ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
FIANÇA
MÁ FÉ
JUROS DE MORA
Sumário

I – Efectuado um determinado pagamento no pressuposto da existência de uma fiança e faltando a relação de fiança (embora existindo a obrigação principal), não estaremos perante a situação desenhada no art. 478 do CC que pressupõe encontrar-se o solvens na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumprir a obrigação: quem pretensamente satisfaz uma garantia julga estar pessoalmente obrigado perante o credor (nº 1 do art. 627 do CC) sendo ao credor que deverá ser exigida a restituição, de acordo com o nº 1 do art. 476 do CC.
II - Os limites impostos pela boa-fé não foram postos em causa, não ocorrendo abuso de direito quando, ocorrendo embora um decurso relevante do tempo, com eventuais consequências nocivas para a R., não havia conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer por parte do A., não podendo ser extraídas quaisquer consequências da sua falta de actuação anterior, na sequência do pagamento indevido que efectuara.
III – Não se provando nem se podendo inferir dos factos provados, com a necessária segurança, que a R. tinha conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento desde o momento em que ele ocorreu, os juros à taxa legal são devidos desde a citação da R..
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - “A” intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra «Banco, SA».
            Alegou o A., em resumo, que na convicção de estar a cumprir uma obrigação a que estava adstrito como fiador, pagou à R. a quantia de 13.904.880$00 como sendo da sua responsabilidade, para pôr termo a execução movida pela R. contra ele e contra os devedores principais; esta quantia foi-lhe apresentada pela R. como sendo por ele devida, quando, na verdade, apenas estava obrigado ao pagamento de 8.392.430$00.
            Pediu o A. a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de € 27.495,98, acrescida de juros vencidos no montante de € 5.502,21 e de juros vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo pagamento.
Citada, a R. contestou, invocando a prescrição e o abuso de direito, defendendo a falta de pressupostos para o enriquecimento sem causa e impugnando, parte dos factos em que o A. se fundamentara.
O processo prosseguiu e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar ao A. a quantia de 27.495,98 €, acrescida de juros vencidos no montante de 10.793,00 € e de juros vincendos, calculados à taxa legal, até efectivo pagamento.
Da sentença apelou a R., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
1. Conforme decorre da lei mostra-se indispensável o preenchimento de três requisitos para que se verifique o instituto jurídico do enriquecimento sem causa, nomeadamente: 1 – A existência de um enriquecimento; 2 – Que esse enriquecimento seja obtido à custa de outrem; 3 – Que se verifique a falta de causa justificativa;
2. No entender da apelante não se verifica o requisito da existência de um enriquecimento: A “Banco” não enriqueceu o seu património. A apelante tinha efectivamente o direito de cobrar a quantia que cobrou, a qual lhe era efectivamente devida, muito embora tal direito – de acordo com a factualidade provada nestes autos – não pudesse ser exercido contra a pessoa do apelado no que toca a um dos empréstimos concedidos aos seus afiançados;
3. Por outro lado, o art. 474º do CC estabelece que o enriquecimento sem causa só pode verificar-se quando a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ver o seu património ressarcido ou restituído sendo certo que a lei facultava ao aqui apelado o direito de recorrer a outros institutos jurídicos que não o do enriquecimento sem causa;
4. Ou por via da respectiva acção anulatória do negócio jurídico ou/e por via da acção de indemnização pela violação do dever de esclarecimento e informação que o Banco deveria ter prestado correctamente, sempre o apelado poderia obter através do accionamento desses institutos jurídicos o ressarcimento da quantia que pagou;
5. Na douta sentença impugnada o Tribunal declarou suspeitar de que a “Banco” teve a intenção de se aproveitar da ignorância e da confusão do apelado tendo daí concluído que nessa conformidade nem valia a pena considerar a figura do abuso de direito que a “Banco” invocou na sua contestação;
6. Não se pode aceitar nem a bondade de tal comentário nem, tão pouco, a conclusão que dele o Tribunal a quo extraiu cabendo à cabeça sublinhar que, no que concerne à indicada suspeição, a mesma nem foi sequer objecto de qualquer alegação por parte do próprio autor da acção;
7. Consequentemente, o Tribunal a quo omitiu pronunciar-se sobre uma questão que expressamente lhe foi colocada pela ré, e, ademais, omissão essa fundada num pressuposto (a suspeita de que a apelante se aproveitou do autor) que nem sequer foi invocado pelo aqui apelado e que não consta consubstanciada na matéria de facto dada por provada; esta omissão enforma a nulidade de sentença prevista no art. 668º nº 1 alínea d) do CPC;
8. A não ser assim entendido o A. ao pagar em 13.10.2000 a quantia de 13.904.880$00, correspondente à totalidade da quantia exequenda remanescente, e ao ter deixado passar quase 8 anos para exercer o seu direito, criou nesse lapso de tempo na “Banco”, a convicção de que estavam integralmente ressarcidos os seus créditos o que motivou desde logo ter-se a apelante dado como totalmente paga no processo executivo acrescendo ainda que já só em 30 de Julho de 2009 é que deu entrada a presente acção, o que também não pode deixar de ser valorado negativamente, contribuindo para reforçar a qualificação como negligente da conduta do aqui apelado;
9. Uma pessoa que durante um determinado período de tempo, se comporta de determinada maneira mantendo uma posição jurídica geradora de expectativas na outra de que o seu comportamento continuará inalterado, não pode posteriormente adoptar uma conduta contraditória que quebre a confiança e a expectativa entretanto criada pela sua inércia sendo exactamente o caso dos autos, que traduz o abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium;
10. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo ou ilegítimo. Impõe que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado;
11. O apelado com a sua conduta não só criou na apelante a convicção de que a totalidade do pagamento estava efectuado como ainda ao substituir-se ao devedor original extinguiu o direito da “Banco” recuperar o seu crédito por via do processo executivo, e, ao ter deixado permanecer esta situação durante quase 8 anos sedimentou e criou na apelante a convicção de que o problema estava resolvido e a “Banco” integralmente ressarcida;
12. Não é do senso comum que um cidadão médio não tenha a noção das responsabilidades por si assumidas e dos valores que uma situação de incumprimento, pelos seus afiançados, e por si conhecida e sabida, lhe poderiam acarretar, pelo que a conduta do A. está objectivamente longe de poder ser considerada isenta de responsabilidades no que se verificou;
13. Não se verificam por outro lado os pressupostos para a repetição do indevido, sendo certo que foi com este fundamento que o apelado enformou a sua causa petendi;
14. A apelante suscitou na sua contestação em sede de defesa por excepção a questão da inexistência dos requisitos para se poder dar como verificada a repetição do indevido, mormente a existência de erro desculpável por parte do autor; todavia, também quanto a esta matéria a douta sentença é totalmente omissa, não se tendo pronunciado sobre a questão suscitada e nessa conformidade é também nula com base neste fundamento (cfr. art. 668º nº 1 alínea d) do CPC;
15. Mesmo que assim não fosse entendido não se verifica a existência de erro desculpável do apelado; com efeito o apelado não ignorava nem podia ignorar que estava a pagar quantia que não estava por si acobertada pela fiança que prestara e que se limitava ao empréstimo à habitação contraído por “B” e “C”;
16. O Tribunal a quo considerou provado que “… o autor no dia 13 de Outubro de 2000 dirigiu-se à agência de ... da “Banco” S.A. sita à Praça da … em ..., para pagar a dívida pela qual era responsável e que permitiu a penhora de 1/3 do seu vencimento e que nesse mesmo local e data a ré apresentou como dívida do ora autor a quantia de 13.904.880$00 – actualmente 6.357,25 € - emitindo as duas notas de débito juntas como doc. 5 à petição inicial”;
17. Basta ler as mencionadas notas de débito juntas sob doc. 5 com a p.i. para se concluir que ambas mencionam expressamente quem é responsável pela dívida pelo que o apelado tomou conhecimento dos montantes que lhe foram apresentados a pagamento através da emissão dessas duas notas de débito pela apelante;
18.Resulta dos factos provados em Tribunal que consta nos próprios documentos emitidos pelo banco e nos quais o apelado se baseou para desembolsar a quantia que pagou não só quem era efectivamente o responsável por cada uma das dívidas enunciando-se assim claramente que se tratava de duas responsabilidades e não de uma só, como também e igualmente consta de cada uma das notas de débito qual era o exacto montante da responsabilidade de cada um dos dois conjuntos de devedores;
19. Por outro lado o apelado não podia ignorar, pelo menos desculpavelmente, o teor e conteúdo da escritura que tinha outorgado na qualidade de fiador – que está junta aos autos - sendo que na mesma se alude apenas a uma responsabilidade e não a duas;
20. Acresce que face à certidão judicial junta pelo apelado sob doc. 1 com a p.i. junta resulta provado que, pelo menos, tomou conhecimento de que foi requerida penhora sobre o seu vencimento, e do teor e conteúdo requerimento de fls. 61/62 o qual lhe foi notificado e relativamente a qual não quis tomar posição; assim mesmo que não tivesse sido citado para a execução – facto este que não consta da dita certidão – pelo menos na altura da sua notificação da penhora do vencimento tomou conhecimento da existência da execução instaurada pela “Banco” e, se tivesse actuado diligentemente, ter-se-ia informado do teor e conteúdo da mesma (se ainda o não conhecesse) isto é das responsabilidades que estavam em causa e da sua concreta medida, concluindo então que a penhora que fora judicialmente decretada abrangia responsabilidade por si não assumida nem garantida agindo em conformidade, isto é opondo-se à penhora nos termos que a lei processual lhe facultava;
21. E não se oponha a este argumento que quem deu azo à situação foi a “Banco” ao ter nomeado à penhora o vencimento do executado atendendo a que da venda da fracção hipotecada não resultou o pagamento da totalidade da dívida respeitante àquela responsabilidade, conforme se pode concluir das peças processuais juntas à certidão, o que legitimava a penhora sobre o vencimento muito embora não relativamente à totalidade do montante em divida respeitante às duas responsabilidades;
22. Acresce que nos termos do art. 477º nº 1 do CC o apelado apenas gozaria do direito de repetição se a “Banco”, desconhecendo este erro, não se tivesse privado do título ou das garantias do crédito deixando prescrever ou caducar o seu direito. Ora a “Banco” desconhecia a existência de qualquer erro – desculpável ou não – do aqui apelado. Com efeito, na tese da “Banco” – que não logrou demonstrar, é certo, mas que para o efeito agora aqui realçado não importa – o apelado pretendeu efectivamente pagar as duas responsabilidades e não apenas uma referindo que era muito amigo dos afiançados co-devedores e que terá sido tal pedido o despoletador da emissão das duas notas de débito;
23. Por essa razão a “Banco” ao receber do aqui apelado a quantia de 13.904.880$00 deu-se como totalmente paga no processo executivo conforme resulta provado da mencionada certidão tendo o Tribunal onde correu a execução decretado a extinção da instância conforme resulta dessa mesma certidão. Tal despacho transitou em julgado há muito formando assim caso julgado material quanto ao objecto do processo (pagamento da quantia exequenda) pelo que atentos os efeitos quer da extinção da instância executiva quer do caso julgado material não é mais possível à “Banco” instaurar nova execução contra “B” e “C” para recuperar o crédito prestado;
24.Também se chega à conclusão da inexistência in casu do direito à repetição do indevido através do regime do art. 478º do CC;
25. A douta sentença sob sindicância condenou a apelada ao pagamento de juros moratórios à taxa legal sem precisar desde quando eram devidos sendo certo que o são apenas a partir da citação, e, nessa conformidade, até 09.09.2010 apenas seria devida a quantia de 1.202,29 €, e não a de 10.793,00 € conforme decidiu o Tribunal recorrido.
O A. contra alegou nos termos de fls. 174 e seguintes.
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II - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
A - Por escritura pública realizada em 28 de Agosto de 1988, o A. responsabilizou-se solidariamente como fiador e principal pagador de tudo o que viesse a ser devido à “Banco”, S.A., ora R., por “B” e Mulher, “C”, em consequência do empréstimo n.º …, concedido por contrato de mútuo na quantia de 5.300.000$00, à taxa de juro anual de 18,5%.
B - Porque os mutuários deixaram de cumprir as suas obrigações, a “Banco”, S.A., ora R., através da Execução Ordinária n.º 243/97, que correu termos no 1.º deste Tribunal da Comarca de ..., deu à execução dois contratos, a saber:
a) O contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança referido no articulado 1.º da petição, no qual, para além da ora R. e do A., são outorgantes “B” e “C”;
b) O contrato de mútuo com hipoteca, que titula o empréstimo n.º …, formalizado em 18 de Setembro de 1991, por escritura pública, à taxa de juro de 20,5%, em que outorgam “B”, “C” e a ora R..
C - No momento da assinatura da escritura do contrato de compra e venda,  mútuo com hipoteca e fiança, o autor apenas se responsabilizou como fiador e principal pagador por tudo quanto viesse a ser devido por “B” e “C” à ora R. em consequência do empréstimo titulado pelo contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, indicado em B), alínea a).
D - Foi penhorado e judicialmente vendido o bem imóvel com garantia real a favor da então exequente “Banco”, S.A., ora R..
E - Porque o produto da venda do bem imóvel não foi suficiente para o pagamento da totalidade do crédito, a então exequente “Banco”, S.A., requereu o fim da suspensão da Execução ordinária n.º 243/97, para que a mesma prosseguisse com a penhora de outros bens dos executados.
F - No âmbito da Execução Ordinário n.º 243/97, foi penhorado 1/3 do vencimento que o ora A. auferia como médico no Hospital …, em ....
G - Envergonhado com os comentários que, de imediato, começaram a surgir no Hospital … devido à penhora do seu ordenado, o autor, no dia 13 de Outubro de 2000, dirigiu-se à Agência de ... da “Banco”, S.A., sita à Praça … em ..., para pagar a dívida pela qual era responsável e que permitiu a penhora de 1/3 do seu vencimento.
H - Nesse mesmo local e data, a R. apresentou como dívida do ora autor a quantia de 13.904.880$00 – actualmente € 69.357,25 - emitindo as duas notas de débito juntas como doc. 5 à petição inicial.
I - De imediato, o A. pagou à R. a quantia por esta exigida de 13.904.880$00, como sendo da responsabilidade do A., para pôr termo à execução e à penhora do seu ordenado, da qual a R. passou o respectivo recibo/quitação.
J - Na sequência da informação prestada pela então exequente, ora R., o Tribunal declarou extinta a Execução Ordinária n.º 243/97.
L - O vencimento do autor, de médico do Hospital …, em ..., foi penhorado para pagamento da totalidade da quantia exequenda, abrangendo as duas dívidas, sem que do acto de penhora constasse a discriminação de cada uma das dívidas.
M - Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas, os funcionários da R. prestaram a informação referida, depois de o autor comunicar que pretendia fazer cessar a penhora do seu vencimento como médico do Hospital …, que lhe vinha trazendo alguns constrangimentos.
N - O A. pagou a quantia de 13.904.880$00, na convicção de uma obrigação que era sua, como fiador dos devedores principais, por ter sido aquela quantia que originou a penhora do seu ordenado e ter sido a mesma quantia que os funcionários da R. lhe apresentaram como sendo por si devida.
O - No dia 12 de Outubro de 2008, quando o A. consultou o Dr. “D” advogado com escritório nesta cidade e comarca de ..., com vista a intentar uma acção judicial para efectivar o seu direito de regresso contra “B” e “C”, foi informado por aquele ter pago à ré a quantia de 5.512.450$00 (actualmente € 27.495,98), sem ter qualquer causa que o justificasse, por estar contratual e legalmente obrigado a pagar apenas a quantia de 8.392.430$00.
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III – São as conclusões de recurso que definem o objecto deste, conforme decorre do art. 684, nº 3, do CPC. Deste modo, as questões que essencialmente são colocadas, atentas as conclusões apresentadas pela apelante são as seguintes:
- Se ocorre a nulidade de sentença prevista no art. 668º, nº 1-d) do CPC;
- Se e com base em que enquadramento legal se verificariam os pressupostos para a obrigação de restituição pela R. ao A. da quantia de 5.512.450$00;
- Se existe abuso de direito;
- Desde quando opera a contabilização dos juros eventualmente devidos.
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IV – 1 – Defende a apelante ocorrer a nulidade de omissão de pronúncia, perspectivando-a em dois segmentos diversos: omissão de pronúncia sobre o invocado abuso de direito; omissão de pronúncia sobre a inexistência dos requisitos para se poder dar como verificada a repetição do indevido, no que respeita especificamente ao erro desculpável por parte do A..
A nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 668, nº1-d) do CPC, traduz-se no incumprimento por parte do julgador do dever prescrito no nº 2 do art. 660 do mesmo Código, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada. Todavia, as mencionadas «questões», enquanto fundamento da nulidade da sentença, não abrangem os argumentos ou as razões jurídicas invocados pelas partes.
«São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» ([1]).
Saliente-se que através da prova é feita uma triagem das soluções que deixaram de poder ser atendidas; por outro lado, o juiz não está sujeito ás alegações das partes quanto à indagação e interpretação das normas jurídicas (art. 664 do CPC) pelo que uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido não têm de ser separadamente analisadas.
Como nos dizem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto ([2]): «Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 660-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado».
Vejamos.
No que concerne ao abuso de direito, excepção invocada pela R., foi referido na sentença recorrida, depois de adiantado que as «excepções de inexistência de requisitos e de abuso de direito não carecem de autonomia relativamente ao fundo da questão»: «Como é óbvio, não cabe falar de abuso de direito quando a única suspeição que fica é a de que a ré possa ter tido a intenção de se aproveitar da ignorância e da confusão do autor».
Pese embora a fundamentação seja extremamente sumária, não podemos considerar que inexistiu pronúncia sobre a excepção invocada – houve pronúncia, tendo-se entendido que a excepção não se verificava (por falta dos pressupostos para tal).
No que respeita à inexistência de requisitos para se poder dar como verificada a repetição do indevido refere a apelante que suscitou a falta de erro desculpável por parte do A., não se podendo dar como verificada a repetição do indevido e que a sentença é omissa sobre a questão suscitada.
Na contestação apresentada a R. reportou-se ao disposto nos arts. 477, nº 1 e 478 do CC, analisando os pressupostos da obrigação de restituir essencialmente no âmbito daquele primeiro.
Tenhamos em conta, antes de mais, que a «inexistência de erro desculpável» não configura matéria de excepção. Configurando a situação de facto como abrangida pela previsão do nº 1 do art. 477 seria ao A. que cumpriria alegar matéria susceptível de ser reconduzida a um erro desculpável, como fundamento da acção.
Na sentença recorrida o Tribunal de 1ª instância considerou verificados os pressupostos do instituto do enriquecimento sem causa, acrescentando que o A. «efectuou um pagamento na convicção de que estava a cumprir uma obrigação que, na verdade, sobre ele não impendia». Bastando-se com a aplicação dos arts. 473 e 479, nº 1, do CC, não considerou necessária a recondução a qualquer uma das disposições constantes dos arts. 476 a 478 do CC, decidindo do pedido formulado nos termos a que aludimos. Ora, embora sucintamente e com escassez de consideração de preceitos legais a propósito, o Tribunal pronunciou-se, decidindo sobre o pedido e causa de pedir formulados, não havendo, nesta parte, matéria de excepção carente de pronúncia.
Nestas circunstâncias, inexiste a nulidade por de falta de pronúncia invocada pela apelante em qualquer dos segmentos apontados.
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IV – 2 - Na sentença recorrida entendeu-se estarem verificados os pressupostos previstos no art. 473 do CC para o enriquecimento sem causa, tendo o A. efectuado um pagamento na convicção de que estava a cumprir uma obrigação que sobre ele não impendia.
Dispõe o art. 473 do CC:
«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».
A referida obrigação de restituir e a correspondente pretensão à restituição constituem uma forma de compensação instituída pela lei para certas situações que, embora formalmente conformes aos seus preceitos conduzem a resultados – de injusto enriquecimento – substancialmente reprovados pelo direito ([3]).
Vem-se entendendo que a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos ([4]):
1 – Que haja um enriquecimento, consistindo este na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista – aumento do activo patrimonial, diminuição do passivo, uso ou consumo de direito alheio, ou exercício de direito alheio, poupança de despesas;
2 - Que aquele enriquecimento careça de causa justificativa, ou porque nunca a tenha tido, ou tendo-a inicialmente a haja depois perdido – o que se traduz na inexistência de uma relação ou de um facto que à luz dos princípios aceites no sistema legitime o enriquecimento;
3 - Que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
Menezes Leitão – que distingue entre o enriquecimento por prestação, o enriquecimento por intervenção, o enriquecimento resultante de despesas efectuadas por outrem e o enriquecimento por deslocação de património - refere que «não faz sentido continuar a configurar o requisito “à custa de outrem” como a exigência de um empobrecimento concomitante em relação ao enriquecimento», tendo configuração e relevância diversas nas várias categorias de enriquecimento sem causa, podendo mesmo ser dispensado no enriquecimento por prestação em que o requisito se dissolve «na própria autoria da prestação, sendo essa autoria que determina a legitimidade do credor da pretensão de enriquecimento» ([5]).
Assim, no enriquecimento por prestação alguém efectua uma prestação a outrem verificando-se uma ausência de causa que permita a recepção ou a manutenção da prestação em referência ([6]); modalidades do mesmo serão a repetição do indevido, a restituição por posterior desaparecimento da causa e a restituição por não verificação do efeito pretendido.
No caso que nos ocupa ocorreu um enriquecimento da R., ao contrário do pretendido pela apelante na sua alegação de recurso; como vimos, o enriquecimento consistirá na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, podendo a mesma traduzir-se num aumento do activo patrimonial, numa diminuição do passivo, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, na poupança de despesas ([7]) e, a verdade, é que o A. entregou à R. – que a recebeu - a quantia de 5.512.450$00, excedendo o valor correspondente à fiança que prestara.
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IV – 3 – Conforme aludido, como modalidade do enriquecimento sem causa encontra-se a repetição do indevido ([8]), em que se podem distinguir três hipóteses:
- o cumprimento de obrigação inexistente, ou seja de obrigação que não existe nem relativamente ao que a efectua nem a terceiro (objectivamente indevido) - art. 476 do CC;
- o cumprimento de obrigação alheia na convicção de que é própria (subjectivamente indevido) – art. 477 do CC;
- o cumprimento de obrigação alheia na convicção de se estar obrigado a cumpri-la, ou seja, o caso da pessoa que sabe ser a dívida alheia e efectua o cumprimento na convicção errónea de estar a isso obrigada para com o devedor – art. 478 do CC.
Inserir-se-á a situação dos autos em qualquer das hipóteses previstas nos arts. 476 a 478 do CC?
Comecemos por esta última previsão legal cujo regime é trazido à colação pela apelante nas conclusões da sua alegação de recurso.
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IV – 4 - O art. 478 do CC dispõe sobre a hipótese de alguém cumprir uma obrigação alheia na convicção de estar obrigado a cumpri-la, situação em que o solvens ficará empobrecido, já que foi pagar uma obrigação que não era sua e que não estava obrigado a cumprir, embora de tal estivesse convencido ([9]).
 Concretamente, dispõe aquele art. 478 do CC:
«Aquele que cumprir obrigação alheia, na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumpri-la, não tem o direito de repetição contra o credor, mas, apenas o direito de exigir do devedor exonerado aquilo com que este injustamente se locupletou, excepto se o credor conhecia o erro ao receber a prestação».
O direito de repetição do A. contra a aqui R. dependeria, então, de esta conhecer o erro do A. quando recebeu a totalidade da quantia exequenda (em vez de apenas a parte correspondente à divida por ele afiançada).
A propósito, deste artigo explicam Pires de Lima e Antunes Varela ([10]): «Aqui supõe-se o conhecimento de que a dívida era alheia; mas julgou-se ter a obrigação de a cumprir. O autor da prestação estava convencido erroneamente, por ex., de que era fiador e principal pagador, quando não tinha afiançado aquela dívida, mas outra. Neste caso, estando o credor de boa fé, a pretensão do autor só pode dirigir-se ao devedor».
Também Almeida Costa ([11]) menciona a situação da pessoa que sabe ser a dívida alheia e que efectua o cumprimento na convicção errónea de estar a isso obrigada para com o devedor, dando como exemplo o autor da prestação supor-se fiador e principal pagador e dizendo que em tais casos só existe direito de repetição contra o credor se este conhecia o erro ao receber a prestação.
Todavia, não será uniforme o enquadramento no art. 478 do CC da situação de o autor da prestação estar convencido erroneamente de que era fiador e principal pagador, quando não tinha afiançado aquela dívida.
Assim, refere a propósito Menezes Leitão ([12]) poder ocorrer uma situação de enriquecimento sem causa no âmbito da fiança, sendo que na «hipótese de faltar a relação de fiança e consequentemente qualquer relação entre o credor e o fiador a doutrina alemã é unânime: o pretenso fiador deve exigir a restituição directamente do seu pretenso credor, independentemente da existência ou não da dívida principal. Entre nós poderia questionar-se a aplicação neste caso do art. 478.º, nos termos do qual, caso existisse a obrigação, o pretenso fiador deveria exigir antes a restituição do devedor, só tendo direito de repetição contra o credor se este conhecesse o erro quando o fiador executou a prestação. Não parece, porém, que esta norma seja aplicável ao caso em análise. O seu pressuposto é a convicção de quem realiza a prestação de estar obrigado a fazê-lo perante o devedor e quem pretensamente presta uma garantia julga estar pessoalmente obrigado perante o credor (art. 627.º, nº 1 C.C.), pelo que, uma vez que visa cumprir em relação a ele uma obrigação é também dele que deve exigir a restituição (art. 476.º, nº 1 C.C.)».
Ora, parece-nos ser esta a perspectiva adequada de encarar a situação - faltando a relação de fiança, embora existindo a obrigação principal, não estaremos perante a situação desenhada no art. 478 do CC que pressupõe encontrar-se o solvens na convicção errónea de estar obrigado para com o devedor a cumprir a obrigação (obrigação que é alheia). Quem pretensamente satisfaz uma garantia julga estar pessoalmente obrigado perante o credor, consoante decorre do nº 1 do art. 627 do CC.
Seria ao credor, nos termos enunciados, que deveria ser exigida a restituição.
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IV – 5 - Aproximemo-nos mais da factualidade apurada.
Provou-se que contra “B” e “C”, bem como contra o ora A. intentou a ora R. uma acção executiva para obtenção de pagamento de dois créditos de que era detentora, sendo aqueles “B” e “C” devedores de ambos os mencionados créditos e o A. fiador tão só de um deles. Todavia, no âmbito dessa execução, parte do vencimento do A., como médico do Hospital …, em ..., foi penhorado para pagamento da totalidade da quantia exequenda, abrangendo as duas dívidas, sem que do acto de penhora constasse a discriminação de cada uma das dívidas. Envergonhado com os comentários na sequência daquela penhora, o A. pretendeu pagar a dívida pela qual era responsável e que permitira a penhora de parte do seu vencimento. A R. apresentou como dívida do A. a quantia de 13.904.880$00 (€ 69.357,25) emitindo as duas notas de débito juntas aos autos, tendo de imediato, o A. pago à R. a quantia por esta exigida de 13.904.880$00, como sendo da sua responsabilidade para pôr termo à execução e à penhora do seu ordenado. A informação foi prestada pelos funcionários da R. depois de o A. comunicar que pretendia fazer cessar a penhora do seu vencimento como médico do Hospital …, que lhe vinha trazendo alguns constrangimentos, tendo o A. pago a quantia de 13.904.880$00, na convicção de uma obrigação que era sua, como fiador dos devedores principais, por ter sido aquela quantia que originou a penhora do seu ordenado e ter sido a mesma quantia que os funcionários da R. lhe apresentaram como sendo por si devida.
Assim, o A. sabendo que os co-executados “B” e “C” eram devedores, julgou ter a obrigação de satisfazer a totalidade do valor exequendo (correspondente a duas dívidas) como fiador quando apenas tinha afiançado uma das dívidas e não ambas. É isso que decorre dos factos provados em que resultou demonstrado que o A. pagou a quantia de 13.904.880$00, na convicção de estar obrigado a fazê-lo, como fiador dos devedores principais, por ter sido aquela quantia que originou a penhora do seu ordenado e ter sido a mesma quantia que os funcionários da R. lhe apresentaram como sendo por si devida.
De acordo com o nº 1 do art. 476 do CC «o que for prestado com intenção de cumprir uma obrigação pode ser repetido, se esta não existia no momento da prestação».
A aplicação da previsão do nº 1 do art. 476 do CC dependeria de nos encontrarmos perante o cumprimento de obrigação inexistente (objectivamente indevido), ou seja, de obrigação que não existe nem relativamente ao que a efectua nem a terceiro.
Ora, a situação do fiador envolve a constituição de uma obrigação própria daquele – o fiador é um verdadeiro devedor, ainda que acessório ([13]). Efectivamente, nas garantias pessoais a obrigação tutelada é garantida através de uma nova prestação, pressupondo-se que além daquela primeira exista outra obrigação que visa garanti-la.
Assim, no caso que nos ocupa, a obrigação emergente da fiança inexiste (objectivamente), apenas existindo a obrigação principal – o que nos leva ao enquadramento na previsão do nº 1 do art. 476 do CC.
Dependendo a faculdade de repetir o indevido da intenção de cumprir uma obrigação que inexiste, foi isso que ocorreu no caso dos autos.
Efectivamente, como explica Menezes Cordeiro ([14]) a intenção de cumprir uma obrigação ou animus solvendi deixa-se surpreender pela negativa, já que quem efectue uma prestação sem tal intenção ou tem animus donandi ou visa enganar a pessoa que recebe a prestação ou terceiros. Acrescentando que perante «um cumprimento aferido a uma obrigação, presume-se, nos termos gerais, que ele tem animus solvendi. Quem assim não o entenda, deverá prová-lo.
Deste modo e à luz daquele preceito legal teria o A. direito a receber a quantia de 5.512.450$00.
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IV – 6 - Dispõe o nº 1 do art. 477 do CC que aquele que «por erro desculpável, cumprir uma obrigação alheia, julgando-a própria, goza de direito de repetição, excepto se o credor, desconhecendo o erro do autor da prestação, se tiver privado do título ou das garantias do crédito, tiver deixado prescrever ou caducar o seu direito, ou não o tiver exercido contra o devedor ou contra o fiador enquanto solventes».
Aqui «o terceiro, quando realiza a prestação alheia, não visa efectuar uma prestação ao devedor através de um pagamento ao seu credor, ao contrário do que acontece na hipótese do art. 478.º, mas antes cumprir uma obrigação própria que julga erradamente existir» ([15]). São casos em que a definição do fim da prestação é efectuada em relação ao credor; o prestante terá direito à restituição uma vez que o fim visado com a sua prestação (a extinção da sua obrigação) não foi atingido, tendo antes se verificado a extinção de uma obrigação alheia, o que não era o fim prosseguido.
A apelante aproxima a situação retratada nos autos desta disposição legal, mas, pelo que resulta do que acabámos de expor, não se nos afigura ser esta a perspectiva correcta – mais do que cumprir uma obrigação alheia, o A. cumpriu uma obrigação inexistente, nos termos supra abordados.
Todavia, só por hipótese de raciocínio, admitamos que assim era – que o A. havia cumprido uma obrigação alheia (efectivamente existente).
A 1ª questão que seguidamente se colocaria é a se o erro do A. foi um erro desculpável.
Ora, não temos dúvidas em afirmar que sim. Não esqueçamos que o vencimento do A., como médico do Hospital …, em …, fora penhorado para pagamento da totalidade da quantia exequenda, abrangendo as duas dívidas (também aquela pela qual o A. não era responsável), sem que do acto de penhora constasse a discriminação de cada uma das dívidas; e que a R. apresentou como dívida do A. a quantia de 13.904.880$00 (embora emitindo as duas notas de débito juntas aos autos). É neste contexto, na sequência da informação prestada pelos funcionários da R., que o A. paga a quantia de 13.904.880$00, na convicção de estar sujeito àquela obrigação, como fiador dos devedores principais, por ter sido aquela quantia que originou a penhora do seu ordenado e ter sido a mesma quantia que os funcionários da R. lhe apresentaram como sendo por si devida ([16]), não alterando a classificação da situação a circunstância de então terem sido apresentadas ao A. duas notas de débito numa das quais não é feita referência ao fiador bem como a da R., na execução por si intentada, ter apresentado duas escrituras (a do contrato de compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança e a do contrato de mútuo com hipoteca), apenas a primeira com intervenção do A..
Querendo valer-se da verificação das circunstâncias aludidas no nº 1 do art. 477 que tornavam precária a sua posição ([17]) cumpriria à R. demonstrar – para além da ocorrência dessas circunstâncias concretas - que houvera boa fé da sua parte, isto é, que desconhecia o erro do aqui A., o que a mesma não logrou fazer ([18]).
Assim, cai pela base toda a argumentação aduzida a propósito pela apelante.
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IV – 7 - Defende a apelante não haver lugar à restituição por enriquecimento, uma vez que a lei facultava ao A. o direito de recorrer a outros institutos jurídicos que não o do enriquecimento sem causa – por via de acção anulatória do negócio jurídico ou de acção de indemnização pela violação do dever de esclarecimento e informação que o Banco deveria ter prestado correctamente.
Consoante o art. 474 do CC, não há lugar à restituição por enriquecimento «quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento».
Todavia, não tem razão a apelante.
Desde logo não explica qual o negócio que deveria ser anulado. Ora, a questão é que não foi celebrado propriamente um “negócio” entre A. e R. no que ao que ora nos interessa respeita. Mais concretamente, houve um pagamento do A. à R. no valor de 5.512.450$00, sem qualquer acordo anterior - susceptível de ser anulado – que o determinasse. Por outro lado, não parece a apelante referir-se à nulidade do pagamento, sendo que, aliás, não será adequado conceber o cumprimento como constituindo um negócio jurídico, bilateral ou unilateral: o cumprimento é antes «a realização ou efectivação real da prestação devida e, enquanto tal, não tem carácter negocial» ([19]).  
O mesmo se diria no que respeita ao dever de informação e esclarecimento por parte da R. – esclarecimento e informação no âmbito de um negócio jurídico que, como vimos, não foi celebrado? Ou em que outros termos que a apelante não caracteriza?
Os elementos de que dispomos não nos permitem, pois, concluir que a lei facultava ao A. outros meios de ser ressarcido.
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IV – 8 - Sumariamente a apelante fundamenta o abuso de direito num lapso de tempo de quase oito anos que o A. deixou passar para exercer o seu direito, na sequência do pagamento efectuado, contribuindo para a convicção da R. de que o crédito estava pago e a situação resolvida, adoptando posteriormente uma conduta contraditória que quebrou a confiança e a expectativa criada pela sua inércia.
Efectivamente, por um lado refere a apelante que «o A. ao pagar em 13.10.2000 a quantia de 13.904.880$00, correspondente à totalidade da quantia exequenda remanescente, e ao ter deixado passar quase 8 anos para exercer o seu direito, criou nesse lapso de tempo na “Banco”, a convicção de que estavam integralmente ressarcidos os seus créditos o que motivou desde logo ter-se a apelante dado como totalmente paga no processo executivo…»; acentua, todavia, que «uma pessoa que durante um determinado período de tempo, se comporta de determinada maneira mantendo uma posição jurídica geradora de expectativas na outra de que o seu comportamento continuará inalterado, não pode posteriormente adoptar uma conduta contraditória que quebre a confiança e a expectativa entretanto criada pela sua inércia sendo exactamente o caso dos autos, que traduz o abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium»; concluindo que «o apelado com a sua conduta não só criou na apelante a convicção de que a totalidade do pagamento estava efectuado como ainda ao substituir-se ao devedor original extinguiu o direito da “Banco” recuperar o seu crédito por via do processo executivo, e, ao ter deixado permanecer esta situação durante quase 8 anos sedimentou e criou na apelante a convicção de que o problema estava resolvido e a “Banco” integralmente ressarcida».
Vejamos.
 Dispõe o art. 334 do CC que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Trata-se de uma figura correspondente a uma válvula de segurança para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico imperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito conferido pela lei; é genericamente entendido que existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
A proibição de «venire contra factum proprium», impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior, cairá no âmbito do abuso de direito ao corresponder ao exercício de um direito excedendo o titular, manifestamente, os limites impostos pela boa fé – tendo em vista a boa fé objectiva. Pressupõem-se aqui duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo em que a primeira, ou seja o factum proprium é contrariada pela segunda.
A doutrina dominante reconduz o venire contra factum proprium a uma manifestação de tutela da confiança – a sua base legal reside no art. 334 e na boa fé objectiva, passando a sua aplicação pela confiança. Esta permite um critério de decisão: um comportamento não poderá ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas.
Segundo a exposição de Menezes Cordeiro ([20]) na concretização da confiança haverá que considerar, articulando-se entre si nos termos de um sistema móvel:
- Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjectiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;
- Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objectivos capazes de, em abstracto, provocarem uma crença plausível;
- Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efectivo de actividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;
- A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante.
Salientando que o investimento de confiança pode ser sinteticamente explicado como a necessidade de, em consequência do factum proprium a que aderiu, o confiante ter desenvolvido uma actividade tal que o regresso à situação anterior, não estando vedado de modo específico, seja impossível em termos de justiça, manifestando-se aqui a natureza subsidiária da proibição de venire contra factum próprio.
No caso que nos ocupa a apelante reage com base no lapso de tempo que o A. deixou passar para exercer o seu direito, contribuindo (na sua perspectiva) para a sua convicção de que o crédito estava pago e a situação resolvida, e tendo, agora, uma atitude divergente.
Haverá desde logo que salientar que o pagamento pelo A. da quantia de 5.512.450$00 a mais do estava vinculado teve lugar nos termos supra aludidos, para o que contribuiu, aliás, a actuação da R. nesse sentido – o A., por si, não pretendeu pagar uma dívida agindo com o conhecimento de que estava a pagar algo que não devia.
Por outro lado, o A. não deixou propriamente passar quase oito anos para exercer o seu direito: como resultou provado, foi no dia 12-10- 2008, quando o A. consultou o Dr. “D”, advogado, com vista a intentar uma acção judicial para efectivar o seu direito de regresso contra “B” e “C”, que foi informado por aquele ter pago à ré a quantia de 5.512.450$00, sem ter qualquer causa que o justificasse, por estar contratual e legalmente obrigado a pagar apenas a quantia de 8.392.430$00.
Ocorreu aqui um decurso relevante do tempo, com eventuais consequências nocivas para a apelante, mas sem que houvesse conhecimento do direito e da possibilidade de o exercer por parte do A. – daí afigurar-se não poderem ser extraídas quaisquer consequências da sua falta de actuação anterior, na sequência do pagamento indevido que efectuara.
Claro que aqui o “direito” em causa seria aquele que o A. deteria em face da R. e não o inexistente direito de regresso com referência àqueles 5.512.450$00 e que a apelante entende que o A. deveria ter procurado exercer com mais celeridade e diligência contra “B” e “C” ([21]).
Neste contexto, os limites impostos pela boa-fé não foram postos em causa, não ocorrendo abuso de direito.
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IV – 9 – No que aos juros concerne alegou o A. que ao montante de 5.512.450$00 «arrecadado pela R. à custa do ora A., sem causa que legitime, acrescem juros de mora que a R. deverá ser condenada a pagar ao A., que nesta data
se liquidam em €.5.502,21, calculados à taxa de juro civil em vigor, sem prejuízo do disposto na al. d) do artigo 310.º do Cód. Civil».
            A R. impugnou o alegado pelo A., acrescentando, ainda, que «sem embargo e por mera cautela de patrocínio mesmo que se apure que o A. tem direito a repetir o que pagou então estará prescrito o direito ao recebimento de juros sobre o montante pago nos termos consignados no art. 310º alínea d) do C.C.».
            Na sentença foi a R. condenada a pagar juros vencidos no montante de 10.793,00€, calculados à taxa anual de 4%, nos termos do disposto no art. 480-b) do CC «pois não podia ignorar que não tinha o direito de exigir a quantia que o autor pagou indevidamente», bem como os juros vincendos.
            Na apelação interposta a R. defende que os juros seriam devidos tão só desde a sua citação.
Vejamos.
Nos termos do art. 480 do CC o enriquecido passa a responder também pelos «juros legais das quantias a que o empobrecido tiver direito, depois de se verificar alguma das seguintes circunstâncias:
a) Ter sido o enriquecido citado judicialmente para a restituição;
b) Ter ele conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento ou da falta do efeito que se pretendia obter com a prestação».
Ora, ainda que possamos suspeitar que a R. tinha conhecimento da falta de causa do seu enriquecimento desde o momento em que ele ocorreu, tal não se provou nem se poderá inferir com segurança dos factos provados.
Sabemos que a R. apresentou como dívida da responsabilidade do A. para pôr termo à execução a de 13.904.888$00, sendo a informação prestada pelos funcionários da R. depois do A. comunicar que queria fazer cessar a penhora do seu vencimento; sabemos, também, que o vencimento do A. fora penhorado para pagamento da quantia exequenda abrangendo as duas dívidas. Assim, não se afigura existirem elementos suficientes para assegurar o conhecimento da falta de causa do enriquecimento por parte da R..
Deste modo, os juros são devidos apenas desde a citação da R., à taxa anual de 4% (portaria 291/2003, de 8-4).
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, mantendo a sentença recorrida no que concerne à condenação da R. a pagar ao A. a quantia de 27.495,98 € (vinte e sete mil quatrocentos e noventa e cinco euros e noventa e oito cêntimos, ou seja, 5.512.450$00), mas alterando-a no que concerne à condenação em juros, sendo a R. condenada a pagar ao A. juros à taxa legal (4%) desde a citação e até efectivo pagamento.
Custas da acção e da apelação por A. e R. na proporção de 1/5 para 4/5.
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Lisboa, 6 de Outubro de 2011

Maria José Mouro
Teresa Albuquerque                                                                     Isabel Canadas
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[1]              Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil  Anotado», vol. V, pag. 143.
[2]              «Código de Processo Civil, Anotado», II vol., pag. 670.
[3]              Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», 4ª edição, vol. I, pag. 397.
[4]              Pires de Lima e Antunes Varela, «Código Civil Anotado», vol. I, pag. 427; Antunes Varela, obra citada, pags. 401-418.
[5]              «Direito das Obrigações», 5ª edição, I vol. pag. 450.
[6]              Menezes Leitão, «Direito das Obrigações» citado, pags. 414 e seguintes.
[7]              Ver, com exemplos destas situações, Antunes Varela, obra citada, pags. 401-402.
[8]              Um «mero caso particular da figura do enriquecimento sem causa» no dizer de Antunes Varela – em «Das Obrigações em Geral», 4ª edição, vol. I, pag. 428, mas uma modalidade com «uma grande autonomia» na perspectiva de Menezes Cordeiro em «Tratado de Direito Civil Português», II, «Direito das Obrigações», tomo III, pag. 257.
[9]           Como salienta Menezes Cordeiro - obra já aludida, pag. 266 - «potencialmente enriquecidos ficam:
- ou o credor, que surgirá satisfeito, independentemente das áleas que possam atingir o verdadeiro devedor;
- ou o verdadeiro devedor, que verá, sem esforço, efectivado aquilo que a ele competia».
Recordando, embora, que «a prestação efectuada por terceiro é, potencialmente, liberatória, por via do já referido artigo 767.º/1».
[10]             Obra citada, pag. 438.
[11]             «Direito das Obrigações», 5ª edição, pag. 408.
[12]             Em «O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil», Almedina, 2005, pags. 596-597.
[13]             Ver Menezes Leitão, «Direito das Obrigações», vol. II, pags. 325-326.
[14]             Obra citada, pag. 259.
[15]             «O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil», Almedina, 2005, pag. 481.
[16]             Refira-se que a aqui R. quando intentou a acção executiva discriminou as duas dívidas e os respectivos responsáveis, consoante resulta da cópia do requerimento executivo que se encontra a fls. 15-18; posteriormente, quando requereu que fosse realizada penhora sobre o vencimento do ora A. deixou de fazer qualquer destrinça e o Tribunal não cuidou de a acautelar, determinando a penhora nos termos requeridos. Houve, pois, uma sequência de lapsos que culminou com o erro do A. – que, na sequência ocorrida, se afigura desculpável.
[17]          Referimo-nos à privação do título ou das garantias do crédito, à prescrição ou caducidade do direito, ao não exercício contra o devedor enquanto solvente.
[18]             Ao dizer-se «excepto se o credor, desconhecendo o erro do autor da prestação, se tiver privado do título ou das garantias do crédito, tiver deixado prescrever ou caducar o seu direito, ou não o tiver exercido contra o devedor ou contra o fiador enquanto solventes» estamos perante matéria de excepção – art. 342, nº 2, do CC.    
[19]             Ver Calvão da Silva, «Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória», 1987, pags. 96-97. Neste sentido também Júlio Manuel Vieira Gomes em «O Conceito de Enriquecimento, o Enriquecimento Forçado e os vários Paradigmas do Enriquecimento sem Causa», pags. 529 e segs., o qual afirma ser «mais conforme com a natureza do pagamento concebê-lo como “operação material”, em que não parece que devam relvar o erro ou mesmo o dolo.
[20]          Em «Tratado de Direito Civil Português», I, Parte Geral, tomo IV, pags. 292-294.
[21]             Quanto ao exercício do direito de regresso contra “B” e M”C” que levou o A. a consultar um advogado (na sequência do que foi informado de haver pago à R. a quantia a que se reportam os autos sem causa que o justificasse) a ocasião escolhida pelo A. era susceptível de ser influenciada por diversos factores – por ex.,o conhecimento de que aqueles dispunham de bens.