Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
COMPRA E VENDA COMERCIAL
ACTO COMERCIAL
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VENDA DE CORTIÇA
DEFEITOS
DENÚNCIA
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I- Reveste a natureza de acto unilateralmente comercial ou misto aquele em que a sua comercialidade se verifica apenas em relação a um dos seus sujeitos. O acto misto está sujeito à lei comercial quanto a ambas as partes, embora só em relação a um deles se verifiquem os pressupostos da comercialidade. II- Na compra e venda comercial, a denúncia ou reclamação dos defeitos e vícios da coisa, por parte do comprador, está sujeita a um duplo prazo : Tem de ser feita no prazo de oito dias após o conhecimento dos vícios ou do momento em que estes podiam ser dele conhecidos se actuasse com a devida diligência e não pode exceder-se o prazo de seis meses após a data da entrega ou recepção da coisa. III- Atenta a redacção do artº 684º-A nº 2 do Código de Processo Civil, não tendo a recorrente obtido vencimento no recurso, sendo a decisão do Tribunal da Relação confirmatória da recorrida, não pode o recorrido ver os fundamentos da ampliação do objecto do recurso apreciados por este Tribunal. ( Da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA :
I – Relatório
1) A…,Ldª, instaurou a presente acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário contra B , pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de 545.740,96 € e juros moratórios à taxa legal anual de 12%, desde 1/11/2003, e a levantar da fábrica da A. a cortiça extraída da herdade da ….
Fundamenta a sua pretensão no contrato-promessa de compra e venda de cortiça amadia para a produção de rolhas, no pagamento ao R. do respectivo preço, no defeito da cortiça adquirida e na rejeição pelos clientes do respectivo produto.
2) O R. veio contestar, negando o defeito da cortiça aquando da sua tiragem, carregamento e armazenamento.
Em sede de excepção, invocou a caducidade do direito invocado pela A..
Deduziu, ainda, pedido reconvencional, peticionando a condenação da R. a pagar-lhe o remanescente do preço, no montante de 553.634,71 €, bem como os juros de mora.
3) A A. replicou, mantendo tudo quanto disse na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
4) Realizou-se uma perícia colegial antecipada.
5) Depois de saneada a acção e seleccionada a matéria de facto provada e a provar, seguiram os autos para julgamento, o qual se realizou com observância do legal formalismo.
6) O Tribunal “a quo” proferiu despacho a indicar os factos provados e, posteriormente, elaborou Sentença, onde julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente, nos seguintes termos : “Pelo exposto, julgando improcedente a acção intentada pela autora e procedente a reconvenção deduzida pelo Réu : 1. Condeno A , Ldª a pagar a B quinhentos e cinquenta e três mil e seiscentos e trinta e quatro euros e setenta e um cêntimos, incluindo o valor do imposto sobre o valor acrescentado, e no pagamento de juros de mora à taxa anual de quatro por cento desde 16 de Fevereiro de 2004. 2. Condeno a Autora no pagamento das custas relativas à acção e à reconvenção”.
7) Desta decisão interpôs a A. recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões : “A- Sobre a impugnação parcial da matéria de facto 1ª- O facto nº 24 não deve ser atribuído à Autora porque não foi a Autora quem enviou a carta. Atribuir à Autora as afirmações da carta equivale a uma confissão a ela imputável. Ora, nos termos do nº 1 do artº 353º do Código Civil, o advogado autor da carta não tinha poderes para, em nome da Autora, confessar seja o que fosse nem, nessa altura, tinha ainda recebido o mandato forense. Acresce ainda que a Autora só conferiu mandato forense com poderes gerais, e a confissão de factos feita por mandatário forense fora dos articulados (artº 38º C.P.Civil) só é válida se o mandato estiver munido de procuração com poderes especiais (artº 37º do C.P.C.). Portanto, a inclusão do facto nº 24 no elenco da matéria de facto, foi feita com violação do nº 1 do artº 353º do C. Civil e dos artºs 37º e 38º do Código do Processo Civil, pelo que o tal facto nº 24 deve ser retirado. 2ª- Deve adicionar-se ao elenco dos factos provados que a Autora-Apelante denunciou ao Réu-Apelado o defeito da cortiça em carta datada de 30 de Outubro de 2003, porque esta carta foi junta com a petição e não foi impugnada, só sendo impugnada na contestação a existência do defeito. 3ª- O facto nº 16 da Base Instrutória deve ser considerado provado, encontrando-se a sua comprovação nas afirmações unânimes dos três engenheiros autores do Relatório Pericial (vide nº 9 do relatório), não tendo sido tais afirmações contraditadas por outros depoimentos. Por isso, deve ser dado como provado e adicionado ao elenco da matéria de facto que “a imperfeição era insusceptível de ser detectada na árvore”. B - Sobre a aplicação do Direito 4ª- Tendo a Autora, em 12 de Junho de 2003, comprado toda a cortiça amadia que estava na árvore e que o Réu veio a tirar entre Julho e Agosto de 2003 (um a dois meses depois), o objecto do contrato incidiu sobre “coisas à vista”, e não sobre coisas ocultas que o comprador não tenha visto nem tenha contactado. Logo, a mui douta sentença aplicou erradamente ao contrato o artº 470º do Código Comercial que assim foi violado, porquanto o contrato celebrado entre Autora e Réu não se enquadra naquela norma. Por consequência, a excepção peremptória dos oito dias prevista no artº 471º do Código Comercial não se aplica ao contrato. O prazo para a denúncia do defeito é o prazo de 30 dias (artº 3º do Código Comercial e artº 916º do Código Civil). Portanto, os artºs 470º e 471º do C. Comercial foram violados por acção e as outras duas normas legais foram violadas por omissão. 5ª- Além disso, o prazo de 8 dias previsto no artº 471º do Código Comercial foi estabelecido com respeito ou em benefício da parte, outorgante no contrato, que fosse comerciante (artº 99º do Código Comercial). Não sendo o contrato comercial em relação ao Réu por ele não ser comerciante (nº 1 do artº 230º e nº 2 do artº 464º, ambos do Código Comercial), o prazo de 8 dias não lhe diz respeito, não o beneficia porque foi criado para benefício ou favorecimento do comerciante. Também nesta perspectiva, a mui douta sentença recorrida violou, por errada aplicação ao caso, os artº 99º e 471º do Código Comercial, não havendo, pois, lugar legal para a aplicação da excepção peremptória dos 8 dias mas à aplicação da que consta do artº 916º do Código Civil (artº 3º do Código Comercial), tendo, pois, sido violadas por acção as normas dos artºs 99º e 471º do C. Comercial e tendo sido violada por omissão a norma do artº 916º do C. Civil. 6ª- Por se localizar internamente na estrutura celular da cortiça, o defeito só foi detectado rigorosamente no acto fabril da produção de rolhas de cortiça natural, acto fabril que ocorreu na fábrica da empresa rolheira ABEL …. LDA, tendo o defeito sido comunicado pela empresa rolheira à Autora em 29 de Outubro de 2003 e no dia seguinte denunciado pela Autora ao Réu. 7ª- A partir de 29 de Outubro de 2003, o defeito na cortiça foi detectado por conhecedores de cortiça por meio de manuseamento e visualização e veio a ser confirmado por exame laboratorial junto aos autos com a petição. 8ª- A circunstância de a imperfeição imputada à cortiça ter manifestações externas sendo passível de apreensão visual por quem habitualmente trabalha com cortiça, não significa que tal defeito tenha sido ou devesse ser apreendido antes da sujeição da cortiça à sua compressão no processo fabril da produção das rolhas de cortiça natural. Só depois de descoberto ou detectado o defeito pela empresa rolheira é que, com este pré-aviso, os peritos em cortiça conseguem detectar este defeito celular em operações de manuseamento e de visualização. 9ª- A verdade é que o defeito não foi detectado antes do referido processo fabril, nem pelo Réu, nem pela Autora, nem pela empresa rolheira quando esta veio escolher as pranchas que comprou. 10ª- Tratando-se dum acto tão importante como é a denúncia do defeito e o pedido de anulação da compra de 17.300 arrobas de cortiça, que é uma enorme quantidade, a Autora, para o fazer, tinha necessidade e o dever de prudência de estar segura da existência e extensão do defeito, certeza que obteve quando a empresa rolheira lhe devolveu a partida de cortiça que à Autora houvera comprado em 14 de Outubro de 2003. Pelo que, 11ª- A Autora agiu com prudência ao denunciar ao Réu o defeito da cortiça quando obteve certeza segura da sua existência. Portanto, 12ª- A mui douta sentença recorrida, imputando à Autora negligência na detecção e denúncia do defeito, fez incorrecta avaliação dos factos e emitiu um juízo incorrecto. 13ª- Estando provado (factos nºs 14 e 23) que a Autora tomou conhecimento rigoroso, isto é, fundamentado, do defeito ou imperfeição da cortiça em 29 de Outubro de 2003 tendo-o denunciado logo no dia seguinte, 30 de Outubro, impendia sobre o Réu o ónus de provar os factos constitutivos da excepção peremptória da caducidade e isso e isso não consta dos autos. Isto é, ao Réu cabia o ónus de provar a data concreta em que a Autora tomou conhecimento do defeito, pois só a partir da data do conhecimento se prova se está ou não verificada a excepção peremptória da caducidade. 14ª- Não se devendo aplicar ao caso presente os artigos 470º e 471º do Código Comercial, o julgador devia ter aplicado, e não o fez, os artºs 913º e 916º do Código Civil que, por isso, foram violados por omissão. 15ª- Com fundamento, pois, nos artºs 913º e 916º (e seus colaterais) do Código Civil, a acção deve proceder e improceder a reconvenção. 16ª- A Autora enganou-se, errou, ao comprar por € 52,50 por arroba uma partida de cortiça amadia que ela julgava apta para produzir rolhas de cortiça natural e que, por estar defeituosa, não serve para aquele fim mas para fins industriais menores que lhe desvalorizam o preço, baixando de € 52,50 para € 8,25. E, 17ª- A Autora não compraria por aquele preço a partida de cortiça se ela não fosse apta para a fabricação de rolhas de cortiça natural e o Réu, dono de montados de sobro e vendedor de cortiça, sabia ou tinha obrigação de saber pela sua profissão, que a Autora não faria a compra por aquele preço se a cortiça tivesse defeito. Houve, pois, erro no objecto do contrato, tendo a Autora direito de pedir a sua anulação (artºs 251º e 247º do Código Civil) e a reposição da situação ao “statu quo ante”. 18ª- Seria anti-ético obrigar a Autora a pagar pela cortiça o preço ajustado, só justificado para cortiça amadia sem defeito. E constituiria uma situação de enriquecimento sem causa permitir ao Réu, em cujo montado de sobro apareceu a praga que “feriu” a cortiça, arrecadar, à custa do erro da Autora, uma quantidade de dinheiro só justificada para cortiça sem defeito. Deve procurar-se que o direito se aproxime, o mais possível, da justiça natural, da ética, existindo afloramentos deste princípio ético-racional, por exemplo, nos artºs 280º/2, 334º e 473º/1 do Código Civil. Nestes termos, com fundamento nas normas violadas referidas, sobretudo, nas conclusões, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a mui douta sentença recorrida, condenando-se o Réu-Apelado no pedido formulado na acção e absolvendo-se a Autora da reconvenção e nas custas e demais legal”.
8) O R. apresentou contra-alegações, onde pugna pela manutenção da Sentença recorrida, ampliando o objecto do recurso através da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
* * *
II – Fundamentação
a) A matéria de facto considerada na 1ª instância foi a seguinte :
1- A A. é uma sociedade que exerce a actividade de fabricante de cortiças, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Montijo com nº 00000/000, tendo como sócio-gerente M.L, e o R. é empresário agrícola, proprietário de terras com montados de sobreiros.
2- A A. e o R. celebraram por escrito acordo que denominaram de “contrato-promessa de compra e venda” de cortiça amadia, datado de 12/6/2003, em que a A. figura como promitente-compradora e o R. como promitente-vendedor, nos termos seguintes :
-“O objecto do presente contrato é toda a cortiça amadia, incluindo bocados, com idade legal, a ser extraída no presente ano, por conta do primeiro outorgante nas herdades da A…e Quinta …. – 1ª ;
-Pelo presente contrato o primeiro vende à segunda outorgante a cortiça referida na cláusula anterior, ao preço de € 52,50 por cada arroba, acrescida de IVA à taxa legal – 2ª ;
-Será efectuado no final de cada dia o carregamento de toda a cortiça extraída nesse dia, sendo pesada sobre camião e controlada por ambos outorgantes, numa báscula existente na Quinta do primeiro outorgante – 3ª ;
-Caso chova antes ou durante o levantamento da cortiça, haverá lugar a um desconto julgado necessário para compensação da água absorvida pela dita cortiça – 4ª ;
-Em toda a cortiça pesada será feito um desconto de 20% para compensação da seiva e verde, assim como os bocados pesados conjuntamente com a prancha – 5ª ;
-Os pagamentos serão efectuados da seguinte forma :
1º- Como sinal e princípio de pagamento é entregue nesta data pelo segundo outorgante ao primeiro outorgante o valor de € 250.000, acrescidos de IVA à taxa legal de 19%, o que perfaz a quantia de € 297.500, cheque nº 000000 sobre o BES ;
2º- Após a tiragem de toda a cortiça, proceder-se-á ao acerto de contas em função da quantidade de cortiça pesada, e os restantes pagamentos serão efectuados da seguinte forma :
-30 de Setembro de 2003, 1/3 (um terço) ;
-30 de Janeiro de 2004, 1/3 (um terço) ;
-30 de Abril de 2004, 1/3 (um terço) e restante pagamento – 6ª”.
3- Foi previsto que a contagem rigorosa da cortiça extraída das duas propriedades mencionadas em 2., supra, ocorresse após a sua tiragem.
4- Da Herdade da A…. foram retiradas 17.300 arrobas de cortiça amadia, e da Quinta d….. 1.200 arrobas.
5- O preço global da cortiça extraída da Herdade da A…. ascende a 1.080.817,50 € - 908.250 € + 172.567,50 € de Imposto sobre o Valor Acrescentado, e a extraída da Quinta do … ascende a 74.970 € - 63.000 € + 11.970 € de Imposto sobre o Valor Acrescentado.
6- A A. pagou ao R. a prestação vencida em 30/9/2003, no montante de 286.095,83 € e cumpriu a obrigação que lhe advinha do contrato celebrado de levantar diariamente a cortiça que fosse extraída dos sobreiros.
7- A cortiça é formada por um conjunto de células mortas, dispostas de um modo compacto e regular, sem espaços livres entre si.
8- Por exame técnico efectuado em pranchas de cortiça crua e preparada verificou-se que tais pranchas evidenciavam separação entre assentadas de células suberosas, três/quatro anos após a última despela ou descortiçamento, associado a zonas de menor resistência da cortiça, correspondentes a pontos onde são menos espessas as membranas celulares, sendo, portanto, zonas de maior fragilidade celular, o que é designado por esfoliado, solapado ou folheado, ocorrendo devido a uma paragem momentânea do crescimento do tecido suberoso, fenómeno que impede a utilização da cortiça por ele atingida na produção de rolhas de cortiça natural porque a cortiça não se apresenta compacta, e a rolha proveniente dessa cortiça deixa de ter estanquicidade, deixando passar o ar.
9- A rolha de cortiça natural só pode fabricar-se ou extrair-se da cortiça amadia, sendo que a rolha de cortiça natural é considerada o produto mais rentável da cortiça amadia.
10- A A. obteve o parecer por exame técnico de que a cortiça amadia extraída da Quinta do … estava em condições normais.
11- O lote de cortiça amadia extraída da Herdade da A…. é insusceptível de ser utilizado na fabricação de rolhas de cortiça natural.
12- A A. destinava a cortiça amadia em causa para a fabricação de rolhas de cortiça natural, e não compraria a cortiça amadia pelo preço referido em 2., supra, se soubesse que era imprópria para esse fim.
13- A cortiça colocada pela A. em fabricantes de rolhas foi toda rejeitada, e a imperfeição referida em 8., supra, faz destinar a cortiça a fins industriais menores, o que faz desvalorizar o preço da cortiça numa percentagem muito elevada.
14- A A. tomou conhecimento rigoroso da imperfeição em Outubro de 2003, e após essa data solicitou ao R. a anulação do contrato, a retirada da cortiça e a devolução das verbas pagas.
15- A cortiça era verificada, carregada e transportada no fim de cada dia pela autora, e o período de tiragem, verificação e carregamento da cortiça pela A. decorreu entre Julho e Agosto de 2003.
16- No descortiçamento, verificação e carregamento e pesagem, o sócio-gerente da A. ou o seu representante não observaram nem registaram a imperfeição referida em 8., supra.
17- A imperfeição imputada à cortiça tem manifestações externas, sendo passível de apreensão visual por quem habitualmente trabalha com cortiça.
18- Em 14/10/2003, a cortiça já havia sido colocada pela A. num fabricante de rolhas, para o que foi objecto de uma escolha das pranchas de cortiça pela sua espessura e qualidade.
19- Depois do referido na segunda parte de 18., supra, as paletes de cortiça foram sujeitas a um processo de cozedura dentro de água.
20- A A. só cozeu e preparou uma reduzida parte da cortiça negociada com o R., estando a maior parte nas instalações da A. tal como veio do R..
21- A cortiça amadia pode destinar-se à produção de rolha técnica e aglomerada, a discos, blocos, revestimentos, decoração e isolamentos, para além da produção de rolha natural, e o destino da cortiça não foi referido ao R..
22- Em qualquer descortiçamento há uma percentagem de cortiça extraída que apresenta alguma imperfeição.
23- O contrato de venda entre a A. e a empresa rolheira “Abel ….., Ldª” foi celebrado em 14/10/2003, tendo as paletes da cortiça sido colocadas pela A. na empresa rolheira em 21/10/2003, sendo devolvidas em 28/10/2003 após a verificação da imperfeição, constando de guia de remessa datada de 21/10/2003 a anotação assinada pela compradora de devolvido por não se encontrar em condições, tendo também ocorrido a devolução da factura nº 1616 em 29/102003.
24- A A., através do seu advogado, remeteu ao R., carta datada de 24/11/2003, em cujo ponto 2 referiu que : “Já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça porquanto surgiram alguns fenómenos de fissuramento e consequente descontinuidade estrutural do tecido suberoso das pranchas de cortiça”.
b) Como resulta do disposto nos artºs. 684º nº 3 e 685º-A nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Perante as conclusões da alegação da recorrente as questões em recurso são as seguintes :
-Saber se existem razões para alterar a matéria de facto dada como provada, designadamente considerar como não provado o facto nº 24, supra ; adicionar ao elenco dos factos provados o teor da carta de 30/10/2003 ; e ser dado como provado o artigo 16º da Base Instrutória.
-Saber qual o tipo de contrato em causa e qual a sua natureza.
-Saber qual o prazo de caducidade aplicável ao caso (se o dos artºs 470 e 471º do Código Comercial, se o dos artºs. 913º e 916º do Código Civil).
-Saber se é admissível a ampliação do objecto do recurso requerida pelo apelado.
c) Antes de mais, pretende a recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em conformidade com o disposto no artº 690º-A nº 1 do Código de Processo Civil (na versão anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24/8, aplicável aos autos), quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar :
-Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
-Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Há que realçar que as alterações introduzidas no Código de Processo Civil com o Decreto-Lei nº 39/95, de 15/2, com o aditamento do artº 690º-A (cuja redacção foi posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10/8) quiseram garantir no sistema processual civil português, um duplo grau de jurisdição.
d) Em primeiro lugar, afirma a apelante que o facto acima dado como provado sob o nº 24 não pode ser dado como provado.
Consta de tal artigo do elenco dos factos provados :
“A A., através do seu advogado, remeteu ao R., carta datada de 24/11/2003, em cujo ponto 2 referiu que : “Já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça porquanto surgiram alguns fenómenos de fissuramento e consequente descontinuidade estrutural do tecido suberoso das pranchas de cortiça””.
Defende a recorrente que esse facto não lhe deve ser atribuído, porque não foi ela quem enviou a carta. Atribuir-lhe as afirmações da carta equivale a uma confissão a ela imputável. Ora, o advogado autor da carta não tinha poderes para, em nome da apelante, confessar seja o que fosse nem, nessa altura, tinha ainda recebido o mandato forense.
Vejamos :
Estamos perante um documento junto pelo recorrido aos autos, no decurso da audiência de discussão e julgamento. A parte contrária (a recorrente), pronunciando-se sobre tal, veio dizer nada ter a opor à sua junção, deu a sua interpretação sobre o teor do documento e concluiu dizendo que o mesmo era “fundamental para a descoberta da verdade material” (ver fls. 400).
E o Tribunal, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo artº 655º nº 1 do Código de Processo Civil (“O tribunal (…) aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”) entendeu valorá-lo nos termos acima expostos.
Afigura-se-nos não ser abusivo afirmar que a recorrente, “através do seu advogado”, enviou ao recorrido uma carta. Com efeito, não estamos perante qualquer confissão da recorrente, mas sim em face de um acto para o qual ela solicitou os serviços do seu Advogado. Aliás, o subscritor da carta diz que aceitou “ser o advogado de “A, Ldª” neste caso”. E “por isso, sou eu já a responder à carta de V. Exª”. Ou seja, não subsistem dúvidas de que estamos perante um acto da recorrente, praticado através do seu Advogado (que, como já vimos, se assume como tal), sendo pouco crível que aquilo que consta do escrito seja uma actuação do Advogado sem para tal estar mandatado.
Deste modo, não vemos motivos para alterar o artigo 24. dos factos acima dados como provados.
e) Mais defende a recorrente que deve adicionar-se ao elenco dos factos provados que a apelante denunciou ao apelado o defeito da cortiça em carta datada de 30/10/2003, porque essa carta foi junta com a petição inicial e não foi impugnada, só sendo impugnada na contestação a existência do defeito.
Bem fez o Tribunal ao não considerar como provado o conteúdo de tal documento.
Com efeito, o mesmo foi expressamente impugnado na contestação, nomeadamente no seu artigo 2º. Por outro lado, da leitura de tal peça processual não se vê que o recorrido aceite o seu conteúdo.
Assim, também improcede esta alegação da recorrente.
f) Ainda no âmbito da matéria de facto, afirma a apelante que o artigo 16º da Base Instrutória deve ser considerado provado, encontrando-se a sua comprovação nas afirmações unânimes dos três engenheiros autores do Relatório Pericial, não tendo sido tais afirmações contraditadas por outros depoimentos. Por isso, deve ser dado como provado e adicionado ao elenco da matéria de facto que “a imperfeição era insusceptível de ser detectada na árvore”.
Tal quesito mereceu do Tribunal “a quo” a resposta de “não provado”.
Constava do mesmo :
“16º- A imperfeição era insusceptível de ser detectada na árvore ?”.
Refere-se na decisão que incidiu sobre a Base Instrutória que “a inexistência/insuficiência da prova e a contradição, em alguns aspectos essenciais, dos depoimentos produzidos, entre si e relativamente às próprias conclusões periciais, justificam as respostas negativas”.
Defende a recorrente que a prova pericial levaria a uma resposta positiva a tal artigo da Base Instrutória.
Ora, a fls. 145, aquando da apresentação do relatório, os Srs. Peritos vêm dizer que o defeito apontado à cortiça “quando na árvore, não é susceptível de ser notado”.
Porém, no seu esclarecimento de fls. 215 a 216, já os Srs. Peritos dizem algo de diferente. Desde logo, há que salientar que aqueles não viram a cortiça em causa nos sobreiros ; por outro lado, afirmam que “o defeito existente é observável a olho nu”, não esclarecendo se tal se vê na árvore ou já depois da extracção ; finalmente, referem que “nas grandes tiragens pode acontecer de tudo, desde encontrar-se uma pequena percentagem de defeitos, até ao caso de haver uma grande percentagem da cortiça defeituosa”.
Perante tal discrepância de afirmações, e até porque o quesito incidia sobre o caso concreto (e não sobre uma hipótese teórica), entendemos que bem andou a primeira instância ao considerar como não provado o artigo 16º da Base Instrutória.
g) Assente a matéria de facto, vejamos, agora qual o tipo de contrato em causa e qual a sua natureza.
Denominaram as partes o contrato que as vincula, como “contrato-promessa de compra e venda”.
Dispõe o artº 410º nº 1 do Código Civil que “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”.
Por seu turno, o artº 874º do Código Civil refere que “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”.
Ora, no contrato em apreço consta que o recorrido entregou à recorrente “toda a cortiça amadia, incluindo bocados” existente nas Herdades da A… e Quinta do …..
Como contrapartida de tal cortiça, a recorrente obrigou-se a pagar o “preço de € 52,50 por cada arroba, acrescida de IVA à taxa legal”.
Foi previsto que a contagem rigorosa da cortiça extraída dessas propriedades ocorresse após a sua tiragem.
Assim, da Herdade da A…. foram retiradas 17.300 arrobas de cortiça amadia, e da Quinta do P….. 1.200 arrobas do mesmo tipo de cortiça.
Deste modo, teremos de concluir que não só a terminologia usada no contrato celebrado pelas partes, mas também os seus contornos objectivos apontam para a noção segura de que, conforme definido na Sentença posta em questão, estamos perante um contrato de compra e venda que teve por objecto mediato a aquisição de cortiça.
h) No que diz respeito à natureza do contrato, há que apurar se o mesmo é civil ou comercial.
Ora, de um lado temos a recorrente que é uma sociedade comercial ; o outro contraente, o recorrido, exerce a actividade de empresário agrícola.
Considerando o disposto no artº 2º do Código Comercial, “serão considerados actos de comércio todos aqueles que se encontrarem especialmente regulados neste Código e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar”.
Perante tal normativo teremos de concluir que o legislador não define acto de comércio, antes dando um conceito legal indeterminado.
Daí a importância acrescida de um esforço de classificação que permita determinar as respectivas características. De entre as inúmeras classificações doutrinárias, vejamos aquela que interessa para a situação “sub judice” e que é a que distingue os actos de comércio objectivos dos subjectivos.
Assim, são actos de comércio objectivos todos os que se encontram especialmente regulados pelo direito comercial, independentemente de ser ou não comerciante a pessoa que os pratica. A qualidade comercial é-lhes intrínseca. Assim, temos, por exemplo, a compra e venda (artºs. 463º a 476º do Código Comercial),
Já os actos de comércio subjectivos são todos os actos dos comerciantes (contratos e obrigações) que não tenham natureza exclusivamente civil, se o contrário não decorrer do próprio acto. Por exemplo, a compra e venda contemplada no artº 874º do Código Civil pode ser ou não comercial ; sê-lo-á, se praticada por um comerciante e em ligação com a sua actividade mercantil.
Em resumo, este parâmetro classificativo de actos de comércio resulta do artº 2º do Código Comercial e apoia-se na dicotomia por ele criada, sendo actos objectivos os que estiverem regulados na legislação comercial, em função dos interesses do comércio, e actos subjectivos os que forem praticados por comerciantes, desde que no exercício do seu comércio e que não se trate de actos de natureza exclusivamente civil.
Ora, revertendo estas considerações para o caso em apreço, verificamos que o contrato em causa constitui um acto objectivamente comercial.
Com efeito, dispõe o artº 463º 1º do Código Comercial que “são consideradas comerciais (…) as compras de cousas móveis para revender, em bruto ou trabalhadas, ou simplesmente para lhes alugar o uso”. Ora, a recorrente destinava a cortiça amadia por si adquirida para a fabricação de rolhas de cortiça natural, ou seja, adquiriu uma coisa móvel, para revender trabalhada. Assim sendo, é manifesto que estamos perante uma compra e venda de natureza comercial em sentido objectivo (isto é, independentemente da qualidade dos sujeitos).
Mas a verdade é que o contrato “sub judice” constitui, também, um acto subjectivamente comercial. Na realidade, como já referimos, o apelado não o é, mas a apelante é comerciante (de acordo com a noção do artº 13º, 2º do Código Comercial, segundo o qual “são comerciantes (…) as sociedades comerciais). E segundo o artº 99º do Código Comercial, “embora o acto seja mercantil só com relação a uma das partes será regulado pelas disposições da lei comercial quanto a todos os contratantes, salvo as que só forem aplicáveis àquele ou àqueles por cujo respeito o acto é mercantil, ficando, porém, todos sujeitos à jurisdição comercial”. Ou seja, reveste a natureza de acto unilateralmente comercial ou misto aquele em que a sua comercialidade se verifica apenas em relação a um dos seus sujeitos ; o acto misto está sujeito à lei comercial quanto a ambas as partes, embora só em relação a um deles se verifiquem os pressupostos da comercialidade.
Está, pois, em causa nos autos um contrato de compra e venda mercantil.
i) Sendo invocado pela recorrente o cumprimento defeituoso do contrato, vejamos agora qual o prazo de caducidade aplicável ao caso (se o dos artºs 470 e 471º do Código Comercial, se o dos artºs. 913º e 916º do Código Civil), por forma a determinar se se verifica a excepção peremptória da caducidade do direito de acção.
Apurada acima a natureza do contrato (e sendo certo que a cortiça amadia extraída da Herdade … é insusceptível de ser utilizada na fabricação de rolhas de cortiça natural), temos que ao caso em apreço não são aplicáveis as disposições do Código Civil (artºs 913º e ss.), mas antes as do Código Comercial (artºs. 463º e ss.), e em particular a do artº 471º, do seguinte teor :
“As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as cousas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.
§ único- O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado”.
Interpretando este preceito, ensina Ferrer Correia (in “Lições de Direito Comercial”, Vol. I, 1973, pg. 26) que o mesmo, relativo ao momento da perfeição do contrato, define uma solução bastante diferente da civil (artº 925º nº 2 do Código Civil), pois “ao impor ao comprador o ónus de analisar a mercadoria e de a denunciar ao vendedor no acto da entrega ou no prazo de oito dias, qualquer diferença em relação à amostra ou à qualidade tidas em vista ao contratar, sob pena de o contrato ser havido como perfeito, pretende a lei fundamentalmente tornar certo num prazo muito curto a compra e venda mercantil (…)”, mais acrescentando que “este regime tem na base a ideia de que a rescisão de um contrato pode causar ao comércio entorpecimentos ou danos no sentido de que envolve insegurança para os direitos, perturba a rapidez das actividades e, ao originar a ineficácia de uma operação já realizada, transtorna ou impede o encadeamento económico das operações sucessivas”.
Na mesma linha se pronuncia Vaz Serra (in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104, pg. 254) ao considerar que “a razão do artº 471º está na vantagem de não deixar por muito tempo exposto o vendedor a reclamação por defeitos da coisa vendida e nas necessidades do tráfico comercial : deve, portanto, o comprador examinar tão depressa quanto possível a coisa comprada, a fim de verificar se ela tem vícios, e denunciá-los tão depressa quanto possível ao vendedor”, tanto mais que apesar daquele normativo não dizer “desde quando se conta o prazo de oito dias”, parece “que deve contar-se da data em que o comprador descobre o vício da coisa comprada ou, ao menos, daquela em que o teria descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial”.
Também Romano Martinez (in “Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada”, Almedina, 2001, pgs. 375 e 376 e nota 2 desta última página) defende que “(…) sendo o artº 471º CCom omisso quanto a este aspecto, há quem considere que o prazo, na compra e venda comercial, se inicia com a entrega. Em defesa desta tese têm sido apresentados dois argumentos : a lei comercial é mais exigente do que a civil no que respeita ao dever de exame do comprador ; o prazo de oito dias não se pode contar do conhecimento do defeito, porque tal interpretação não tem correspondência com a letra do art. 471º CCom. De facto, a lei comercial é mais exigente do que a civil, mas desse aspecto não se pode concluir no sentido de que a denúncia do defeito deva ser feita antes de ele poder ser descoberto. Por outro lado, a letra do artigo em causa nada esclarece, nem num sentido nem noutro, pois limita-se a dispor que, a partir do momento em que o comprador recebe a mercadoria, o contrato haver-se-á como perfeito, se os defeitos não forem reclamados dentro de oito dias ; da letra da lei não se pode inferir que esse prazo esteja relacionado com a entrega. Perante a omissão do diploma mercantil, são de aplicar as correspondentes disposições do Código Civil (artº 3º CCom). Acresce, que sendo este último diploma posterior, e tendo nele o legislador assentado, claramente, no sentido de que o prazo se inicia com a descoberta, a unidade do sistema jurídico leva a interpretar o artº 471º CCom de forma análoga ao estabelecido no(s) art(s). 916º nº 2 (e 1220º nº 1)”.
A solução defendida por estes autores de que o prazo de oito dias, fixado no citado artº 471º do Código Comercial, deve contar-se a partir do momento em que o comprador tomou conhecimento dos defeitos da coisa ou do momento em que podia ter tomado conhecimento deles se usasse da normal e devida diligência (e não do momento da recepção da mesma), tem também sido a adoptada de modo unânime pelos nossos Tribunais Superiores (a título de exemplo, seguiram esta tese os Acórdãos do STJ de 28/3/2001 e de 26/1/1999, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt, Acórdão da Relação de Lisboa de 6/12/1988, in Col. 5/88, pg. 114, e Acórdão da Relação do Porto de 15/1/2008, in Col. 1/2008, pg. 167).
E tal solução afigura-se-nos ser a mais lógica e consentânea com a realidade da vida pois, muitas vezes, o defeito não é aparente nem imediatamente detectável e não faz sentido, nesses casos, que se exija ao comprador que reclame no acto da entrega ou recepção da coisa ou nos oito dias seguintes de defeitos que não sabe se se verificarão.
Resumindo, então, a interpretação que entendemos ser a mais correcta para o artº 471º do Código Comercial, em conjugação com o que estabelece o artº 916º nºs. 1 e 2 do Código Civil, “ex vi” da remissão do artº 3º do Código Comercial, que manda aplicar subsidiariamente este segundo corpo de normas, entendemos que :
1º- O comprador tem oito dias, após o conhecimento respectivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente, para denunciar os defeitos que detecte na coisa adquirida no âmbito de um contrato de compra e venda comercial, reclamando deles junto do vendedor ;
2º- Tal denúncia ou reclamação nunca pode exceder o prazo de seis meses, contado após a data da entrega ou recepção da coisa, até porque seria incongruente admitir a inexistência de qualquer limite temporal para o exercício do direito de denúncia dos defeitos e para a subsequente acção judicial, não obstante a maior exigência da lei comercial, revelada pelo encurtamento do prazo de denúncia para oito dias, e uma mais premente relevância, neste domínio, das razões que justificam a aludida brevidade de prazos.
Outra questão que ora se coloca, é a de saber sobre quem recai o ónus da prova : Se é ao vendedor que compete demonstrar que o comprador não denunciou nem reclamou os vícios ou defeitos da coisa dentro daqueles dois prazos ou se, pelo contrário, é o comprador que tem que provar que os denunciou ou reclamou dentro desses prazos.
Nesta parte a Jurisprudência é unânime e considera que cabe, naturalmente, ao comprador a prova sobre a tempestividade da denúncia dos defeitos (neste sentido, vejam-se, designadamente, os já citados Acórdãos do STJ de 28/3/2001 e de 26/1/1999), já que só em face de uma denúncia tempestiva poderá o comprador exercer junto do vendedor os direitos daí decorrentes : Opor-lhe os vícios para obstar ao pagamento do preço da coisa, exigir a eliminação desses vícios e/ou exigir dele uma indemnização por prejuízos derivados dos mesmos.
Por isso, no caso “sub judice”, competia à apelante provar (alegando previamente os pertinentes factos) :
-a impossibilidade de exame das rolhas (fornecidas pelo apelado) ou de detecção dos vícios ou defeitos alegados, no momento da entrega ou recepção delas ;
-o momento em que cessou a impossibilidade de detecção dos vícios ;
-a data em que detectou os defeitos ;
-a data em que os reclamou perante o vendedor, sendo certo que, como atrás se disse, esta reclamação teria, necessariamente, que ser feita dentro dos seis meses seguintes à data da entrega ou recepção das rolhas.
Ora, resulta da matéria de facto acima enumerada que a cortiça em causa era verificada, carregada e transportada no final de cada dia pela recorrente e que o período de tiragem, verificação e carregamento ocorreu entre Julho de 2003 e Agosto de 2003.
Mais se provou que a imperfeição da cortiça em causa tem manifestações externas e é passível de apreensão visual por quem habitualmente trabalha com cortiça.
Em 14/10/2003 a apelante cozeu uma parte da cortiça.
No dia 21/10/2003, na sequência de contrato, a recorrente colocou numa empresa fabricante de rolhas paletes daquela cortiça, a qual lhe veio a ser devolvida em 28/10/2003, após a verificação da mencionada imperfeição.
Em carta datada de 24/11/2003, a apelante expressou ao réu que já na fase do manuseamento em fábrica se notara um comportamento anómalo da cortiça por terem surgido alguns fenómenos de fissuramento e consequente descontinuidade estrutural do tecido suberoso das pranchas de cortiça.
Destes factos é impossível determinar a data exacta em que a recorrente teve conhecimento do defeito da cortiça.
Porém, a recorrente, atenta a sua actividade (é uma sociedade que exerce a actividade de fabricante de cortiças) e tendo contactado com a cortiça durante todo o período da sua tiragem dos sobreiros, carregamento, depósito nas suas instalações, exame de cozedura, podia (e devia), se actuasse com a diligência que lhe era exigível, conhecer o defeito da cortiça, denunciá-lo ao vendedor (o apelado) e rescindir o contrato antes da data em que o fez.
O certo é que a recorrente suscitou (através da carta de 24/11/2003, já que não se apurou o envio e recepção da alegada carta datada de 30/10/2003) ao apelado a anulação do contrato mais de oito dias depois do momento que, certamente, teve conhecimento dos defeitos da cortiça em toda a sua extensão se para o efeito actuasse, como acima se refere, com a diligência que lhe era exigida por virtude da sua actividade corticeira.
Mesmo que se considerasse a data de 28/10/2003 (data da devolução da cortiça da empresa fabricante de rolhas à recorrente) como aquela em que a apelante tomou conhecimento dos defeitos, a verdade é que em 24/11/2003 aqueles oito dias já há muito que estavam ultrapassados.
Deste modo, outro desfecho não pode ter a defesa por excepção que o apelado apresentou na contestação, que não seja a respectiva procedência, por ter caducado o direito que a recorrente invoca com base nos defeitos da cortiça, por não os ter denunciado ou reclamado tempestivamente.
Improcedem, por isso, as conclusões do recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
j) No que diz respeito à pretendida ampliação do objecto do recurso nos termos do artº 684º-A do Código de Processo Civil.
Dispõe tal normativo no seu nº 2 que “pode ainda o recorrido, na respectiva alegação e a título subsidiário, arguir a nulidade da sentença ou impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas”.
Ora, o recorrido, invocando o aludido preceito, vem pedir a ampliação do objecto do recurso, impugnando a decisão proferida sobre ponto da matéria de facto dada como provado pelo Tribunal “a quo”.
Acontece que o recurso interposto pela apelante não mereceu provimento.
Deste modo, e atenta a redacção do artº 684º-A nº 2 do Código de Processo Civil, não tendo a recorrente obtido vencimento no recurso, sendo a decisão deste Acórdão confirmatória da recorrida, não pode o recorrido ver os fundamentos da ampliação do objecto do recurso apreciados por este Tribunal.
k) Sumariando :
I- Reveste a natureza de acto unilateralmente comercial ou misto aquele em que a sua comercialidade se verifica apenas em relação a um dos seus sujeitos. O acto misto está sujeito à lei comercial quanto a ambas as partes, embora só em relação a um deles se verifiquem os pressupostos da comercialidade.
II- Na compra e venda comercial, a denúncia ou reclamação dos defeitos e vícios da coisa, por parte do comprador, está sujeita a um duplo prazo : Tem de ser feita no prazo de oito dias após o conhecimento dos vícios ou do momento em que estes podiam ser dele conhecidos se actuasse com a devida diligência e não pode exceder-se o prazo de seis meses após a data da entrega ou recepção da coisa.
III- Atenta a redacção do artº 684º-A nº 2 do Código de Processo Civil, não tendo a recorrente obtido vencimento no recurso, sendo a decisão do Tribunal da Relação confirmatória da recorrida, não pode o recorrido ver os fundamentos da ampliação do objecto do recurso apreciados por este Tribunal.
* * *
III – Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas : Pela recorrente (artigo 446º do Código do Processo Civil