CONTRATO DE FORNECIMENTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL
Sumário

I - As nulidades da sentença, cujas causas estão taxativamente enunciadas no n.º 1 do art.º 615.º do CPC, não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, pelo que não pode ser reconhecida a nulidade por falta de motivação de factos provados, quando é fundamentada em erro de julgamento, podendo dar lugar, quando muito, ao suprimento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, d), do mesmo Código.
II - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter sempre que se mostre apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
III - O princípio do dispositivo ou da controvérsia, consagrado no n.º 1 do art.º 5.º do CPC, impede que o juiz considere, na decisão, factos essenciais não alegados pelas partes nos articulados.
IV - O direito de resolução, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado, cujo ónus de alegação e prova competem à parte que o invocou.
V - O mesmo pressupõe o incumprimento definitivo de uma prestação contratual e exige gravidade da violação, sendo esta apreciada em função das consequências desse incumprimento para o credor.
VI - O regime das cláusulas contratuais gerais é aplicável ao clausulado inserido num contrato individualizado, cujo conteúdo, previamente elaborado, o destinatário não pode influenciar, pelo que não tem lugar quando a cláusula anulanda está a coberto de uma transacção homologada por sentença transitada em julgado.
VII - O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva.

Texto Integral

Processo n.º 330/16.0T8PRT.P1

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Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1, onde foi instaurada em 6/1/2016.
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Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:
I. Relatório
Café B…, sedeada na Rua …, n.º .., Porto, intentou a presente acção de condenação sob a forma de processo comum contra C…, Lda., com sede em …, …, pedindo que seja decretada “a resolução do contrato de fornecimento junto aos autos, com as alterações introduzidas em 13/01/2013” e que a ré seja condenada a indemnizar a autora “pelos danos sofridos com o incumprimento e com a resolução culposa do contrato, indemnização a liquidar em execução de sentença”.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Em 13/5/2010, celebrou com a ré um contrato de fornecimento de café, por via do qual esta se comprometeu a fornecer à autora, que se obrigou comprar-lhe, para o seu estabelecimento comercial denominado “Café B…”, em regime de exclusividade, os produtos constantes do anexo 1, o qual foi alterado, por transacção homologada, com início em 1/1/2013, passando a ter a duração de 9 anos e ficando o fornecido obrigado a comprar a quantidade total de 6.600 Kg de café C1… ou C2…, a um ritmo mensal mínimo de 60 Kg.
Porém, a partir de 27/11/2015, a ré deixou de fornecer café à autora, por, naquela data, ter sido penhorado o respectivo crédito.
Em virtude disso, teve prejuízos e passou a recorrer a outro fornecedor.

A ré contestou, aceitando os termos do contrato e a sua alteração, bem como a penhora, mas impugnando o restante, dizendo que cumpriu todas as obrigações daquele decorrentes. Deduziu reconvenção, invocando o incumprimento contratual por parte da autora, por não ter adquirido o mínimo de café que se havia comprometido e ter deixado de adquirir qualquer quantidade a partir de 26/11/2015, ficando com o valor do equipamento fornecido no valor acordado de 32.200,00€. Concluiu pela improcedência da acção e pela procedência da reconvenção pedindo que seja “declarado resolvido em 07/01/2016 o contrato de compra exclusiva, celebrado entre as partes, por culpa da reconvinda, sendo condenada a pagar à reconvinte a quantia de 81.550,00€, acrescida de juros de mora comerciais, vincendos, calculados à taxa em vigor no período de contagem, e contados até integral pagamento”.

A autora replicou, negando o incumprimento que lhe é imputado, impugnando todos os factos alegados e os documentos juntos, imputando o incumprimento à ré, pela sua conduta abusiva, e invocando a nulidade de cláusulas, por serem gerais e desproporcionadas aos danos, concluindo pela improcedência da reconvenção e pedindo a condenação da ré como litigante de má fé em multa e indemnização.

Na audiência prévia realizada, foi admitido o pedido reconvencional, foi fixado o valor da causa, foi proferido despacho saneador tabelar, bem como foi identificado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova, sem reclamações.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal, após o que, em 5 de Maio de 2017, foi proferida douta sentença, onde se decidiu:
1. Julgar a presente acção improcedente por não provada e em consequência absolver a Ré do pedido;
2. Julgar o pedido reconvencional procedente por provado e em consequência condenar a Autora/reconvinda no pedido.

Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou as alegações que culminaram nas seguintes conclusões[1]:
“I
ALTERAÇÕES DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FATO:
A - RESPOSTA NEGATIVA:
1. DECISÃO: a alterar: não provado que “a Ré, desde tal data da penhora, recusa-se a fornecer à Autora, o café a que estava vinculada pelo sobredito contrato assinado em 13 de Maio de 2010 e alterado no seu clausulado por sentença transitada em julgado em 14/01/2014, sem ser a presente pagamento.
Alteração: “Não provado que a Autora se tenha recusado a continuar a ser fornecida pela Ré do café e que foi esta que se recusou a prosseguir o fornecimento do café à Autora sem a contrapartida do
pagamento a pronto ou que a Ré tivesse permitido que a Autora pagasse o fornecimento de café à solicitadora de execução”.
2. A resposta negativa cuja alteração se pretende valoriza menos corretamente o depoimento inidóneo do filho do gerente - e que constitui quase declarações de parte, quer pelo vínculo familiar, quer pelo fato de ser trabalhador do Réu -, contraria as declarações acima transcritas da testemunha D…, contraria a carta da Autora de 17 de Dezembro de 2015; e indevidamente não aplica o disposto no artigo 227º, 342º, nº 2, 573º do CC.
B - FATOS 3º, 13º E 15º
3. Alterações à decisão do fato 3º: “Por tal contrato, a Ré obrigou-se a fornecer, com exclusividade, os produtos constantes do anexo 1, nas quantidades e prazo aí referido contra o pagamento a pronto”.
4. A expressão “contra o pagamento a pronto”, carateriza a forma de pagamento contratada e exigível à Autora e resulta da própria confissão do gerente da Ré, E…, em declarações acima já transcritas, e do próprio filho F… (depoimento 00:05:16 a 00:05:42, 00:06:42).
5. Alteração à decisão do fato 13º: a resposta dada em 13º, deverá ser completada com o seguinte fato: “após o envio do email de 9 de Dezembro de 2015 onde se informava que “se verifica a inexistência de material ou stock de café, imprescindível ao normal funcionamento deste estabelecimento comercial”.
6. Esta alteração justifica-se no email junto com a petição inicial, conteúdo da carta da Autora não desmentido, de 17 de Dezembro de 2015, declaração da testemunha G… em 00:04:09, 00:07:16 e 00:07:32, carta da Ré de 15 de Dezembro de 2015 e no fato 14º, cuja resposta é concordante com esta alteração.
7. Alteração à decisão do fato 15: “No dia 10 de Dezembro não foi efetuado qualquer fornecimento de café à Autora, porque a Ré se recusou a fazê-lo sem que tal fornecimento lhe fosse pago a pronto pagamento e não permitiu que o pagamento fosse efetuado à agente de execução”.
8. A alteração pretendida é determinada pela conclusão 1 e 2 anteriores, baseada nas declarações da testemunha H…, acima transcritas, de 00:02:56 a 00:21:59, carta da Autora, cujo conteúdo não foi desmentido, de 17 de Dezembro de 2015, bem como na exegese das declarações do filho do gerente do Réu, e da incorreta não aplicação em termos de ónus de prova dos artigos 227º, 342º, nº 2 e 573º do CC.
9. Alteração à decisão do fato 19: Deverá ser decidido: “Não provado”.
10. À Ré, relativamente a este fato, incumbia-lhe a respetiva prova.
Tal prova, há-de resultar de certidão, do acordo, do depoimento da exequente, carta da exequente, carta da agente de execução, transcrições da troca de correspondência.
11. Porém a fundamentação que a Senhora Juíza a quo elevou a grau de certeza, foram os depoimentos do filho do gerente da Ré, (00:00:00 até 00:54:52) nomeadamente em 00:04:34, que não recebeu qualquer contato direto quer com a solicitadora de execução, quer com a exequente, que lhe permita ter um conhecimento pessoal e direto deste fato. Baseou-se nas instruções dadas por seu pai, gerente da Ré.
12. Da mesma forma, o outro gerente comercial, I…, em declarações de 00:00: a 00:14:35 e, nomeadamente em 00:03:43 e 00:07:37, declarou que transmitiu as instruções dadas pelo senhor E… (00:07:21), não declarando qualquer conhecimento direto destes fatos.
13. A testemunha J…, Vereador da Camara Municipal K… e simultaneamente contabilista e colaborador da Ré (!) presta um depoimento em que declara que entrou em contato com os representantes da exequente.
Porém
Nenhum depoimento prestado por qualquer representante da exequente ou da própria agente de execução foi introduzido nos autos, o que torna tais pretensas negociações não confirmadas pela parte a quem são atribuídas, o que determina que os fatos que aproveitam à Ré, tenham de ser confirmados pela parte que aceita um acordo de pagamento, ou que confirma uma negociação.
Este depoimento é inidóneo, até porque estava em causa uma execução de sentença de cerca de 60.000.00 euros, não susceptível, em principio, de redução, dado o seu trânsito em julgado.
14. Os documentos juntos - dcts. 1 e 2 anexados com a contestação - revelam nos seus claros dizeres que não ocorreu qualquer acordo, tais documentos não certificados e impugnados pela Autora, a serem verdadeiros, contrariam qualquer negociação, porquanto o documento nº 1, posterior ao documento nº 2, constitui um pretenso requerimento apresentado nos autos de execução em que a exequente declara que ocorreu “a frustração da penhora de créditos e da ausência de saldos bancários e que desconhece outros bens da propriedade da executada, pelo que requer a extinção da execução por inexistência de bens penhorados”.
15. Onde está provada a negociação ou o acordo de pagamento?
16. Para além de que, tais documentos, não foram entregues à Autora pela Ré, documentos estes, aliás, com data posterior à propositura desta acção.
17. Por outro lado, os depoimentos prestados sobre esta matéria não são, provenientes de qualquer cliente, que atestasse que a Ré os tinha informado da decorrência de negociações ou da existência de um acordo.
18. Alteração à decisão do fato 20º: Deverá ser alterado para “não provado”.
19. Este fato é consequente ao fato 19º, e a inexistência de prova idónea relativamente ao fato anterior, repete-se quanto a este fato 20º.
20. Não existe qualquer documento com força probatória, certidão judicial, notificação da agente de execução, quer à Ré, quer aos clientes da Ré por créditos penhorados, que confirme a ocorrência de qualquer acordo.
21. Os papeis juntos como dct. 1 e 2 com a contestação só - a serem verdadeiros (o que se impugnou) - revelam que a Ré, como executada não tinha saldos bancários ou bens da sua propriedade ou créditos penhorados que permitissem o prosseguimento da execução.
22. Não incumbe à Autora a adivinhar ou acreditar em acordo ou muito menos, prova-los.
23. Alteração ao fato 21: Este fato - na sequência do anteriormente concluído sobre os fatos 19 e 20 - deverá ser decidido como “não provado”.
24. Nenhuma prova idónea apresentada nos autos, pode fundamentar a conclusão da senhora Juiza a quo.
25. Não existe qualquer depoimento dos clientes da Ré que sustente a conclusão de que as notificações das penhoras dos créditos lhes foram dirigidas, que era necessário normalizar a relação económica dos fornecimentos, nomeadamente junto de quem deveria fazer o pagamento, apenas existindo as declarações dos representantes da Ré, não confirmados por qualquer cliente.
A prova alcançada pela Ré, baseada tão só nas suas próprias declarações, exigia, para ser idónea que fosse confirmada pelos diversos clientes, únicos destinatários de tal informação.
A Autora, nos seus depoimentos de parte, desmente a Ré, não confirmando ter recebido qualquer declaração do advogado da exequente, da agente de execução ou do juiz de execução.
26. Alterações aos fatos 21 e 23: tais fatos deverão ser decididos como “não provados”.
27. Consoante se concluiu anteriormente, a prova exigível para fundamentar estes fatos haveria de resultar do depoimento dos diversos clientes da Ré, por si fornecidos, para confirmarem que continuaram a ser visitados pelos representantes comerciais da Ré, com a regularidade do costume e fazendo a regular manutenção dos equipamentos.
28. O depoimento da própria Ré, necessáriamente interessado, glosando uma atividade junto dos clientes, não pode merecer crédito, até porque - se fosse verdade - a Ré devia trazer aos autos os depoimentos dos clientes destinatários desta atividade.
Só se ouviu as partes interessadas na confirmação, não se ouvindo a parte isenta, os clientes.
29. Alteração ao fato com numeração errada 22, 23, 24 e 25.
30. De harmonia com as conclusões, 1, 2, 7 e 8, cuja fundamentação, aqui se reproduz, a prova do alegado pela Ré de que a Autora poderia ficar com o café e continuar a ser fornecida pagando diretamente à agente de execução ou pagando mais tarde, constitui ónus da Ré, nos termos do nº 2 do artigo 342º do CC.
31. E tal prova não feita, antes pelo contrário, como o demonstra o documento junto com a petição inicial, carta de 17 de Dezembro de 2015, a Ré recusou-se a fornecer à Autora café sem que recebesse o preço do fornecimento a pronto pagamento, não aceitando que o valor dos fornecimentos fosse pago à agente de execução.
32. A Autora desmente o comercial da Ré, quer pelo o conteúdo da acima referida carta, quer pela não confirmação das afirmações a si atribuídas.
Pelo que
33. A decisão do fato 22 deverá ser “o comercial da Ré passou no dia 22/12/2015 pelo estabelecimento da Autora, pronta a receber a encomenda, desde que a pagasse a si diretamente e a pronto pagamento”.
34. A decisão do fato 23 deverá ser “A Autora através da sua gerência não efectuou qualquer encomenda”, “dada a recusa da Ré em aceitar que o preço fosse pago diretamente à agente de execução”.
35. O fato 24 deverá ser decidido “o comercial da Ré, cumprindo a sua rotina de passagem, visitou o estabelecimento da Autora em 7/01/2016, mantendo a mesma exigência de fornecer a pronto pagamento, apesar da penhora de créditos vencidos e vincendos”.
36. O fato 25 deverá ser decidido: “E data em que a Autora não foi abastecida de café, porque a Ré se recusou a fornecer-lho sem ser a pronto pagamento”
37. Só com estas alterações é que tais fatos reportam toda a prova produzida e observam as normas de direito probatório acima já referido.
38. Alteração do fato 27: deverá ser decidido: “As contrapartidas que a Ré efetuou a favor da autora somaram apenas a quantia de 5.587.63 euros, verba muito inferior ao contratualmente exigido e que era de 32.200.00 euros”.
- “Não provado que as obras executadas e equipamentos fornecidos tivesse custado à Ré 16.929.45 euros e muito menos 32.200.00 euros.
39. A prova destes fatos é ónus da Ré e, esta, pela prova documental oferecida, não demonstrou que, contráriamente à douta decisão, tivesse gasto os contratualmente fixados 32.200.00 euros mas, apenas 5.587.63 euros.
40. Esta prova fez-se por recibos, por depoimento dos fornecedores de equipamentos e executores de obras e prestação de serviços e não por declaração do contabilista/vereador sem anexação dos respetivos documentos contabilísticos.
41. Ocorreu uma absoluta carência de prova que não permite fixar o valor gasto nas contrapartidas e que tem reflexo na quantidade de café que a Autora estava obrigada, por força do montante das contrapartidas gastas, a adquirir à Ré.
42. Os documentos que, unicamente, servem de base à quantificação das benfeitorias, estão anexadas, juntamente com outros, sobre a referência 22889872 de 9/06/2016.
II
43. A prova efetuada e que determina uma alteração à matéria de fato dada como provada, importa a conclusão de que a Autora em todo este processo “no cumprimento da obrigação, no exercício do direito procedeu com boa fé (op. citada Castro Mendes, 3º, 411 a 413), tendo em consideração os interesses legítimos da outra parte.
44. Assim é que a Autora de imediato comunicou à Ré a penhora de créditos efectuada pela exequente (L… Lda até ao valor de 62.517.24 euros, enviando-lhe por email de 2 de Dezembro de 2015 a respetiva notificação.
45. E porque estava obrigada a executar a referida penhora de créditos, por exigência do artigo 773º do CPC, de boa fé e por email de 9/12/2015, e ao abrigo do contrato de fornecimento a que permanecia vinculada com a Ré, solicitou-lhe que - dado o esgotamento do stock de café - que urgentemente fosse fornecida.
46. A conduta da Autora é honesta, correta, leal (Mota Pinto, op. cit. 343).
47. A Ré, em confronto com a conduta da Autora, insurgiu-se com o fato de lhe ter sido requerido por escrito o fornecimento do indispensável café, e acusa a Autora de ao fazê-lo que está a Autora “apostada em deteriorar a relação comercial”! (carta de 15 de Dezembro de 2015).
48. Provado ficou que à Autora, quando possuía café ainda em stock em quantidades superiores, lhe era facultado pela Ré não adquirir os 30 kgs semanais, o que terá ocorrido em 26/11/2015, data anterior à penhora dos créditos.
49. Perante esta acusação e a recusa de fornecimento de 60 kgs de café em 10 de Dezembro de 2015, a Autora, mais uma vez por escrito, destruiu a imerecida acusação que a Ré lhe fez declarando, “é lamentável o conteúdo da V/ carta, imputando falsamente à nossa empresa o incumprimento do novo clausulado negociado no processo 279/11.2TBMCD”.
50. E, mais uma vez, a autora através de uma conduta honesta, correta, leal, escreveu em resposta à carta de 15 de Dezembro da Ré, datada de 17 de Dezembro, que lamentava que esta “se tivesse recusado a fornecer no passado dia 10 de Dezembro (de 2015) os solicitados 60 kgs de café, com o fundamento de que, apesar da penhora de créditos, teríamos de pagar o crédito desse fornecimento à V/ firma e não à ordem da solicitadora de execução”.
51. Mas, apesar desta recusa de fornecimento, mais uma vez se punha a Autora à disposição da Ré, para que esta a informasse por escrito de qual a solução que pretendia, no prazo de cinco dias, a fim de colaborar ou não com a Ré e desde que a solução não traga riscos nem prejuízos para a Autora.
52. Esta disponibilidade da Autora para, apesar da recusa do fornecimento de 60 kgs de café no dia 10 de Dezembro, anterior, mais uma vez constitui uma conduta honesta, correta e leal.
53. A carta em que se solicitava para que por escrito a Autora soubesse qual solução a adoptar pela Ré para continuar a ser fornecida de café, e a forma de atuar face à penhora de créditos, não mereceu até hoje qualquer resposta por parte da Ré, o que necessáriamente constitui uma conduta não leal, não correta, não honesta.
54. E era exigível que a Ré respondesse por escrito, em primeiro lugar para que a Autora possuísse um documento que a desobrigasse de cumprir a penhora de créditos a que estava legalmente vinculada pelo disposto no artigo 773º do CPC.
55. Em segundo lugar, porquanto, estando as partes mutuamente vinculadas sob a forma escrita pelo contrato de fornecimento de 13 de Maio de 2010, era de evidente conduta leal e de boa fé, também por escrito, se comprometessem mutuamente sobre a nova forma de fornecimento do café e sobre a forma de pagamento. 56. Assim o impunha o nº 1 do artigo 227º do CC.
57. Assim o não quis a Ré, que deslealmente, não deu resposta escrita à Autora para a informar da forma que pretendia adoptar para o prosseguimento dos fornecimentos de café sem pagar à solicitadora de execução - o que não é uma conduta de boa fé.
58. Nem em qualquer outro documento escrito indica a forma de como pretende o prosseguimento da execução do fornecimento.
59. E não se aceita que a prova por depoimentos dos representantes comerciais da Ré, sobrelevem a exigência da reclamada resposta escrita.
60. A Senhora Juíza a quo ofendeu, com a devida vénia, o disposto no nº 2 do artigo 342º do CC, que exige que a prova de que a Autora podia receber o fornecimento dos 60 kgs e do demais, sem pagar ou pagando à solicitadora de execução.
61. Ofendeu outrossim o disposto no artigo 573º do CC, ao dispensar a Ré da informação por escrito reclamada na carta da Autora de 17 de Dezembro de 2015.
62. A Ré não provou como lhe competia ao abrigo do ónus da prova constante do artigo 342º do CC que efetuou benfeitorias no valor de 32.200.00 euros, uma vez que a faturação apresentada para justificar as benfeitorias negociadas não revelam ou provam mais de 5.587.63 euros de benfeitorias pagas e recibadas.
63. O valor das benfeitorias está em relação direta com a obrigatoriedade de a Autora comprar 6.600 kgs de café (6.600 kgs correspondem a 32.200.00 euros de benfeitorias).
64. Pelo que 5.587.63 euros (ou - o que se não aceita por falta de prova - 16.929.45 euros), correspondem a um fornecimento contratual de apenas 1.145.29 kgs (ou 3.470 kgs - na 2ª hipóteses).
65. Pelo que a Autora - mesmo a vingar o pedido da Ré, nunca poderia ser condenada a devolver 32.200.00 euros de benfeitorias (não realizadas) mas tão só 5.587.63 euros (ou, na segunda hipótese, 16.929,45 euros).
66. E só estava obrigada a adquirir como contrapartida das benfeitorias 1.145,29 kgs de café ou, na 2ª hipótese, 3.470 kgs de café.
67. E, nos termos do nº 2 do artigo 812º do CC, há lugar à redução equitativa se a obrigação tiver sido, como foi, parcialmente cumprida (a Autora adquiriu 1.600 kg de café, pelo menos).
68. A Cláusula penal estabelecida neste contrato de mera adesão, é leonino e não se ajusta à exigência de justo equilíbrio do interesse em presença.
69. Não se estabelece neste contrato direitos equivalentes em caso de incumprimento para a Autora e para a Ré, o que determina um desequilíbrio de prestações (cláusulas 2ª, 7º, 2 e 8ª gravemente atentória da boa fé, contrariando e ofendendo o disposto no artigo 15º do DL 446/85.
70. A condenação da Autora, mesmo que se mantivesse a decisão ajuizada, constitui uma afronta à ordem pública, à boa fé exigível e constitui um enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 473º do CC.
71. É que, por cada quilo de café fornecido a 18,58 euros, a indemnização fixada de 10.00 euros por cada quilo não consumido, corresponde a pagamento de um juro superior a 50% (“como linha geral os tribunais não devem pôr inteiramente de parte o critério do legislador revelado em matéria do mútuo oneroso, no artigo 1146º do CC)”.
72. “Porque é usurária a pena, a lei permite uma redução equitativa”.
73. A Ré ao não executar as benfeitorias contratadas, exclui relativamente à Autora quer a responsabilidade por danos patrimoniais, por não cumprimento do contrato na parte proporcional ao executado.
74. Não foi cumprido o disposto nas alíneas b), c), d), e) e f) do artigo 18º do DL 446/85.
75. A Senhora Juiza a quo não fundamentou as respostas aos fatos dados como provados nos artigos 3, 13, 15, 19, 20, 21, 22, 23, 22, 23, 24 e 25, 27, o que constitui a nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
76. Não obedeceu ao regime do ónus da prova, incumprindo o disposto no artigo 342º, nº 1 e nº2 do CC.
77. Foram violados todos os acima citados preceitos legais.
Pelo que, alterando a decisão sobre a matéria de fato, determinando-se a verificação da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, e revogando a sentença proferida, como é de inteira e preclara justiça, se alcançará a certeza do direito, da observância dos princípios constitucionais, bem como se honrará a boa fé com que a Autora sempre pautou a sua conduta!”

A ré contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos neste Tribunal pelo actual Relator.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir, pela ordem que se nos afigura mais adequada, consistem em saber:
1. Se a sentença padece da nulidade que lhe é imputada;
2. Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido propugnado pela recorrente;
3. Se há incumprimento contratual da ré/reconvinte.
4. Se há cláusulas contratuais gerais nulas;
5. E se é caso de redução da cláusula penal.
II. Fundamentação
1. De facto
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que tem por escopo social a exploração do estabelecimento de café, snack-bar, confeitaria, restaurante e similares, que gira sob a designação de “CAFÉ B…” sito na Rua …, .., no Porto.
2. Entre a Autora e a Ré foi celebrado um contrato de fornecimento em 13 de Maio de 2010, contrato este junto como doc. nº 1 da p.i. e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
3. Por tal contrato, a Ré obrigou-se a fornecer, com exclusividade, os produtos constantes do anexo 1, nas quantidades e prazo aí referido.
4. Posteriormente, e por acordo devidamente homologado por sentença transitada em julgado, o clausulado anterior foi alterado “passando o contrato a vigorar pelo período de 9 (nove) anos, com início em 1/01/2013, e ficando o fornecido/autora obrigada a comprar a quantidade total de 6.600kg de café, da qualidade/designação C1… ou C2…, este ao preço do C1…, a um ritmo mensal mínimo de 60kg, acrescido de bónus, bonificação, esta que não se conta para efeitos do atingimento da quantidade total.
5. Com data de 27/11/2015, foi a Autora notificada de que nos termos do artigo 773º do Código de Processo Civil, se considerava penhorado o crédito que o executado C… LDA detém em consequência de bens e/ou serviços prestados, ficando este à ordem do signatário, até ao montante de 62.517.24 euros.
6. A Autora informou a Ré de que estavam penhorados os créditos resultantes do fornecimento do café efectuados pela Ré à Autora, créditos vencidos e vincendos.
7. Consta do anexo II do contrato referido na al. b) que a ré se comprometeu a entregar até 30 dias após a assinatura do contrato os equipamentos, materiais e obras aí mencionados, no estabelecimento da Autora, tendo-se fixado, em termos contratuais, para os mesmos o valor de €32.200,00.
8. A reconvinte/autora tem como actividade a distribuição de cafés e bebidas, o que faz utilizando marca própria, registada, C….
9. No n.º 1 da Cláusula 8.ª do contrato, as partes previram que a resolução imputável ao(s) fornecido(s) tem como consequência o dever de “pagamento de uma indemnização do montante equivalente ao investimento realizado, correspondente ao valor do equipamento mencionado no n.º 6 do Anexo II ao presente contrato, acrescido de uma actualização anual de 10% deste valor, desde a data da assinatura do presente contrato até integral pagamento, bem como o pagamento de uma indemnização no montante de 10,00€ (dez euros) por cada quilo de café identificado no Anexo I, não adquiridos”.
10. Teor dos documentos juntos como docs. 3 a 5 da petição inicial e docs. 3 a 5 da contestação que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais;
11. Cumprindo com a rotina de visita à autora, o comercial da ré deslocou-se ao seu estabelecimento em 26/11/2015, não tendo a autora querido comprar café, alegando ter o suficiente.
12. [2] Sendo usual passar de 15 em 15 dias, o comercial da ré voltou a visitar o estabelecimento da autora em 10/12/2015.
13. Entretanto, já a autora tinha feito chegar à ré o outro mail a que se faz referência nos autos, o qual é remetido em 09/12/2015.
14. [3] Nesse dia 10 de Dezembro não (foi) efectuado qualquer fornecimento de café.
15. A Autora, no passado dia 10 de Dezembro do corrente ano, encerrou seu estabelecimento comercial “CAFÉ B…”, porque não possuía café para servir qualquer cliente e o café é o principal produto vendido pela autora.
16. O que lhe causa e causou prejuízos, quer sob o ponto de vista de imagem comercial.
17. A ré teve, de facto, uma execução a correr contra si, proposta pela firma L…, Lda., como alegado vai em 5.º da PI.
18. [4] Aquando dessa notificação de penhora de créditos à aqui autora, já a aqui ré estava em negociações com a exequente no sentido de ser obtido um acordo.
19. [5] O que as partes viriam a alcançar.
20. [6] Dado que as notificações de penhora de créditos foram dirigidas a muitos clientes da ré e era necessário normalizar a relação económica de fornecimento, designadamente junto de quem deveriam fazer o pagamento do café, o ilustre mandatário da exequente lavrou uma declaração, com data de 11/01/2016, para que a aqui ré pudesse fazer uso dela, informando os clientes de que já não havia lugar a penhora de créditos.
21. [7] Enquanto durou a execução, a ré continuou com o normal giro do seu negócio.
22. [8] Os comerciais da ré continuaram a proceder à visita dos clientes com a regularidade do costume e os técnicos ao serviço da ré foram fazendo a regular manutenção dos equipamentos.
23. [9] O comercial da ré passou no dia 24/12/2015 pelo estabelecimento da autora, pronto a receber a encomenda.
24. [10] A autora, através da sua gerência não efectuou qualquer encomenda.
25. [11] O comercial, cumprindo a sua rotina de passagem, visitou o estabelecimento da autora em 07/01/2016.
26. [12] E data em que a autora recusou-se em ser abastecida de café.
27. Para utilizar na sua actividade, a reconvinte entregou à reconvinda diverso equipamento, mais concretamente uma máquina de café electrónica de 3 grupos, 2 moinhos automáticos, 1 reclame luminoso, cortinas diversas e realizou obras de remodelação e obras de instalação do sistema de ventilação no estabelecimento – como melhor vai especificado no Anexo II.
28. [13] Contrapartidas que as partes fixaram no valor de 32.200,00 €, acrescido de IVA.
29. No domínio do contrato, considerando a sua vigência após a transacção (que é o que, para este efeito, importa na economia dos presentes autos), a reconvinda adquiriu à reconvinte a quantidade de 630 kg. de café em 2013 + 600 kg em 2014 + 435 kg em 2015, perfazendo 1.665 kg de café.
2. De direito
2.1. Da nulidade da sentença
Na conclusão 75.ª, a recorrente arguiu a nulidade da sentença, com fundamento na falta de fundamentação da decisão sobre os factos dados como provados nos n.ºs 3, 13, 15, 19, 20, 21, 22, 23, 22, 23 (a numeração destes dois últimos é repetida), 24, 25 e 27, invocando o disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Este normativo dispõe que a sentença é nula, entre outras situações que aqui não importa considerar, quando “[não] especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
É sabido, e temos vindo a repetir noutros arestos[14], que o dever de fundamentação das decisões que não sejam de mero expediente tem consagração constitucional no n.º 1 do art.º 205.º da CRP, ao dispor que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
O art.º 154.º do CPC também dispõe no n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
Esta fórmula é redutora, pois o dever de fundamentação existe relativamente a todas as decisões que não sejam despachos de mero expediente (cfr. art.º 152.º, n.º 4, do CPC), por imperativo constitucional, mesmo que aparentemente não estejam abrangidas por aquele preceito.
O dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, mesmo daquelas de que não cabe recurso, assenta no pressuposto de que a decisão não é, nem pode ser, um acto arbitrário, mas a concretização da vontade abstracta da lei ao caso submetido à apreciação jurisdicional, e na necessidade de as partes serem não só esclarecidas mas convencidas do seu acerto, uma vez que o seu valor extrínseco flui da sua motivação, cuja função pedagógico-social se não pode subestimar, para além de, admitindo recurso, necessitarem de saber a razão ou razões do decaimento das suas pretensões para as poderem impugnar.
Por sua vez, o art.º 607.º, n.º 3, do mesmo Código, a propósito da fundamentação da sentença, manda ao juiz “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes”.
Ainda na fundamentação da sentença, segundo o disposto no n.º 4 do art.º 607.º acabado de citar, “o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
A violação do dever de fundamentação gera a nulidade nos termos do citado art.º 615.º, n.º 1, al. b).
Também é certo e sabido que, não obstante o aludido dever de fundamentação, a doutrina e a jurisprudência dominantes têm vindo a entender que só a falta absoluta de motivação, que não a meramente deficiente ou medíocre, conduz àquela nulidade.
Quanto aos fundamentos de facto, não é a falta de exame crítico das provas que basta para preencher aquela nulidade, tornando-se antes necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão.
Relativamente aos fundamentos de direito, importa salientar que a fundamentação contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador e que não é indispensável a especificação das disposições legais que fundamentam a decisão. Fundamental é que sejam mencionados os princípios, as regras, as normas em que a decisão se apoia[15].
Trata-se de um vício estrutural da sentença, cuja causa, em rigor, seria caso de anulabilidade e não de verdadeira nulidade, devendo entender-se esta no sentido lato de invalidade, a qual apenas ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, em desrespeito pelo disposto no art.º 607.º, n.º 3, do CPC[16].
No presente caso, não se verifica falta absoluta de fundamentação de facto, já que a sentença recorrida contém a descrição dos factos considerados provados, acima transcritos, bem como a respectiva motivação que irá também ser transcrita infra aquando da reapreciação da matéria de facto impugnada.
E a insuficiência desta, ou mesmo até falta dela, como pretende a apelante, não seria causa de nulidade da sentença, mas somente de suprimento da mesma, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. d), do CPC.
Acresce que o vício imputado é fundado em erro de julgamento, na medida em que se trata dos mesmos factos que foram impugnados pela recorrente, o que sempre impossibilitaria a sua declaração.
É que, tem vindo a entender-se, desde há muito, que as nulidades da decisão, cujas causas estão taxativamente enunciadas no citado art.º 615.º não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito[17].

Improcede, deste modo, a arguição da referida nulidade.

2.2. Da alteração da matéria de facto
O art.º 662.º, n.º 1, do CPC dispõe que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como temos vindo a escrever em variadíssimos acórdãos, desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância, devendo, para tanto, os recorrentes observar os ónus impostos pelo art.º 640.º do mesmo Código[18].
Não está em causa a verificação desses ónus, sendo que eles foram observados, satisfatoriamente, pela
recorrente, nas alegações e nas conclusões, pelo que nada obsta à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Na reapreciação que agora importa efectuar, procedendo a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, por forma a assegurar o duplo grau de jurisdição sobre a mesma matéria, teremos em conta que a prova deve ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
O Prof. José Alberto dos Reis já ensinava, há muito, que “prova livre quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[19].
A essas regras de apreciação está sujeita a prova testemunhal, como expressamente dispõe o art.º 396.º do Código Civil.
Dada a sua reconhecida falibilidade, impõe-se uma especial avaliação crítica com vista a uma valoração conscienciosa e prudente do conteúdo dos depoimentos e da sua força probatória, devendo sempre ter-se em consideração a razão de ciência do depoente e as suas relações pessoais ou funcionais com as partes.
Há, ainda, que apreciar a prova no seu conjunto, conjugando todos os elementos produzidos no processo e atendíveis, independentemente da sua proveniência, em face do princípio da aquisição processual (cfr. art.º 413.º do CPC).
Também é sabido que as regras da experiência são “ou o resultado da experiência da vida ou de um especial conhecimento no campo científico ou artístico, técnico ou económico e são adquiridas, por isso, em parte mediante observação do mundo exterior e da conduta humana, em parte mediante investigação ou exercício científico de uma profissão ou indústria”[20], que permitem fundar as presunções naturais, não abdicando da explicitação de um processo cognitivo, lógico, sem espaços ocos e vazios, conduzindo à extracção de facto desconhecido do facto conhecido, porque conformes à realidade reiterada, de verificação muito frequente e, por isso, verosímil”[21].
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, anteriormente não conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
Como corolário da sujeição das provas à regra da livre apreciação do julgador, consagrada no art.º 607.º, n.º 5, do CPC, impõe-se-lhe indicar “os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[22].
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
A recorrente impugnou os factos dados como provados na sentença sob os n.ºs 3, 13, 15, 19, 20, 21, 22, 23, 22, 23 (estes dois repetidos), 24, 25 e 27, a que correspondem, respectivamente, os factos elencados sob os n.ºs 3, 12, 14, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26 e 28 da fundamentação de facto, acima transcritos, pelo que nos dispensamos de os reproduzir aqui novamente.
E impugnou a factualidade dada como não provada com o seguinte teor:
A Ré, desde tal data da penhora, recusa-se a continuar a fornecer à Autora, o café a que estava vinculado pelo sobredito contrato assinado em 13 de Maio de 2010 e alterado no seu clausulado por sentença transitada em julgado em 14/01/2014, sem ser a pronto pagamento.”
A recorrente pretende que esta factualidade seja alterada nos termos que propõe na conclusão 1.ª, sustentando, ao que parece, que ela continue como não provada conforme aí indica.
E sustenta que a demais factualidade impugnada seja alterada nos seguintes termos:
- o facto 3.º seja aditado da expressão “contra o pagamento a pronto”;
- o facto 13.º (a que corresponde o 12.º da fundamentação de facto) seja aditado da matéria que indica na conclusão 5.ª;
- o facto 15.º (=14.º da fundamentação de facto) seja aditado como propõe na conclusão 7.ª;
- o facto 22.º (repetido = 23 da fundamentação de facto) seja modificado como propõe na conclusão 33.ª;
- o facto 23.º (repetido = 24 da fundamentação de facto) seja modificado como indica na conclusão 34.ª;
- o facto 24.º (= 25 da fundamentação de facto) seja modificado como propõe na conclusão 35.ª;
- o facto 25.º (= 26 da fundamentação de facto) seja modificado como indica na conclusão 36.ª;
- o facto 27.º (= 28 da fundamentação de facto) seja modificado como propõe na conclusão 38.ª;
- e os factos dados como provados na sentença sob os n.ºs 19, 20, 21, 22 e 23 (a que correspondem, respectivamente, os n.ºs 18, 19, 20, 21 e 22 da fundamentação de facto) sejam dados como não provados.
Na motivação da decisão de facto, a Ex.ma Juíza que presidiu à audiência de discussão e julgamento e elaborou a sentença escreveu o seguinte:
“Suporte da convicção do tribunal:
Os factos que constam dos nºs 1 a 10 foram dados como assentes em sede de audiência prévia (fls. 205 a 206).
A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada da globalidade da prova produzida nos autos, designadamente na análise dos documentos juntos aos autos, em conjugação com o depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento à matéria a que foram indicadas, devidamente conjugados entre si, nomeadamente:
Os legais representantes da autora e da Ré nas suas declarações/depoimentos reproduziram as alegações que já constam dos autos.
A testemunha G… (cliente habitual do café e amiga dos legais representantes da Autora), confirmou o envio dos e mails que se encontram a fls. 32 e 33 a pedido da Autora e o fecho do café no dia 10 de Dezembro a partir do meio da tarde.
Afirmou que constatou que o café esteve fechado até a tarde do dia seguinte.
Não assistiu a qualquer reunião entre as legais representantes da Autora e o comercial da Autora.
A testemunha H… (cliente habitual do café) garantiu ao tribunal que no dia 10 de Dezembro durante a tarde, ouviu uma discussão relativa a fornecimento de café entre os legais representantes da Autora e o legal representante da Ré e um seu vendedor.
Apesar de estar noutra mesa apercebeu-se do conteúdo da conversa, nomeadamente que estavam a discutir o assunto da penhora da C… e os valores a liquidar, porem não ouviu a Ré a recusar fornecimentos de café à Autora.
A testemunha M… (apresentou o O… e a N… à C…) referiu não ter tido conhecimento de qualquer queixa relativa a obras não realizadas pela Ré.
Realçou as dificuldades da Autora cumprir o contrato.
A testemunha F… (vendedor da Ré) relatou que a reunião entre legais representantes da Autora e o legal representante da Ré (o seu pai) ocorreu no dia 10 durante a manhã e que nunca negaram fornecimentos de café à Autora, apesar de esta por vezes não comprar café nas visitas quinzenais do vendedor, explicando-lhe que a situação que deu origem à penhora estava em vias de resolução e que podiam ficar com uma factura pendente por 15 dias até a questão da penhora se resolvesse.
Continuou a passar pelo estabelecimento da Autora de 15 em 15 dias sem que a Autora comprasse café.
Numa dessas visitas foi-lhe referido que “isto já esta no Tribunal”, o que entendeu como uma manifestação da Autora da sua intenção de pôr fim ao contrato.
A testemunha J… (TOC da Ré) não revelou conhecimento de factos com interesse para os autos.
A testemunha I… (vendedor ao serviço da Ré) explicou que enquanto vendedor da C…, deu explicações aos clientes que receberam a notificação da penhora de créditos, informando-os que a situação estava a ser resolvida e que não teve problemas com nenhum cliente.
Face à escassez de prova – versões contraditórias e pouco precisas - quanto à alegada recusa da Ré fornecer café à Autora no dia 10 de Dezembro, o tribunal não ficou convencido que essa recusa ocorreu nos termos configurados na acção.
Relativamente ao facto referido em 16. a testemunha G… foi convincente e o fornecimento feito pela empresa P… está documentado a fls. 431.
Os factos constantes do itens 26. e 27. encontram-se demonstrados pelos documentos de fls. 218 230 e 335 a 358 que espelham a realização das obras e melhoramentos no estabelecimento da Autora acordados.
A instalação de ar condicionado não ficou acordada entre as partes.
A convicção do tribunal relativamente ao facto constante do nº 28 assentou na análise da facturação junta aos autos.
O documento de fls. 63 (declaração da firma L…, Lda”) conjugada com os depoimentos dos vendedores foi relevante para prova do facto referido em 21.”
Dentre as extensas e repetitivas considerações e razões feitas nas alegações e nas conclusões é possível descortinar, se bem as interpretamos, que a recorrente questiona os factos indicados, essencialmente, com fundamento nos depoimentos das testemunhas F…, G…, H… e I…, nas declarações de parte do E…, legal representante da ré, bem como na análise dos documentos 1 e 2, apresentados com a contestação e juntos a fls. 59-60 e 63 dos autos. Além disso, pretende ver dada como provada matéria não alegada oportunamente, designadamente nos articulados.
Todavia, sem razão.
A apreciação das provas feita pelo tribunal é livre e mostra-se proficientemente efectuada.
Embora as declarações de parte, à semelhança do depoimento de parte, vise obter a confissão, relativamente ao reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório a apreciar livremente pelo tribunal (cfr. art.ºs 361.º do Código Civil e 466.º, n.º 3, do CPC), no confronto com a demais prova produzida.
A matéria impugnada em sede de recurso não é desfavorável à recorrida, pelo que está afastada a confissão, a qual, de resto, não consta da respectiva acta, como devia, caso a tivesse havido.
Por isso, as declarações de parte invocadas não podem impor, só por si, qualquer alteração da matéria de facto. E também não permitem tal alteração no confronto com a demais prova produzida, visto que não se mostram confirmadas de forma minimamente convincente. E nem sequer foram no sentido sustentado pela apelante!
Os depoimentos das referidas testemunhas, tal como os das restantes, foram correctamente apreciados.
A testemunha F… não referiu que o fornecimento de café só fosse feito “contra o pagamento a pronto”. Pelo contrário. Ele disse que, perante o conhecimento da penhora, se dispôs fornecer o café que habitualmente era fornecido e que o pagamento do preço correspondente podia ser feito à Solicitadora de execução ou à fornecedora mais tarde, já que ele passava pelo estabelecimento da autora de 15 em 15 dias e aquele assunto “estava a ser resolvido”. O contrato a que se referem os n.ºs 2 e 3 também não menciona a pretensa forma de pagamento. De resto, a matéria incluída no n.º 3 foi alegada pela autora e foi ali reproduzida nos exactos termos em que foi alegada.
A matéria incluída no n.º 13 coincide com a que foi alegada pela ré no art.º 25.º da contestação. É óbvio que a visita ali referida – 10/12/2015 – ocorreu após o envio do email de 9/12/2015 a informar a inexistência de café por parte da autora. Só que, apesar de ser junto com a petição inicial, não foi alegada a correspondente matéria. Nem sequer foi dado como reproduzido tal email, cuja cópia se mostra junta a fls. 33, para se poder entender que fora alegado o respectivo conteúdo, ainda que de forma incorrecta e tecnicamente errada! De nada serve, pois, a sua junção, nem a confirmação da sua expedição pela testemunha G….
Que não foi efectuado qualquer fornecimento de café à autora no dia 10/12/2015 é um facto incontestável e incontestado, como foi dado como provado. Porém, ficou por demonstrar que essa falta de fornecimento se tenha ficado a dever a recusa da ré a fazê-lo sem que lhe fosse pago a pronto, não permitindo que o pagamento fosse efectuado à agente de execução.
O depoimento do H… mostra-se pouco ou nada convincente, nesta parte. Apesar de ter dito que o distribuidor não quis deixar o café sem receber o pagamento do preço, nada convence, quer pela forma como depôs (revelando ter memória para um factualismo e demonstrando falta dela para outro, em igualdade de circunstâncias), quer por ser frontalmente contrariado pela testemunha F…. Este foi peremptório em afirmar que lhe deixava o café e que o pagamento podia ser efectuado à Solicitadora de execução ou a si próprio, mais tarde, nomeadamente aquando da visita seguinte, pois o problema da penhora “estava a ser resolvido”. A própria testemunha G… que disse ter assistido à visita do F… ao café da autora, onde se encontrava na manhã do dia seguinte ao envio do email, referiu que aquele não se recusou fornecer café à autora, acrescentando, no entanto, que o pagamento podia ser feito à ré porque a questão da penhora estava a ser resolvida e que não tinha autonomia para tomar decisões, mas só o seu pai, com quem acabou por haver uma reunião na tarde desse mesmo dia.
O I…, enquanto comercial ao serviço da ré, afirmou que os clientes que lhe estavam distribuídos continuaram a pagar-lhe o preço do café fornecido, não obstante a existência da penhora, acrescentando que lhes dizia que ela estava a ser resolvida e que a resolução desse problema demorou cerca de 15 dias.
O J… confirmou o teor do documento de fls. 63, utilizado perante os clientes da ré para demonstrar que já não havia fundamento para a existência da penhora, acrescentando que, ele próprio, na qualidade de TOC, contactou com o Advogado que o subscreveu, mandatário da exequente L…, Lda., para o confirmar.
Este documento e o de fls. 59-60, invocados pela recorrente, não provam, só por si, quaisquer outros factos diferentes, nomeadamente no sentido por ela pretendido.
Este último é cópia de um requerimento endereçado pelo mandatário daquela exequente à Agente de Execução a comunicar-lhe a inexistência de bens penhoráveis e a requerer a extinção da execução (proc. n.º 13324/14.0T8PRT), o que confirma o entendimento entre a exequente e a executada relativamente à penhora efectuada, no sentido indicado.
A matéria que foi dada como não provada resultou, assim, da falta de prova e da prova do contrário.
Aliás, muita da alteração proposta versa sobre matéria não alegada.
De resto, não se vislumbra qual o alcance da alteração da redacção da que havia sido dada como não provada, pois sempre continuaria a tratar-se de matéria não provada, como tal, inexistente para qualquer outro efeito jurídico.
Acresce que qualquer alteração no sentido proposto redundaria sempre em ofensa do princípio do dispositivo.
É sabido que, segundo este princípio, na modalidade agora denominada de princípio da controvérsia, compete às partes definir os contornos fácticos do litígio, ou seja, devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir. O autor deverá, pois, alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada. Ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa (cfr. art.ºs 3.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1, ambos do CPC).
Além dos factos articulados pelas partes, o juiz só pode fundar a decisão nos factos instrumentais que resultem da instrução da causa [al. a)], nos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar [al. b)], os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções [al. c) do n.º 2 do art.º 5.º do CPC].
Quer dizer, excepcionados estes casos, o juiz só pode servir-se dos factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos das pretensões formuladas na acção, alegados pelas partes, seja qual for a natureza e o tipo de acção.
São, pois, as partes quem define os contornos fácticos do litígio, visto que devem ser elas a carrear para os autos os factos em que o tribunal se pode basear para decidir.
Assim, o autor deverá alegar os factos que dão consistência à pretensão por si formulada, enquanto ao réu competirá alegar os factos que servem de base à sua defesa.
As limitações ao princípio do dispositivo ou da controvérsia, resultantes do n.º 2 do referido art.º 5.º, não contendem com os ónus de alegação impostos às partes relativamente aos factos essenciais à procedência das suas pretensões.
Quanto a estes factos, continua a constituir ónus das partes a sua alegação nos respectivos articulados. “Sem prejuízo de os factos da causa poderem ser alegados por qualquer das partes, cada uma tem o ónus da alegação daqueles que têm um efeito que lhe é favorável (alegação dos factos constitutivos do direito a cargo de quem se arroga tê-lo – art. 552-1-d - e dos factos impeditivos, modificativos e extintivos a cargo da contraparte – art. 576-3), cuja inobservância dá lugar, consoante o caso, à improcedência da acção ou à improcedência da exceção”[23].
“O juiz não pode considerar, na decisão, factos principais diversos dos alegados pelas partes (em articulado ou em resultado da instrução da causa). Por muito que se suspeite da sua verificação ou que deles tenha até conhecimento, o juiz não pode, em regra, deles servir-se”[24].
Tendo em consideração este princípio e toda a prova produzida, parece-nos óbvio que a apelante não pode obter qualquer alteração da matéria de facto que impugnou.
Da reapreciação efectuada por este Tribunal, procedendo a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da nossa própria convicção, considerada a prova em causa no seu conjunto, não há razões para nos afastarmos do entendimento tido na 1.ª instância, relativamente aos factos impugnados, pois que não se vislumbra qualquer desconformidade notória entre a dita prova e a respectiva decisão, em violação dos princípios que devem presidir à apreciação da prova, ou seja, critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas no seu meio social, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, já que tudo isto contribui, afinal, para a formação de raciocínios e juízos que conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão de cada facto.
Da análise crítica da prova indicada como fundamento da impugnação, bem como da restante prova, não pode ficar-se com a convicção indicada pela recorrente.
E é essa análise crítica e integrada dos depoimentos com os outros meios de prova que os juízes devem fazer, pois a sua actividade, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos, muito menos truncados e interessados, como é o caso dos indicados pela recorrente.
A fundamentação da decisão de facto mostra-se criteriosa, bem fundamentada e tem pleno suporte na gravação da prova e nos demais elementos constantes dos autos, tendo sido feita uma correcta análise do seu valor probatório.
Por isso, não pode este Tribunal alterar os factos impugnados, pelo que se mantêm.

Improcedem, assim, ou são irrelevantes as respectivas conclusões.
2.3. Do incumprimento
Os factos provados revelam que a autora/apelante e a ré/apelada celebraram, entre si, um contrato, nos termos do qual a primeira se obrigou a adquirir à segunda e vender, em regime de exclusividade, no seu estabelecimento denominado “Café B…”, determinada quantidade de produtos que depois alteraram, em 21/11/2012, mediante transacção homologada por sentença transitada em julgado, com início em 1/1/2013, “ficando o fornecido/autora obrigada a comprar a quantidade total de 6.600 Kg de café, da qualidade/designação C1… ou C2…, este ao preço do C1…, a um ritmo mensal mínimo de 60 Kg, acrescido de bónus, bonificação esta que não se conta para efeitos do atingimento da quantidade total.
Este contrato deve ser qualificado como um contrato atípico, complexo, de natureza comercial, envolvendo elementos próprios do contrato-promessa, do contrato de prestação de serviços, do contrato de comodato e do contrato de compra e venda de café, em exclusividade relativamente à compradora (cfr. art.ºs 2.º, 13.º e 463.º, n.º 1, do Código Comercial, 410.º, n.º 1, 874.º, 1129.º e 1154.º do Código Civil e acórdão do STJ de 4/6/2009, proferido no processo 257/09.1YFLSB, disponível em www.dgsi.pt). E assim foi qualificado pela sentença recorrida, servindo-se dos ensinamentos deste último acórdão e de outros que cita, embora referindo apenas a compra e venda e pondo a tónica na cláusula de exclusividade, com o que se conformou a recorrente, sendo, portanto, pacífica tal qualificação.
De qualquer modo, a qualificação do contrato é irrelevante para a decisão do recurso e o desfecho da acção.
Nesta, a recorrente pretende a resolução do aludido contrato com fundamento no incumprimento por parte da ré, alegando que se recusou fornecer-lhe o café a que estava obrigada sem receber o respectivo preço a pronto pagamento.
É sabido que o direito de resolução de qualquer contrato, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (cfr. art.º 432.º, n.º 1, do Código Civil).
Por isso mesmo, a parte que invoca o direito à resolução fica obrigada a alegar e a demonstrar o fundamento que justifica a destruição do correspondente vínculo contratual.
E, além de pressupor o incumprimento definitivo de uma prestação contratual, a resolução exige a gravidade da violação, sendo esta apreciada não em função da culpa do devedor mas das consequências desse incumprimento para o credor[25].
A autora não provou, como lhe competia, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, o fundamento que invocou para a resolução, isto é, a recusa de fornecimento de café pela ré. E também não provou, nem sequer alegou, que essa recusa fosse definitiva, nem que o incumprimento dessa prestação pela ré fosse de tal modo grave que justificasse a destruição do vínculo contratual.
A existência da penhora também não tornava a prestação impossível, de forma a conferir-lhe o direito de resolver o contrato nos termos do art.º 801.º, n.º 2, do Código Civil.
De resto, o incumprimento em que estribou o direito de resolução invocado dependia da alteração da matéria de facto, no sentido propugnado pela apelante, desiderato que não logrou alcançar.
É quanto basta para improceder esta questão e, com ela, todas as conclusões que lhe respeitam.
2.4. Das nulidades das cláusulas do contrato
A apelante invocou a nulidade das cláusulas 2.ª, 7.ª-2 e 8.ª do contrato que celebrou com a ré/apelada, invocando o disposto no art.º 15.º do DL n.º 446/85, de 25/10, por considerar que contemplam um “desequilíbrio de prestações”.
Na cláusula 2.ª, o ali 2.º outorgante ou cliente, aqui autora/apelante, obrigou-se a adquirir ao 1.º outorgante, aqui ré/reconvinte/apelada, “em regime de exclusividade, os produtos identificados no Anexo I… nas condições, quantidades mínimas mensais, prazo e demais condições nele estabelecidas, ou na respectiva factura ou orçamento”.
Na cláusula 7.ª – 2, prevê-se que, em caso de incumprimento do contrato imputável à autora, designadamente por deixar de adquirir os produtos identificados no Anexo I, nas condições nele estabelecidas, fica a ré com o direito de resolver imediatamente o contrato, “sem necessidade de interpelação prévia e/ou invocação de perda no interesse da prestação, mediante comunicação escrita a enviar ao Cliente, considerando-se o incumprimento definitivo”.
Na cláusula 8.ª, está prevista a indemnização para o caso de resolução do contrato nos termos da cláusula anterior ou dos “princípios gerais de direito”.
A apelante invocou, ainda, a inobservância do preceituado nas alíneas b), c), d), e) e f) do art.º 18.º do citado DL n.º 446/85.
Neste artigo prevêem-se situações de “cláusulas absolutamente proibidas”, enquanto o citado art.º 15.º estabelece o princípio geral dispondo que “são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”.
Ambos pressupõem que as cláusulas tenham a natureza de cláusulas contratuais gerais.
A nossa ordem jurídica define as cláusulas contratuais gerais como as que, sendo elaboradas sem prévia negociação individual, proponentes ou destinatários indeterminados se limitam, respectivamente, a subscrever ou aceitar[26].
É o que resulta, desde logo, do âmbito de aplicação definido pelo art.º 1.º do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais[27], onde se estipula que se aplica “às cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar” (n.º 1), bem como “às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar” (n.º 2), e da sua extensão ao dispor que “abrange, salvo disposição em contrário, todas as cláusulas contratuais gerais, independentemente da forma da sua comunicação ao público, da extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem, do conteúdo que as informe ou de terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros” (cfr. art.º 2.º)”.
O contrato de fornecimento, invocado nos autos, poderia ser um desses contratos, abrangido pelo n.º 2 do art.º 1.º.
Assim foi considerado na sentença recorrida e com esse entendimento se conformaram as partes.
Todavia, temos sérias dúvidas de que o seja, após a celebração da transacção a que se alude no n.º 4 dos factos provados, a qual por definição “é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões” (art.º 1248.º, n.º 1, do Código Civil), as quais “podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido” (n.º 2 do mesmo artigo).
Como contrato que é, pressupõe um encontro de vontades, não ficando concluído “enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo” (art.º 232.º do Código Civil).
Estando em causa a versão decorrente do contrato de transacção celebrado e homologado por sentença transitada em julgado, cremos ser impossível atribuir às respectivas cláusulas a natureza de cláusulas contratuais gerais.
Mas ainda que se tratasse de um contrato abrangido pelo regime das cláusulas contratuais gerais, sempre importaria saber se continha alguma cláusula dessa natureza.
E, no caso, a autora não provou, como lhe competia, que estivéssemos perante um contrato cujas cláusulas se encontravam pré-estabelecidas ou perante cláusulas que não teve possibilidade de negociar, para poder beneficiar do regime das cláusulas contratuais gerais, pressuposto indispensável à invocada proibição.
Não tendo a natureza de cláusulas contratuais gerais, não pode declarar-se a sua nulidade, como pretende a autora.
Acresce que ela nem sequer existe, como se entendeu na sentença recorrida.
Tanto basta para julgar improcedente a questão em apreciação.
2.5. Da redução da cláusula penal
Está em causa a cláusula 8.ª, n.º 1, dada como provada no n.º 9 da fundamentação de facto, nos termos da qual a autora/reconvinda se obrigou a indemnizar a ré/reconvinte, em caso de resolução do contrato pelo incumprimento daquela, no montante de 32.200,00€, “equivalente ao investimento realizado, correspondente ao valor do equipamento mencionado no n.º 6 do Anexo II”, acrescido de uma indemnização anual de 10%, desde a data da assinatura do contrato até integral pagamento, bem como o pagamento de uma indemnização de 10,00€ por cada quilo de café, não adquirido.
Esta cláusula reveste a natureza de cláusula penal, a qual pode ser definida como a estipulação negocial em que uma das partes se obriga antecipadamente, perante a outra, caso não cumpra a obrigação ou não a cumpra exactamente nos termos devidos, ao pagamento de uma quantia pecuniária, a título de indemnização (cfr. A. Pinto Monteiro, in Cláusula Penal e Indemnização, pág. 44 e Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, pág. 136).
O direito de estipular tal cláusula é manifestação do princípio da autonomia privada constitucionalmente tutelado e da liberdade contratual afirmada no art.º 405.º do Código Civil, segundo a qual, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, bem como reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais contratos típicos.
A cláusula penal resulta, assim, de um acordo das partes, no âmbito do princípio da liberdade contratual, e tem como finalidade a fixação antecipada de uma indemnização, compensatória ou moratória, pelo incumprimento ou retardamento no cumprimento da obrigação, com intuito de evitar dúvidas futuras e litígios entre elas, quanto à determinação do montante da indemnização (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, 4.ª edição, revista e actualizada, pág. 75).
A mesma está regulamentada pelos art.ºs 810.º a 812.º do Código Civil.
Tradicionalmente, a cláusula penal reveste duas modalidades: compensatória, quando ela é estipulada para o não cumprimento; moratória, se estipulada para o atraso no cumprimento.
Em função do escopo visado pelos contraentes, ela pode classificar-se em cláusula de fixação prévia do dano ou de fixação antecipada da indemnização e cláusula penal puramente compulsória.
A cláusula penal compensatória não pode, como é óbvio, cumular-se com a realização específica da obrigação principal, mas já o pode ser a cláusula penal moratória, visto esta se destinar apenas a ressarcir os danos decorrentes do atraso no cumprimento, sendo nula qualquer disposição em contrário (cfr. art.º 811.º, n.º 1 do C. Civil; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6.ª ed., pág. 448; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, ed. 1987, pág. 253 e os nossos acórdãos de 13/9/2011 e de 15/1/2013, proferidos, respectivamente, nos processos n.ºs 7829/09.2TBMTS.P1 e 2015/09.4TBPFR.P1, que estamos seguindo).
A dupla função que a cláusula penal é normalmente chamada a exercer, no sistema da relação obrigacional, é explicitada pelo Professor Antunes Varela do seguinte modo:
“Por um lado, a cláusula penal visa constituir em regra um reforço (agravamento) da indemnização devida pelo obrigado faltoso, uma sanção calculadamente superior à que resultaria da lei, para estimular de modo especial o devedor ao cumprimento. Por isso mesmo se lhe chama penal – cláusula penal – ou pena convencional ... A cláusula penal extravasa, quando assim seja, do prosaico pensamento da reparação ou retribuição que anima o instituto da responsabilidade civil, para se aproximar da zona cominatória, repressiva ou punitiva, onde pontifica o direito criminal” (Das Obrigações em Geral, 5.ª ed., págs. 137 e 138).
O Professor Calvão da Silva também define a cláusula penal como “A estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou a não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. Se estipulada para o caso de não cumprimento, chama-se cláusula penal compensatória; se estipulada para o caso de atraso no cumprimento, chama-se cláusula penal moratória”. E refere, ainda, que “Dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio ne varietur, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. Queremos com isto dizer (sic) que, na prática, a cláusula penal desempenha uma dupla função: a função ressarcidora e a função coercitiva.
No que concerne à primeira destas funções, a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto (…) o que significa que o devedor, vinculado à clausula penal, não será obrigado ao ressarcimento do dano que efectivamente cause ao credor com o seu incumprimento ou cumprimento não pontual, mas ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente através daquela, sempre que não tenha sido pactuada a ressarcibilidade do dano excedente (art. 811.º-2)”.
Por sua vez, a segunda função (a coercitiva) constitui um “poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação”, já que “o carácter elevado da pena constrange indirectamente o devedor a cumprir as suas obrigações, visto desencorajá-lo ao não cumprimento, pois este implica para si uma prestação mais onerosa do que a realização, nos termos devidos, da originária prestação a que se encontra adstrito. Esta maior onerosidade do incumprimento é de natureza a incitar o devedor a realizar a prestação devida, dada a ameaça de sanção que sobre si recai em caso de inadimplemento e, assim, reforça e garante realmente a obrigação principal, exercendo pressão sobre o devedor no sentido do seu cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, obra citada, págs. 247 a 250).
A cláusula aqui em apreciação é uma cláusula penal compensatória e tem função compulsória, na medida em que foi estipulada para o incumprimento e visou coagir a devedora, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu.
Atenta a índole e a função da cláusula penal convencionada, não há que averiguar se a credora sofreu ou não prejuízos, como consequência da inexecução da obrigação, nem o seu valor.
A cláusula penal também visa livrar o credor da indagação desses prejuízos e aplica-se desde que a violação do contrato seja imputável a culpa do obrigado.
Cremos ser indiscutível a culpa da autora/reconvinda na violação do contrato, a qual, por estarmos no domínio da responsabilidade contratual, sempre se presume (cfr. art.º 799.º, n.º 1, do Código Civil).
Também não há dúvida de que estamos perante uma cláusula penal, como resulta do que se deixou dito e como tal foi qualificada pela própria apelante ao pretender a sua redução.
Esta pugna pela sua redução, invocando o disposto no n.º 2 do art.º 812.º do Código Civil.
Este preceito permite a redução equitativa da cláusula penal nos seguintes termos:
1. A pena convencional pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer disposição em contrário.
2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.
Dado que a redução aqui prevista limita os princípios gerais da autonomia privada e da liberdade contratual, tem de ser ponderada e cuidadosamente exercida, sempre dentro dos limites legais, só podendo o juiz intervir quando for solicitado para tal e reconheça que a cláusula é “manifestamente excessiva”, sob pena de inutilizar a sua própria função e razão da sua existência.
Em face da natureza e da razão de ser da cláusula penal, supra referidas, tem-se entendido que o credor fica dispensado de demonstrar a efectiva verificação dos danos em consequência do incumprimento do contrato e respectivos montantes, já que a mencionada prefixação visa prescindir de averiguações sobre essa matéria.
Por isso mesmo, também se vem entendendo e decidindo que o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados recai sobre o devedor[28].
Do mesmo modo, a doutrina e a jurisprudência dominantes vêm entendendo que o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo citado art.º 812.º, não é oficioso, mas dependente de pedido do devedor da indemnização[29].
Aquele preceito confere ao juiz o poder de reduzir, mas não de invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva, exigindo, para tanto, que haja uma desproporção substancial e manifesta, patente e evidente, entre o dano causado e a pena estipulada, devendo cingir-se o objectivo de tal intervenção à protecção do devedor contra efeitos exorbitantes e abusivos da cláusula, sem lesar o direito do credor, pelo que, em princípio, não deverá intervir perante um caso de uma cláusula penal simplesmente excessiva[30].
No caso dos autos, a autora/reconvinda, na “réplica” que apresentou, defende que tal cláusula é nula. E nunca alegou factos tendentes a obter a sua redução que também não pediu.
Apenas no recurso, depois de insistir na nulidade da aludida cláusula, é que invoca, deficientemente[31], a sua redução.
Como já se disse, o juiz só pode intervir quando for solicitado para tal, o que equivale a dizer que a redução não é de conhecimento oficioso.
Tendo apenas sido invocada em sede de recurso, é matéria nova, pelo que, não sendo de conhecimento oficioso, jamais poderia ser aqui considerada.
É que o objecto do recurso é a decisão, pois os recursos visam modificar decisões e não proferi-las sobre matéria nova, tal como tem sido entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina[32].
Ainda assim, porque ali se fala em “manifesta desproporcionalidade”, não podemos deixar de dizer que a alegação é manifestamente deficiente.
Além disso, o pedido não foi formulado expressamente na “réplica”, como devia ser, por ser o articulado de resposta à contestação, onde foi deduzida a reconvenção com fundamento na mesma cláusula. E a alegação, reportada sempre às nulidades invocadas, foi ali feita de forma conclusiva, quando devia traduzir-se em factos que eventualmente integrassem um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, para que, depois de provados, o tribunal pudesse conhecer da alegada desproporcionalidade da cláusula penal.
Ainda assim, não deixou de se referir à aludida desproporcionalidade e concluir pela sua nulidade ou excessividade e, consequentemente, pela não redução da cláusula penal.
Tal deficiência continuou na fase de recurso, pois, não tendo sido alegados, não podiam ser dados como provados os respectivos factos, nem suprida a falta de pedido, como não foi, atento o princípio dispositivo, consagrado no n.º 1 do art.º 5.º, também já citado, e visto não ser caso a ele subtraído, por o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo mencionado art.º 812.º, não ser de conhecimento oficioso, como se referiu, mas dependente de pedido do devedor da indemnização, o qual também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados.
E os factos provados, únicos que importa considerar, não permitem fazer este juízo de desproporcionalidade.
O incumprimento contratual por parte da autora/reconvinda impediu a ré/reconvinte de obter o lucro que, notoriamente, auferiria com a venda do café que foi objecto do contrato celebrado entre as partes.
Nem se diga que ela não sofreu qualquer prejuízo advindo desse incumprimento, nem que não lhe forneceu todo o equipamento.
Este é o que consta do anexo II, referenciado no n.º 9 dos factos provados, o qual foi efectivamente entregue à reconvinda, tal como foram realizadas as obras ali previstas, como consta do n.º 27 da fundamentação de facto, e só eles relevam, para este efeito, não havendo que chamar à colação o ar condicionado, por não estar ali previsto. Tudo no valor de 32.200,00 €, fixado por ambas as partes (cfr. facto provado sob o n.º 28).
Não há que equacionar o valor resultante do incumprimento com o que resultaria do seu normal cumprimento, já que foi a autora/reconvinda quem violou o contrato e deu causa à resolução, bastando que o tivesse cumprido para evitar a resolução e o funcionamento da cláusula penal.
Esta reveste uma função fundamentalmente, ressarcitiva e tarifada, de natureza compulsória, actuando como meio de pressão sobre o devedor, mediante a ameaça de uma sanção pecuniária, com vista ao cumprimento pontual das obrigações que assumiu, mas cujos danos advenientes do seu incumprimento, em consequência da inexecução da obrigação ou da violação do contrato, não importa averiguar, nem determinar o seu montante, na hipótese da sua verificação, e bem assim como, igualmente, o respectivo nexo causal[33].
Não há, por isso, que atender a outros eventuais danos, nem que fazer quaisquer deduções, como pretende a apelante.
Acresce que o poder do juiz conferido pelo citado art.º 812.º não se destina a invalidar ou suprimir a cláusula penal, mas a reduzi-la nos exactos termos nele previstos, isto é, “quando for manifestamente excessiva”, exigindo-se, para tanto, a verificação de uma desproporção substancial e manifesta entre o dano causado e a pena estipulada, o que não ocorre no presente caso.
A ré/reconvinte limitou-se a pedir o valor da indemnização que lhe é conferido pela aludida cláusula, ou seja, o valor de 32.200,00€ pelo valor do equipamento entregue à autora/reconvinda e pelas obras realizadas no estabelecimento desta e 49.350,00€, correspondente ao montante de 10,00€, por cada quilograma de café que faltava para cumprimento integral do contrato.
Com se havia comprometido consumir 6.600 Kg e só consumiu 1.665 Kg, restavam-lhe consumir 4.935 Kg.
Multiplicando esta quantidade que faltava para cumprir o contrato pelo montante de 10,00€, obtém-se a importância de 49.350,00€.
Finalmente, somando esta importância ao valor do equipamento cedido e obras realizadas, obtém-se exactamente o valor pedido.
Verificado o fundamento da resolução e extinto o contrato por efeito desta, a ré/reconvinte nada mais fez do que exigir um dos efeitos dessa mesma resolução, qual seja a indemnização estipulada como cláusula penal compensatória, correspondente ao valor do equipamento e das obras realizadas e ao consumo de café em falta, nos termos convencionados e referidos na sentença.

Improcedem, por conseguinte, ou são irrelevantes, as restantes conclusões.
A apelação tem, pois, que improceder, com a consequente confirmação da sentença.
Sumariando:
1. As nulidades da sentença, cujas causas estão taxativamente enunciadas no n.º 1 do art.º 615.º do CPC, não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito, pelo que não pode ser reconhecida a nulidade por falta de motivação de factos provados, quando é fundamentada em erro de julgamento, podendo dar lugar, quando muito, ao suprimento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, d), do mesmo Código.
2. A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter sempre que se mostre apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
3. O princípio do dispositivo ou da controvérsia, consagrado no n.º 1 do art.º 5.º do CPC, impede que o juiz considere, na decisão, factos essenciais não alegados pelas partes nos articulados.
4. O direito de resolução, enquanto meio de extinção do vínculo contratual, quando não convencionado pelas partes, depende da verificação de um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado, cujo ónus de alegação e prova competem à parte que o invocou.
5. O mesmo pressupõe o incumprimento definitivo de uma prestação contratual e exige gravidade da violação, sendo esta apreciada em função das consequências desse incumprimento para o credor.
5. O regime das cláusulas contratuais gerais é aplicável ao clausulado inserido num contrato individualizado, cujo conteúdo, previamente elaborado, o destinatário não pode influenciar, pelo que não tem lugar quando a cláusula anulanda está a coberto de uma transacção homologada por sentença transitada em julgado.
6. O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, concedida pelo art.º 812.º do Código Civil, depende do pedido do devedor da indemnização que também tem o ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula estabelecida e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação aos danos efectivamente causados, podendo o juiz, se provados, reduzir, mas não invalidar ou suprimir, a cláusula penal manifestamente excessiva.
III. Decisão
Por tudo o exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.
*
Custas pela apelante (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
*
Porto, 26 de Outubro de 2017
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
______
[1] Que, apesar de extensas e repetitivas das alegações, aqui se transcrevem (apenas com alteração da formatação), não se dando cumprimento ao disposto no n.º 3 do art.º 639.º do CPC, porque raramente se alcança o objectivo do convite nele previsto, para evitar delongas processuais, combater a morosidade e imprimir maior celeridade processual, por nós sempre defendida e praticada, não obstante o elevado volume processual que vem sendo distribuído.
[2] 13 na sentença.
[3] 15 na sentença.
[4] 19 na sentença.
[5] 20 na sentença.
[6] 21 na sentença.
[7] 22 na sentença.
[8] 23 na sentença.
[9] 2.º 22 na sentença.
[10] 2.º 23 na sentença.
[11] 24 na sentença.
[12] 25 na sentença.
[13] 27 na sentença.
[14] Cfr., entre outros, o nosso acórdão de 11/10/2017, que aqui seguimos e reproduzimos nesta parte.
[15] Cfr. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. revista, 1985, págs. 687 e 688.
[16] Cfr. José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 2.ª edição, pág. 703 e doutrina e jurisprudência aí citadas, a propósito do anterior CPC, nomeadamente do art.º 659.º, n.º 2, de igual teor ao acima citado.
[17] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 137, Antunes Varela e outros, em Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 686; acórdãos do STJ, de 13/2/1997 e de 21/5/1998, na CJ, ano V, tomo I, pág. 104 e ano VI, tomo II, pág. 95, da RC de 18/1/2005 e da RL de 16/1/2007, proferidos nos processos n.ºs 2545/2004 e 8942/2006-1, disponíveis em www.dgsi.pt, a propósito do antecessor daquele artigo, de igual teor.
[18] No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 221 e 222.
[19] In Código de Processo Civil anotado, vol. IV, pág. 570.
[20] Vaz Serra, citando Nikisch, in “Provas, Direito Probatório Material”, BMJ n.º 110, 97.
[21] STJ, de 9-2-2005, Pº nº 04P4721, www.dgsi.pt
[22] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 348 e Ac. da RC de 3/10/2000, CJ, ano XXV, tomo IV, pág. 27.
[23] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, pág. 14.
[24] Autores e obra acabados de citar, pág. 15 e os nossos acórdãos de 14/9/2015 e de 3/5/2016, proferidos nos processos n.ºs 10200/11.2TBVNG.P1 e 7180/12.0TBVNG-B.P1 que aqui seguimos e quase que reproduzimos nesta parte.
[25] Cfr. Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2.ª edição, pág. 146.
[26] Cfr. acórdão do STJ de 14/11/2013, processo n.º 122/09.2TJLSB.L1.S1, disponível no respectivo sítio da internet, em www.dgsi.pt, onde são enunciadas as três características básicas das cláusulas contratuais gerais como: a pré-elaboração, a rigidez ou inalterabilidade por via negocial e a generalidade.
[27] Consagrado no DL n.º 446/85, de 25/10, e subsequentes alterações introduzidas pelo DL n.º 220/95, de 31/8 e pelos DL n.ºs 249/99, de 7/7, e 323/2001, de 17/12, a que nos referiremos quando não seja indicada outra origem.
[28] Cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 17/11/98, de 9/2/99 e de 5/12/2002, na CJ – STJ -, ano VI, tomo III, pág. 120 e VII, I, 99 e Sumários, 2002, 10, respectivamente.
[29] Cfr., neste sentido, nomeadamente, Pinto Monteiro, em Cláusula Penal e Indemnização, págs. 735-737; Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., pág. 81; Calvão da Silva, em Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 275; os Acs. do STJ de 17/2/98, na CJ – STJ -, ano VI, Tomo I, pág. 72 e no BMJ n.º 474, pág. 457, de 30/9/2003, de 20/11/2003 e de 17/5/2012 in http://www.dgsi.pt/jstj processos n.ºs 03A3514, 03A1738 e 3855/05.9TVLSB.L1.S1; e desta Relação de 8/4/91, de 23/11/93 e de 26/1/2000, na CJ, respectivamente, Ano XVI, tomo II, pág. 256, XVIII, V, 225 e XXV, I, 205 e o nosso citado acórdão de 15/1/2013.
[30] Cfr. acórdão do STJ de 17/5/2012, acima citado.
[31] Dizemo-lo com todo o respeito, sempre merecido.
[32] Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 16/3/72, 13/3/73, 5/2/74, 29710/74, 7/1/75, 25/11/75 e de 12.6.91, publicados no BMJ, respectivamente, n.ºs 217, p. 103; 225, p. 202; 234, p. 267; 240, p. 223; 243, p. 194 e 251, p. 122 e 408, p. 521 e Castro Mendes, "Recursos", 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, "Recursos em Processo Civil", 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes "Recursos em Processo Civil - Novo Regime", pág. 90.
[33] Cfr. acórdão do STJ de 24/4/2012, processo n.º 605/06.6TBVRL.P1.S1, disponível em ww.dgsi.pt.