Lda., na proporção da respectiva sucumbência.

Lisboa, 3 de Março de 2011

Henrique Antunes
Ondina Carmo Alves
Maria da Luz Borrero Figueiredo
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[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, págs. 138 e ss. Freitas do Amaral, Conceito e natureza do recurso hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss. Embora sem aceitar a invocação de factos novos pelas partes, o recurso de apelação aproxima-se, numa situação específica, do modelo de recurso de reexame. Trata-se da possibilidade de a Relação determinar a renovação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade (artº 712 nº 3 do CPC). Nesta hipótese, o tribunal de recurso não se limita a controlar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, antes manda efectuar perante ele a prova produzida na instância recorrida.
[3] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. STJ de 14.05.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62 e da RL de 02.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[4] Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[5] Ac. do STJ de 23.05.96, CJ, II, pág. 86.
[6] Ac. do STJ de 21.10.93, CJ, STJ, III, pág. 81 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 526.
[7] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.
[8] Ac. do STJ de 09.04.92, BMJ nº 416, pág. 558.
[9] Acs. do STJ de 26.09.95, CJ, STJ, III, pág. 22 e de 16.01.96, CJ, STJ, III, pág. 43.
[10] Ac. do STJ de 23.01.07, www.dgsi.pt.
[11] Este Estatuto foi objecto de revisão através do DL nº 310/2009, de 26 de Outubro, que, entre outros pontos, alterou a denominação da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas para Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, e aprovou o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas (artº 1 nºs 1 e 2). Todavia, de harmonia com o princípio geral de aplicação na lei no tempo, aos factos invocados pelo recorrente como causa petendi, é aplicável, o DL nº 452/99, de 5 de Novembro, lei vigente à data da verificação daqueles factos (artº 12º nº 1 do Código Civil).
[12] José Dias Marques, Prescrição Extintiva, Coimbra, 1953, pág. 4.
[13] António Menezes Cordeiro, Da Prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais, O Direito, Ano 133º, 2001, IV (Outubro -Dezembro), págs. 788 e 789. Não parece, assim, que a prescrição tenha por fundamento o interesse do credor, incitando-o a exigir o cumprimento das obrigações, e sancionando-o pela negligência na actuação do seu crédito como sustenta, por exemplo, Manuel de Andrade – Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, Reimpressão, Coimbra, 1992, págs. 445 e 446. Como nota Menezes Cordeiro – loc. cit. - o interesse do credor é, sempre, o dispor do máximo de pretensões, podendo ordenar no tempo, de harmonia, com as suas conveniências, o exercício dos seus direitos.
[14] António Menezes Cordeiro, Da prescrição do pagamento dos denominados serviços públicos essenciais, O Direito, Ano 133º, T, IV (Outubro -Dezembro), 2001, págs. 803 a 805 e Tratado de Direito Civil Português, I, T, IV, Almedina, Coimbra, 2007 (reimpressão), pág. 172. Contra, sustentando que a prescrição não converte a obrigação civil numa obrigação natural, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 381.
[15] Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra, 2008, pág. 90.
[16] Vaz Serra, Prescrição e Caducidade, BMJ nº 106, pág. 45, Antunes Varela, Anotação ao Parecer da Procuradoria-Geral da República de 31 de Outubro de 1969, RLJ Ano 103º, págs. 249 a 256, e Acs. do STJ de 09.11.96 e da RL de 16.05.00 e 08.10.98, www.dgsi.pt.
[17] Acs. do STJ de 24.05.05 e da RL de 29.06.00, www.dgsi.pt. e da RC de 17.11.98, CJ, XXIII, V, pág. 16.
[18] Acs. de 24.05.74 e 08.11.74, BMJ nºs 237 e 241, págs. 182, 186 e 270, respectivamente.
[19] Acs. do STJ de 19.06.79 e de 06.12.90, BMJ nºs 288 e 402, págs. 364 e 532, respectivamente.
[20] Ac. da RP de 13.06.93, CJ, XVIII, V, pág. 240.
[21] Acs. do STJ de 12.06.86 e da RL de 21.10.86, BMJ nºs 358 e 364, págs. 558 e 934, respectivamente.
[22] Ac. do STJ de 12.09.06, www.dgsi.pt.
[23] Joaquim de Sousa Ribeiro, Prescrições presuntivas: sua compatibilidade com a não impugnação dos factos articulados pelo autor, RDE, Ano V, nº 2, Julho/Dezembro de 1979, págs. 395, nota 14, e Maria Raquel Rei, As prescrições presuntivas (algumas questões), Francisco Salgado Zenha/Liber Amicorum, Coimbra, 2003, págs. 627.
[24] Cfr., sobre o problema, António Menezes Cordeiro, Da Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Comerciais, Lex, Lisboa, 1997, págs. 394 e ss. Pressupondo que as disposições do Código Comercial – artºs 248 e ss. - relativas ao mandato com representação conferido por comerciante para a gerência genérica dos seus negócios ou para actos concretos, são específicas da gerência de estabelecimentos comerciais, não se aplicando à relação entre a sociedade comercial e os titulares dos seus órgãos de administração, a doutrina divide-se entre as posições a favor e contra a natureza contratual dessa relação. A favor, Raul Ventura, Sociedades por Quotas, III, Coimbra, 1991, págs. 28 e ss., A. Soveral Martins, Os Poderes de Representação dos Administradores das Sociedades Comerciais, Coimbra, 1998, págs. 37 e Carlos Ferreira de Almeida, Contratos II, Conteúdo, Contratos de Troca, Coimbra, 2007, págs.195 e 196; no sentido de que a existência do contrato é apenas eventual, António Menezes Cordeiro, A Responsabilidade, cit., págs. 394 e ss., e Oliveira Ascensão, Sociedades Comerciais, Parte Geral, Lisboa 2000, pág. 450.
[25] Cfr., sobre a densificação do dever de diligência e do conceito de interesse social, Maria Elisabete Gomes Ramos, Responsabilidade Civil dos Administradores e Directores das Sociedades Anónimas Perante os Credores Sociais, BFD, Studia Iuridica, 67, Coimbra, 2002, págs. 80 e ss e 100 e ss. e Raul Ventura e Brito Correia, Responsabilidade Civil dos Administradores das Sociedades Anónimas, Separata do BMJ nºs 192 a 195, Lisboa, 1970, pág. 64.
[26] Cfr., Pedro Catarino Nunes, Responsabilidade Civil dos Administradores Perante os Accionistas, Coimbra, 2001, págs. 36 e ss.
[27] A responsabilidade do administrador relativamente aos credores sociais tem, portanto, uma feição peculiar: ela só existe se, por virtude da violação de normas finalisticamente orientadas para a tutela dos credores, o património social se tornar insuficiente para a satisfação dos créditos, correspondendo a indemnização à medida exacta dessa insuficiência patrimonial; se o dano for inferior, ele já não será suportado pelo credor mas pela sociedade e pelos sócios: António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais, Anotado, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 275. Nestas condições, para haver responsabilidade, não basta que o administrador tenha actuado com um grau de diligência inferior ao de um gestor criterioso e ordenado; a ilicitude só se verifica no caso da violação, censurável, de disposições, legais ou contratuais, especificamente dispostas para a tutela ou protecção dos credores: Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades Por Quotas e Anónimas, Organização e Estatuto dos Administradores, Livraria Petrony, Lisboa, 1990, pág. 20.
[28] Acs. da RP de 01.06.00, do STJ de 17.11.05, 05.12.06 e da RP de 29.22.07, Sociedades Comerciais, Jurisprudência, CJ, Edições, pág. 235, 262, 265 e 275, respectivamente, e da RL de 13.01.11, www.dgsi.pt.
[29] As normas de protecção não são necessariamente de origem legal, podendo ter também origem convencional, dado que a lei se refere igualmente a inobservância culposa de disposições contratuais destinada à protecção dos credores. Como por disposições contratuais se deve entender disposições estatutárias, as normas de protecção susceptíveis de tutela aquiliana devem por isso, constar do contrato de sociedade, do pacto social. Note-se que, para se afirmar a responsabilidade do administrador relativamente aos credores sociais, não é necessário um estado de insolvência da sociedade, sendo suficiente a simples insuficiência do activo relativamente ao passivo exigível: neste sentido, Maria Elisabete Ramos, “Da responsabilidade dos membros da administração”, in Problemas do Direito das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2002, pág., 85 e Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade dos Gestores de Sociedades Perante os Credores Sociais: A Culpa na Responsabilidade Civil Tributária, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 68. Contra, no entanto, Miguel Pupo Correia, “Sobre a responsabilidade civil por dívidas sociais dos membros dos órgãos da sociedade”, ROA, Ano 61, II, Abril de 2001, pág. 685.
[30] Relativamente ao dano reparável do credor social, deve ter-se presente o seu carácter puramente indirecto, dado que resulta da perda da garantia da satisfação do respectivo crédito, resultante da insuficiência do património social para a sua satisfação. Cfr., Tânia Meireles da Cunha, Da Responsabilidade, cit., pág. 68 e Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração, cit., pág. 221.
[31] Acs. do STJ de 31.01.07, Sociedades Comerciais, Jurisprudência, CJ, Edições, pág. 268, e da RP de 15.11.10, www.dgsi.pt.
[32] Cfr., v.g., Acs. do STJ de 22.11.94 e 25.11.99, CJ, STJ, II, III, pág. 157 e VII, III, 124.
[33] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, 2ª edição, Almedina, 2000, págs. 247 e 248.
[34] Cfr., v.g., os Ac. da RE de 26.11.87, CJ, XII, V, pág. 268 e de 23.01.86, CJ, XI, I, pág. 231, e do STJ de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454 e de 11.03.99, www.dgsi.pt.
[35] Cfr. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit. págs. 250 a 262 e Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 30, págs. 797 e ss.
[36] A proibição era já conhecida antes do actual Código Civil. Cfr. Manuel de Andrade, Algumas questões em matéria de injúrias graves como fundamento do divórcio, Coimbra, 1956, pág. 73 e Adriano Vaz Serra, Abuso do direito (em matéria de responsabilidade civil) BMJ nº 85, pág. 331.
[37] Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Braga, 1991, págs. 345 a 420.
[38] António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, Coimbra, 1984, § 28.
[39] Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 742 e 745 e Baptista Machado, Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, RLJ ano 118, págs. 9, 101, 169 e 227 e Acs. do STJ de 22.11.94, BMJ nº 441, pág. 305, de 04.10.79, BMJ nº 290, pág. 352, de 03.05.90, BMJ nº 397, pág. 454, de 03.10.91, BMJ nº 410, pág. 776, da RC de 03.12.91, CJ, V, pág. 79, da RL de 17.06.86, CJ, IV, 143 e da RC de 11.05.89, CJ 89, III, pág. 192 e de 18.11.93, CJ, V, pág. 219.
[40] Acs. da RP de 19.12.96, CJ, V, pág. 226, da RL de 29.11.94, CJ, V, pág. 50, da RP de 18.11.93, CJ, V, pág. 219, da RC de 3.12.91, CJ, V, pág. 79, e da RP de 15.5.90, CJ, III, pág. 194.
[41] Acs RP de 29.09.97, CJ, V, pág. 200 e do STJ de 3.05.90, BMJ nº 397, pág. 454. Para uma definição doutrinária de abuso de direito, cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, pág. 43.
[42] Paulo Mota Pinto, Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no Direito Civil, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, volume comemorativo, Coimbra, 2003, págs. 294 e 295.
[43] Trata-se, aliás, de um domínio em que a invocação do venire é feita de forma intensiva. Cfr., v.g., Acs. da RE de 11.11.93, da RC de 16.01.90, da RL de 26.11.87, RP de 11.05.89 e de 29.09.97, CJ, V, pág. 283, I, pág. 87, V, pág. 128, III, pág. 192 e IV, 200, respectivamente. A solução não é inteiramente isenta de reparos. É que tratando-se de nulidade típica, esta além de arguível por qualquer das partes é de ofício cognoscível pelo tribunal (artº 289 do Código Civil). Cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., vol. II, pág. 754 e Acs. da RL de 18.03.93 e de 02.02.95, CJ, II, pág. 111 e I, pág. 115.
[44] Ac. da RE de 21.3.00, BMJ nº 495, pág. 381.
[45] Que é entendida como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um. Cfr. v.g., o Ac. do STJ de 6.12.01, www.dgsi.pt., portanto, em termos muito restritivos.
[46] Ac. da RL de 4.5.00, BMJ nº 497, pág. 433. Comparativamente com o regime anterior – artºs 456 nº 3 e 457 nº 1 b) do CPC de 1961 – e à corrente maioritária da jurisprudência – v.g. Acs. da RP de 26.2.90, BMJ nº 394, pág. 528, do STJ de 16.4.91, ActJ, 18 (1992), pág. 17 e RP de 14.11.94, CJ, 94, V, pág. 264 – alargou-se justificadamente o âmbito da má fé processual aos casos de negligência grave. Basta assim, uma falta grave de diligência para justificar a má fé da parte.
[47] É, porém duvidoso, se esse pedido só pode ser feito no processo em que a litigância de má fé tem lugar. Neste sentido, Acs. da RC de 22.04.94 e 27.5.97, BMJ nºs 434, pág. 701 e 467, pág. 637, respectivamente; contra, porém, sustentando a possibilidade de a parte de boa fé poder intentar acção autónoma - onde é possível apreciar, ou não, a existência de responsabilidade civil da parte deduziu pretensão infundada ou litigou incorrectamente, causando com isso danos – cujo objecto seja a apreciação da má fé da contraparte em processo com decisão passada em julgado, Cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 65 e 66 e Ac. do STJ de 26.02.35, RLJ, Ano 67, pág. 360.
[48] Por tudo isto, a má fé surge, assim, como um instituto processual, de feição pública e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil que pretenda suprimir danos ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Esta razão explica a parca aplicação jurisdicional do instituto. Preocupados com uma pax processual imediata e confrontados com a estrita configuração legal do instituto, os tribunais só em casos absolutamente gritantes aceitam sancionar a litigância de má fé. Cfr. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, 2006, pág. 29.
[49] Ac. da RC de 12.12.98, BMJ nº 482, pág. 304.
[50] Acs. da RC de 22.03.94 e 06.12.94, BMJ nºs 435 e 442, págs. 917 e 272, respectivamente.
[51] Para manter a coerência lógica da decisão, o tribunal da 1ª instância pode ampliar a julgamento de modo a apreciar outros pontos de facto (artº 712 nº 4, in fine, do CPC). Cfr. Antunes Varela, RLJ Ano 125, pág.331.
[52] Manuel de Andrade, Sentido e Valor da Jurisprudência, BFDUC, Vol. XLVIII, Coimbra, 1972, pág. 227.
[53] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, 1981 vol. IV, pág. 468.
[54] Ac. STJ de 14.03.06, CJ, STJ, XIV, I, pág. 130 e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 271.
[55] Ac. da RL de 10.11.05 e de 19.02.04, www.dgsi.pt. e Luís Filipe Brites Lameiras, Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 150.
[56] Eurico Lopes Cardoso, BMJ nº 80, págs. 220 e 221.
[57] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição, Almedina, 2000, págs. 273 e 274.
[58] Ac. do STJ 08.11.95, CJ, STJ, 95, III, pág. 293 e da RP de 20.02.01, www.dgsi.pt.
[59] Ac. do STJ de 29.09.95, www.dgsi.pt.
[60] Juan Montero Aroca, Valoración de la prueba, regras legales, Quaderni de “Il giusto processo civile”, 2, Stato di diritto e garanzie processualli, a cura di Franco Cipriani, Atti delle II Giornate internazionali de Diritto processualle civile, Edizione Scientifiche Italiene, 2008, págs. 44 e 45.
[61] Michelle Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, págs. 42 e 43.
[62] Ac. da RC de 18.05.94, BMJ nº 437, pág. 598.
[63] Neste sentido, Antunes Varela, RLJ Ano 116, pág. 330.
[64] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra, 1985, pág. 288, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 202, Vaz Serra, Provas, BMJ nº 110, pág. 131, Antunes Varela, RLJ, Ano 116º, pág. 341 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e A. Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, pág. 461 e nota 3, Pedro Ferreira Múrias, Para uma Distribuição Fundamentada do ónus da Prova, Lisboa, Lex, 2000, págs. 123 e 124.
[65] Note-se que mesmo no das acções de simples apreciação ou declaração negativa não há, verdadeiramente, qualquer inversão do ónus da prova, mas uma simples aplicação das regras gerais. Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, 1995, págs. 220 e 221 e Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, 1982, pág. 534; contra, Rita Lynce de Faria, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa, Lex, 2001, págs. 43 e 44.
[66] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, op. cit., pág. 354.
[67] Ac. da RC de 11.10.94, BMJ nº 440, pág. 560. O ponto não é líquido, sendo discutível se não se trata, antes, de uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (artº 668 nº 1 d), 2ª parte, do CPC).
[68] Acs. da RC de 03.04.86, BMJ nº 356, pág. 453 e do STJ de 27.10.94 e 05.07.94, BMJ nºs 440, pág. 478 e 439, pág. 479, respectivamente; José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, pág. 631.
[69] Acs. da RC de 12.05.81, VJ, III, pág. 201 e de 06.12.94, BMJ nº 442, pág. 268.
[70] Ac. da RE de 11.12.84, CJ, 84, V, pág. 26.
[71] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pág. 349 e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra, 2001, pág. 274.
[72] Como se verifica um incremento quantitativo da massa patrimonial responsável – dado que o credor passa a ter dois patrimónios, de devedores solidários, que respondem pela satisfação do crédito - a assunção cumulativa, desde que desempenhe uma função de garantia, pode ser incluída entre as garantias pessoais. Cfr., L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, Coimbra, 2010, pág. 179.
[73] Acs. do STJ de 14.10.99 e de 12.09.06, www.dgsi.pt e da RP de 28.11.94, CJ, XIX, V, pág. 94.
[74] Ac. do STJ de 28.05.09, www.dgsi.pt.
[75] Acs. do STJ de 09.07.98, 27.02.03 e 05.05.05, www.dgsi.pt e Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 353.