CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário

I – À luz do art.º 12.º n.º 2 do Dec.-Lei n.º 359/91, de 21.9 (regime do crédito ao consumo) o consumidor poderá invocar contra o credor/mutuante o incumprimento do vendedor, se existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio de cooperação.
II – Na situação referida em I verifica-se uma união genética e funcional entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda, que permite ao mutuário resolver o contrato de mútuo no caso de incumprimento do contrato de venda pelo vendedor.
IV – Tendo o mutuário/comprador resolvido o contrato de mútuo por o vendedor não lhe ter entregue o bem vendido e tendo sido clausulado no acordo de cooperação celebrado entre o financiador e o fornecedor que o financiador teria direito a ser reembolsado das quantias mutuadas que porventura tivesse entregue ao fornecedor no âmbito do aludido acordo, caso o fornecimento alvo do financiamento não chegasse a efectuar-se nas condições acordadas, o financiador tem direito a exigir do fornecedor a quantia que lhe entregou na sequência do mútuo que veio a ser resolvido.
(JL)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 11.10.2006 “A” – Instituição Financeira de Crédito, S.A., intentou nas Varas Cíveis de Lisboa acção declarativa de condenação com processo ordinário contra “B”.
A A. alegou, em síntese, que em 4 de Junho de 2002, na sua qualidade de instituição financeira de crédito, celebrou com o R., empresário em nome individual que se dedica à comercialização de veículos automóveis, um contrato, designado por protocolo, no âmbito do qual o R. comprometeu-se a, no exercício da sua actividade, apresentar aos seus clientes os produtos financeiros da A., destinados à aquisição de bens e/ou serviços fornecidos pelo R.. No âmbito do aludido contrato ficou ainda acordado que a quantia mutuada, ou seja, a importância emprestada pela A. aos clientes do R. para a aquisição dos seus produtos e/ou serviços, seria transferida directamente para a conta de depósitos à ordem indicada pelo R.. Em Maio de 2005 o R., no exercício da sua actividade comercial, vendeu a “C”, seu cliente, um veículo automóvel marca AUDI, que a A. identifica, que era um veículo importado e ainda não legalizado em território português. O R. apresentou ao seu cliente as condições de financiamento oferecidas pela A., tendo o aludido cliente aceitado celebrar um contrato de crédito com a A., datado de 31.5.2005, nos termos do qual a A. concedeu àquele crédito no valor de € 21 566,68, correspondendo € 21 000,00 à parte do preço que foi financiado e € 566,68 a custos fiscais e de seguro obrigatório. Ficou acordado que o R. suportaria as despesas de legalização do veículo para ele circular em Portugal, pelo que ao montante transferido para o R. foi deduzido o valor de € 232,00, assim como € 80,00 de comissão bancária. Apesar de ter recebido o referido valor, o R. não entregou ao comprador o veículo que o contrato de mútuo visava financiar. Por esse motivo o comprador resolveu o contrato de compra e venda e bem assim o contrato de mútuo que havia celebrado com a A.. Ora, nos termos do contrato que a A. havia celebrado com o R., o R. ficava obrigado a efectuar a entrega dos bens nos prazos acordados com os respectivos clientes e caso o fornecimento do bem não fosse efectuado nas condições previstas, a ora A. ficava autorizada a debitar a conta titulada pelo R. pelo valor dos créditos eventualmente efectuados na conta do R. e relativos ao financiamento da aquisição do bem em causa. Pelo exposto o R. constituiu-se na obrigação de devolver à A. a quantia que por esta lhe havia sido transferida, acrescida de juros vincendos desde a data da citação do R., à taxa legal em vigor, até integral pagamento.
A A. terminou pedindo que o R. fosse condenado a pagar à A. a quantia de € 20 688,00, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento.
Em 29.11.2006 o R. contestou, alegando, em síntese, o seguinte: o R. conhecia o invocado protocolo, mas não o assinou, desconhecendo em que termos foi assinado o mesmo. No protocolo supostamente assinado pelo R., este não se obrigou a só apresentar os produtos da “A” na aquisição de veículos que fossem da propriedade do R. ou que estivessem localizados no seu stand. O R. não vendeu a “C” um automóvel de marca AUDI, mas sim um produto da “A”, um crédito ao consumo para aquisição da referida viatura. O veículo em causa era propriedade de “D”, que o vendeu a “C” e lhe entregou o veículo, com a advertência de que enquanto decorresse o processo de legalização o veículo não poderia circular em circunstância nenhuma, ao que este acedeu. Porém em 23.5.2005 o veículo foi apreendido pela GNR quando o “C” o conduzia na via pública, por esta não estar legalizada, ficando o “C” seu fiel depositário. Posteriormente o veículo foi legalizado, concluindo-se o respectivo processo em 29.6.2006, estando o despachante que tratou desse processo a aguardar que o comprador levante os respectivos documentos. O R. entregou o valor da viatura ao vendedor, após este ter entregue a viatura ao comprador. Nos termos da cláusula 9.ª do protocolo, a A. deveria ter procurado informar-se junto do R. acerca da situação relativamente ao crédito efectuado, antes de ter intentado a presente acção judicial.
O R. concluiu pela improcedência da acção e sua consequente absolvição do pedido.
A A. replicou, dizendo que a assinatura constante no protocolo é de uma trabalhadora/comissionista do R., que desempenha as suas funções sob as ordens do R., e aquando da assinatura do protocolo estava também presente o irmão do R., que com ele colabora no stand do R.. Mais reafirmou que o veículo foi vendido pelo R. ao referido “C”. Imputou ao R. litigância de má fé, requerendo a respectiva condenação em multa e indemnização.
Emitiu-se saneador tabelar e procedeu-se à selecção da matéria de facto assente e controvertida.
Em 11.10.2007 o R. apresentou nos autos articulado superveniente e requereu a intervenção principal provocada de “D” e de “C”. Para tal alegou que recentemente lhe chegara ao conhecimento que em 19.9.2006 “C” vendera o automóvel sub judice a “E”, conforme inscrição do registo automóvel. Por outro lado o vendedor “D” recebeu do R. a quantia que a A. creditara na conta do R.. No caso de vir a ser condenado o R. terá direito a ser reembolsado tanto pelo vendedor como pelo comprador do veículo.
O A. opôs-se à admissão do articulado superveniente e do chamamento.
Por despacho de 23.6.2008 foram indeferidos liminarmente o articulado superveniente e o requerimento de intervenção provocada.
Realizou-se audiência de julgamento, com gravação dos depoimentos, e a final o tribunal proferiu decisão sobre a matéria de facto.
Em 20.9.2010 foi emitida sentença em que se julgou a acção totalmente procedente, condenando-se o R. conforme peticionado e se julgou ainda verificada a litigância de má fé por parte do R. e em consequência condenou-se este a pagar a multa de cinco UC e igual montante à A. a título de indemnização.
O R. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1.ª O acordo – protocolo – referido nos autos não é eficaz relativamente ao recorrente, porquanto não o assinou nem outorgou poderes de representação voluntária a “F” que o subscreveu, nem o ratificou.
2.ª Os poderes de representação para a celebração de um acordo reduzido a escrito devem constar de procuração reduzida a escrito.
3.ª A sentença ao valer-se do direito contido no artº 1178, C.C., mandato com poderes de representação, enferma do mesmo vício, uma vez que ao caso aplicam-se também as regras da representação, que foram preteridas.
4.ª A sentença em mérito viola o disposto nos artigos 258º, 262º, 269º e 1178º, todos do C.C..
5.ª A autora só pode responsabilizar a pessoa que agiu sem poderes de representação, ao abrigo do disposto no artigo 227, C.C..
6.ª O tribunal define o direito e aplica as normas jurídicas correspondentes aos factos que considera provados – artº 659, nº 2, COC, mas não as pode aplicar alternativamente, porque só há um direito prevalecente para cada caso.
7.ª A autora não invoca o enriquecimento sem causa nem alega factos que com a necessária suficiência possam caracterizar cumulativamente os requisitos previstos no artº 473º, nº 1, C.C..
8.ª O tribunal não pode decidir a acção a coberto do instituto do enriquecimento sem causa, por carência de alegação de factos, mas também porque este tipo de acção tem natureza subsidiária, nos termos do artigo 274º, C.C., só podendo o empobrecido socorrer-se dela quando a lei não faculte outros meios de defesa.
9.ª A autora podia socorrer-se de uma acção contra o mutuário “C”, por incumprimento do contrato de mútuo, assim como pode agir sobre a subscritora do acordo, nos termos do artigo 227º, C.C., bem como contra o réu pelo eventual incumprimento de obrigações contratuais (o que não se aceita), pelo que a sentença viola o disposto no artº 474, C.C..
10.ª A apreciação do mérito da presente causa pressupõe a solução prévia da questão relativa ao contrato de mútuo celebrado entre a autora e o “C”, isto é que o direito à resolução, matéria que não foi ainda decidida, pelo que a sentença viola o artigo 96º, CPC.
11.ª Porém, nos autos há uma certeza factual que o tribunal ignora que é a entrega da viatura ao “C”, pois que foi autuado enquanto a conduzia na via pública, que de imediato foi apreendida e designado fiel depositário, tendo-a vendido a terceiros.
12.ª O tribunal julgou incorrectamente os factos constantes da fundamentação de facto da sentença expressos no nº 13, porque os documentos constantes dos autos a fls. 36, 42 e 41 e a certidão emitida pela Conservatória do Registo Automóvel de Braga, apresenta nos autos como um requerimento em 11.10.2007, permite concluir que o réu entregou a viatura ao autos, devendo por isso modificar-se tal decisão sobre a matéria de facto – artigo 712, nº 1, al. b), CPC.
13.ª O recorrente não agiu com má fé, porque não mente nem deturpa a verdade, apenas não conseguiu fazer prova integral dos factos que com sinceridade coloca ao tribunal.
14.ª O recorrente vendeu a viatura Audi A4 ao “C”, que a fruiu e vendeu a terceiros, devidamente legalizada, mas não pagou ao credor mutuante o valor que lhe emprestou para a compra e no meio da confusão não paga a ninguém e o recorrente corre o risco de ficar sem a viatura (situação consumada) e sem o dinheiro, acabando ainda condenado como litigante de má fé. Má fé não há da parte do recorrente, pelo que a douta sentença viola o disposto no artigo 456, CPC.
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO
As questões a apreciar nestes autos são as seguintes: eficácia do contrato invocado pela A., face ao R.; impugnação do n.º 13 da fundamentação de facto da sentença; cognoscibilidade do instituto do enriquecimento sem causa; omissão da apreciação da validade da resolução do contrato de mútuo pelo mutuário; litigância de má fé.
Primeira questão (eficácia do contrato invocado pela A., face ao R.)
Pelo tribunal a quo foi dada como provada a seguinte
Matéria de Facto
1. O réu é um empresário em nome individual e dedica-se à comercialização de veículos automóveis (al. A) dos Factos Assentes);
2. A autora é uma instituição de crédito, cujo objecto social se traduz na prática de operações permitidas aos bancos, com excepção da recepção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis (resp. ao n.º 1 da BI);
3. Em data anterior ao ano de 2003, na presença do réu, “F”, apresentada à A. como a sua funcionária que trataria dos assuntos relacionados com crédito automóvel, subscreveu, sobre um carimbo que identifica o réu, um protocolo no âmbito do qual o subscritor se obrigou a, no exercício da sua actividade, apresentar aos seus clientes os produtos financeiros da autora, destinados à aquisição de bens e/ou serviços que forneça (n.º 2 da BI);
4. No âmbito do contrato referido, ficou ainda acordado que a quantia emprestada pela autora aos clientes do réu para a aquisição dos seus produtos e/ou serviços seria transferida directamente para a conta de depósitos à ordem indicada pelo réu (n.º 3 da BI);
5. Em Maio de 2005, o réu no exercício da sua actividade comercial vendeu a “C”, seu cliente, um veículo automóvel de marca audi, modelo A4 avant, versão 1.9 turbo diesel, pelo preço de 28.000 euros (n.º 4 da BI);
6. O veículo automóvel de marca audi, modelo A4 avant, versão 1.9 turbo diesel, de matrícula 0000 NW 00 era um veículo importado (al. B));
7. À data da compra o referido veículo ainda não se encontrava legalizado em território português (al. C));
8. O réu apresentou ao seu cliente as condições de financiamento oferecidas pela autora, com destino a parte do financiamento para a aquisição do bem supra referido, tendo o identificado cliente aceite celebrar um contrato de crédito com a autora (al. D));
9. Por documento particular datado de 31 de Maio de 2005, a autora emprestou a “C” o valor de 21.556,68 euros (al. E));
10. O valor do crédito concedido corresponde à parte do preço cujo financiamento foi solicitado - 21.000.00 euros, bem como os custos fiscais e de seguro obrigatório no valor de 566,68 euros (al. F));
11. Uma vez que o veículo em causa carecia de ser legalizado para circular em território nacional, ficou acordado que o réu suportaria tais despesas, pelo que o valor correspondente aos custos de legalização, 232 euros e de comissão bancária 80 euros, foram deduzidos ao valor transferido para o réu (al. G));
12. A quantia de 20.688.00 euros foi creditada na conta de depósitos à ordem de que o réu é titular (al. H));
13. O réu não entregou a viatura referida a “C” (al. I));
14. O comprador “C” pôs termo ao contrato de crédito celebrado com a autora e de compra e venda celebrado com o réu (n.º 5 da B I);
15. “C” foi autuado pela GNR do posto territorial da Póvoa do Lanhoso em 23.05.05, enquanto conduzia a viatura na via pública (n.º 8 da BI);
16. Pelo facto de a viatura ainda não estar legalizada, a mesma foi de imediato apreendida bem como os respectivos documentos, tendo o “C” sido designado fiel depositário do mesmo (n.º 10 da BI).
O Direito
O princípio da autonomia da vontade pressupõe que em regra cabe tão só a cada um dispor dos seus direitos, adquirir direitos ou vincular-se a obrigações. Este requisito de validade dos contratos, legitimidade directa (cfr. Galvão Telles, “Manual dos contratos em geral”, 4.ª edição, 2002, Coimbra Editora, pág. 400 e seguintes), conexiona-se com o da legitimidade indirecta: o poder que alguém tem de celebrar actos jurídicos reguladores de interesses titulados por terceiros (cfr. Galvão Telles, obra citada, páginas 402 e 403). Tal poder, que frequentemente se manifesta através da chamada representação, pode ter origem legal ou voluntária. Nesta última, que ora nos interessa, o representante age perante terceiro em nome de outrem (o representado), produzindo-se na esfera jurídica deste os efeitos do negócio celebrado (o negócio representativo), com base num poder que emana de um negócio jurídico unilateral do interessado/representado, designado de procuração. Com efeito, exarou-se no n.º 1 do art.º 262.º do Código Civil que “diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.” O mecanismo da representação é enunciado no art.º 258.º do Código Civil: “o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”
Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (n.º 2 do art.º 262.º do Código Civil). Não havendo norma legal que a tal obste, a declaração de procuração pode ser expressa ou tácita (art.º 217.º do Código Civil). O silêncio pode valer como declaração negocial, quando esse valor lhe for atribuído por lei, uso ou convenção (art.º 218.º do Código Civil).
Se a pessoa que celebra um negócio em nome de outrem não tem poderes de representação, o negócio é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado (n.º 1 do art.º 268.º do Código Civil).
A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração (n.º 2 do art.º 268.º do Código Civil) e também poderá ser tácita, se não houver norma que o impeça.
Embora com elas não se confunda, frequentemente a procuração conexiona-se com relações existentes entre o procurador e o representado, como as derivadas do contrato de mandato, do contrato de trabalho, do contrato de prestação de serviço, do contrato de sociedade.
Assim, estipulava-se no art.º 5.º n.º 3 do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, em vigor à data da celebração do invocado “protocolo” (regime aprovado pelo Dec.-Lei n.º 49408, de 24.11.1969) que “quando a natureza da actividade para que o trabalhador é contratado envolver a prática de negócios jurídicos, o contrato de trabalho implica a concessão àquele dos necessários poderes, salvo nos casos em que a lei expressamente exigir um instrumento especial.”
O contrato que a A. alega ter celebrado com o R. foi formalizado através do escrito constante a fls 20 a 23 dos autos. Aí se exarou que o contrato é celebrado entre a ora A. e o ora R.. No espaço destinado à assinatura do “segundo outorgante” (o Réu), consta, sobre um carimbo que identifica o Réu, uma assinatura com um nome feminino.
Provou-se que a dita assinatura foi aposta no documento por “F”, na presença do R., a qual foi apresentada à A. como a funcionária do R. que trataria dos assuntos relacionados com crédito automóvel (n.º 3 da matéria de facto). Ora, se tudo assim se passou na presença do R. e este não manifestou qualquer discordância, é conforme aos usos da vida em sociedade concluir, do seu silêncio, que o R. dava a sua aquiescência à celebração do aludido contrato, reconhecendo à aludida trabalhadora poderes para o vincular nos termos aí exarados. O referido contrato não estava sujeito a qualquer forma especial, pelo que poderia ser meramente verbal (art.º 219.º do Código Civil). O facto de ter sido reduzido a escrito não obstava a que a procuração fosse meramente verbal (cfr. Galvão Telles, obra citada, pág. 422 e 423, nota 391; STJ, acórdão de 06.7.2011, processo 544/10.6T2STC.S1, Internet, dgsi.pt).
De resto, o R. deu seguimento ao contratado, dando a conhecer os produtos financeiros da A., conforme se deduz dos n.ºs 8 a 12 da matéria de facto. Tal valeria como tácita ratificação do contrato.
Conclui-se, pois, que o contrato referido no n.º 3 da matéria de facto obriga o R., improcedendo nesta parte o recurso.
Segunda questão (impugnação do n.º 13 da fundamentação de facto da sentença)
Face à data em que a acção foi proposta (11.10.2006), a este processo aplica-se o regime anterior ao introduzido pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24.8 - art.º 11.º do Dec.-Lei n.º 303/2007).
A modificabilidade da decisão de facto pela Relação está regulada no art.º 712.º do Código de Processo Civil. Nos termos desse artigo, a Relação pode alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Nos termos do art.º 690.º-A do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
O apelante entende que não deveria ter sido dada como provada a matéria constante do n.º 13 da matéria de facto, que tem o seguinte teor:
O réu não entregou a viatura referida a “C””.
O apelante sustenta tal discordância no facto de se ter provado que “”C” foi autuado pela GNR do posto territorial da Póvoa do Lanhoso em 23.05.05, enquanto conduzia a viatura na via pública” (n.º 15 da matéria de facto), tendo a mesma sido apreendida por não estar legalizada, ficando o “C” seu fiel depositário (n.º 16 da matéria de facto) e, sobretudo, no teor dos documentos juntos a fls 36, 42, 41 dos autos e na certidão do registo automóvel junta a fls 172 a 179.
Vejamos.
O documento de fls 36 é cópia do auto de notícia da GNR onde se dá conta que em 23.4.2005 “C” fora surpreendido a conduzir uma viatura de matrícula francesa, que afirmou ter comprado em França e que ainda não estava legalizada em Portugal, sendo certo que o referido condutor residia em Portugal, pelo que o veículo foi apreendido. A fls 41 encontra-se fotocópia de um requerimento dirigido à Direcção-Geral de Viação, com a assinatura “C”, pedindo a concessão de matrícula e a emissão de livrete em relação ao carro sub judice, requerimento esse com data de entrada na DGV de 03.7.2006. Nesse requerimento consta, como matrícula atribuída ao veículo, em 28.6.2006, a matrícula 00-BU-00.
A fls 42 consta fotocópia de duplicado de uma Declaração Aduaneira de Veículo – DAV, com data de 29.4.2005, atinente ao veículo dos autos, no qual se identifica como “adquirente/proprietário” “C” e como “declarante/representante” “G”, se indica como “data da transmissão” 04.04.2005 e como data de emissão de matrícula 28.6.2006.
Na certidão do registo automóvel referida consta que a propriedade do veículo sub judice está registada em nome de “H”, pela apresentação 04154, de 09.4.2007, sendo da mesma data a inscrição de reserva de propriedade sobre o veículo a favor de B… Crédito SFAC SA. A certidão, datada de 5.7.2007, vem acompanhada de cópias certificadas de documentos que serviram de base aos registos, e que são os seguintes:
Requerimento para registo inicial de propriedade, com o carimbo “Agência M…” e a assinatura “C”, no qual se indica como proprietário “C” e tem data de apresentação 19.9.2006 (fls 173);
Duplicado da DAV supra referida (fls 174);
“Requerimento – declaração para registo de propriedade, Contrato verbal de compra e venda”, com o carimbo “Agência M…” e as assinaturas “E”, como “comprador” e “C” como “vendedor”, com data de apresentação 19.9.2006, no qual se declara que a viatura ora sub judice foi efectivamente vendida pelo vendedor em 19.9.2006 (fls 175 e 176);
“Requerimento – declaração para registo de propriedade, Contrato verbal de compra e venda”, com as assinaturas “I”, na qualidade de procuradora de B… Crédito SFAC SA, como “comprador” e “E” como “vendedor”, no qual se declara que a viatura ora sub judice foi efectivamente vendida pelo vendedor em 23.3.2007 (fls 177 e 178);
“Requerimento de registo de propriedade, Contrato verbal de compra e venda com reserva de propriedade”, com as assinaturas “H”, como “comprador” e “I”, na qualidade de procuradora de B… Crédito SFAC SA, como “vendedor”, com data de apresentação 09.4.2007, no qual se declara que a viatura ora sub judice foi efectivamente vendida pelo vendedor em 23.3.2007 e haverá reserva de propriedade até que o comprador pague ao vendedor a quantia de € 23 418,51 (fls 178 e 179).
Antes de mais, cabe notar que a matéria do n.º 13 da matéria de facto foi dada como assente, sem reclamação, logo aquando da prolação do despacho saneador. Efectivamente, tendo a A. alegado que o R. não entregara o dito veículo ao comprador (art.º 16.º da p.i.), o R. confirmou tal facto (art.º 10.º da contestação), acrescentando, porém, que não o entregara porque tal não lhe incumbia mas sim a “D”, que fora quem vendera o automóvel a “C” e o entregara a este. Ora, os quesitos 6.º e 7.º, onde se perguntava se o dono do veículo referido era “D”, que o vendera a “C”, e se a viatura fora entregue por “D” a “C”, tiveram a resposta de “não provado.”
Resposta, diga-se, não impugnada pelo apelante.
Assim como não foi impugnada pelo apelante a resposta positiva dada ao quesito 4.º, no qual se inquiria se “em Maio de 2005, o réu no exercício da sua actividade comercial vendeu a “C”, seu cliente, um veículo automóvel de marca audi, modelo A4 avant, versão 1.9 turbo diesel, pelo preço de 28 000 euros”.
E também não foi impugnada a resposta negativa dada ao quesito 11.º, onde se perguntava se “quando o “C” assinou a proposta de crédito à “A” já estava na posse do veículo pelo menos desde 23.4.2005?
Os documentos indicados pela apelante apresentam o Sr. “C” como proprietário transitório do veículo sub judice, mas nada provam quanto à efectiva posse material do automóvel por parte deste. De resto, a A. não nega que o veículo foi vendido ao referido “C”, apenas afirma que o veículo não chegou a ser-lhe entregue.
De notar, também, que a totalidade dos documentos supra referidos em que “C” é apontado como proprietário do veículo (à excepção do auto de notícia da GNR) têm datas bem posteriores à da declaração de rescisão do contrato de mútuo por “C”, a qual data de 16.6.2005 (cfr. doc. 5 junto com a p.i., a fls 27, e aviso de recepção que se lhe segue).
Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto ficou escrito, com interesse sobre esta questão, o seguinte:
O depoimento de “J” mostrou-se, no geral, pouco isento e totalmente interessado na questão uma vez que o depoente está envolvido no negócio do stand de automóveis, pelo que não se apresentou suficientemente credível ao tribunal, de forma a infirmar os depoimentos prestados por outras testemunhas ouvidas.
A resposta ao artigo 5° assentou na análise do doc. 5 junto com a petição inicial e no depoimento da testemunha “C” que confirmou o envio da referida carta, com intenção de resolver o contrato de crédito por não lhe ter sido entregue a viatura, o que o fez desistir do negócio.
A testemunha “K” confirmou a recepção da carta pelos serviços da Autora, tendo a mesma considerado válida a resolução atentos os fundamentos invocados.
As respostas negativas aos artigos 6° e 7° resultaram da ausência de prova que confirmasse esta factualidade. Na verdade, como ficou dito, provou-se que quem vendeu o veículo foi o Réu, ainda que com a mediação de um terceiro (“D”). Por outro lado, não logrou o Réu provar a entrega da viatura ao comprador, nem a advertência de “D”.
A única testemunha com conhecimento directo destes factos, o próprio “C” afirmou que a viatura lhe foi emprestada para que a experimentasse, numa sexta-feira à noite, dia 23-05-05, com obrigação de a devolver na segunda-feira seguinte. Nenhuma advertência ou aviso lhe foi feito por “D”.
As respostas aos artigos 8° e 10° assentaram na análise do documentos de fls. 86 e 87, confirmado em audiência de julgamento pelo próprio autuante, “L”, GNR e pelo autuado, “C”.
A resposta negativa ao art. 11 ° resultou da inexistência de prova que confirmasse esta factualidade. O próprio “C” negou que tivesse alguma vez tido a posse do veículo, tendo-o apenas experimentado na referida noite. Depois disso não voltou a ter contacto com a viatura, não obstante durante aquele mês ter mantido interesse na mesma, tendo assinado, designadamente, o contrato de crédito.
A resposta negativa ao artigo 12.° resultou mais uma vez da ausência de prova, não se tendo provado que a venda tenha sido sequer feita por uma terceira pessoa.”
Sobre a matéria questionada pelo apelante foi pois produzida não só prova documental como também testemunhal, que o apelante não escrutinou e que foi tida em consideração pelo tribunal a quo para ajuizar sobre a matéria de facto.
Uma vez que o apelante não trouxe à liça o teor dos depoimentos prestados, vedado ficou a esta Relação fiscalizar a apreciação que deles foi feita pela primeira instância, sendo certo que como supra se viu nos autos não há elementos documentais que permitam, por si só, contrariar a resposta impugnada pelo apelante. Note-se que a circunstância de “C” ter sido autuado pela GNR quando conduzia o veículo foi explicada, na audiência de julgamento, segundo consta na fundamentação da decisão de facto, com um simples empréstimo para o comprador experimentar a viatura, o que desdiz a invocada (pelo apelante) entrega do veículo (a título definitivo) ao referido “C”.
Nesta parte, pois, o recurso também improcede.
Terceira questão (cognoscibilidade do instituto do enriquecimento sem causa)
Provou-se que em Maio de 2005 o R., no exercício da sua actividade de comercialização de automóveis, vendeu um determinado veículo a “C”, pelo preço de € 28 000,00 (n.º 5 da matéria de facto). Para adquirir a aludida viatura “C” obteve financiamento da A., que no exercício da sua actividade de instituição de crédito lhe emprestou para aquele efeito a quantia de € 21 556,68, correspondendo € 21 000,00 à parte do preço que foi financiada e € 566,68 a custos fiscais e de seguro (n.ºs 8, 9 e 10 da matéria de facto). A quantia mutuada foi creditada na conta bancária titulada pelo R., deduzida de custos de legalização e de comissão bancária (n.ºs 11 e 12 da matéria de facto). O financiamento referido ocorreu no âmbito de um contrato que havia sido celebrado entre a A. e o R., nos termos do qual o R., no exercício da sua actividade, apresentaria aos seus clientes os produtos financeiros da A. destinados à aquisição de bens ou serviços fornecidos pelo R. (n.ºs 3, 4, 8 da matéria de facto). Nos termos desse contrato (n.º 2 da cláusula oitava), “caso o fornecimento do bem e/ou serviço não seja efectuado nas condições previstas, fica desde já a “A” autorizada a debitar a conta de Depósitos à Ordem referida na Cláusula sétima do presente Protocolo, pelo valor dos créditos eventualmente já efectuados na conta da Segunda Outorgante e relativos ao financiamento da aquisição do bem e/ou serviço em causa.”
À data dos factos sub judice o regime do crédito ao consumo estava regulado pelo Dec.-Lei nº 359/91, de 21.9 (posteriormente revogado e substituído pelo Dec.-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho), sendo esse o aplicável à situação em apreço (art.º 12.º n.º 1 do Código Civil).
O contrato celebrado entre a A. e “C”, junto aos autos (doc 3 da petição inicial, fls 25 dos autos), constitui o que a alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º do DL n° 359/91, de 21/9 apelida de "contrato de crédito" e define como sendo "o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante".
No caso a que se reportam estes autos, o aludido escrito reconduziu-se a um contrato de mútuo, que tinha em vista financiar o pagamento de um bem vendido ao consumidor por terceiro (art.º 12.º n.º 1 do Dec.-Lei).
Um dos efeitos essenciais do contrato em causa é a obrigação de o consumidor restituir o valor emprestado acrescido dos respectivos juros, no prazo acordado, como resulta dos arts. 1142.° e 1145.º do Código Civil, 395.° do Código Comercial e 3.º alínea e) do Dec.-Lei nº 359/91, de 21.9. e ainda das respectivas cláusulas (os contratos devem ser pontualmente cumpridos – art.º 406.º n.º 1 do Código Civil).
Por sua vez o R. celebrou com “C” um contrato de compra e venda, ou seja, celebrou um negócio mediante o qual o R. transmitiu para o comprador a propriedade do veículo vendido, constituindo-se o vendedor na obrigação de entregar ao comprador a viatura (incluindo a respectiva documentação – art.º 882.º n.º2, parte final, do Código Civil) e este na obrigação de pagar o respectivo preço (artigos 874.º e 879.º do Código Civil).
Entre estes dois negócios (mútuo e compra e venda) existe um nexo, pelo menos genético, pois o de mútuo foi celebrado para que fosse possível concretizar-se o de compra e venda, ou seja, para que o comprador pudesse pagar o respectivo preço.
A doutrina tem destacado situações em que ocorre uma pluralidade de contratos entre os quais se estabelece um laço de dependência. As partes querem-nos como um conjunto económico, que envolve um nexo funcional. O vínculo de dependência significa que a validade e vigência de um contrato, ou de cada um dos contratos, depende da validade e vigência do outro. Um contrato só será válido se o restante o for; e, desaparecido este, aquele desaparecerá também. Mas em tudo o mais aplicam-se a cada contrato as suas regras próprias. Como exemplo de situações destas, na modalidade de dependência unilateral, costuma apontar-se o caso da entidade patronal que dá de arrendamento uma casa ao trabalhador em atenção a esta sua qualidade (Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1989, Almedina, pág. 71). O arrendamento acha-se subordinado ao contrato de trabalho, pois o vínculo locatício foi estabelecido em consideração do vínculo laboral. Assim, extinto por alguma razão o contrato de trabalho, poderá o senhorio fazer rescindir o arrendamento.
Frequentemente, tal relação de dependência resulta da vontade das partes, devendo apelar-se a esta na determinação da repercussão das vicissitudes de um contrato no outro (Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, tomo I, Lisboa, 1986, pág. 429 e 430; ac. da Relação do Porto, 05.5.2005, internet, processo 0531983). Mas, ao lado da coligação voluntária, casos há em que a ligação entre os dois negócios jurídicos fica a dever-se, “não a uma vontade dos contraentes nesse sentido, mas à existência de uma relação natural entre os dois contratos, que pode ser económica ou teleológica”, situação essa que Pedro Romano Martinez apelida de “coligação necessária” (“Cumprimento defeituoso – em especial na compra e venda e na empreitada”, Almedina, 1994, pág. 466).
Por outro lado, para haver união de contratos não se torna necessária a identidade da totalidade dos respectivos sujeitos, bastando que um deles seja comum aos dois negócios.
As situações de financiamento para consumo são apontadas como exemplo de união de contratos (Pedro Romano Martinez, obra citada, pág. 466; Fernando de Gravato Morais, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Almedina, 2004, pág. 395 e seguintes; Nuno Miguel Pereira Ribeiro Coelho, Revista do Ministério Público, Jul-Set 2005, nº 103, pág. 92 e seguintes; ac. do STJ, 22.6.2005, Col. de Jur. STJ, ano XIII, tomo II, pág. 134 e seguintes). Pedro Romano Martinez, após apontar a fonte de injustiças que implicaria a inoponibilidade ao mutuante da prestação de coisa defeituosa, nomeadamente nos casos em que o preço foi pago ao vendedor pelo mutuante, ficando o adquirente desprovido da possibilidade de usar perante o vendedor da excepção de não cumprimento, defende que, na falta de intervenção legislativa, deve entender-se que há uma coligação entre os contratos de compra e venda e de mútuo quando se verificar que eles estão relacionados na prossecução do mesmo fim, com conhecimento de todas as partes, tratando-se, por conseguinte, de uma união de contratos necessária (obra citada, pág. 466 e 467). “Verificada a existência de uma união de contratos, os defeitos da coisa vendida são indirectamente oponíveis ao mutuante. Assim, sendo requerida a resolução da compra e venda, este pedido vai produzir idêntico efeito no domínio do contrato de mútuo. No caso de ser exigida a redução do preço, e não estando este ainda totalmente pago, o crédito será reduzido na mesma proporção. Por último, sendo feitas valer qualquer uma das pretensões de cumprimento, o comprador mantém a possibilidade de excepcionar o pagamento da sua prestação, notificando o mutuante no sentido de não saldar o preço” (obra citada, pág. 467).
No caso dos autos, provou-se que a origem do mútuo, a razão da sua celebração, foi a pretendida aquisição do automóvel. Esta determinou a data da celebração do contrato de mútuo, o valor da quantia mutuada e o tipo negocial celebrado, sujeito ao regime jurídico do crédito ao consumo, previsto pelo Dec.-Lei n° 359/91, de 21/9. Existe assim entre os dois contratos um nexo de união genética, uma vez que a compra e venda influenciou o contrato de mútuo na sua formação (“união genética”, Fernando de Gravato Morais, obra citada, pág 394; Pedro Romano Martinez, obra citada, pág. 465). Resta apurar se tal união é também funcional, ou seja, se os seus efeitos persistem aquando da execução dos contratos (união ou coligação “funcional”, mesmos autores, respectivamente pág. 465 e 394).
O legislador procurou proteger o consumidor, prevendo que este possa fazer prevalecer junto do financiador certas vicissitudes que afectem o contrato de fornecimento financiado. Por força da lei estabelece-se uma relação de dependência ou nexo funcional entre os dois contratos. Tais mecanismos de protecção, que funcionam independentemente da vontade originária das partes, estão previstos no art.º 12º do Dec.-Lei nº 359/91, de 21/9.
O n.º 1 do aludido preceito reporta-se à vinculação do contrato de compra e venda em relação ao contrato de crédito, consagrando a dependência da validade e eficácia do contrato de compra e venda da validade e eficácia do contrato de crédito.
Ao caso sub judice interessa o n.º 2 do art.º 12.º, o qual regula a vinculação do contrato de crédito ao contrato de compra e venda.
Aí se dispõe que “o consumidor pode demandar o credor em caso de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor desde que, não tendo obtido do vendedor a satisfação do seu direito, se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:
a) Existir entre o credor e o vendedor um acordo prévio por força do qual o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este último;
b) Ter o consumidor obtido o crédito no âmbito do acordo prévio referido na alínea anterior.
Embora a letra da lei apenas se refira à possibilidade de o consumidor demandar o credor, tem-se entendido que, por identidade de razão, o consumidor também poderá invocar o incumprimento do vendedor, contra o credor, a título de excepção, em acção instaurada pelo credor contra ele, consumidor (ac. da Rel. do Porto, de 17.3.2005, internet, processo 0530505; ac. da Rel. Lisboa, de 09.5.2006, internet, processo 1254/2006-1; Fernando de Gravato Morais, obra citada, pág. 95).
Segundo o princípio geral da “repartição desconcentrada do risco”, cada contraente apenas deve ter de suportar o risco das perturbações ocorridas no seio da relação contratual em que se envolve, não sendo razoável sujeitá-lo ao risco da insolvência de parceiros que não escolheu, cuja credibilidade não pôde indagar (Paulo Duarte, “A sensibilidade do mútuo às excepções do contrato de aquisição na compra e venda financiada, no quadro do regime jurídico do crédito ao consumo”, Sub Judice, 2003, nº 24, pág. 62).
A solução prevista no n.º 2 do art.º 12.º do Dec.-Lei nº 359/91, de 21/9, provoca um nítido desvio àquele princípio: o mutuante, além de ter de suportar os efeitos de uma vicissitude de um contrato do qual não é parte, corre o risco de, em caso de insolvência do vendedor, nunca mais receber as prestações de reembolso sobrantes (Paulo Duarte, artigo citado, pág. 62). Tal desvio será, porém, razoável, quando entre o credor e o vendedor existe uma relação de colaboração planificada, uma relação suficientemente próxima para permitir ao credor avaliar a fiabilidade do vendedor, enfim, quando “se reunirem as condições necessárias para que se possa afirmar que o mutuante assumiu esse risco ao envolver-se numa operação de compra e venda financiada” (Paulo Duarte, texto citado, pág. 62).
O legislador basta-se e simultaneamente exige, pois, que para que o comprador possa invocar perante o credor o incumprimento do contrato de compra e venda por parte do vendedor, que subjacente à celebração do contrato de mútuo esteja um especial acordo entre o credor e o vendedor, uma colaboração planificada entre o financiador e o vendedor, excluindo-se hipóteses de colaborações ocasionais ou em que o contrato de mútuo seja celebrado à margem do plano de colaboração que eventualmente exista.
Ora, no caso dos autos provou-se que o vendedor (o R.) não entregou ao comprador (“C”) o veículo objecto da venda (n.º 13 da matéria de facto), assim incumprindo o contrato de compra e venda. Por esse motivo “C” pôs termo a esse contrato (n.º 14 da matéria de facto).
Uma vez que o contrato de financiamento havia sido celebrado no âmbito do supra referido acordo de cooperação existente entre a A. e o R., o comprador podia, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 12.º do Dec.-Lei n.º 359/91, fazer valer contra o credor o incumprimento do vendedor, o que fez, pondo termo ao contrato de crédito celebrado com a A. (n.º 14 da matéria de facto).
Por sua vez, como se apurou supra, entre a A. e o R. havia sido acordado que a A. teria direito a ser reembolsada das quantias mutuadas que porventura tivesse entregue ao R. no âmbito do aludido acordo, caso não chegasse a efectuar-se nas condições previstas o fornecimento alvo do financiamento.
É pois no quadro legal supra enunciado e, sobretudo, do expressamente previsto no contrato celebrado entre a A. e o R., que assenta o direito da A. ao reembolso da quantia que entregara ao R..
Face ao exposto, é evidente que não cabe nesta acção invocar o instituto do enriquecimento sem causa para fundar a pretensão da A., desde logo atendendo ao seu carácter subsidiário (art.º 474.º do Código Civil). De resto, a A. não aludiu expressamente a tal fundamento jurídico na enunciação do seu pedido e da respectiva causa de pedir.
Pelo que não tinha a primeira instância condições para invocar o enriquecimento sem causa para fundamentar a decisão.
Só que tal não tem qualquer efeito relevante no caso sub judice, pois que a sentença, conforme resulta da sua leitura, assentou primordialmente, e bem, no teor do contrato celebrado entre a A. e o R., à luz do qual se ajuizou que o R. se constituiu na obrigação de restituir a quantia recebida da A., para tal se invocando expressamente o disposto no art.º 406.º do Código Civil. O enriquecimento sem causa foi trazido à liça apenas como forma de reforçar o bem fundado da decisão final, nos seguintes termos: “Ainda que as partes nada tivessem acordado a este respeito, sempre seria idêntica a conclusão a que se chegaria, pelo funcionamento do instituto do enriquecimento sem causa.”
Pelo que nesta parte também não se encontra fundamento para a procedência da apelação.
Quarta questão (omissão da apreciação da validade da resolução do contrato de mútuo pelo mutuário)
O apelante afirma que foi violado o art.º 96.º do CPC, pois a apreciação do mérito da presente causa pressupõe a solução prévia da questão relativa ao contrato de mútuo celebrado entre a A. e “C”, ou seja, da sua resolução, matéria ainda não decidida.
Vejamos.
Nos termos do art.º 96.º n.º 1 do CPC “o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.” O n.º 2 do mesmo preceito explicita que “a decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respectivo, excepto se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia.”
Estão aqui em causa questões que exorbitam do objecto inicial do litígio mas que estão com ele relacionadas, obrigando à sua apreciação, com o consequente alargamento da competência do tribunal para esse efeito (cfr., v.g., Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 180). Fora da previsão deste artigo estão questões que o tribunal deva necessariamente considerar, na lógica do pedido deduzido, a fim de chegar à apreciação deste, isto é, as respeitantes à causa de pedir (Lebre de Freitas, obra citada, pág. 180).
O objecto da presente causa era a pretensão de restituição à A. da quantia que esta havia transferido para o R. em consequência do financiamento concedido a “C”. Um dos pressupostos da procedência dessa pretensão era a resolução do contrato de mútuo por facto imputável ao R..
Essa questão foi apreciada na sentença recorrida, conforme a transcrição que dela se opera:
“(…) nos termos do contrato celebrado entre A. e R., este obrigou-se a devolver à A. o valor dos créditos efectuados na sua conta e relativos a financiamento da aquisição do bem, caso o fornecimento desse bem não fosse efectuado (cfr. cláusula 8.ª, n.º 2 do acordo referido no n.º 3 do ponto II).
No caso vertente, a A. havia creditado na conta do R. a quantia de 20.688.00 euros, na sequência de um contrato de mútuo celebrado com um cliente deste e para financiamento da aquisição de um veículo ao R., sendo certo que o comprador e mutuário, pôs termo ao contrato de crédito celebrado com a autora e ao contrato de compra e venda celebrado com o réu, por este não lhe ter entregue o veículo, portanto, por facto que lhe é imputável.” (sublinhado desta Relação).
É, pois, indiscutível, que o R. está obrigado a restituir a quantia mencionada à A. (cfr. arts. 406.º e 795.º do CC).
Ou seja: por um lado, a aludida questão constituía um dos elementos da causa de pedir da acção, pelo que o tribunal tinha desde logo competência para a apreciar, não sendo caso de aplicação do art.º 96.º do CPC. Por outro lado, o tribunal apreciou a aludida questão.
Não ocorreu, pois, a propalada omissão.
Quinta questão (litigância de má fé)
Na sentença recorrida condenou-se o ora apelante como litigante de má fé com base na seguinte argumentação:
No caso vertente e em face da matéria de facto provada, mostra-se evidente que o R. deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar, negando e alterando a verdade dos factos e mentindo sobre factos pessoais, que não podia, obviamente, desconhecer, e que vieram a provar-se de uma forma linear.
Terá, pois, de concluir-se que o R. litigou de má fé, o que fez, se não dolosamente, pelo menos com grave negligência.
Especialmente reprovável, foi a circunstância de o R. ter, ainda, tentado, na sequência da versão dos factos que arquitectou, envolver terceiros, deduzindo incidente de intervenção provocada e articulado superveniente.
Pelo exposto, entende-se justo e adequado condenar o R. na multa de 5 UC e no pagamento à A. de igual montante, a título de indemnização por litigância de má fé, atendendo ao valor da acção, ao longo período da sua pendência, aos actos processuais que a conduta do R. originou e ao retardamento injustificado da satisfação do direito de crédito da A..
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 456.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A actual redacção do preceito, introduzida pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
No acórdão do STJ, de 11.12.2003 (processo 03B3893 – internet, dgsi-itij), expendeu-se o seguinte:
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprias do estado de direito, são incompatíveis com interpretações apertadas do artº 456º, CPC, nomeadamente, no que respeita às regras das alíneas a e b, do nº 2. Não é, por exemplo, por se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira por má fé. A verdade revelada no processo é a verdade do convencimento do juiz, que sendo muito, não atinge, porém, a certeza das verdades reveladas. Com efeito, a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico - sociológico. Por outro lado, a ousadia de uma construção jurídica julgada manifestamente errada não revela, por si só, que o seu autor a apresentou como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual, de autor ou réu. Há que ser, pois, muito prudente no juízo sobre a má fé processual.”
Concorda-se com a abordagem do referido instituto expressa no citado acórdão, a qual se mostra reiterada igualmente, por exemplo, nos acórdãos do STJ de 28.5.2009 (09B0681), 21.5.2009 (09B0641) e 26.2.2009 (09B0278).
Note-se que o incidente de intervenção de terceiros e a apresentação de articulado superveniente não foram liminarmente indeferidos por serem manifestamente descabidos ou dilatórios, mas por serem extemporâneos. Por outro lado, a prova produzida nos autos, como resulta da análise supra dela efectuada, não foi inteiramente linear, assumindo aspectos contraditórios que obrigaram o tribunal a quo a uma ponderação optativa, que embora racionalmente sustentada, não nos parece que funda com a necessária segurança o severo juízo formulado pela primeira instância no que concerne à litigância do R..
Por essas razões entendemos que a sentença deve ser revogada nesta parte.


DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e consequentemente revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o R. como litigante de má fé, mantendo-se a sentença na parte restante.
As custas da apelação são a cargo do apelante e da apelada, sendo 4/5 a cargo do apelante e 1/5 a cargo da apelada.

Lisboa, 27 de Outubro de 2011

Jorge Manuel Leitão Leal
Pedro Martins
Sérgio Almeida