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JULGAMENTO
AUSÊNCIA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DEFENSOR
NULIDADE
Sumário
Iº A presença e a participação na audiência é, simultaneamente, um direito e um dever do arguido (art.61, do Código de Processo Penal), decorrendo do nº6, do art.32, da Constituição da República Portuguesa, que a possibilidade de realização da audiência na ausência do arguido está estritamente ligada à garantia dos direitos de defesa, em especial do direito ao contraditório, cujo exercício pleno reclama a sua comparência na audiência; IIº Tendo o arguido prestado termo de identidade e residência, sendo regularmente notificado da data designada para a realização da audiência, desde que esteja representado por defensor, faltando, mesmo que justificadamente, se o tribunal considerar que a sua presença desde o início não é indispensável, não existe motivo para que não se inicie a audiência na data marcada; IIIº Decorrendo a audiência na ausência do arguido, o requerimento do defensor para que o arguido seja ouvido tem de ser formulado até ao seu encerramento; IVº Decidindo o juiz que, apesar da ausência do arguido, a audiência prosseguiria por não considerar imprescindível a sua presença desde o início, produzida a prova e encerrada a discussão, com designação de data para leitura da sentença, não pode o arguido, depois daquele encerramento, requerer que lhe seja dada oportunidade para prestar declarações em audiência; Vº Apesar de não considerar absolutamente indispensável a presença do arguido no início da audiência, o juiz presidente tem de tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o seu comparecimento; VIº Iniciando-se e prosseguindo a audiência na ausência do arguido, mas sem que, previamente, tenham sido tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, comete-se a nulidade insanável prevista no art.119, al.c), com as consequências previstas no art.122, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Penal;
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 515/06.7 PBLRS.L1, corre termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Loures, mediante acusação do Ministério Público que lhe imputou a prática de um crime de ofensa à integridade física previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, foi o arguido A..., devidamente identificado nos autos, submetido a julgamento em tribunal singular que, por sentença de 12.11.2010, o condenou pela prática, em autoria material, do aludido crime na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros).
Inconformado com tal decisão, o arguido dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, concluindo assim a respectiva motivação (em transcrição integral):
1. O Arguido/Recorrente, que é surdo-mudo, e vive sozinho, foi acometido de doença no dia 27.10.2010 (docs. 1 e 2), pelo que não pôde comparecer na audiência de julgamento, que se fez na sua ausência.
2. Atenta a sua deficiência, o Recorrente ficou impossibilitado de avisar e contactar o Tribunal e de justificar a sua falta no prazo legalmente estipulado.
3. Assim, só no dia 11.11.2010 lhe foi possível deslocar-se ao Tribunal e justificar a falta, conforme documento junto aos autos.
4. Porém, à referida justificação não foi dada a mínima relevância pelo Tribunal, tendo o Recorrido sido notificado em 12.11.2010, da douta sentença recorrida.
5. Ora, a audiência de discussão e julgamento foi efectuada sem a presença do arguido, que não foi ouvido, tendo sido coarctado o seu direito de defesa, não tendo qualquer responsabilidade nessa situação, pelo que a douta sentença recorrida violou os arts. 313º/3 e 332º/1, do CPP, que exigem a presença do arguido.
6. Assim, face à total ausência de responsabilidade do arguido pela não comparência na audiência de discussão e julgamento e face à justificação apresentada relativamente à sua falta, verifica-se que foi cometida a nulidade insanável prevista no art.º 119º, al. c), do CPP, devendo dar-se ao arguido/recorrente a possibilidade de ser ouvido no presente processo.
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Na 1.ª instância, o digno Magistrado do Ministério Público apresentou resposta pronunciando-se pela improcedência do recurso, porquanto, tendo o arguido sido regularmente notificado da data designada para o julgamento, não compareceu e a vontade de prestar declarações até ao encerramento da audiência não foi manifestada pela sua defensora, que podia tê-lo feito ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 312.º, do Cód. Proc. Penal, pelo que entende não ter sido cometida qualquer nulidade.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer (fls. 291-294) em que, louvando-se no acórdão do STJ, de 24.10.2007 (processo 07P3486), se pronuncia em sentido contrário ao do seu colega da 1.ª instância, ou seja, entende que o recurso merece provimento.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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São as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Embora não a formule expressamente, das conclusões apresentadas resulta claro que a pretensão do recorrente é a anulação da “audiência de discussão e julgamento”, porque efectuada sem a sua presença, em contrário do disposto nos artigos 313.º, n.º 2, e 332.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, que exigem a presença do arguido.
Assim, o objecto deste recurso define-se pelas seguintes questões: quais as consequências da falta, não justificada, do arguido à audiência para a qual estava devidamente notificado? A realização da audiência sem a sua presença e sem a sua audição afecta de nulidade o julgamento efectuado?
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II – Fundamentação
Para uma correcta decisão da questão colocada, importa considerar os seguintes factos ou ocorrências, que resultam dos autos:
1. O arguido/recorrente é surdo-mudo e, com vista à sua participação na audiência, foi-lhe nomeada intérprete de linguagem gestual;
2. A audiência foi, inicialmente, marcada para o dia 24.05.2010, tendo o arguido estado presente, mas foi transferida, sucessivamente, para o dia 02.06.2010 e depois para o dia 26.10.2010, devido a impossibilidade de comparência do intérprete;
3. O arguido foi, regularmente, notificado para a audiência a realizar no dia 26.10.2010;
4. O arguido não compareceu à audiência designada e até ao dia e hora marcados não comunicou ao tribunal a impossibilidade de comparecimento.
5. Também o defensor do arguido não compareceu à audiência, tendo-lhe sido nomeada, em substituição, como sua defensora, a Sra. Dra. C….
6. Logo após declarar aberta a audiência e de nomear a nova defensora, a Sra. Juíza proferiu o seguinte despacho:
“O arguido mostra-se devidamente notificado para a presente audiência. Não compareceu nem justificou a falta. Assim, para os efeitos do disposto no art.º 333.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, prossegue o julgamento na sua ausência por não ser imprescindível a sua presença desde o início”.
7. Produzida a prova e efectuadas alegações, a Sra. Juíza designou o dia 12.11.2010, pelas 11H:30, para a leitura da sentença e a audiência foi encerrada.
8. A ilustre defensora não requereu que o arguido fosse ouvido em nova data a designar.
9. No dia 11.11.2010, o arguido fez chegar aos autos o requerimento que constitui fls. 204, no qual, além de informar que não compareceu à audiência do dia 26.10.2010 por estar com “baixa médica” em consequência de um acidente de trabalho (juntando documentos comprovativos dessa situação), requereu que lhe fosse dada a oportunidade de prestar declarações em audiência.
10. Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho: “Nada a ordenar, uma vez que a falta não foi sancionada com multa”.
11. Na data marcada, estando o arguido presente, a Sra. Juíza procedeu à leitura da sentença.
As normas que devem ser convocadas para decidir as questões jurídicas equacionadas são, basicamente, os artigos 332.º, n.º 1, e 333.º, n.ºs 1 a 3 e 6 (agora n.º 7, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto) do Cód. Proc. Penal.
O n.º 1 do art.º 332.º estabelece que:
“É obrigatória a presença do arguido na audiência, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 333.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 334.º”.
Por seu turno, o artigo 333.º dispõe o seguinte:
1 – Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 – Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta do arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.ºs 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º
3 – No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência e, se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do n.º 2 do artigo 312.º
7 – É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 116.º, no artigo 254.º e nos n.ºs 4 e 5 do artigo seguinte.
Daqui decorre, com meridiana clareza, que, no processo comum, a regra é a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência e só em dois casos essa regra pode ser postergada: por iniciativa do tribunal, se considerar dispensável a presença do arguido; por iniciativa do próprio arguido, quando este, estando impossibilitado de comparecer por idade, doença grave ou residência no estrangeiro, requerer ou consentir que a audiência tenha lugar na sua ausência (art.º 334.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal).
Para o caso, só nos interessa considerar a primeira das mencionadas situações.
Na versão primitiva do Código de Processo Penal, a única excepção à regra da obrigatoriedade da presença do arguido era a prevista no art.º 334.º, n.º 2 (referimo-nos, apenas, ao processo comum).
Previa, então, o art.º 333.º que, faltando o arguido, a audiência era interrompida após a sua abertura, sempre que o presidente tivesse razões para crer que era possível fazer comparecer aquele no prazo de cinco dias; de contrário, a audiência era adiada, cabendo ao presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento.
O sistema instituído permitia (obrigava a) sucessivos adiamentos da audiência, com todos os inconvenientes daí resultantes, pois raramente se conseguia fazer comparecer o arguido no aludido prazo de cinco dias.
Na revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional n.º 1/97) foi introduzida a possibilidade de julgamento na ausência do arguido, tendo sido acrescentado ao art.º 32.º da CRP o actual n.º 6, com a seguinte redacção:
“A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.
Ao nível da lei ordinária, a possibilidade de o julgamento se realizar sem a presença do arguido, agora com aval constitucional, foi introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que alterou profundamente o artigo 333.º, cujos n.ºs 1 e 2 passaram a ter a seguinte redacção:
1 – Se o arguido não estiver presente na hora designada para o início da audiência e não for possível obter a sua comparência imediata, a audiência é adiada, cabendo ao presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento.
2 – Se o arguido sujeito a termo de identidade e residência não estiver presente na nova data designada e não for possível obter a sua comparência imediata, a audiência é de novo adiada e o presidente notifica-o, nos termos do art.º 313.º, n.º 2, do novo dia designado para a audiência com a cominação de que, faltando novamente, esta terá lugar na sua ausência.
Por conseguinte, só à terceira falta do arguido a audiência teria lugar na sua ausência, razão por que, como se reconhecia na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 41/VIII (Diário da Assembleia da República, II-A, de 15.07.2000), persistiam “algumas causas de morosidade processual”, que comprometiam a eficácia do direito penal e o direito do arguido a “ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa” e por isso impunha-se proceder a alterações no processo penal.
Aquela Proposta de Lei deu origem ao Decreto-Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, que no seu preâmbulo afirma não poder permitir-se a total desresponsabilização do arguido em relação ao andamento do processo ou ao do seu julgamento, motivo por que se possibilita que “o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material”.
A presença e a participação na audiência é, simultaneamente, um direito e um dever do arguido (art.º 61.º do Cód. Proc. Penal) e, como decorre do citado n.º 6 do art.º 32.º da CRP, a possibilidade de realização da audiência na ausência do arguido está estreitamente ligada à garantia dos direitos de defesa, em especial do direito ao contraditório, cujo exercício pleno reclama a sua comparência na audiência.
Ora, se, como se observa no acórdão do STJ de 24.10.2007 (cujo sumário está reproduzido no douto parecer do Ex.mo PGA), ocorre aqui “uma tensão dialéctica inarredável entre a tutela dos interesses do arguido e a tutela dos interesses da sociedade representada pelo poder democrático do Estado”, também é verdade que o sistema instituído garante, de forma satisfatória, os direitos do arguido.
Desde logo, como se assinala no preâmbulo do Dec. Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, “a posição do arguido no processo penal é protegida pelo princípio da presunção de inocência, prevista no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição, que surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo, o qual implica a absolvição do arguido no caso de o juiz não ter certeza sobre a prática dos factos que subjazem à acusação”.
Além disso, configuram-se como garantias do arguido:
- o facto de, quando presta termo de identidade e residência (artigo 196.º do Cód. Proc. Penal), ser advertido, além do mais, que, no caso de não comparência, a audiência se realizará na sua ausência, sendo representado pelo respectivo defensor;
- a circunstância de, na própria audiência, mesmo no caso de se concluir logo na primeira sessão toda a produção da restante prova, o defensor (nomeado ou constituído) poder requerer a sua audição numa segunda data, já designada ou a designar para o efeito, assim se assegurando ao arguido o direito de prestar declarações e transmitir ao tribunal a sua versão sobre os factos que lhe são imputados;
- a consagração do direito a recorrer das decisões contra si proferidas, nomeadamente da sentença condenatória, depois de esta lhe ter sido pessoalmente notificada.
Assim garantido o núcleo essencial do direito de defesa do arguido (importa aqui sublinhar que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 465/04, concluiu que não padece de inconstitucionalidade a norma do artigo 333.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, ao permitir a realização da audiência de julgamento na ausência do arguido, se a sua presença não foi considerada indispensável e não configurando o juízo de indispensabilidade como um juízo derivado de uma livre apreciação do julgador sem fundamentação nem controlo em sede de recurso), fica aberta a via para que “o tribunal pondere a necessidade da presença do arguido na audiência, só a podendo adiar nos casos em que aquele tenha sido regularmente notificado da mesma e a sua presença desde o início da audiência se afigurar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material” (ainda do preâmbulo do Dec. Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro).
Com efeito, tendo o arguido prestado termo de identidade e residência nos termos do art.º 196.º do Cód. Proc. Penal (e, portanto, ficando ciente das obrigações dele decorrentes e das consequências da sua inobservância), sendo regularmente notificado da data designada para a realização da audiência e desde que esteja representado por defensor (constituído ou nomeado), faltando, mesmo que justificadamente, se o tribunal considerar que a sua presença desde o início não é indispensável, não existe motivo para que não se inicie a audiência na data marcada.
Mas a interpretação do art.º 333.º do Cód. Proc. Penal, em especial do seu n.º 1, tem suscitado alguma controvérsia, sobretudo na jurisprudência.
Duas são as questões que têm sido debatidas:
Por um lado, questiona-se se o arguido, apenas, pode ser ouvido em audiência se o seu defensor o requerer no próprio dia em que a mesma audiência tem lugar na sua ausência.
Por outro lado, discute-se em que caso(s) deve o presidente tomar “as medidas necessárias e legalmente admissíveis” para obter a comparência do arguido na audiência e quais as consequências se o não fizer.
Quanto à primeira questão, há quem entenda que exigir que a audição do arguido seja requerida na primeira data designada põe em causa o direito de defesa, sobretudo se nessa data é nomeado um novo defensor (em substituição do que estava constituído ou nomeado e faltou, como aconteceu no caso sub judice).
A objecção não é desprovida de fundamento se se tiver em consideração que o novo defensor não teve qualquer contacto, nem com o processo, nem com o arguido e por isso desconhece se ele pretende, ou não, prestar declarações em audiência.
No entanto, sempre se poderá contrapor que ao novo defensor é concedida a faculdade de requerer a concessão de tempo para preparar a defesa (n.º 1 do art.º 330.º) e, em todo o caso, à cautela, requererá a audição do arguido na segunda data designada nos termos do n.º 2 do art. 312.º do Cód. Proc. Penal.
Sobre este ponto, Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Civil, 2.ª edição actualizada, UCE, 836) escreve, em comentário ao artigo 333.º que “o arguido que falta na primeira data marcada para julgamento só pode ser ouvido em audiência se o seu defensor o requerer no próprio dia em que tem lugar a primeira audiência na ausência” (anotação 5).
A afirmação carece de precisão: será assim se a audiência se iniciar e terminar no mesmo dia. Se o arguido pode prestar declarações em qualquer momento da audiência (art.º 343.º, n.º 1), então, enquanto a audiência não for declarada encerrada pelo juiz presidente, pode o arguido, que esteve ausente no seu início, comparecer e pedir para ser ouvido[1].
Por último, não é despiciendo referir que o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido de que a norma do n.º 3 do artigo 333.º do Cód. Proc. Penal, na interpretação segundo a qual o arguido apenas pode ser ouvido em audiência de julgamento se o requerer no próprio dia em que tem lugar a audiência de julgamento na ausência não é inconstitucional (Ac. do TC n.º 206/06).
Em conclusão, a previsão de um limite temporal (até ao encerramento da audiência) para ser requerida a audição do arguido que, apesar de regularmente notificado, não compareceu no início da audiência, é um imperativo legal incontornável (sem o que possibilitaria um intolerável protelamento da decisão) e o seu estabelecimento não coarcta as garantias de defesa do arguido.
No caso em apreço, o arguido, regularmente notificado para a audiência no dia 26.10.2010, não compareceu nem comunicou ao tribunal a impossibilidade de comparecimento.
Tendo a Sra. Juíza decidido que a audiência prosseguiria por não considerar imprescindível a presença do arguido desde o início, foi produzida a prova e encerrada a audiência, sem que a ilustre defensora, então nomeada, tivesse requerido a sua audição em data a designar.
Só depois disso, na véspera do dia designado para a leitura da sentença, veio requerer “que lhe fosse dada a oportunidade de prestar declarações em audiência”.
A Sra. Juíza não se pronunciou sobre esse requerimento, mas não pode deixar de concluir-se que o arguido não manifestou, em devido tempo, vontade de prestar declarações sobre o objecto do processo, pelo que, por essa via, não foi afectada a validade da audiência.
A segunda questão, essa sim, verdadeiramente controvertida, tem grande alcance prático, na medida em que são frequentes[2] as situações como a que aqui nos ocupa, ou seja, de realização da audiência na ausência do arguido sem que o presidente tome quaisquer medidas para obter a sua comparência.
No acórdão do STJ de 24.10.2007, citado no parecer do Ex.mo PGA e a que já aludimos, foi decidido que, dando o tribunal início à audiência, estando o arguido ausente, o juiz presidente deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência (conforme estabelece o art.º 333.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), uma vez que a realização da audiência nos sobreditos termos contende com o exercício pleno do direito de defesa do arguido e o princípio da procura da verdade material que se impõe ao julgador.
Nada tendo feito para obter a comparência do arguido, “é nula essa audiência de julgamento”, invalidade que afecta, não só a própria audiência, mas também os actos que dela dependem, designadamente a sentença condenatória, devendo o mesmo tribunal proceder à respectiva repetição, nos termos do art. 122.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Penal.
Sobre a mesma questão, já o STJ havia decidido, por acórdão de 02.02.2007 (www.dgsi.p/jstj), que “é nula a audiência de julgamento – e a subsequente decisão – realizada na ausência da arguida que para esse acto fora notificada, e faltou, sem que fossem tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência”.
A argumentação é, essencialmente, a mesma: o tribunal adia a audiência se (e apenas na hipótese de) considerar absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido no início da audiência. De contrário, a audiência não é adiada e iniciar-se-á sem a presença do arguido, mas, sendo obrigatória a comparência deste, o juiz presidente tem de tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o seu comparecimento.
Ao nível da 2.ª instância, sobretudo da Relação do Porto, existe uma corrente que defende uma posição diametralmente oposta.
Perante a falta do arguido à audiência de julgamento para a qual foi regularmente notificado - diz-se no acórdão da Relação do Porto de 02.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt) - a regra é a de que a audiência deve prosseguir e para tanto “só se exige ao juiz que faça um juízo de não indispensabilidade da presença do arguido desde o início da audiência, com fundamento no não prejuízo para a descoberta da verdade material, aliás em conformidade com o que lhe é exigido em termos de produção de prova, pelo artigo 340º do CPP”.
A realização de diligências para fazer o arguido presente à audiência só se imporá se o tribunal tiver considerado a sua presença necessária para a descoberta da verdade material.
É isso mesmo que se diz no acórdão da mesma Relação de 30.04.2008 (www.dgsi.pt): “o tribunal só deve tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência do arguido, nos termos do n.º 1 do art. 333.º do Código de Processo Penal, se considerar que é absolutamente indispensável a sua presença logo desde o início da audiência” (sublinhado nosso) e, por conseguinte, se se justificar o seu adiamento.
A evolução legislativa de que demos conta aponta no sentido de que as medidas a tomar pelo juiz presidente para obter a comparência do arguido estão relacionadas com o adiamento da audiência (“Se o arguido não estiver presente… a audiência é adiada, cabendo ao presidente tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter o comparecimento”, eram os termos do n.º 1 do art.º 333.º na redacção anterior ao Dec. Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro).
No entanto, há que reconhecer a pouca consistência do argumento e que razões de natureza substantiva, relacionadas com as garantias de defesa do arguido, poderão impor conclusão diversa.
Concretizando, se o julgamento na ausência do arguido põe em causa princípios como o da oralidade e da imediação do processo penal, instrumentais da verdade material e do direito de defesa, a exigência constitucional de que “o legislador articule os valores justificativos do julgamento na ausência do arguido com as condições inultrapassáveis do núcleo irredutível do direito de defesa” pode passar, também, pela realização de todas as diligências possíveis e necessárias para fazer comparecer o arguido.
Essa ideia parece transparecer da seguinte passagem do já aludido acórdão do Tribunal Constitucional (n.º 465/2004):
“Com efeito, aquele preceito (art.º 32.º, n.º 6, da CRP) impõe ao julgador vários critérios de acção que exprimem o princípio de necessidade e de adequação que subjaz ao parâmetro constitucional. Assim, não só impõe que sejam tomadas todas “as medidas necessárias e legalmente admissíveis” para obter a comparência do arguido, como, após o esgotamento sem êxito desse procedimento, impõe que o juiz pondere se é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a presença do arguido desde o início da audiência. Só no caso de o tribunal ponderar que não se verifica tal indispensabilidade é que se tornará possível o julgamento na ausência do arguido”.
Embora associando esse dever à injustificação da falta do arguido, também Paulo Pinto de Albuquerque (Op. Cit., 836) considera que o juiz presidente deve tomar as medidas necessárias para o fazer comparecer na audiência e, frustrando-se essas medidas, então sim, a audiência não será adiada, iniciando-se na primeira data (a não ser que o tribunal considere absolutamente indispensável a sua presença desde o início da audiência).
Perante este panorama, não sem algumas reticências, propendemos a aceitar a orientação que vem prevalecendo no Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual, iniciando-se e prosseguindo a audiência na ausência do arguido, mas sem que, previamente, tenham sido tomadas as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, comete-se a nulidade insanável prevista no art.º 119.º, al. c), com as consequências previstas no art.º 122.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Penal.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, anular a audiência de julgamento efectuada e a subsequente sentença, que assim deverão ser repetidas.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).
Lisboa, 5 de Julho de 2011
Relator: Neto de Moura;
Adjunto: Alda Tomé Casimiro;
---------------------------------------------------------------------------------------- [1] Aliás, o autor faz essa precisão na anotação 9. ao mesmo artigo. [2] Arriscamos mesmo a afirmação de que é a prática judiciária habitual.