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EMBARGOS DE TERCEIRO
FARMÁCIA
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
PENHORA
POSSE
MERA DETENÇÃO
TRESPASSE
Sumário
1. O estabelecimento comercial de farmácia pode ser objecto de penhora, enquanto universalidade de facto e de direito que é (na qual, a par da existência de elementos incorpóreos, estes por natureza avessos a actos de apossamento, sobrelevam os elementos de natureza corpórea compatíveis com os actos materiais através dos quais a posse se manifesta), constituindo a ofensa da respectiva posse fundamento para impugnar a penhora por via de embargos de terceiro. 2. Não constituindo, em princípio, a posse precária ou mera detenção fundamento para impugnar a penhora por via de embargos de terceiro, os detentores da coisa penhorada, no âmbito de alguns direitos reais de garantia, como sucede na hipótese do penhor, podem embargar de terceiro para defesa desses direitos, quando o bem tenha sido penhorado como pertencente a pessoa diversa de quem constituiu o penhor. 3. Em face do disposto no DL nº 307/2007, de 31 de Agosto (RJFO), a eficácia translativa do negócio de trespasse de uma farmácia de oficina não depende do prévio averbamento no respectivo Alvará, antes se impondo tal averbamento do negócio translativo para efeitos de respectiva e permanente actualização, recaindo a fiscalização do respectivo incumprimento sobre a Autoridade Administrativa INFARMED.
Texto Integral
Acordam, na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
1. Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que “A” – Cooperativa Distribuidora Farmacêutica, CRL instaurou contra “B” – Unipessoal, Lda., actualmente denominada “C” – Sociedade Farmacêutica, Lda., veio “D” – Farmácia, Lda. deduzir embargos de terceiro pedindo a suspensão dos termos da execução e a restituição provisória da posse sobre o estabelecimento comercial de farmácia objecto de penhora.
Alegou para tanto, em síntese, que:
- No dia 27 de Fevereiro de 2008, foi efectuada, no processo principal, a penhora do estabelecimento comercial de farmácia, que gira sob a denominação Farmácia “E”;
- O estabelecimento comercial de farmácia penhorado na execução foi adquirido pela Embargante, por trespasse, titulado por instrumento particular subscrito em 13 de Fevereiro de 2008, em que intervieram as sociedades “C” – Sociedade Farmacêutica, Lda. e a Embargante;
- Desde essa data, foi a Embargante quem, através do seu sócio-gerente, passou a praticar todos os actos que integram a gestão de um estabelecimento comercial de farmácia;
- A actuação da Embargante é feita em nome e por conta própria, com a intenção de exercer os direitos que lhe cabem como dona do estabelecimento adquirido e, consequentemente, como beneficiária dessa actuação;
- A posse da Embargante sobre tal estabelecimento é titulada, de boa fé, pacífica e pública;
- A penhora do estabelecimento ofende a posse da Embargante, bem como o direito de propriedade do estabelecimento de que a mesma Embargante é titular e que é incompatível com a realização da diligência.
2. Considerada desnecessária a produção de prova testemunhal informatória sobre a viabilidade dos embargos, foi proferido despacho de recebimento dos embargos de terceiro em 05.04.2008, que se limitou a determinar a suspensão da execução relativamente ao bem penhorado objecto de impugnação (cfr. fls. 100-101).
3. Subsequentemente, e em complemento daquela decisão de recebimento, em 03.06.2008, veio a ser proferido despacho a determinar a restituição provisória da posse do estabelecimento comercial de farmácia.
4. Inconformada, a Embargada “A” – Cooperativa Distribuidora Farmacêutica interpôs recurso daquela decisão – que foi recebido como de agravo, com subida imediata e em separado, e efeito meramente devolutivo (cfr. fls. 96) –, tendo formulado, a rematar a respectiva alegação recursória, as seguintes (transcritas) conclusões:
1ª. O estabelecimento comercial consiste numa universalidade jurídica que aglutina bens corpóreos e bens incorpóreos afectos ao exercício da actividade mercantil; apenas os bens corpóreos são susceptíveis de posse – cfr. art.s 1302º e 1251º do Código Civil.
2ª. Não podendo os bens incorpóreos de um estabelecimento ser objecto de posse, também não o podem ser os bens corpóreos que o integram, sob pena de desintegração do estabelecimento – cfr. acórdão do STJ, Processo nº 080225, de 28.05.1991 (inwww.dgsi.pt), acórdão da Relação de Évora, Processo nº 477/88, de 14.12.1988 (in BMJ, nº 383, de 1989, pág. 547) e acórdão do STJ, Processo nº 72320, de 25.06.1985.
3ª. Ainda que se acolhesse que a posse sobre estabelecimento comercial poderia ser admissível à luz do princípio da predominância (isto é, conforme o estabelecimento seja constituído essencialmente por bens corpóreos ou por bens incorpóreos), forçosamente se concluiria pela impossibilidade da posse e da tutela possessória relativamente a uma farmácia já que o bem que mais a caracteriza – e sem o qual, legalmente, a farmácia não pode funcionar – é o alvará, justamente um bem incorpóreo (que é, além do mais, o bem que integra a farmácia com maior valor comercial). Inquestionavelmente, o alvará da farmácia não pode ser objecto de posse; logo, a farmácia, como unidade jurídica, também é insusceptível de posse.
4ª. Quem actuar por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade de uma farmácia sem que a alteração da propriedade esteja averbada a seu favor comete uma contra-ordenação muito grave, prevista – cfr. art. 48º, alínea j), do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, sancionada com coima e ainda com eventuais sanções acessórias, tais como o encerramento do estabelecimento e a suspensão do alvará – cfr. art. 49º do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto.
5ª. Ao ordenar a restituição provisória de posse à Embargante, ora Agravada, que não fez prova do averbamento ao alvará da “Farmácia “E”” da alteração da propriedade a seu favor, o tribunal a quo poderá ter viabilizado a prática de um acto ilícito, concretamente uma contra-ordenação muito grave.
6ª. Ainda que se entenda que a figura da posse é aplicável ao estabelecimento comercial de farmácia – o que se rejeita com veemência e apenas por mera cautela e dever de patrocínio se admite – a Agravada sempre careceria de legitimidade para requerer a restituição provisória de posse.
7ª. A Agravada juntou aos autos um documento autêntico do qual resulta que a mesma, por força de contrato de penhor, ficou possuidora da “Farmácia “E”” em nome alheio [isto é, em nome do Banco] – cfr. fls. 5, frente e verso, do doc. nº 5 do requerimento de embargos de terceiro.
8ª. A Agravada sempre seria pois mera detentora ou possuidora precária, faltando-lhe assim legitimidade para requerer a restituição provisória de posse, caso esta se considerasse admissível na situação dos autos – cfr. art.1253º, alínea c), do Código Civil. Apenas o Banco “F”, S.A., credor pignoratício e possuidor da “Farmácia “E”” teria legitimidade para deduzir tal pedido.
9ª. Nos autos não se encontram provados factos que indiciem suficientemente, nem o direito de propriedade, nem a posse, alegados pela Agravada.
10ª. Quanto à posse, o documento autêntico referido supra na conclusão sétima faz prova plena de que a Agravada ficou possuidora da “Farmácia “E”” em nome alheio, sendo portanto mera detentora.
11ª. Quanto ao direito de propriedade, o despacho recorrido faz pois tábua rasa do regime jurídico da propriedade da farmácia de oficina previsto no Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, o que é absolutamente inadmissível.
12ª. Conforme decorre do disposto no art. 25º, nº 3, do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, a transmissão do direito de propriedade sobre uma farmácia não opera por mero efeito do contrato, dependendo ao invés do respectivo averbamento ao alvará da farmácia; trata-se de uma excepção à regra geral expressa no art. 408º do Código Civil, segundo a qual a transferência dos direitos reais sobre coisa determinada se dá por mero efeito do contrato.
13ª. A prova indiciária e suficiente da titularidade do direito de propriedade da Agravada sobre a “Farmácia “E”” só poderia ser efectuada através da exibição do alvará contendo o averbamento da alteração da propriedade, averbamento esse que, como se disse, é constitutivo do negócio; o que bem se compreende, pois trata-se da única forma de se assegurar que só se torna proprietário de farmácia quem preenche os requisitos legalmente exigíveis para o efeito (já que está em causa uma actividade de saúde e de interesse público).
14ª. O contrato de trespasse invocado pela Agravada (e junto aos autos) também não prova, nem mesmo indiciariamente, se a mesma preenche as condições previstas nos art.s 15º, 16º e 17º do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, para, nos termos legais, ser proprietária de farmácia de oficina; a prova indiciária e suficiente do preenchimento dos referidos requisitos legais só poderia ser efectuada através da exibição do alvará contendo o averbamento da alteração da propriedade.
15ª. O novo modelo de alvará da farmácia de oficina, aprovado pela Deliberação nº 440/CD/2007, do INFARMED, refere que os negócios e outros actos jurídicos respeitantes a farmácias não são oponíveis se faltar o correspondente averbamento – cfr. doc. nº 1.
16ª. Ao decidir como decidiu, o acórdão recorrido violou frontalmente as disposições dos art.s 25º, nº 3, do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, art.s 408º in fine, 1251º, 1253º, alínea c), 1276º e 1281º, 1302º, do Código Civil, e art.384º do Código de Processo Civil.
Conclui pedindo que seja dado provimento ao presente recurso com todas as consequências legais.
5. A Agravada “D” – Farmácia, Lda. produziu contra-alegações, pugnando pelo infundado do recurso.
6. A fls. 97 foi exarado despacho tabelar a manter o julgado.
7. Juntos os elementos e a informação a que alude o despacho de fls. 104, foi complementado exame preliminar e colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Delimitação do objecto do recurso
Conforme deflui do disposto nos artigos 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. Proc. Civil, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por imperativo do artº. 660º ex vi do artº. 713º, nº 2, do citado diploma legal.
Dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Agravante respigam-se como questões solvendas as seguintes, alinhadas segundo um critério de lógica e cronologia preclusivas:
(i) da alegada inadmissibilidade da posse sobre o estabelecimento comercial (1ª, 2ª e 3ª conclusões recursórias);
(ii) da pretextada ilegitimidade da Embargante “D” – Farmácia, Lda. para pedir a restituição provisória da posse (por, alegadamente, enquanto devedora pignoratícia, se tratar de mera detentora ou possuidora precária) e da conexa questão da falta de indícios suficientes da posse alegada: 6ª, 7ª, 8ª, 9ª e 10ª conclusões recursórias;
(iii) da falta de indícios suficientes do direito de propriedade invocado (9ª, 11ª a 15ª conclusões recursórias).
Sublinhe-se que, reportando-se as 4ª e 5ª conclusões recursórias a afirmações de carácter acessório, na óptica das questões solvendas, a que, verdadeiramente, subjaz a competência da Autoridade Administrativa INFARMED para aferir da observância dos requisitos de abertura da Farmácia “E” ao público, apenas enquanto obter dicta serão objecto de contextualização no tratamento da última questão solvenda ora acabada de enunciar.
III. Fundamentação
1. Factualidade dada como indiciariamente assente em 1ª instância
1.1. A embargada “A” – Cooperativa Distribuidora Farmacêutica, CRL deduziu execução contra a embargada “C” – Sociedade Farmacêutica, Lda., tendo por títulos executivos a sentença de fls. 13 a 15 e o acordo de fls. 63 a 66 dos autos de execução.
1.2. A fls. 48 a 52 dos autos de execução consta o auto de penhora de estabelecimento, inscrevendo-se no local destinado às observações que “actualmente a farmácia é explorada pela sociedade “D” – Farmácia Lda., adquirida por trespasse em 13.2.2008”, identificando a sua localização no ..., 15-B, ....
1.3. A fls.10 e 11 destes autos encontra-se cópia do documento intitulado “contrato de trespasse de estabelecimento comercial Farmacêutico”, datado de 13.2.2008, do qual consta que a embargada “C” – Sociedade Farmacêutica, Lda. e embargante e esta “adquire, o trespasse da Farmácia “E”“ (documento que se dá por integralmente reproduzido).
2. Da alegada inadmissibilidade da posse sobre o estabelecimento comercial
2.1. Âmbito dos embargos de terceiro
Consabido é que a impugnação da penhora mediante embargos de terceiro se pode fundamentar em:
(i) ofensa da posse em nome próprio correspondente ao direito de propriedade ou a um direito real limitado de gozo (artº. 1251º do Cód. Civil);
(ii) ofensa do direito de propriedade, de direito real limitado de gozo ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da penhora.
No caso em apreço, a Embargante arroga-se titular do direito de propriedade do estabelecimento de farmácia, alegando que a penhora de 27 de Fevereiro de 2008 ofende a sua posse e que tal direito é incompatível com a realização daquela diligência, requerendo a restituição provisória da posse.
Pressuposto da requerida restituição provisória da posse é, assim, desde logo, a existência de posse, a qual supõe a verificação do exercício de poderes de facto sobre uma coisa em moldes semelhantes aos da titularidade de um direito de propriedade ou de outro direito real de gozo (cit. artº. 1251º do Cód. Civil).
Não relevando para o caso em apreço aprofundar a polémica de perfil predominantemente doutrinário sobre a caracterização jurídica da posse no nosso ordenamento (como um verdadeiro direito, como direito real provisório ou tão só como uma situação de facto juridicamente protegida), mas tendo presente que as normas que, em sede de Código Civil, regulam a matéria denotam que a posse não foi encarada como um verdadeiro direito real, mas antes como situação de facto com protecção jurídica justificada pela aparência de um direito real de gozo e ainda que, nas referidas normas, se revela uma concepção subjectivista, manifestada pela exigência de dois elementos (o corpus e o animus), importa então indagar se nos encontramos perante uma situação passível de posse.
2.2. Da susceptibilidade do estabelecimento comercial ser objecto de posse
Os casos paradigmáticos da tutela possessória relacionam-se, efectivamente, com o exercício de poderes de facto sobre coisas corpóreas susceptíveis de constituírem objecto de direitos reais de gozo: os direitos de propriedade, de usufruto, de servidão predial (cfr. DIAS PEREIRA, “Tutela Possessória das Servidões”, in BFDUL, vol. LXXVI, p. 473 e segs.), de superfície, de uso e habitação ou de habitação.
Já no que concerne ao estabelecimento comercial – sobre cuja natureza adianta ORLANDO DE CARVALHO: «a estrutura do estabelecimento, reflectindo o moderno condicionalismo é (...) alguma coisa de insólito; e não apenas de insólito, mas também de imprevisível pela fluidez de uma atmosfera em permanente mobilidade, e por essa mobilidade e pela complexidade de factores que, em cada minuto, lhe dão forma, alguma coisa de adverso à redução a um conceito necessariamentesimplificante e estabilizante como é, no fim de contas, todo o conceito normativo» (“Critério e Estrutura do Estabelecimento”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia, p.4 a 31) –, não existe uniformidade de entendimento quanto à susceptibilidade de ser objecto de posse e, por arrastamento, quanto à aplicabilidade das respectivas acções defensivas perante actos de turbação ou de esbulho, bem como quanto ao recurso ao meio de impugnação da penhora ora em causa (embargos de terceiro) com o aludido fundamento de violação da posse.
Todavia, é manifestamente minoritária a tese negativista, verificando-se uma forte tendência da jurisprudência e da doutrina em sentido contrário (cfr. ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, vol. II, 4ª ed., p. 704, e RLJ, 119º, p. 243; ORLANDO DE CARVALHO, in RLJ, 122º, p. 107, que, sob o item “Objectos passíveis de posse”, explicita «passíveis de posse são todos os bens passíveis de domínio, ou seja, e genericamente, todas as coisa. Na possessio rei, como sabemos, só o eram as coisas corpóreas e simples as unitae corporales mas a sensibilidade dominial evoluiu, e hoje, salvo nos direitos alemão e suíço, o conceito de coisa estende-se às coisas incorpóreas e complexas (mormente às coisas compostas funcionais, em que se inclui o estabelecimento mercantil)», para concluir: «(...) o estabelecimento mercantil, independentemente da sua determinação precisa, que é o seu grande problema, é visto universalmente como objecto de posse, de tal sorte essa intuição do comércio se impôs ao nível jurídico( ...)»; FERRER CORREIA, “Reivindicação do Estabelecimento Comercial como Unidade Jurídica”, in “Estudos Jurídicos”, vol. II, p. 255 e segs.), adoptando-se um salutar pragmatismo na ultrapassagem de argumentos eivados de elevada dose de conceptualismo mas incapazes de responder satisfatoriamente às exigências sociais e económicas conexas com a figura do estabelecimento.
Sem necessidade de grandes desenvolvimentos a este propósito, basta acentuar que, conforme decorre do disposto no artº. 862º-A do Cód. Proc. Civil, o estabelecimento comercial pode ser objecto de penhora enquanto universalidade de facto e de direito que é, e na qual estão compreendidos, designadamente, os seguintes elementos: as instalações, equipamentos e utensílios; as mercadorias; o direito de alvará, o nome, insígnia, logótipo e recompensa; os créditos sobre terceiros; o direito de arrendamento, quando se trate de estabelecimento instalado em prédio arrendado.
Assim, a par da existência no estabelecimento de elementos incorpóreos, estes por natureza avessos a actos de apossamento, sobrelevam os elementos de natureza corpórea compatíveis com os actos materiais através dos quais a posse se manifesta.
Com efeito, sem prejuízo da relevância a atribuir à denominação, à clientela, à firma ou a outros daqueles aspectos de ordem imaterial, não se pode olvidar que, na maioria dos casos, a par do equipamento e dos produtos que no estabelecimento se comercializam ou se produzem, o espaço físico e os objectos que o compõem constituem os elementos estruturantes e imprescindíveis ao exercício da actividade comercial ou industrial.
É certo que, em muitas situações, a questão da idoneidade dos meios possessórios poderia ser ultrapassada através da mera alegação de que a actuação do requerido resultou em esbulho dos bens móveis ou imóveis integrantes do estabelecimento (como na hipótese de o estabelecimento estar instalado em imóvel possuído ou arrendado pelo seu titular). No entanto, sempre subsistiriam situações em que só a prova da violação da posse sobre o estabelecimento comercial no seu todo possibilitaria o recurso aos meios de defesa especialmente previstos.
Donde concluir-se pela susceptibilidade de posse de um estabelecimento comercial de farmácia, e, por conseguinte, pela improcedência das razões aduzidas pela Agravante / Embargada nas 1ª, 2ª e 3ª conclusões recursórias.
3. Da pretextada ilegitimidade da Embargante “D” – Farmácia, Lda. para pedir a restituição provisória da posse (por, alegadamente, se tratar de mera detentora ou possuidora precária, enquanto devedora pignoratícia) e da conexa questão da falta de indícios suficientes da posse alegada
Neste particular, argumenta a Embargada / Agravante “A” – Cooperativa Distribuidora Farmacêutica, CRL:
- A Agravada juntou aos autos um documento autêntico do qual resulta que a mesma, por força de contrato de penhor, ficou possuidora da “Farmácia “E”” em nome alheio [isto é, em nome do Banco];
- A Agravada sempre seria pois mera detentora ou possuidora precária, faltando-lhe assim legitimidade para requerer a restituição provisória de posse, caso esta se considerasse admissível na situação dos autos – cfr. art. 1253º, alínea c), do Código Civil. Apenas o Banco “F”, S.A., credor pignoratício e possuidor da “Farmácia “E”” teria legitimidade para deduzir tal pedido.
Ora, tem legitimidade para embargar de terceiro aquele que se arroga possuidor do bem penhorado ou titular de direito incompatível com essa penhora e que não seja parte na acção executiva onde a penhora foi realizada (artº. 351º, nº 1, do Cód. Proc. Civil).
Tal legitimidade activa para efeitos de dedução de embargos de terceiro, mostra-se, assim:
- por um lado, desvinculada da posse, porquanto se admite que os embargos se fundem em direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência ;
- e, por outro lado, alargada a todo o possuidor ( em nome próprio ou alheio ) cuja posse seja incompatível com essa realização ou esse âmbito
(Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, in “ A Acção Executiva, Depois da reforma da reforma”, 5.ª Ed., p. 286 e segs.)
Ademais, não constituindo, em princípio, a posse precária ou mera detenção (artº. 1253º do Cód. Civil) fundamento para impugnar a penhora por via de embargos de terceiro, tem-se discutido se os detentores da coisa penhorada, no âmbito de alguns direitos reais de garantia, como sucede, no que para o caso releva, na hipótese do penhor (cfr. artº. 670º, al. a), do Cód. Civil) – definido por VAZ SERRA como um direito real de realização do valor de uma coisa móvel para garantia de um crédito (in Separata do BMJ, nºs. 58 e 59, p. 5) –, podem embargar de terceiro para defesa desses direitos.
- Efectivamente, o credor pignoratício que, de algum modo, mesmo só simbolicamente, tenha recebido a posse da coisa empenhada, deve ser considerado simultaneamente possuidor em nome próprio e possuidor em nome alheio; possuidor em nome próprio do direito resultante do penhor, direito real de garantia (posse pignoratícia, com o correspondente poder jurídico possessório) e possuidor em nome alheio da coisa empenhada, cuja propriedade continua a pertencer ao devedor.
E, na falta de desapossamento do devedor (nesse caso, mero detentor do correspondente poder material), tem-se configurado a aquisição da posse do penhor pelo credor pignoratício mediante constituto possessório (transmissão tão só jurídica da posse: v. artº. 1264º do Código Civil); de tal modo que, em tal hipótese, o dono do objecto empenhado, apesar de dono, o possui em nome ou em representação do credor em tudo quanto respeite ao direito real pignoratício------------.
Acresce que, do disposto no artº. 824º, nºs. 2 e 3, do Cód. Civil, resulta que a venda executiva faz caducar os direitos reais de garantia existentes sobre a coisa, transferindo-se para o respectivo produto da venda.
É por isso que, aos credores privilegiados (sendo privilegiado o credor pignoratício pela preferência atribuída pelo artº. 666º do Cód. Civil) é facultado o direito de reclamar o crédito assim provido de garantia real, em sede de concurso de credores.
Por conseguinte, não lhes assiste o direito de impugnar a penhora por embargos, a não ser que o bem tenha sido penhorado como pertencente a pessoa diversa de quem constituiu o penhor. Nesta hipótese, poderá então haver lugar a embargos de terceiro com fundamento em que o executado não é o titular do direito com base no qual aquele direito real de garantia foi constituído.
E no caso em apreço?
Do recursoriamente convocado acordo intitulado “confissão de dívida com hipoteca e penhor de estabelecimento”, constante de fls. 73 a 88 destes autos, datado de 13.02.2008, outorgado entre a Embargante “D” – Farmácia, Lda. e o Banco “F”, S.A., resulta que:
- entre aquela (como mutuária) e este foi celebrado um empréstimo, no montante de um milhão e trezentos mil euros, e que, para garantia do mesmo empréstimo, a sociedade mutuária constituía a favor do Banco “F”, S.A. penhor mercantil sobre o estabelecimento de farmácia designado por “Farmácia “E”” que a mutuária explora e que se encontra instalado no prédio urbano sito no ..., freguesia e concelho de ...;
- os bens e direitos que integram o estabelecimento dado em penhor ficam em poder da mutuária que se obriga a guardá-los a título gratuito, e que deles fica considerado possuidor em nome alheio, nos termos dos parágrafos primeiro e segundo do art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 29.833, de 17-8-1939;
- se o objecto empenhado ficar em poder do dono, esse será considerado, quanto ao direito pignoratício, possuidor em nome alheio.
Assim, no caso em apreço:
- por um lado, não obstante a constituição da garantia real do penhor sobre o estabelecimento de farmácia, tal constituição não implicou o desapossamento pelo devedor do referido bem;
- por outro lado, o estabelecimento de farmácia foi penhorado como pertencente a pessoa diversa de quem constituiu o penhor,
resulta justificada a possibilidade de o devedor pignoratício poder lançar mão dos embargos de terceiro.
Improcede, outrossim, a argumentação da Agravante vertida nas conclusões recursórias 6ª, 7ª, 8ª e 10ª.
4. Da falta de indícios suficientes do direito invocado (por, à data da penhora, ainda não ter sido averbado junto do INFARMED, e em sede de Alvará, a transmissão do estabelecimento de farmácia da Executada para a Embargante).
Por último, sustenta a Embargada, ora Agravante, “A” – Cooperativa Distribuidora Farmacêutica, CRL que:
- Nos autos não se encontram provados factos que indiciem suficientemente, nem o direito de propriedade, nem a posse, alegados pela Agravada;
- Quanto à posse, o documento autêntico referido supra faz prova plena de que a Agravada ficou possuidora da “Farmácia “E”” em nome alheio, sendo portanto mera detentora;
- Quanto ao direito de propriedade, o despacho recorrido faz pois tábua rasa do regime jurídico da propriedade da farmácia de oficina previsto no Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, o que é absolutamente inadmissível;
- Conforme decorre do disposto no art. 25º, nº 3, do Decreto – Lei nº 307/2007, de 31 de Agosto, a transmissão do direito de propriedade sobre uma farmácia não opera por mero efeito do contrato, dependendo ao invés do respectivo averbamento ao alvará da farmácia; trata-se de uma excepção à regra geral expressa no art. 408º do Código Civil, segundo o qual a transferência dos direitos reais sobre coisa determinada se dá por mero efeito do contrato.
- A prova indiciária e suficiente da titularidade do direito de propriedade da Agravada sobre a “Farmácia “E”” só poderia ser efectuada através da exibição do alvará contendo o averbamento da alteração da propriedade, averbamento esse que, como se disse, é constitutivo do negócio.
Vejamos, então, o que dos autos indiciariamente resulta quanto ao direito de propriedade, [uma vez que a questão referente a «não se encontrarem provados factos que indiciem suficientemente a posse», dada a natureza do único argumento aduzido sob a conclusão recursória 10ª (não obstante o quadro alegatório constante dos artºs. 15º a 23º da petição de embargos e a prova testemunhal arrolada), foi objecto de tratamento global em sede da questão anterior), repristinando, para tanto, a pertinente factualidade indiciariamente assente:
- A fls. 10 e 11 destes autos encontra-se cópia do documento intitulado “contrato de trespasse de estabelecimento comercial Farmacêutico”, datado de 13.2.2008, do qual consta que a embargada “C” – Sociedade Farmacêutica, Lda. e embargante e esta “adquire, o trespasse da Farmácia “E”“ (documento que se dá por integralmente reproduzido).
Ora, consabido é que o contrato de trespasse consubstancia «a transmissão definitiva, por acto entre vivos, seja a título oneroso, seja a título gratuito, da titularidade de um estabelecimento comercial» (ANTÓNIO PAIS DE SOUSA, in “Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª ed., p. 302).
Por conseguinte, o trespasse é «um acto de transmissão global e a título definitivo - o que o distingue da cessão de exploração, que é uma transferência temporária, em que o cedente conserva a titularidade do estabelecimento, limitando-se a permitir que o cessionário o explore - do estabelecimento comercial ou industrial» (cfr. PINTO FURTADO, in “Curso de Direito dos Arrendamentos Vinculísticos”, 2ª ed., p. 375).
Assim:
- transmitida para a Embargante a titularidade (isto é, a propriedade) do estabelecimento de farmácia - por efeito do aludido trespasse (cfr. artº. 408º, nº 1, do Cód. Civil)- que, na execução, foi penhorado (em data posterior à do aludido trespasse );
- sendo tal direito incompatível com o âmbito da diligência judicial (ou seja, a penhora) realizada na execução à qual foram os embargos apensos;
- e, por último, não sendo a Embargante parte em tal causa,
inquestionável se nos afigura ( tal como o entendeu o tribunal a quo) que se mostram verificados todos os pressupostos exigíveis para o recebimento do presente meio de oposição à diligência judicial de penhora realizada.
Obtempera, todavia, a ora Agravante que «a transmissão do direito de propriedade sobre uma farmácia não opera por mero efeito do contrato, dependendo ao invés do respectivo averbamento ao alvará da farmácia; trata-se de uma excepção à regra geral expressa no art. 408º do Código Civil, segundo a qual a transferência dos direitos reais sobre coisa determinada se dá por mero efeito do contrato», ou seja, «a prova indiciária e suficiente da titularidade do direito de propriedade da Agravada sobre a “Farmácia “E”” só poderia ser efectuada através da exibição do alvará contendo o averbamento da alteração da propriedade, averbamento esse que, como se disse, é constitutivo do negócio».
Ora, sendo a Farmácia “E”uma farmácia de oficina, que prossegue, não apenas o interesse particular, designadamente, do respectivo proprietário, mas também «uma actividade de saúde e de interesse público» [cfr. artº. 2.° do DL nº 307/2007, de 31 de Agosto (que estabeleceu o Regime Jurídico das Farmácias de Oficinas (doravante, designado por RJFO), estabelecendo o quadro global e de enquadramento do sector]– sendo que, no âmbito daquele DL nº 307/2007, deixou de se exigir que tal direito de propriedade seja um exclusivo de farmacêuticos, ainda que reservado a pessoas singulares e sociedades comerciais, suprimindo-se, assim, o regime extraordinariamente restritivo da transmissão do direito de propriedade das farmácias, permitindo que a propriedade das mesmas possa pertencer a qualquer pessoa, ainda que não farmacêutico (nº 1 do artº. 14º do citado diploma) –, há que ter em atenção se, no que concerne ao aludido contrato que importou a transferência do direito real sobre a coisa, se mantém a mencionada regra de que essa transferência se dá por meio efeito do contrato, ou se, no caso em apreço, tal regra comporta a excepção prevista no nº 3 do artº. 25° do aludido RJFO, segundo o qual «a alteração da propriedade ou a transferência da localização da farmácia dependem de averbamento no alvará».
Importa, assim, indagar se tal averbamento ao alvará da farmácia assume natureza constitutiva ou meramente consolidativa da situação anterior.
Sendo inquestionável que o alvará faz parte integrante da realidade jurídica “farmácia”, do citado dispositivo legal (nº 3 do artº. 25° do RJFO) decorre que o que a lei claramente pretende evitar, ao prever que a alteração da propriedade ou a transferência da localização da farmácia dependem do averbamento no respectivo alvará, é que a entidade licenciadora e fiscalizadora do sector farmacêutico, actualmente a Autoridade Administrativa INFARMED, tenha efectivo conhecimento de tal alteração, a fim de, previamente a tal averbamento, poder aferir da legalidade/validadedos respectivos pressupostos.
Assim, a pretextada natureza constitutiva do averbamento no alvará da alteração da propriedade de uma farmácia, nos termos ora defendidos pela Agravante, para além de se mostrar desenquadrada do reconhecimento efectuado pelo próprio legislador (cfr. Preâmbulo do citado DL nº 307/2007), não se nos afigura encontrar qualquer suporte no próprio diploma que regulamenta a actividade de saúde e de interesse público que as farmácias prosseguem. Senão, vejamos:
Em sede de regulamentação da actividade de saúde e de interesse público prosseguida pelas farmácias, o RJFO autonomiza a «propriedade da farmácia» (objecto do Capítulo II) das questões respeitantes à «abertura da farmácia ao público» (tratadas no Capítulo V).
Assim, do Capítulo II daquele DL nº 307/2007, epigrafado de “Propriedade da Farmácia”,nada consta – mormente do respectivo artº. 18º, com a epígrafe de “Venda, trespasse, arrendamento e cessão de exploração” – quanto à necessidade de os negócios respeitantes a tal venda, trespasse, arrendamento e cessão de exploração de uma farmácia, carecerem de um qualquer registo e/ou averbamento em alvará para, enquanto tal, poderem produzir quaisquer efeitos inter partes Ao invés, neste âmbito, limita-se o nº 5 do mesmo artº. 18º do RJFO a exigir que os negócios jurídicosaí previstos - venda, trespasse, arrendamento e cessão de exploração - sejam comunicados ao INFARMED, no prazo de 30 dias, para efeitos de averbamento no alvará, sob pena de cometimento de contra-ordenação grave, prevista e punível nos termos da al. e) do nº 1 do artº. 47º do RJFO.
Por sua vez, o artº. 25º do RJFO, inserido no Capítulo V, sob a epígrafe “Licenciamento e alvará”, não diz respeito à constituição de direitos reais e outros sobre o estabelecimento de farmácia (como sucede no anterior Capítulo II), antes nele se regulando as questões relacionadas com a abertura da farmácia ao público, constituindo, assim, contra-ordenação muito grave a «abertura de farmácia ao público sem a atribuição do respectivo alvará ou a falta de averbamento em casos de alteração da propriedade (…) previstas no artigo 25ª», conforme refere a Agravante na sua 4ª conclusão recursória.
Ademais, tendo presente a distinção que, em sede de Direito Registral, se estabelece entre averbamento e inscrições que publicitam e definem os direitos, dificilmente se poderia aceitar que o carácter alegadamente de natureza constitutiva de uma determinada realidade jurídica fosse publicitado e efectivado através do mero averbamento.
Em conclusão: a eficácia translativado negócio de trespasse de uma farmácia de oficina, em face do disposto no DL nº 307/2007, de 31 de Agosto, não carece / depende do prévio averbamento no respectivo Alvará, apenas se impondo que tal negócio translativo seja averbado no alvará para efeitos de respectiva e permanente actualização e recaindo a fiscalização do respectivo incumprimento sobre a Autoridade Administrativa INFARMED.
Em suma, também neste particular, decaem as razões da ora Agravante / Embargada.
IV. Decisão
Posto o que precede, acordam os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em, negando provimento ao agravo, confirmar, por consequência, o segmento do despacho de recebimento dos embargos de terceiro que determinou a restituição provisória do estabelecimento de farmácia.
Custas a cargo da Agravante /Embargada.
Lisboa, 10 de Março de 2011
(Processado e integralmente revisto pela relatora, que assina e rubrica as demais folhas)