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MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
ESCRITURA PÚBLICA
PROVA PLENA
FORÇA PROBATÓRIA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PREÇO
FALTA DE PAGAMENTO
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
PROCURAÇÃO
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
Sumário
I - A alteração da decisão sobre a matéria de facto – em função da reapreciação da prova – só deve ocorrer caso o tribunal recorrido haja incorrido em patente equívoco ou erro na apreciação das provas, erro esse resultante da patente desconformidade da decisão em relação aos meios de prova. II - Limitando-se o notário a reproduzir a declaração do procurador que faz negócio consigo próprio, é admissível a prova de que o preço da compra e venda não está pago, já que tal matéria, não estando plenamente provada pelo documento da escritura, pode ser alvo de outro tipo de prova, designadamente de prova testemunhal (arts. 392.º, 393.º e 394.º do CC). III - A circunstância, comprovada nos autos, de não ter ocorrido o pagamento do preço não determina, só por si, a nulidade do contrato de compra e venda realizado. IV - A representação voluntária consiste em alguém (representante) realizar actos jurídicos em nome de outrem (representado) nos limites dos poderes conferidos por este, atribuindo-lhe legitimidade – indirecta – para afectar a esfera do dominus com efeitos do negócio em que este não interveio. V - Embora a procuração surja integrada no seio de um outro negócio jurídico, ela é um negócio jurídico unilateral razão pela qual a sua validade não depende da explicitação da sua causa, porquanto a mesma, podendo ser coeva ou anterior à procuração, não se confunde com ela. VI - Embora o Código Civil só preveja a procuração outorgada no interesse do dominus e a procuração outorgada também no interesse do procurador ou de terceiro, nada exclui a possibilidade de a mesma ser outorgada no exclusivo interesse do procurador, por ser essa a vontade do dominus. VII - A procuração constitui na esfera jurídica do procurador um poder de representação, não criando nenhuma promessa unilateral, razão pela qual não se pode recorrer à aplicação analógica do art. 457.º do CC, a qual – tendo natureza excepcional – não comporta tal interpretação. VIII - Assim, nos termos do art. 405.º do CC, é valido um negócio jurídico unilateral de procuração conferida no exclusivo interesse do procurador.
Texto Integral
Acordam os juízes na 2.ª secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
APELANTEAUTOR: “A” (Representado em juízo, entre outros, pelo ilustre advogado “B”, com escritório em Bombarral, conforme instrumento de procuração de 24/10/05 de fls. 71 dos autos). * APELADOS/RÉUS: “C” e “D”; (Representados em juízo pelo ilustre advogado “E”, com escritório em Bombarral, conforme instrumento de procuração de 6/3/06 fls. 115 dos autos); CO-RÉUS: “F” e “G” (Inicialmente representados pelo ilustre advogados “E” conforme instrumentos de procuração de fls.126/127, posteriormente representados pelo ilustre advogado “H”)
*
Com os sinais dos autos.
*
O Autor instaurou em 22/02/06 contra os Réus acção declarativa comum sob a forma ordinária pedindo em cumulação:
a) Que seja declarada nula a procuração que junta aos autos ou, se assim não se entender, que se declare que a procuração caducou em 26/04/00 com a morte do subscritor;
b) Que, por consequência, se declarem nulos, inexistentes ou inválidos os contratos de compra e venda a que respeitam as escrituras públicas outorgadas em 28/06/04 e 16/7/04;
c) Que se ordene o cancelamento das inscrições G-…, G-…, G-…, lavradas sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Bombarral sob o n.º…, assim como os respectivos registos posteriores;
d) Que se condenem os 2.º e 3.º Réus a entregarem, livre de pessoas e bens, o prédio conhecido por “C…” ou “Quinta…”, sito na freguesia do C…, concelho do Bombarral, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º…, inscrito na matriz rústica sob o artigo … da secção AA, assim como o armazém amplo que serve de oficina aí implantado, inscrito na matriz sob o artigo …;
e) E por fim, que se condenem todos os réus a pagarem-lhe, pela privação do uso das propriedades supra identificadas em d), a quantia de € 15.000,00, acrescida de 615,00 € mensais até à sua restituição.
Em suma alegou:
· Por escritura pública outorgada em 28/06/04, o primeiro réu, na qualidade de vendedor e procurador de seu pai “I”, vendeu a si próprio, pelo preço de € 66.340,00, quantia que declarou ter recebido apesar de nunca ter sido entregue, o prédio rústico conhecido por “C…” ou “Quinta…”, registado pelo primeiro réu a favor de “I” em 19/03/01, assim como o direito a uma benfeitoria constituída por uma armazém amplo que serve de oficina, implantada no prédio, aquisição que igualmente registou a seu favor a 30/06/04;
· logrou fazer mediante a utilização de cópia certificada de uma procuração de 13/12/96, inconscientemente emitida pelo “I”, falecido a 26/04/00, pois que à data não sabia ler e, por ser alcoólico crónico, também não estava em condições de entender o que lhe era dito ou pedido, assim como entender as consequências do acto que praticava, nunca tendo querido outorgar aquela procuração;
· O 1.º Réu actuou do modo descrito porquanto já tinha prometido vender as propriedades a terceiro e quarto réus, aquando da celebração daquela escritura pública, que por sua vez dariam de arrendamento a “J” pelo período de 5 anos; foram os 3.º e 4.º réus que lhe exigiram o registo do prédio a seu favor por saberem que o pai do autor era demente alcoólico, já era falecido à data do negócio, o autor ser o único herdeiro universal, e, desta feita, só conseguirem registar a aquisição a seu favor, intento que lograram em 23/07/04;
· Continua o Autor privado de angariar a quantia de € 615,00 mensais em virtude de o arrendamento continuar a recair sobre o armazém, rendimento que o prédio é susceptível de gerar e que “J” vem pagando aos 3.º e 4.º réus, por força do aludido contrato.
Os Réus, citados, vieram contestar em suam alegando:
· O Autor emigrou para os EUA no ano de 1992/1993 para fugir aos credores que corriam no seu encalço e foi por causa desta fuga que o pai “I” teve que pagar as dívidas então constituídas por aquele, o que fez usando dinheiro emprestado pelos dois primeiros réus, a quem pediu por dele não dispor à data, tendo estes últimos chegado a emprestar-lhe a quantia de 820.000$00 para libertar o autor da prisão em virtude deste ter emitido cheques sem provisão a uma empresa em Leiria, 2.500.000$00 para adquirir o armazém acima identificado, entretanto penhorado e posto em venda em processo de execução fiscal, mais a quantia necessária ao pagamento da sisa e dos juros compensatórios, assim como outros montantes que ora não conseguem identificar, destinados a pagar dívidas constituídas pelo autor.
· O autor comunicou ao pai que não regressaria mais a Portugal e foi em consequência dessa comunicação que o pai do autor procurou o primeiro réu no ano de 1996, propondo-lhe a venda do armazém e do direito a ½ do prédio rústico onde aquele estava implantado, assim o ressarcindo das quantias que lhe havia emprestado, o que o primeiro réu aceitou, tendo sido essa tal factualidade que motivou a outorga do contrato promessa de compra e venda datado de 13/12/96 e da procuração irrevogável
Replicando o Autor pugna pela improcedência das excepções e peticiona a condenação dos Réus como litigantes de má fé
Treplicando os réus argúem a nulidade parcial da réplica e pugnam pela improcedência do pedido de condenação como litigantes de má fé.
Procedeu-se ao julgamento com observância do legal formalismo, tendo sido proferida decisão sobre a factualidade controvertida, de que não houve reclamação.
Inconformada com a sentença de 4/5/2010 que, julgando a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos, dela apelou a Autora em cujas alegações conclui:
A) O Douto Tribunal a quo julgou incorrectamente a matéria de facto, dando como não provados os quesitos 14º a 23º quando, analisados criticamente, os depoimentos das testemunhas “K”, declarações gravadas no sistema informático de gravação integral, em CD, do contador nº 01 ao nº 33:49 e testemunha “L”-declarações estão gravadas na cassete nº 1, no lado A, conjugados com os documentos juntos aos autos, mormente o certificado de óbito e os excertos de estudos médicos sobre alcoolismo crónico e cirrose hepática, impunham decisão diversa da recorrida;
B) O Tribunal a quo devia, nos termos da lei, ter ponderado toda a prova produzida, analisando-a e examinando-a criticamente para, de forma lógica e coerente, formar a sua convicção, devidamente sustentada nos meios probatórios no seu todo e não de forma selectiva e insuficiente, desconsiderando quer os testemunhos supra mencionados, quer os documentos juntos aos autos, pelo que, ao contrário do que fez, o Douto Tribunal a quo deveria ter dado como provados os quesitos 14º a 23º.
C) Mediante a matéria de facto dada como provada e a matéria assente por confissão, verifica-se a nulidade do primeiro contrato de compra e venda, à luz do previsto no art. 874º do Código Civil, que define este negócio jurídico como o contrato através do qual se transfere a propriedade sobre uma coisa ou direito mediante a contraprestação de pagamento do preço, o que não aconteceu, como ficou provado, não tendo o A. nem o seu pai percebido qualquer quantia para pagamento do denominado “Quintal…” nem da referida benfeitoria.
D) O 1º réu (co-Réu”C”), no seu depoimento de parte, confessou que realizou o contrato de compra e venda consigo próprio de molde a se “auto-compensar” pelos comportamentos altruístas que teve para com o pai do A. durante a sua vida, consequentemente está assente e assim provado que “27. O co-réu “C” não pagou ao pai do Autor a quantia que declarou na escritura pública a que se alude em 8), nem qualquer outra por conta do preço aí mencionado.” ;
E) A douta sentença recorrida violou o exacto entendimento disposto no nº3 do art.659º do Código de Processo Civil, porquanto não tomou em consideração os factos admitidos por confissão e levados à matéria assente no que diz respeito ao não pagamento de qualquer quantia a título de preço, aplicando incorrectamente a lei;
F) Isto é, a douta sentença “sub-censura” violou assim o exacto entendimento do disposto nos arts.874º, 879º e 892ª do Código Civil; por não ter aplicado as normas jurídicas correspondentes;
G) A decisão recorrida violou ainda o art. 8º do C.C., através da agressão aos princípios baluartes do regime jurídico dos contratos, uma vez que não tomou em consideração os factos admitidos por confissão e outrossim a matéria factual assente;
H) Andou mal a Meritíssima Juiz a quo, ao considerar ter ficado demonstrado que o 1º Réu tinha procedido ao pagamento da totalidade do preço, e julgando, com esse fundamento, válida a procuração, pois considerou ter ficado provado a existência de um interesse do procurador, sendo que esse interesse, isto é, a relação subjacente à outorga da procuração, é a sua causa, causa esta que não se demonstrou nos presentes autos.
I) Uma vez que, no citado nº 27 dos factos provados está assente que “(27). O co-réu “C” não pagou ao pai do Autor a quantia que declarou na escritura pública a que se alude em 8), nem qualquer outra por conta do preço aí mencionado.” ;
J) A procuração conferida ao 1º R, pelo pai do A., está, pois, ferida de nulidade porque não explicita, não justifica a sua causa, ou seja, não prova a relação subjacente à cláusula de irrevogabilidade;
K) A nulidade da procuração atinge o negócio a realizar, ou já realizado, nos termos do artº268º nº1 do CC, sendo o mesmo inexistente e ineficaz em relação ao A., ou seja, no caso em apreço, a venda feita pelo 1º R. a si próprio e à sua co-ré mulher, sem poderes de representação – por ser nula a procuração – é ineficaz em relação ao A;
L) Simultaneamente, ao contrário do que foi entendido pelo Tribunal a quo, a procuração caducou com a morte do pai do A. sendo nula por inexistência de interesse ou causa que a justificasse, pois o alegado interesse do 1º Réu, explanado nos supra citados quesitos não se provou e daí que a primeira escritura seja nula, porque celebrada em momento ulterior ao da morte do mandante, e a segunda é, outrossim, nula em consequência da nulidade da primeira;
M) Ao decidir que era válida a procuração que foi mero instrumento de uma verdadeira burla e, por conseguinte, válidos os negócios celebrados pelos Réus, o Douto Tribunal recorrido fez errada interpretação do disposto no artº 265º nº3 do CC e violou, depois, o disposto nos artºs 268º nº1 e 280º do mesmo diploma;
TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO E COM O SEMPRE MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO, REVOGANDO-SE A DECISÃO DE PRIMEIRA INSTÂNCIA E, EM CONSEQUÊNCIA, CONSIDERADOS NULOS A PROCURAÇÃO DITA IRREVOGÁVEL E OS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA REFERIDOS NOS RESPECTIVOS AUTOS, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.
Em contra-alegações conclui o recorrido:
a) A transcrição da gravação dos depoimentos das testemunhas inquiridas, confirma o acerto da douta decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à matéria de facto. No caso em apreço, não são aplicáveis as previsões das alíneas a), b) e/ou c) do nº 1 artº 712º, do C.P.C..
b) Nenhum dos argumentos invocados pelo apelante justifica a alteração das respostas dadas pelo Tribunal de 1ª instância, devendo improceder a valorização redutora, efectuada pelo apelante, que apenas refere parte dos depoimentos e sem fidelidade em relação à transcrição.
c) A fundamentação da douta decisão recorrida sobre a matéria de facto, especifica os fundamentos que foram decisivos para a convicção da Julgadora e aprecia criticamente as provas, explicitando os motivos por que determinado meio de prova foi relevante e outro(s) não foi(ram) para formular a sua convicção, conforme consta da douta fundamentação da decisão da matéria de facto.
d) Carece de fundamento e deve ser indeferido o pedido de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, pois não existe erro na apreciação da prova, nem na fundamentação da mesma
e) O Tribunal a quo indicouos fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, o Tribunal da Relação possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos julgados como provados ou não provados.
f) O Tribunal a quo decidiu com acerto, verificando-se que a convicção expressa pelo Tribunal tem suporte razoável naquilo que consta da gravação e nos demais elementos constantes dos autos, não merecendo qualquer censura.
g) Assim sendo, o facto de se dizer que o Réu “C” não pagou ao “I” o preço que declarou na escritura pública a que se alude na alínea H) dos factos assentes, nem qualquer outra por conta do preço aí mencionado (obviamente o preço mencionado na dita escritura) não significa que o Réu “C” não tenha pago o preço devido pelos bens em questão.
h) Isto porque, pagou tal preço ao “I” aquando da celebração do contrato de promessa, a título de sinal e antecipação total de cumprimento.
i) Pelo que já não tinha que pagar o preço que consta da referida escritura.
j) E é este mesmo “I”, que na mesma data e local, outorga procuração irrevogável e constitui seu procurador o referido “C”, a quem dá poderes para vender a ele próprio procurador ou a pessoa que este viesse a indicar os bens que constam do contrato promessa atrás referido e relativamente aos quais aquele “I” declarou já ter recebido a totalidade do preço.
l) Como se diz na douta sentença recorrida, conjugado todo o circunstancialismo de facto, outra conclusão não se pode inferir, que o pai do Autor ao outorgar a procuração que se alude no nº 35 dos factos dado como provados, nos termos em que o fez, quis efectivamente acautelar que ambos os imóveis iriam entrar no domínio do 1º Réu ou da pessoa a quem este quisesse vendê-las porquanto, tendo o preço já sido por si total e antecipadamente pago, havia que dotá-lo de instrumento idóneo para que, por si só, pudesse obter tal fim.
m) Não se verifica, assim, a existência de qualquer vício que invalide a procuração irrevogável sub judice, nem os contratos celebrados à sua sombra (nulidade ou caducidade).
n) A douta sentença recorrida decidiu com acerto e plena observância da lei, não violando qualquer dos preceitos invocados pelo apelante.
Pelo que deve negar-se provimento ao recurso, mantendo-se “in totum” a douta sentença recorrida. COMO É DE DIREITO E INTEIRA JUSTIÇA
Recebido o recurso foram os autos aos vistos dos Meritíssimos Juízes-adjuntos que nada sugeriram; nada obsta ao conhecimento do mérito do mesmo.
Questões a resolver: a) Saber se ocorre erro de julgamento na decisão de facto relativa aos factos constantes dos quesitos 14 a 23 que o Tribunal recorrido deu como não provados mas que deveriam ter sido dados como provados; b) Saber se o tribunal recorrido não fez a análise crítica da prova, não tomando em consideração os factos admitidos por acordo e levados à matéria assente no que diz respeito ao não pagamento de qualquer quantia a título de preço, incorrendo em erro quanto à interpretação e aplicação das disposições contidas nos art.ºs 874, 879 e 892 do CCiv, andando mal ao considerar ter ficado demonstrado que o 1.º Réu tinha procedido ao pagamento da totalidade do preço, justificando o interesse, ou seja a relação causal da procuração que não se demonstrou nos autos; c) Saber se a procuração é nula por não explicitar a causa ou a relação jurídica subjacente à cláusula de irrevogabilidade, nulidade que atinge o negócio à sombra da procuração celebrado nos termso do art.º 268 do CCiv e se a procuração caducou com a morte do pai do A.
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1. “A”, aqui Autor, é emigrante nos Estados Unidos da América.
2. Por escritura pública exarada de folhas oitenta e três a folhas oitenta e três verso do livro de notas número cento e trinta e dois -F, do Cartório Notarial de …, epigrafada de "Habilitação", datada de 22 de Outubro de 2002, “A”, na qualidade de outorgante, declarou: «Que no dia vinte e seis de Abril de dois mil, na freguesia de …, concelho de Leiria, faleceu”I”, natural da freguesia do …, concelho de Bombarral, o qual teve a sua última residência habitual na Rua…, S.., C., no estado de viúvo de “M”. Que o falecido não fez testamento ou qualquer outra disposição de sua última vontade, tendo-lhe sucedido como único herdeiro, o seu filho “A”, o outorgante acima identificado. Que não existem outras pessoas que possam com ele concorrer na sucessão à herança do mencionado falecido».
3. O pai do autor faleceu no dia 26/04/2000, padecendo de cirrose hepática, doença que lhe foi provocada por ser alcoólico crónico.
4. O prédio rústico denominado "C…" ou "Quintal …", da freguesia do C…, concelho do Bombarral, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial do Bombarral sob a ficha n.º … e inscrito na matriz predial sob o artigo … -Secção AA.
5. Pela apresentação … (Cota G-…), encontrava-se inscrita a aquisição de ½ do prédio referido em 4) a favor de “I”, pai do Autor, por partilha de herança.
6. Pela apresentação … (Cota G-…), encontrava-se inscrita a aquisição de ½ do prédio referido em 4) a favor de “C”, casado com “D”, aqui Réus, por compra a “I”.
7. Pela apresentação … (Cota G-…), encontra-se inscrita a aquisição de ½ do prédio referido em 4) a favor de “G” e de “F”, aqui Réus, por compra a “C” e mulher, “D”.
8. Por escritura pública exarada de folhas vinte a folhas vinte e uma do livro de notas número cento e três -D, do Cartório Notarial de …, epigrafada de "Compra e Venda", datada de 28 de Junho de 2004, “C”, na qualidade de outorgante, por si e na qualidade de procurador de “I”, declarou: «Que, pela presente escritura, em nome do seu representado, vende a si próprio, pelo preço global de sessenta e seis mil trezentos e quarenta euros, que o seu representado já recebeu, o seguinte: A) Pelo preço de cinquenta e um mil trezentos e setenta e seis euros, metade indivisa de um prédio rústico, no sítio de "Quintal …", freguesia do …, concelho do Bombarral, descrito na Conservatória do Registo Predial do dito concelho, sob o número … da freguesia do …, registado o referido direito a favor do seu representado pela inscrição G-…, inscrito na matriz respectiva da freguesia do … sob o artigo … da Secção AA, com o valor patrimonial correspondente à fracção de 55,62 Euros. B) Pelo preço de catorze mil novecentos e sessenta e quatro euros, o direito a uma benfeitoria constituída por um armazém amplo que serve de oficina, situado no lugar de …, dita freguesia do …, com a superfície coberta de duzentos metros quadrados, a confrontar a norte, sul e poente com “I” e a nascente com estrada, inscrito na matriz respectiva da freguesia do … sob o artigo 2846, pendente de alteração, benfeitoria esta construída no prédio rústico acima identificado, com o valor patrimonial de 5.586,33 Euros».
9. Mais foi dito pelo outorgante identificado em 8) «que aceita esta venda nos termos exarados» e «que não celebrou qualquer contrato de compra e venda referente a esta transmissão».
10. Na escritura referida em 8) o 1º Réu marido declarou que “I” era residente no lugar de ….
11. Com base na escritura referida em 8), foi registada a aquisição referida em 6).
12. Para realizar a escritura referida em 8) o 1º Réu marido utilizou uma cópia certificada de uma procuração passada a seu favor pelo pai do Autor, “I”, datada de 13 de Dezembro de 1996, exarada no Cartório Notarial do Bombarral, onde ficou arquivada.
13. Consta da procuração referida em 12) que «(...) é irrevogável e não caducará nos termos dos artigos duzentos e sessenta e cinco, mil cento e setenta e mil cento e setenta e cinco, todos do Código Civil, uma vez que é conferida no interesse do mandatário (...).
14. Quando a escritura referida em 7) foi outorgada, “I” já havia falecido.
15. O registo referido em 5) foi efectuado pelo 1º Réu marido com a procuração referida 12), já depois da morte do pai do Autor.
16. Por escritura pública exarada de folhas oitenta e nove a folhas noventa do livro de notas número cento e quatro -D, do Cartório Notarial de …, epigrafada de "Compra e Venda", datada de 17 de Julho de 2004, “C” e mulher, “D”, na qualidade de primeiros outorgantes, e “G” e “F”, na qualidade de segundos outorgantes, declararam os primeiros: «Que, pela presente escritura, vendem aos segundos outorgantes, pelo preço global de setenta e quatro mil oitocentos e vinte euros, que já receberam, o seguinte: A) Pelo preço de cinquenta e sete mil trezentos e sessenta e dois euros, metade indivisa de um prédio rústico, sito no "C…" ou "Quintal …", freguesia do …l, concelho do Bombarral, descrito na Conservatória do Registo Predial do dito concelho, sob o número … da freguesia do …, registado o I referido direito a seu favor pela inscrição G-…, inscrito na matriz respectiva da freguesia do … sob o artigo … da Secção AA, com o valor patrimonial correspondente à fracção de 55,62 Euros. B) Pelo preço de dezassete mil quatrocentos e cinquenta e oito euros, o direito a uma benfeitoria constituída por um armazém amplo que serve de oficina, situado no lugar de …, dita freguesia do …, com a superfície coberta de duzentos metros quadrados, a confrontar a norte, sul e poente com “I” e a nascente com estrada, inscrito na matriz respectiva da freguesia do … sob o artigo …, pendente de alteração, benfeitoria esta construída no prédio rústico acima identificado, com o valor patrimonial de 5.586,33 Euros».
17. Pelos segundos outorgantes foi dito «que aceitam esta venda nos termos exarados» e «que não celebraram qualquer contrato promessa de compra e venda referente a esta transmissão».
18. O 1º Réu marido nunca prestou contas ao pai do Autor.
19. Em 25/06/2004 o 1º Réu marido procedeu ao pagamento da quantia de € 10.621,90, referente a sisa e juros compensatórios calculados desde 13/01/1997, referente aos bens identificados em 8).
20. O armazém amplo sito na Rua …, n.º …, no lugar do …, freguesia do …, com a área coberta de 200 m², inscrito na matriz sob o artigo …, foi construído no prédio identificado em 4).
21. No ano de 2004, os co-réus “F” e “G” deram de arrendamento a “J” o armazém identificado supra em 20), pelo período de 5 anos, mediante o pagamento de uma renda mensal no valor de € 600,00.
22. “J” dedica-se à actividade de carpintaria.
23. “J” exerceu a actividade de carpintaria no armazém identificado supra em 20).
24. “J” não conseguiu obter empréstimo bancário para adquirir, por compra a”C”, ½ indivisa do prédio identificado em 4) e o armazém identificado supra em 20), em virtude deste último não ter licença de habitação e estar omisso no registo predial.
25. O co-réu “C”prometeu restituir a “J” as quantias monetárias que este último chegou a entregar-lhe por conta do negócio a que se alude supra em 24).
26. Os co-réus “C” e “D” registaram a aquisição a que se alude em 6) para permitirem, entre o mais, o registo da aquisição a que se alude em 7).
27. O co-réu “C” não pagou ao pai do autor a quantia que declarou na escritura pública a que se alude em 8), nem qualquer outra por conta do preço aí mencionado.
28. O co-réu “C” não comunicou ao pai do autor que ia outorgar a escritura pública a que se alude em 8).
29. Nos anos 90 o autor emigrou para os Estados Unidos da América, tendo deixado a correr processos que contra si foram instaurados, nomeadamente, uma execução fiscal por falta de pagamento de impostos.
30. Inicialmente a mulher do autor ficou em Portugal.
31. Na ausência do autor, “I” teve que enfrentar os credores.
32. No dia 29/07/1996 “I” adquiriu, por meio de proposta em carta fechada levada a cabo no âmbito do processo de execução fiscal n.º … que correu termos contra o autor na Repartição de Finanças do Bombarral, o direito à benfeitoria constituída por armazém amplo, com a área de 200 m², sito no lugar de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, na freguesia de …, pelo valor de 2.500.000$00.
33. Por escrito datado de 13/12/1996, intitulado “contrato promessa de compra e venda”, assinado por “I” na qualidade de primeiro outorgante e por “C” na qualidade de segundo outorgante, o primeiro declarou: “Que é dono e legítimo proprietário do seguinte: - Prédio urbano, composto de armazém amplo, sito no dito lugar de …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo …; - Direito a metade indivisa de um prédio rústico, no sítio de “Quintal …”, dita freguesia de …, inscrito na matriz respectiva sob o artigo … da Secção AA, Que promete vender ao segundo outorgante ou à pessoa que este indicar os bens acima indicados, nos termos e condições das cláusulas seguintes: CLÁUSULA PRIMEIRA – A venda é feita pelo preço ajustado de 3.300.000$00 (três milhões e trezentos mil escudos). CLÁUSULA SEGUNDA – Como sinal e antecipação total do cumprimento já o segundo outorgante pagou ao primeiro a quantia de 3.300.000$00 (três milhões e trezentos mil escudos), quantia de que este dá quitação. CLÁUSULA TERCEIRA – A escritura de compra e venda realizar-se-á em data e Cartório a designar pelo segundo outorgante, que para tanto avisará o primeiro outorgante com pelo menos 15 dias de antecedência da data, hora e Cartório Notarial onde a mesma se vai realizar. CLÁUSULA QUARTA – A falta de cumprimento deste contrato, que seja imputável ao primeiro outorgante, constituirá o segundo no direito de exigir a execução específica deste contrato. CLÁUSULA QUINTA – A falta de cumprimento deste contrato, que seja imputável ao segundo outorgante, constituirá o primeiro outorgante no direito de exigir a execução específica deste contrato. Pelo segundo outorgante foi dito que aceita este contrato nos termos e condições exarados.”.
34. As assinaturas de “I” e “C”, apostas no escrito a que se alude supra em 33), foram reconhecidas presencialmente, no dia 13/12/1996, no Cartório Notarial do Bombarral.
35. Do escrito a que se alude em 12) e 13), denominado “PROCURAÇÃO”, assinado pelo pai do autor, consta o seguinte: «No dia treze de Dezembro de mil novecentos e noventa e seis, no Cartório Notarial de Bombarral, perante mim Ajudante deste “N”, compareceu: “I”, viúvo, natural da freguesia de …, concelho de Bombarral, onde reside no lugar do …, contribuinte fiscal número … Verifiquei a identidade do outorgante pela exibição do seu Bilhete de Identidade número …, emitido em 25/09/1980, pelo Arquivo de Identificação de Lisboa. E PELO OUTORGANTE FOI DITO: Que constitui seu bastante procurador o Senhor “C”, casado, natural da freguesia de …, concelho de Bombarra1, onde reside no lugar do …, a quem confere os mais amplos e plenos poderes gerais de administração civil e, ainda, poderes para vender ou trocar uma benfeitoria constituída por um armazém amplo, sito no dito lugar de …, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo … e o direito a metade indivisa de um prédio rústico, no sítio de "Quintal …, dita freguesia de …, inscrito na matriz respectiva sob o artigo … da Secção AA, pelo preço e condições que melhor entender, recebendo ou pagando os preços, dando ou recebendo quitação e relativamente aos identificados prédios fazer divisões, constituições em propriedade horizontal, loteamentos e demarcações, ajustando e celebrando se e nos termos que entender, preliminarmente, os respectivos contratos promessa, referentes aos actos e contratos atrás mencionados; poderes para, nas condições e valores que tenha por convenientes; os mais amplos poderes de representação junto das Conservatórias de Registo Predial, Comercial e Automóvel, requerendo todos e quaisquer actos de registo, provisórios ou definitivos, cancelamentos, averbamentos, conversões e fazendo as declarações complementares que se mostrem necessárias; poderes para nas Repartições de Finanças fazer quaisquer manifestos provisórios ou definitivos, alterá-los e cancelá-los e reclamar, requerer ou recorrer, para requerer avaliações, para reclamar contra colectas indevidas ou excessivas, recebendo os títulos de anulação e as importâncias destes; Poderes para nas Câmaras Municipais requerer, reclamar e recorrer o que preciso for, nomeadamente para requerer a emissão de licenças ou alvarás de construção e de loteamento; poderes para requerer o licenciamento de quaisquer construções, solicitando pareceres e autorizações às entidades competentes; apresentar projectos e pedidos de viabilidade de construção de quaisquer edifícios; poderes para levantar as respectivas licenças, alvarás, junto das competentes entidades onde forem solicitados; poderes para fazer e aceitar arrendamentos, estipulando as rendas, prazos e condições dos contratos, bem como para prorrogá-los, renová-los, rescindi-los, resolvê-los ou denunciá-los; Poderes forenses gerais e os especiais para confessar, desistir ou transigir, aceitar citações, mesmo a primeira e notificações, para representar o mandante, activa e passivamente, em qualquer processo, instância ou Tribunal, Repartição ou Conservatória, seja qual for a sua natureza, acompanhando todos os seus termos, incidentes e recursos, alegando, requerendo, praticando e assinando tudo quanto for necessário aos interesses do mandante e, ainda, os poderes especiais para o representar nas audiências preparatórias, conferências de interessados, tentativas de conciliação, poderes para assinar termos de desistência do pedido ou da instância subscrever termos de transacção, de adjudicação de bens, de ratificação do processado desenvolvido em quaisquer processos no interesse do mandante e para receber custas de parte, para cobrar e receber cheques judiciais e precatórios-cheques emergentes e processos Judiciais, fiscais e administrativos, passando os competentes recibos, para os endossar ou depositar em qualquer instituição de crédito, nomeadamente em Bancos e na Caixa Geral de Depósitos, para proceder a nomeação de peritos, intervir em quaisquer vendas judiciais e extrajudiciais, nomeadamente apresentando propostas em carta fechada e participando em Quaisquer arrematações, praças ou leilões, abertura de propostas e ainda intervir em vendas judiciais reguladas pelo Código de Processo Tributário, licitando, requerendo e praticando o que necessário for aos indicados fins; poderes para substabelecer esta procuração, no todo ou em parte, uma ou mais vezes, devendo substituir-se por advogado quando tiver de usar os poderes forenses. O mandatário fica, desde já, dispensado da prestação de contas, direito a que o mandante expressamente renuncia. Que a presente procuração é irrevogável e não caducará nos termos dos artigos duzentos e sessenta e cinco, mil cento e setenta e mil cento e setenta e cinco, todos do Código Civil, uma vez que é conferida no interesse do mandatário “C” O mandatário fica expressamente autorizado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo duzentos e sessenta e um do Código Civil, a celebrar consigo mesmo ou em representação de terceiro qualquer dos negócios ou contratos acima enunciados. Assim o disse e outorgou. Esta procuração foi lida ao outorgante e feita a explicação do seu conteúdo em voz alta e na presença dele.».
*
Sendo por referência à factualidade julgada provada que o Tribunal deve aplicar o direito, nos termos do disposto no artigo 659º, n.º 3, do Código de Processo Civil, adita-se ao elenco dos factos provados o facto supra mencionado sob o n.º 35), porquanto, o escrito em que assenta o seu conteúdo, junto a fls. 219-222 dos autos, é aceite por ambas as partes.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
a) Saber se ocorre erro de julgamento na decisão de facto relativa aos factos constantes dos quesitos 14 a 23 que o Tribunal recorrido deu como não provados mas que deveriam ter sido dados como provados.
São os seguintes os quesitos cuja decisão está em crise:
14: “A procuração referida em L foi passada pelo pai do Autor ao 1.º Réu marido inconscientemente?”
15: “Quando o 1.º Réu marido efectuou o registo referido em D) e O), omitiu que o pai do Autor já tinha falecido?”
16: “Quando o 1.º Réu marido outorgou a escritura referida em H), omitiu ao Notário que o pai do Autor já tinha falecido?”
17: “O falecido “I” não sabia ler?”
19: “Tal era do conhecimento de todas a população do …, incluindo os Réus?”
20: “Em 13 de Dezembro de 1996, o pai do Autor não sabia o que dizia nem o que fazia?”
21: “O pai do Autor não queria outorgar qualquer procuração ao 1.º Réu marido?”
22: “O pai do Autor, em consequência do alcoolismo, sofria de tremores permanentes no corpo, sobretudo nas mãos?”
23: “O pai do Autor fazia tudo o que lhe era dito ou pedido e dizia sim a tudo o que lhe perguntavam?”
A todos o Tribunal respondeu: “Não Provado.”
Pergunta-se no quesito 18: “O pai do Autor era um alcoólico crónico?”
Respondeu-se: “O pai do Autor faleceu no dia 26/04/200, padecendo de cirrose hepática, doença que lhe foi provocada por ser alcoólico crónico”
Na motivação pode ler-se e com relevância o seguinte: “…Na determinação da factualidade o Tribunal gizou a sua convicção na prova documental junta aos autos, em particular, no teor de fls. 53 a 69, 999-103, 113, 114, 210-214, 215 e no certificado de óbito junto aos autos no decurso da audiência de discussão e julgamento pelo autor…Para prova da factualidade supra descrita sob os n.ºs …17 (corresponde ao quesito 18), o Tribunal atendeu no essencial à prova documental acima referenciada, sobremaneira às declarações prestadas pelos co-réus “C”, “F” e “G”, declarações das testemunhas inquiridas em audiência…Para melhor se contextualizar e percepcionar a matéria de facto em discussão, o Tribunal optou, no que toca aos quesitos 7, 9, 12, 18, 39 (sendo certo que quanto à factualidade remanescente não foi feita prova cabal) e 40 da base instrutória, por responder de forma esclarecida, atenta a prova concludentemente feita em audiência de discussão e julgamento. A não prova da demais matéria de facto quesitada ficou a dever-se, no essencial a três ordens de razões: falta absoluta de prova, o que sucedeu em relação à matéria de facto quesitada em 1.º, 4.º, 5.º, 6.º, 11, 15.º, 16.º, 26.º, 36.º, 37.º, 38.º, 41.º, 54º, 55.º, 56º, 57º, 58º, 59º e 60º (parcial) da base instrutória: a falta de prova cabal, o que se verificou em relação à matéria de facto quesitada em 13º, 14º, 17º, 19º, 20, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 28º, 29º, 30º, 31º, 43º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 49º e 53º da base instrutória; e ainda a prova do contrário, o que sucedeu em relação ao quesitado em 8.º, 11º e 27º da base instrutória. É verdade que no decurso da audiência de discussão e julgamento houve testemunhas que afirmaram que o pai do autor não sabia ler, que sofria de tremores que era um pessoa influenciável, que não sabia o que fazia, que foi o co-réu “C” quem pagou o funeral do pai do Autor (não se compreendendo, neste ponto, porque é que não foi junta a correspectiva prova documental) etc, etc, etc. Porém, o conteúdo de tais declarações, além de contraditado por outras testemunhas igualmente inquiridas em audiência (a quem o Tribunal não consegue atribuir, pela falta de certeza ou menor preponderância), foi prestado de forma titubeante, subjectiva e parcial, sendo certo que, na maioria das vezes, as respectivas testemunhas se limitaram a reproduzir juízos de valor, opinativos ou a tecer considerações de teor probabilístico. Donde, não podia o Tribunal, por inseguro, insuficiente e, no que tange aos juízos de valor, opiniões ou considerações, irrelevante, valorar os seus conteúdos…”
Entende o recorrente que:
· resulta dos depoimento da testemunha “K”, irmão do falecido “I” e tio do Autor que aquele “I” era analfabeto, mal sabia assinar, era alcoólico e tinha idade avançada.
· Também a testemunha “L”, primo de “F” e que no período de 1992 a 1999 via o falecido “I” à hora do almoço, afirmou que o “I” apresentava-se alcoolizado, aparentava ser uma pessoa com dificuldades de comunicação, divagava um pouco, era alvo de chacota dos miúdos, tinha a ideia de que o pai do autor não sabia ler nem escrever, bebia bastante ao longo do dia;
· consta do certificado de óbito como causa da morte do pai do A, morte ocorrida em 2/5/2000, 4 anos após a outorga da procuração irrevogável, “cirrose hepática”, tendo como antecedente alcoolismo crónico, tendo sido juntos estudos médicos que enumeravam as diversas perturbações causadas pelo alcoolismo, designadamente perturbações mentais, nervosas e o “delirium tremens”. O que constava da certidão de óbito foi confirmado pelas testemunhas ouvidas.
Já os recorridos entendem que outras provas sustentam o decidido:
· “N”, “O”, “P”, “Q”, “R”, “S” apontam no sentido do decidido.
O recorrente cumpre o ónus processual contido nos art.ºs 690-A, n.ºs 1 e 2 e 522-C, constam dos autos os elementos de prova que serviram de base à decisão, razão pela qual está este Tribunal de recurso em condições de em conformidade com o disposto no art.º 712/2 reapreciar as provas; saber se a decisão de facto deve ser alterada em função dessa reapreciação, não estando em causa a renovação dos meios de prova, é, conforme tem sido entendido por este colectivo, é algo que impõe que o Tribunal recorrido, em face do princípio da livre apreciação das provas, haja incorrido em patente equívoco, erro na sua apreciação, erro esse resultante da patente desconformidade da decisão em relação aos meios de prova.
Foi ouvido o suporte áudio e analisados os documentos juntos.
A testemunha “K”, bate-chapa de profissão, tio do Autor “A”, irmão (em resultado de 2.ªs núpcias do pai) do falecido “I”, não assistiu à outorga da procuração nem da escritura de compra e venda aqui em causa, e no que toca ao circunstancialismo dessas outorgas limitou-se a ser arauto daquilo que alega (mas não é inequívoco face à prova produzida) ser voz corrente no …; entre o mais, e com os esclarecimentos de instâncias dos ilustres advogados e com interesse disse: “O meu irmão ficou viúvo muito cedo e dependia muito do filho e da nora…em 1996 já o meu irmão teve que arranjar um procurador para fazer as partilhas por morte do meu pai que me deixara a quota disponível dos bens, partilhas que ocorreram há 17, 18 anos…nessa altura o meu irmão não tinha conhecimento do que se estava a passar, eu encontrava-me com o “I” ele “ahah..”, não tinha noção, as pessoas conheciam bem o meu irmão, ele bebia muito…a senhora do Notário verificou que o meu irmão estava a tremer muito e recusou-se a assinar, a reconhecer a assinatura, a versão lá no … foi que trouxeram o “I” á tasca, deram-lhe uma sande e dois copos de vinho e ele deixou de tremer e lá reconheceu a assinatura… toda a gente sabia que ele era analfabeto… o senhor “I” não caía de bêbedo, o que eu disse foi que ele ingeria álcool e deixava de tremer…”
A testemunha “L”, amigo das partes e primo de “F”, bombeiro de profissão teve maior contacto com o falecido “I” desde 1983 até 1990, 1991, depois foi trabalhar para uma outra localidade designada Carvalhal até sensivelmente 1999, no período que ora releva de 1996 não teve grande ligação com o falecido e com interesse, disse: “…Até 1991, 1992 tive contacto diário com o “I”, depois fui trabalhar para o Carvalhal durante 8 anos, regressei em 1999 e montei firma no Sobral…na parte final de vida do “I” já não tinha grande ligação com ele e em 1996 não tinha grande ligação com ele, só se cruzasse com ele quando chegava a casa…em 1991 já tinha alguma dificuldade de comunicação, não sei se teria ou não consciência das assinatura que fazia…a partir de 1999, aí já me posso pronunciar que ele já não era uma pessoa muito lúcida…tinha uma situação de tremor de mãos, tinha dificuldades em ter um copo cheio, perdia-se um bocado, penso que não sabia ler nem escrever…bebia muito ao longo do dia, na oficina não bebia…o senhor “I” era uma pessoa algo influenciável em termos de alguma coisa, por ser uma pessoa sozinha, vivia de qualquer maneira…penso que não teria a melhor relação com o filho “A”…”
A propósito da procuração e da escritura de compra e venda foram ouvidos o Notário “T” (escritura de compra e venda de 28/7/2004 de fls. 59/62) e a ajudante de Notário “N” (procuração irrevogável de 13/12/1996 de fls. 63 e v.)
Dir-se-á que em relação à procuração que, de acordo com a testemunha, foi, como era prática corrente em relação a esse tipo de procurações, integralmente elaborada no Notário, consta que a procuração foi lida ao outorgante e feita a explicação do seu conteúdo em voz, alta e na presença dele, o que é confirmado pela mesma em depoimento, por ser assim que se procedia, nenhuma dúvida ou reticência dela constando, sendo certo que a testemunha já se não lembra dela. A testemunha “T” , Notário, em relação à escritura de compra e venda, de que se já não lembra, confirma o seu teor, desconhecendo se alguma coisa foi ou não mencionada em relação ao falecimento do mencionado “I”; adiantou que, ainda que tal tivesse sido referido pelo “C”, nada obstava à realização da escritura, uma vez que a procuração é irrevogável; quanto ao registo, uma vez que não era Conservador do Registo Predial, à data dos factos do registo, nada sabe se foi ou não mencionada a morte do mencionado “I” ao Conservador; adiantou esclarecendo que a morte só teria que constar do registo caso houvesse, à data da apresentação do registo da aquisição do imóvel a favor do “C”, registo de aquisição sem determinação de parte ou direito a favor dos herdeiros do “I”.
A testemunha “O”, reformado, que conhece todas as partes do processo com nenhuma delas tendo conflito mostrou-se conhecedor da situação do senhor “I”e já que com ele convivia todos os dias e, em suma disse e com interesse para a questão de facto em análise, com os esclarecimentos de instâncias dos senhores advogados: “…Conheci o senhor “I” e via-o todos os dias, bebíamos uma pinguita aqui, outra acolá…o senhor “I” trabalhava todos os dias e não bebia em excesso e só esteve sem trabalhar talvez meio ano…o senhor “I” tremia tal como eu…não sei de nada da procuração…o senhor “I” só sabia escrever o nome dele, mas não sabia ler…o senhor “I” estava bom da cabeça…o senhor “C” e esposa tomavam conta do senhor “I” quando ele ficou na cama…o “I” vivia nuns anexos o irmão “K” vivia no mesmo artigo, noutro quintal próximo e eu em frente do senhor “I”…O “K”, que eu saiba, nunca tomou conta do irmão “I”…o “C” e a mulher tomaram conta dele durante algum tempo em casa, depois o “I” foi para o Lar em Leiria…o “I” não era bêbedo…nunca notei que o “I” não fosse normal..”
As testemunhas “S”, agricultor e residente no …desde 1986, “R” agricultor, no mesmo lugar residente desde que nasceu, “Q” , que trabalhou de 1985 a 1991 com o Autor, altura em que a oficina fechou, “P” que mora no lugar do … há 31 anos todos eles conhecedores da pessoa do falecido “I” com quem conversavam, uns mais amiúde do que outros, foram unânimes em dizer que o falecido sabia o que dizia, não divagava, respondia com cabeça tronco e membros; todos eles disseram que o falecido bebia um copito como é habitual lá na terra, de resto como elas próprias, testemunhas, fazem, sem que isso os transforme em alcoólicos crónicos ou bêbedos.
Ao invés do afirmado pelo recorrente, depois de percorrido o processo por várias vezes, não foi possível encontrar a certidão de óbito ou os “estudos médicos” a que o recorrente faz referência nas suas alegações de recurso, certidão aquela de onde resultaria como causa da morte do “I” a cirrose hepática, cirrose essa causada pelo alcoolismo crónico do falecido. Embora Meritíssima Juíza se lhe refira, as actas de audiência são as de 4/06/09 de fls. 301 a 312, 9/7/09 de fls.315/31914/09/09 de fls.327/328, 11/10/09 de fls. 329/330 e em nenhuma delas se faz referência à junção da certidão de óbito, que, de resto, não se encontra nos autos, assim como não se encontra junto aos autos qualquer estudo médico sobre a cirrose hepática. O quesito 18 perguntava se o pai do Autor era alcoólico crónico e a resposta restritiva/explicativa que se obteve foi a que resultará da mencionada certidão de óbito, que atestará, em princípio, aquilo de que o médico legista se apercebeu ou leu em termos documentais, a menos que tivesse havido autópsia que não resulta ter ocorrido. De todo o modo, ao invés do que o recorrente refere o quesito 18 obteve uma resposta digamos explicativa, que não negativa que explica o estado de saúde à data da morte mas que nada pode inferir (em princípio salvo se outro sentido resultar da certidão) em relação à situação clínica do falecido anos antes, designadamente em 1996. Ainda que junto estivesse a certidão de óbito a resposta ao quesito 18 não poderia ser diferente da que o Tribunal recorrido deu, sabido que é que a certidão de óbito não é um exame médico, que pressupõe uma avaliação médica em vida da pessoa.
Temos por conseguinte algumas testemunhas a afirmar o estado de alcoólico crónico do falecido, à data da outorga da procuração irrevogável, o carácter influenciável da personalidade do mesmo, outras a afirmar justamente o contrário. Já no que toca ao quesito 17, nenhuma outras testemunha, ou qualquer outro documento contraria a versão das testemunhas “K” e “L” de que o mesmo não sabia ler, apesar de saber assinar o seu nome, o que nada espanta por ser comum encontrar pessoas que sabem escrever ou assinar o seu nome sem saberem ler, o que também não é sinónimo de diminuição de capacidade intelectual, apenas significa que não tiveram a oportunidade de aprender a ler.
No que se refere ao quesito 15 diz o recorrente que resulta da assentada do depoimento do Réu “C” a confissão desse quesito. Efectivamente a fls. 304 da acta de audiência de julgamento de 4/6/09 resulta o seguinte quanto ao depoimento do co-réu: “…Confessa a matéria factual constante do artigo 15.º da base instrutória, esclarecendo que foi o Notário quem minutou a procuração e que foi o pai do autor que levou o seu bilhete de identidade, assim como não tem na sua posse quaisquer documentos do pai do autor”
Por conseguinte apenas as respostas aos quesito 15 e 17 deverão ser alteradas para “provados” por ser patente, manifesto, inequívoco, quer da assentada de confissão quer dos depoimentos das testemunhas que sobre 17 se pronunciaram, que a resposta só podia ser a de provado.
Quanto ao mais, o Tribunal recorrido apreciou livremente as provas em conformidade com o disposto no art.º 655 do CPC (disposição constitucional conforme Ac T.C n.º 248/09 in DR II série, n.º 113, de 15/06/09) em observância estrita das regras de distribuição do ónus de prova dos art.ºs 342 e ss, resolvendo contra o Autor a quem os factos aproveitam, por via das legítimas dúvidas suscitadas pela prova, em conformidade ainda com o disposto no art.º 516.
b) Saber se o tribunal recorrido não fez a análise crítica da prova, não tomando em consideração os factos admitidos por acordo e levados à matéria assente no que diz respeito ao não pagamento de qualquer quantia a título de preço, incorrendo em erro quanto à interpretação e aplicação das disposições contidas nos art.ºs 874, 879 e 892 do CCiv, andando mal ao considerar ter ficado demonstrado que o 1.º Réu tinha procedido ao pagamento da totalidade do preço, justificando o interesse, ou seja a relação causal da procuração que não se demonstrou nos autos.
Entende o recorrente o seguinte:
· Dos art.ºs 874, 879, 397 do CCiv resulta que a função económico-social deste tipo de negócios jurídicos é o sinalagma entre a obrigação de pagamento do preço e a da entrega da coisa
· Dos pontos 18 e 27 da decisão de facto resulta que o co-réu “C” não pagou ao pai do Autor a quantia que declarou na escritura pública a que se alude em 8, nem qualquer outra nem nunca prestou contas ao pai do Autor.
· O art.º 879 do CCiv é uma disposição de carácter imperativa e a ausência do cumprimento da obrigação de pagamento do preço fere o contrato de compra e venda de nulidade nos termos das disposições dos art.ºs 289 e 892 do CCiv devendo reconduzir-se o negócio a uma venda de vens alheios,
A sentença recorrida diz em suma:
· A procuração dos autos permitia ao Réu “C” o contrato de compra e venda consigo próprio porque tal resulta do consentimento expresso pelo falecido “I” (ponto 35 da matéria de facto recorrida)
· A procuração e o contrato de compra e venda foram outorgados pelas partes na mesma data (pontos 12, 33, 34 e 35 da decisão de facto)
· O pai do Autor deu expressa quitação ao 1.ª Réu pelo pagamento integral do preço ajustado para a prometida compra e venda daqueles dois imóveis referidos na procuração (ponto 33, cláusula 2.ª)
· Ao outorgar a procuração nos termos em que o fez o falecido “I” quis, efectivamente, acautelar que ambos os imóveis iriam chegar a entrar no domínio do 1.º Réu ou da pessoa a quem este quisesse vendê-las porquanto, tendo o preço já sido por si total e antecipadamente pago, havia que garantir-lhe mediante a outorga do instrumento idóneo, a possibilidade irrefutável de vir a adquirir, para si ou para terceiro, tal como prometido, o direito de propriedade sobre os referidos imóveis.
Já nos art.ºs 100 a 106 da contestação o recorrente havia suscitado a questão.
Não tendo sido o Notário a constatar qualquer pagamento ou a ausência dele circunstância em que tal constatação teria valor probatório pleno (cfr. art.ºs 369, 370, 371/1 do CCiv), antes limitando-se o Notário a reproduzir a declaração do procurador que faz negócio consigo próprio, é admissível a prova de que o preço não está pago, já que tal matéria, não estando plenamente provada pelo documento da escritura pode ser alvo de outro tipo de prova designadamente de prova testemunhal (cfr. art.º 392, 393, 394 do cCiv
Assiste razão ao recorrente quando afirma que a Meritíssima Juíza incorre em erro na análise da prova quando afirma que o preço declarado na escritura foi integralmente pago. O que a Meritíssima juíza, decerto, quis dizer foi que o 1.ª Réu, aí na qualidade de representante do vendedor (e já falecido) “I”, declarou que este último já tinha recebido integralmente o preço da venda. Ora, produzida a prova, demonstrou-se exactamente o contrário, ou seja que o preço declarado ou outro qualquer não foi pago nem foram prestadas contas (no âmbito naturalmente do contrato de mandato) ao falecido “I”.
O preço é naturalmente elemento estrutural do contrato de compra e venda.
Contudo, nem o falecido “I” na procuração de 13/12/1996 dispensou o “C” do pagamento do preço numa futura compra e venda dos imóveis, nem o dispensou de o fazer aquando da outorga do contrato-promessa de compra e venda dos mesmos, com a mesma data, tal como resulta dos pontos 33 e 35. É certo que já no contrato-promessa de compra e venda de 13/12/1996 o, entretanto, falecido “I”, declarava que a prometida venda era pelo preço de 3.300.000$00, e que já tinha recebido essa quantia a título de sinal e antecipação total do cumprimento, quantia essa de que dava quitação (ponto de facto 33, cláusulas 1.ª e 2.ª).
O preço, todavia, não foi pago, como se demonstra. Não se prova que tenha sido vontade do “I” a de não receber qualquer preço pela venda daquele direito ao “C”, nem se demonstra que o “C” soubesse que a vontade do falecido era essa (art.ºs 236/2 do CCiv). Não se fez, por outro lado, qualquer prova concreta sobre a vontade real do falecido vendedor nesse negócio, designadamente se havia intuito liberatório e com custo sobre o seu próprio património, por parte do falecido “I”, designadamente uma liberalidade remuneratória (art.ºs 940, 941 do CCiv), porquanto tal, tão-pouco, foi alegado. Relativamente à matéria da vontade real do falecido “I” foi levada à Base Instrutória a matéria de facto constante do quesito 49 (“O pai do Autor pretendia com o preço da venda proposta pagar ao 1.º Réu marido os empréstimos que este lhe tinha feito?”. Tal matéria foi julgado, sem mácula, de não provada, pelo que não se prova a vontade real do falecido relativamente ao preço da venda. E, sendo a promessa de compra e venda e a correspondente compra e venda de direito real sobre imóvel negócios formais (cfr. art.ºs 410 na redacção do DL 379/86 de 11/11 e 875 do CCiv), não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento.
Por outro lado, não existem outros elementos de prova que permitam inferir a conclusão de que o vendedor não tinha qualquer intenção de não receber o preço correspondente ao negócio jurídico em causa, o que, a demonstrar-se, permitiria concluir que nenhuma vontade existia, por parte do vendedor, em vender os imóveis em causa, e que tinha como intenção exclusiva a de dispor gratuitamente do seu património a favor do “comprador” (art.º 349 do CCiv).
Por conseguinte, a circunstância, comprovada, de não ter ocorrido o pagamento do preço, por si só não significa que o negócio de compra e venda em causa seja nulo.
c) Saber se a procuração é nula por não explicitar a causa ou a relação jurídica subjacente à cláusula de irrevogabilidade, nulidade que atinge o negócio à sombra da procuração celebrado nos termso do art.º 268 do CCiv e se a procuração caducou com a morte do pai do A.
Sustenta o recorrente:
· a procuração aqui em causa é nula porque não explicita a causa, ou seja não prova a relação subjacente à cláusula de irrevogabilidade, inexistindo interesse do mandatário que teria que ser revelado na procuração, em conformidade com o disposto nos art.sº 275, 1170 e 1175 do cCiv, o que atinge o negócio realizado ou a realizar nos termso do art.º 268/1 do CCiv
· Tal resulta da doutrina (Pedro Pais de Vasconcelos in Contratos Atípicos, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, vol. I, Parte Geral, Tomo III, fls. 252, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, fls. 348) e da jurisprudência (entre outros Acs do STJ de 9/7/03 CªJª Ano XXVIII, tomo IV, fls. 82, de 13/02/96, Cª Jª Ano IV, Tomo I, a fls. 86.
Entendeu a sentença em suma:
· A procuração caduca por morte do representado salvo se houver interesse do procurador, o que não resultando definido, vem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência como sendo a relação jurídica subjacente à emissão da procuração, desde que o procurador tenha uma pretensão à realização do negócio ou direito;
· A procuração e contrato-promessa a que se alude em 33 foram outorgados na mesma data e pelas mesmas partes, ou seja os imóveis objecto da promessa da venda são os mesmos que forma objecto da procuração
· Ao outorgar a procuração o pai do autor quis para além de toda e qualquer dúvida razoável, quis acautelar que ambos os imóveis iriam chegar a entrar no domínio do 1.º Réu ou da pessoa a quem este viesse a vendê-las, porquanto tendo recebido o preço havia que garantir-lhe mediante a outorga de instrumento idóneo a possibilidade irrefutável de vir a adquirir para si ou para terceiro tal como prometido o direito de propriedade sobre os referidos imóveis, certeza com o que o 1.º Réu ficou ao ter na sua posse o suporte documental
· Por isso a procuração foi também outorgada no interesse do 1.º Réu, pelo que não tendo sido revogada, a sua validade se manteve para além da morte do pai do autor.
Há um pressuposto que falha neste raciocínio, ou seja, que o falecido tenha recebido o preço que declarou ter antecipadamente recebido quer na promessa quer na compra e venda respectiva.
Isto fará com que a procuração careça de causa, que a procuração, por isso, seja nula?
A representação voluntária consiste em alguém (representante) realizar actos jurídicos em nome de outrem (representado) nos limites dos poderes conferidos por este.[1]
O representante embora seja parte formal no negócio celebrado com terceiro (negócio representativo) actua em nome de outrem – o dono do negócio ou dominus negotii – e não em seu próprio nome, ao invés do mandato sem representação do art.º 1180º em que o mandatário age em nome próprio mas por conta do mandante (art.º 1157). Deve mostrar-se perante terceiros como substituindo alguém, actuando em seu lugar, querendo os efeitos do negócio para o dominus.
O poder representativo é uma posição jurídica activa que deverá integrar a esfera jurídica do agente atribuindo-lhe legitimidade – indirecta – para afectar a esfera do dominus com efeitos de negócio em que este não interveio. O poder tem uma função de legitimação.[2]
Embora normalmente a procuração surja integrada, justificada no seio de outro negócio jurídico, dito causal ou substancial como é o contrato de mandato, de trabalho, de mediação, de agência, a procuração não se confunde com ela primeiro porque a procuração é um negócio unilateral ao invés do negócio causal geralmente bilateral, em segundo, porque os efeitos da procuração são oponíveis a terceiros ao invés dos direitos do mandante que não são oponíveis ao terceiro e em terceiro lugar porque a existência e o período de vigência da procuração não depende da relação interna (causal) sendo doutrinalmente admissível a procuração isolada.
Por conseguinte o negócio jurídico unilateral que é a procuração para ser válido não depende da explicitação da causa, porquanto a causa ou negócio causal podendo ser coevo ou anterior à procuração com ela não se confunde.
O negócio celebrado pelo representante em nome do representado consigo mesmo é anulável, a menos que o representado o tenha consentido (art.º 261/1 cit).[3]
Ora, foi justamente o que aconteceu.
Contudo, objecta-se, o Código Civil, apenas prevê em tema de procuração duas figuras: a procuração outorgada no interesse exclusivo do dominus - caso típico e a procuração outorgada no interesse também (expressão legal do n.º 3 do art.º 265 do CCiv), do procurador ou de terceiro.
Numa interpretação puramente literal, ficaria excluída a procuração outorgada no exclusivo interesse do procurador, mas no Código Civil não existe nenhuma disposição legal que exclua a procuração outorgada no exclusivo interesse do procurador, e a referência à procuração no interesse exclusivo do procurador não significa que o dominus não tenha algum motivo para outorgar a procuração, pois se assim fosse não a teria outorgado, mas esse interesse esgota-se na outorga, não é relevante como critério de agir representativo, mesmo no caso em que o procurador celebra um negócio contra a vontade do dominus.[4]
No caso concreto, ainda que não se tenha provado a maior parte da factualidade contida nos quesitos 39 a 49 que explicitavam, digamos, a razão de ser dos negócios procuração irrevogável, promessa de compra e venda, ambos de 1996 e venda efectuada pelo 1.º réu ao abrigo daquela procuração consigo próprio, nem por isso se pode concluir que a procuração não tem uma causa. É que a causa pode muito bem ser justamente a vontade do dominus em transferir a propriedade em referência para o 1.º réu; se com tal o dominus pretendeu digamos deserdar o Autor é questão distinta, assim como é questão distinta, que se não aflorará por não colocada saber se o 1.º réu abusou dos seus poderes de representação.
Argumenta-se que sendo a procuração um negócio jurídico unilateral, prevendo o legislador apenas aquelas duas formas de procuração, admitir uma procuração no exclusivo interesse do procurador, violaria o disposto no art.º 457 do CCiv segundo o qual a promessa unilateral apenas obriga nos casos previstos na lei, ou seja violaria o princípio da tipicidade, uma tal admissão. Objectamos, contudo, que aquela disposição do art.º 457 do CCiv possa ser aplicável à procuração, já que a procuração constitui na esfera jurídica do procurador um poder de representação, não cria nenhuma promessa unilateral, e, sendo ela uma disposição legal de natureza excepcional, não comporta analogia (art.º 11 do CCIv) e, por isso, também, não poderá ser aplicável à situação que nos ocupa. Não sendo a situação especialmente regulada, não devendo a lacuna ser integrada por analogia com recurso ao art.º 457 do CCiv, o negócio jurídico unilateral de procuração conferida no exclusivo interesse do procurador é válido em face do disposto no art.º 405 do CCiv. Assim sendo, não obstante vir provado, ao invés do afirmado no contrato-promessa coevo da procuração, que o promitente vendedor e outorgante da procuração irrevogável, não recebeu o preço da compra e venda, negócio acobertado pela dita procuração, nem por isso, deixa de ser válida a procuração, que não tendo sido revogada pelo dominus permaneceu assim válida, mesmo após a celebração da escritura de compra e venda, correspondente à promessa de venda dos imóveis.
IV- DECISÃO
Tudo visto acordam os juízes em:
1. Julgar procedente a apelação no tocante à alteração da decisão de facto como referido em III.
2. Julgar improcedente a apelação quanto ao mais e confirmar a decisão proferida na sentença recorrida.
Regime de responsabilidade por Custas: As custas são da responsabilidade do recorrente que decai ao ver a decisão proferida na sentença recorrida confirmada (art.º 446, n.sº 1 e 2).
Lisboa, 31 de Março
João Miguel Mourão Vaz Gomes
Jorge Manuel Leitão Leal
Henrique Antunes
----------------------------------------------------------------------------------------- [1] A noção que vem da doutrina italiana seguindo UGO NATOLI “Rappresentanza. Diritto Privado” realça ainda que os actos jurídicos são realizados no interesse do representado: Na doutrina portuguesa sustenta-se que a representação se traduz na prática dum acto jurídico em nome de outrem para na esfera desse outrem se produzirem os respectivos efeitos de modo directo, sendo necessária à eficácia da representação que o representante actue dentro dos limites da representação ou que o representado realize supervenientemente a ratificação, não sendo necessário que o negócio representativo seja concluído no interesse do representado uma vez que a representação voluntária pode ter lugar por força da procuração conferida também no interesse do representante, ou seja a procuração in rem suam, caso em que os poderes representativos são conferidos no interesse do próprio procurador, circunstância em que havendo poderes representativos ocorre excepção ao princípio da livre revogabilidade da procuração como preceituado no n.º 3 do art.º 265, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1976, Coimbra editora,págs.410 a 417.Também António Menezes Cordeiro no seu Tratado de direito Civil Português, I, parte geral tomo IV, Almedina 2007 sustenta que na representação existem três requisitos: uma actuação jurídica em nome de outrem que o representante invoca na declaração negocial (nomine alieno ou contemplatio domini), que é feita por conta do representado (visa a esfera jurídica do representado, o que já de si traduz a superação da abstracção característica da representação), dispondo o representante de poderes de representação para a conclusão do negócio representativo [2] Trata-se de um verdadeiro poder e não um poder funcional ou poder-dever (como ocorre no poder paternal) já que não há nenhum dever para o representante como tal, ressalvadas as situações de extinção por força da renúncia do procurador, cessação da relação jurídica que lhe serve de base ou revogação pelo representado desde que a procuração não tenha também sido conferida no interesse do procurador altura em que a revogação só pode ser feia com acordo do interessado nos termos do art.º 265. É um poder livre discricionário quanto ao conteúdo do acto que realiza e autónomo como referem LUIGI MOSCO, La Rappresentanza volontaria del diritto pirvado, Napoli, Jovene, 1961. [3] Em qualquer das hipóteses aí previstas o representante pode sacrificar os interesses que lhe foram confiados de visando prevenir isso comina de anulabilidade o negócio consigo mesmo, ainda que não seja prejudicial. A justificação doutrinária da anulabilidade do negócio consigo mesmo reside segundo Vaz Serra citado por Antunes Varela em anotação ao art.º 261 do Código Civil no perigo de o representante se sentir tentado a sacrificar os interesses do representado em benefício dos seus e, na hipótese de dupla representação a possibilidade de prejudicar os interesses de um dos representados em benefício dos do outro; sendo a justificação teórica e conceptual do negócio consigo mesmo muito discutida na doutrina, segundo Helena Mota na obra citada a pág. 143 os autores são unânimes em considerar que o seu substracto valorativo reside reside na prevenção de conflitos de interesses entre o representante e o representado nisto se afastando do abuso de representação que pressupõe uma actuação desconforme ao interesse do representado e não implica que o próprio representante tenha um interesse próprio em oposição ao do dominus [4] Pedro Pais de Vasconcelos, Procuração Irrevogável, 2005, pág. 95.