NULIDADE DE SENTENÇA
ACUSAÇÃO
PROCESSO SUMÁRIO
Sumário

Iº Em processo penal, a acusação terá de observar o disposto no art.283, nº3, al.b, do C.P.P., seja qual for a forma que a mesma venha a adoptar.
IIº Optando o Ministério Público por, em processo sumário, substituir a apresentação da acusação, pela leitura do auto de notícia, não constando deste o elemento subjectivo do crime imputado, deve aditá-lo por despacho;
IIIº Tendo o tribunal considerado provados factos integradores daquele elemento subjectivo, que não constavam do auto de notícia, não foram aditados por despacho do Ministério Público e não foram comunicados ao arguido em audiência, a sentença é nula;

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo sumário n.º25/10.8SCLSB, o arguido J..., melhor identificado nos autos, foi julgado pela imputada prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º1 e 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, tendo sido condenado nos seguintes termos:
«Julga-se, pois, procedente a acusação e, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelos artigos 292° e 69°, n.º1 alínea a) do CP, condena-se o arguido J..., na pena única, acima discriminada, de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de 6 (seis) €, o que perfaz 600 (seiscentos) €, com 66 dias de prisão subsidiária, e em 5 (cinco) meses de proibição de conduzir.
(…)»

2. Inconformado com a decisão, dela recorreu o arguido, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A) Impugna-se a decisão sobre a matéria de facto, nos termos dos números 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, quanto ao ponto Fundamentação: I. Factos Provados, nos parágrafos 2.º a 4.º da douta Sentença recorrida, pois, não foi produzida prova bastante que permitisse ao Tribunal a quo dar como provado que o "arguido, tinha perfeito conhecimento dos efeitos provocados pela ingestão de bebidas alcoólicas. Apesar de saber que ia conduzir, o arguido quis ingerir bebidas alcoólicas, como ingeriu, sabendo que as mesmas eram susceptíveis de causar uma taxa de álcool por litro de sangue superior a 1,20 gramas, facto que não o demoveu de conduzir na via pública o veículo automóvel atrás identificado, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados.
B) Após a leitura do auto de notícia que substituiu a Acusação conforme requerido pelo Digno Procurador da República – Adjunto, o arguido declarou pretender confessar os factos que lhe são imputados. Sendo certo que são os constantes do auto de notícia.
C) Os factos descritos no Auto de Notícia (Acusação) não permitem concluir que um arguido aja com dolo ou, sequer negligência, pois, os referidos conceitos jurídicos, carecem ser factualmente integrados. No caso concreto não o foram.
D) Das declarações prestadas pelo Arguido em Audiência de Julgamento resulta negativamente que o mesmo não confessou tais factos dados como provados.
E) Em face de tal deveria, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo ter lançado mão do mecanismo previsto no n.º4 do artigo 344.º do Código de Processo Penal e ter ordenado a produção de prova.
O Tribunal a quo errou assim o seu julgamento acerca da matéria de facto.
F) A douta sentença é nula porque se pronunciou, valorou decisões condenatórias que não deveriam constar sequer do registo criminal do ora Recorrente, com a agravante de que tais antecedentes criminais foram tomados em consideração para formular o juízo quanto à determinação da concreta pena de multa e da medida da proibição de conduzir.
G) Os antecedentes criminais, considerados no presente processo, dizem respeito a decisões de condenação que aplicaram, ao ora Recorrente, penas de multa, há mais de 10 anos! As penas encontram-se extintas, seguramente, há mais de 5 anos, sem ter ocorrido nova condenação!
H) Dispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo 15.° da Lei n.º 57/98 de 18 de Agosto, Lei da Identificação Criminal, sob a epigrafe "Cancelamento definitivo": "As decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, decorridos cinco anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime; ( ... ). Esta norma é totalmente desconsiderada e violada na douta Sentença sob recurso, na medida em considera antecedentes que deveriam ter sido objecto de cancelamento automático e de forma irrevogável, retirados do Registo Criminal do ora Recorrente. O que acarreta a nulidade da Sentença.
I) O Tribunal a quo não podia ter conhecido valorado tais antecedentes criminais. Assim, ao emitir pronúncia sobre tal questão, cometeu o tribunal a quo a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, também por essa razão sendo nula a douta decisão agora sob recurso.
J) E todo o caso a pena aplicada ao Recorrente de 100 dias de multa à taxa diária de 6 (seis) euros é - assim como o são também os 66 dias de prisão domiciliária, e em 5 (cinco) meses de proibição de conduzir - manifestamente excessiva.
L) Note-se que a pena de multa concretamente aplicada se situa quase no limite máximo da moldura abstracta permitida.
M) Por outro lado, atento ao que acima se disse, o ora Recorrente deveria ter sido considerado, neste caso e para todos os efeitos, como primário. E não o foi. Erradamente.
N) A Meritíssima Juíza não tomou em consideração qualquer das circunstâncias que depunham a favor do agora Recorrente - maxime, as suas condições pessoais e a sua conduta anterior aos factos.
O) Por outro lado, em concreto, se não verifica qualquer das razões que a Douta Sentença releva em justificação de tão graves sanções: a conduta do Recorrente - mesmo na visão que dela é pretendida na Acusação (Auto de notícia) e na Sentença - não assumiu, dentro do próprio tipo concreto (da condução de veículo em estado de embriaguez), grau de ilicitude tão elevado que fizesse parecer as condenações em causa como adequadas.
P) Verifica-se um erro de julgamento.
Sem prescindir,
Q) O Recorrente tem 3 filhos para criar (paga pensão alimentar), encontra-se desempregado e a viver com a ajuda dos pais (um dos quais (a mãe) sofre de Alzheimer), com muito sacrifício, frequenta o ensino superior de molde a obter uma qualificação profissional que lhe garanta um rendimento que lhe permita sobreviver condignamente - a si e aos seus filhos que dependem da pensão alimentar.
R) Com esta condenação fica assim impedido de concorrer a ofertas de trabalho, públicas ou privadas, e impedido de exercer qualquer profissão ou actividade cujo exercício dependa da inexistência de antecedentes criminais.
S) Privado ainda, 5 meses, de conduzir o automóvel que utiliza (único meio de transporte de que dispõe) o que equivale a dizer impedido de procurar e assistir a entrevistas de trabalho, impedido de ver os filhos (que moram em Coimbra), impedido de acompanhar a mãe que sofre de Alzheimer. Com absoluto prejuízo para a sua vida profissional e pessoal.
T) Porque se não vê em que medida as necessidades de prevenção geral, ou especial, reclamariam pena superior, ou mais grave, entende o Recorrente que: A) os antecedentes criminais devem ser considerados cancelados automaticamente e de forma irrevogável retirados do Registo Criminal; B) a pena adequada ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez não poderia ser outra que não a de multa mas aproximada do limite mínimo; C) a proibição de conduzir no mínimo legal (3 meses).
U) Por último, entende ainda o Recorrente que ao abrigo do disposto no artigo 17.º da Lei n.º 57/98 de 18 de Agosto, Lei da Identificação Criminal e por necessitar de procurar trabalho - deva ser ordenada a não transcrição da respectiva sentença nos certificados a que se referem os artigos 11.º e 12.º da citada lei.
TERMOS EM QUE, COMO NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E SER DECLARADO NULA SENTENÇA ABSOLVENDO-SE O ARGUIDO, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDENDO, DEVERÃO SER REAVALIADAS A PENA DE MULTA E A PROIBIÇÃO DE CONDUZIR APLICADAS AO RECORRENTE.
DESSE MODO SENDO FEITA A COSTUMADA JUSTIÇA!

3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso e, em consequência, mantida a decisão recorrida.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), apôs o seu visto

5. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, são as seguintes as questões a debater e decidir: o invocado erro do julgamento; a nulidade da sentença por valoração de decisões condenatórias anteriores que já deveriam ter sido canceladas do registo criminal; a determinação da medida da pena; a não transcrição da sentença no registo criminal.

2. Da decisão recorrida
2.1. Na sentença proferida pela 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
No dia 23 de Janeiro de 2010, pelas 4h20m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, de matrícula …-…-…, na Calçada da Estrela, área desta comarca de Lisboa, com uma taxa de álcool no sangue de 2,02 gr/1.
O arguido tinha perfeito conhecimento dos efeitos provocados pela ingestão de bebidas alcoólicas.
Apesar de saber que ia conduzir, o arguido quis ingerir bebidas alcoólicas, com ingeriu, sabendo que as mesmas eram susceptíveis de causar uma taxa de álcool por litro de sangue superior a 1,20 gramas, facto que não o demoveu de conduzir na via pública o veículo automóvel atrás identificado, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe eram imputados.
Relativamente à sua situação socioeconómica, apurou-se que o arguido se encontra desempregado, vivendo a expensas dos pais.
Reside sozinho.
Tem três filhos menores a quem paga uma prestação de alimentos no valor de 300 € mensais.
Não tem veículos automóveis.
Tem o 12° ano de escolaridade e frequência do Ensino Superior.
Quanto aos antecedentes criminais, provou-se que:
» por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Coimbra, no âmbito do processo nº 220/97, foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, praticado em 29/06/1996, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de 1.500$00 e em 1 mês de proibição de conduzir;
» por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Coimbra, no âmbito do processo nº 278/01, foi condenado, pela prática de um crime de desobediência, praticado em 18/05/2001, na pena de multa no valor de 90.000$00;
» por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Coimbra, no âmbito do processo n.º 1678/98.9JACBR, foi condenado, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, praticado em 17/10/1998, na pena de 130 dias de multa à taxa diária de 4 €.

2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):

II. Factos não provados
Relevante para a decisão da causa, nenhum outro facto deixou de se provar.

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):

III. Motivação da Decisão de facto
O tribunal baseou a sua convicção no teor das declarações prestadas pelo arguido que, de um modo espontâneo e coerente, confessou integralmente e sem reservas os factos, no auto de notícia, no talão do Drager e no CRC junto aos autos.
Para prova das condições sócio económicas do arguido o tribunal atendeu às declarações do próprio.

3. Apreciando
Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas no recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.

3.1. Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, estaria este tribunal habilitado a reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Quanto à modificabilidade da decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, preceitua o artigo 431.º que tal decisão pode ser modificada, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º: a) se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º3 do artigo 412.º; ou c) se tiver havido renovação da prova.
É evidente que não estamos perante qualquer das hipóteses contempladas nas três alíneas do mencionado artigo 431.º e que não foi adequadamente suscitada a reapreciação da prova gravada, razão que até já determinou a baixa dos autos à 1.ª instância para pagamento da multa por apresentação tardia do recurso, o que pressupõe, precisamente, o entendimento de que o prazo para recorrer que estava em causa era o de 20 dias e não o de 30.
O recorrente alega a existência de um erro de julgamento, mas da conjugação das conclusões com a motivação que sintetizam resulta que o que está verdadeiramente em causa é a circunstância de, tendo sido substituída a dedução de acusação pela leitura do auto de notícia, faltarem todos os elementos atinentes ao tipo subjectivo, pelo que a confissão, no entender do recorrente, não os podia abranger. Quer isto dizer que, no rigor, o que o recorrente invoca é a existência de uma nulidade da sentença recorrida, o que está em consonância com o pedido, formulado no termo das conclusões, de que se declare nula tal sentença – cuja consequência, porém, não é a absolvição, mas antes a remessa dos autos ao tribunal recorrido para proferir nova sentença.
Sobre questão algo similar, disse a Relação de Coimbra, em Acórdão de 21 de Outubro de 2009, Processo 69/09.2GTCBR.C1 (disponível em www.dgsi.pt):
«Nos termos do disposto no nº 2 do art. 389º do CPP (diploma a que se reportam as demais disposições legais citadas sem menção de origem), pode o Ministério Público substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção. Quando assim suceda, disso se deverá dar conta na acta da audiência, por expressa imposição legal, já que o art. 99º, nº 3, al. c), impõe que da acta conste a descrição especificada das operações praticadas e da intervenção de cada um dos participantes processuais [Esta norma é complementar do art. 362º.]. Não consta da acta de audiência, no entanto, que se tenha procedido a essa leitura, omissão grave, tanto assim que poderia levar a que se suscitasse, mesmo oficiosamente, a nulidade insanável da falta de promoção do processo pelo Ministério Público, prevista no art. 119º, al. b). Não será o caso, posto que o próprio recorrente aceita, referindo-o expressamente na motivação do recurso, que teve lugar a leitura dos factos constantes do auto de notícia. Aceitando-se, pois, apesar de dela se não ter dado nota em acta, que tal leitura teve lugar, valendo como acusação, nem por isso se poderão considerar encerradas as questões suscitadas pelo acto. Na verdade, a leitura dos factos constantes do auto de notícia não resolve – ou normalmente não resolverá – todos os problemas que esta forma de promoção processual levanta, desde logo porque ressalvados casos excepcionais, o auto de notícia será elaborado segundo modelos pré-impressos ou de acordo com formulários, preenchidos ou redigidos por agentes de autoridade sem consistente formação jurídica, e dele não constará – nem tem que constar – referência ao elemento intelectual do tipo legal de crime, como sucede no caso vertente. Nesse contexto, é ao Ministério Público que compete aditar os factos integradores do elemento subjectivo, seja através da respectiva anotação por despacho (que poderá ser feita no próprio auto), seja através da sua menção em audiência, aquando da leitura dos factos constantes do auto de notícia [menção essa que, para que possa ser comprovada e uma vez mais, por força do art. 99º, nº 3, al. c), deverá ser documentada na acta de audiência] [Vejam-se ainda os arts. 99º, nº 4 e 169º do CPP.].
No caso em análise, o recorrente veio suscitar, precisamente, a omissão, na acusação, do elemento subjectivo do crime. Ora, dúvidas não há de que todos os procedimentos tendentes à aplicação de uma sanção penal têm que salvaguardar os direitos de defesa do arguido, aí incluído o direito ao conhecimento integral da acusação contra ele deduzida. É a acusação que determina o âmbito dos poderes de conhecimento do tribunal e das garantias do contraditório no caso concreto. Daí que se ofereça como inegável, mesmo em processo sumário, a necessidade de observância, na acusação, seja qual for a forma que esta venha a adoptar, do disposto no art. 283º, nº 3, al. b), a impor “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a imposição ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. Nesses factos estão necessariamente incluídos os elementos subjectivos, que traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material. Assim, e tratando-se de crime doloso, da acusação deveria constar, pela sua relevância para a possibilidade de imputação do crime ao agente, e segundo a fórmula que se segue ou outra equivalente mas inequívoca, que o arguido agiu livre (afastamento das causas de exclusão da culpa - o arguido pôde determinar a sua acção), deliberada (elemento volitivo ou emocional do dolo - o agente quis o facto criminoso) e conscientemente (imputabilidade – o arguido é imputável), bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo).
Tais elementos não constavam da acusação deduzida (não constam do auto de notícia lido em audiência), não lhe foram aditados por despacho do M.P. nem foram comunicados ao arguido em audiência, aquando da leitura do auto de notícia (a acta de audiência não o menciona); e também não se mostra que tenha sido cumprido o disposto no art. 358º, nº 3. Contudo, na sentença que veio a ser proferida, sob os nº III. A. 3. e 4., considerou provado que o arguido “agiu livre, voluntária e conscientemente” e que “sabia a sua conduta proibida e punida por lei”. Tanto basta para que se conclua pela nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), por ter condenado por factos diversos dos descritos na acusação fora das condições legalmente previstas.»
Pois bem: fazendo nossa a argumentação exposta no citado aresto, tendo sido, no caso vertente, substituída a apresentação de acusação pela leitura do auto de notícia, não consta da acta da audiência de julgamento que tenham sido comunicados ao arguido os elementos respeitantes ao tipo subjectivo – e o preenchimento do tipo legal tanto poderá ter lugar a título doloso como negligente -, sendo certo que os autos não documentam - e a acta da audiência de julgamento é a esse respeito totalmente omissa – qualquer comunicação ou notificação (que inequivocamente deveria ter sido feita) ao arguido do teor de fls. 16, pelo que, além do mais, a sentença é também nula por ter condenado em pena acessória que não constava do auto de notícia que, no caso concreto, substituiu a apresentação da acusação (questão que dispensa tratamento mais alargado, visto constituir jurisprudência uniformizada pelo STJ - Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 7/2008).
A declaração da nulidade da sentença com os fundamentos apontados envolve como consequência a devolução dos autos ao tribunal recorrido para que, reaberta a audiência, se sanem as nulidades apontadas, proferindo-se de seguida nova sentença, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no recurso.


III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em dar provimento ao recurso, ainda que com consequências diversas das pretendidas pelo recorrente, anulando a sentença recorrida e determinando que o tribunal recorrido, após vista ao M.P. e reabrindo a audiência, sane as nulidades apontadas, proferindo nova sentença.
Sem tributação.

Lisboa, 7 de Junho de 2011

(o presente acórdão, integrado por dez páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

Relator: Jorge Gonçalves;
Adjunto: Carlos Espírito Santo;