DESCONTO NA PENA DE PRISÃO ANTERIOR
EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONTAGEM DOS PRAZOS DAS PENAS DE PRISÃO
Sumário

Iº Com a redacção introduzida pela Lei nº59/07, de 4Set., ao art.80, nº1, do Código Penal, passou a admitir-se a extensão do desconto a um processo diferente daquele em que foram aplicadas as medidas de privação de liberdade previstas nesse preceito legal;
IIº Contudo, não se acolheu um sistema ilimitado de desconto, exigindo-se que o facto por que o arguido for condenado seja anterior à decisão final do processo no âmbito do qual essas medidas foram aplicadas;

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório

No âmbito do Processo Comum com o n.º 31/08.2TELSB que corre termos na 1ª Secção do Juízo de Grande Inst. Criminal (Juiz 2) da comarca da Grande Lisboa-Noroeste – Sintra, vem o arguido A..., actualmente recluso no E.P. de Vale de Judeus, interpor recurso da decisão do Mm.º Juiz que rejeitou proceder ao desconto de períodos de prisão sofridos.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1- O recorrente veio, previamente à liquidação da pena, e face ao trânsito em julgado em 4-8-2011, expor e requerer ao Tribunal a quo o seguinte:
“… Cabendo ao Estado o direito de punir, indelegável e intransmissível, não pode prescindir-se, ao usá-lo, de uma boa consciência, devendo o Estado manter em todo o processo punitivo uma superioridade ética…” Proc. 4509/03 - Habeas Corpus “O caso A...” in http://www.verbojuridico.com/”
- O Estado Português rege-se por Princípios penais aplicáveis erga omnes; um desses Princípios é o da Humanidade da Pena, sendo vedado penas com carácter perpétuo ou indefinidas, correlacionado com a dignitas humana (arts. 1º, 29º, 30º e 32º da Lei Fundamental).
- Na elaboração da Liquidação da Pena vigora o Princípio da Imputação ou Princípio Geral do Desconto que é admitido sem restrições – art. 80º Código Penal e cfr. a Jurisprudência.
- O Pº 292/98.3jglsb – 1ª Vara Criminal Lisboa traduz “crédito” de 28 meses de prisão injustiçada, que o arguido tem a “cobrar” e que V. Exas. podem confirmar oficiosamente:
. prisão no EP P.J. de 26-9-1999 até 18-10-1999……….21 dias
. prisão no EP Linhó de 7-10-2004 até 21-10- 2004…….15 dias
. prisão no Brasil em 16-Março-2005, extradição para Portugal, julgamento e absolvição com libertação em 4-Junho- 2007…………………………………………..801 dias
TOTAL DE PRISÃO SOFRIDA À ORDEM DO PROC 292/98.3jglsb: 837 DIAS, ou seja cerca de 28 MESES - a melhor confirmar previamente à Liquidação da pena.
Em súmula: o arguido esteve preso, pelo menos e a melhor confirmar por V. Exas.:
- 28 meses no Proc. 292/98jglsb da 1ª Vara Criminal Lisboa
- 6 meses e 3 dias no Proc. 581/04.0TBSSB de Sesimbra – Ministério Público
- 3 meses no caso do Tribunal de Condeixa
TOTAL A “HAVER” E A DESCONTAR: cerca de 36 ou 37 MESES.
- O Princípio da Imputação destes tempos de sofrimento em celas frias e cinzentas de 5 m2, implica que à pena de 8 anos sejam subtraídos os cerca de 37 meses de prisão injustiçada ou que resultou em absolvição / não pronúncia. Deferindo ao requerido, recolhendo já a informação correcta dos tempos de prisão sofridos pelo arguido A..., no âmbito dos casos supra id., e imputando-os na Liquidação da Pena, se fará a mais Lídima Justiça!
2- O Tribunal a quo rejeitou o desconto pois entendeu que os factos pelos quais o arguido foi condenado nos presentes autos foram praticados muito depois das Decisões finais dos Proc. 292/98.3jglsb e 581/04.0tbss
3- O recorrente entende que, não tendo sido condenado nos supra id. processos tem um CRÉDITO que urge descontar nestes autos.
4- Em caso similar, no Proc. 82/01.8jelsb do 3º Juízo Criminal Cascais o arguido C… viu o Douto Tribunal Colectivo DESCONTAR 305 DIAS no âmbito de um processo onde foi ABSOLVIDO ao abrigo do artº 80 do C. Penal – Doc. 1.
5- Acresce que em sede de Cúmulo Jurídico no Proc. NUIPC 111/01.5sdlsb da 6ª Vara Criminal arguido preso B…., o Tribunal Colectivo no âmbito de um Cúmulo Jurídico entendeu “não agravar exponencialmente a reclusão imposta ao arguido”- Doc 2
6- Estes períodos de prisão devem agora ser objecto de DESCONTO na pena de 8 anos pois a JUSTIÇA não pode ter 2 pesos e 2 medidas.
7- O art. 80 do Cód. Penal deve ser entendido no sentido de que, tendo o arguido sido absolvido num processo anterior aos factos pelos quais foi condenado, deve ver “creditado” o tempo aí sofrido: “O Princípio da Imputação implica que o Legislador abandona a unidade do processo como requisito exclusivo do desconto, admitindo irrestritamente o desconto… a Imputação tem lugar ainda que a prisão preventiva tenham sido sofridos num processo diferente… Sr. Juiz Paulo Pinto Albuquerque, Comentário ao Cód. Penal, pág 250 - Ed. Univ. Católica
8-No caso do Pº 81/01 de Cascais o Tribunal atendeu aí à prisão sofrida pelo cidadão C… por factos praticados antes dos narrados nesses autos; ou seja, os factos deste caso pelo qual foi condenado em 8 anos foram muito posteriores à Decisão do anterior caso (P° 678/91.4 tclsb da 8ª Vara Criminal Lisboa):
- o arguido foi preso em 2001 por 305 dias e foi absolvido - P° 678/91 da 8ª Vara Criminal
- o arguido foi condenado em 8 anos em Cascais e iniciou cumprimento da pena 2009. O Tribunal de Cascais DESCONTOU os 305 dias sofrido à ordem do caso de 2001
9- Está em causa a JUSTIÇA: “A IGUALDADE entendida como PROPORCIONALIDADE MATEMÁTICA é a FORMA GERAL DA JUSTIÇA... dixit Prof. António Braz Teixeira - Sentido e Valor do Direito, pág 167, Edimprensa Nacional - Casa da Moeda,
10- Ao interpretar o artº 80 do C.P., no sentido de que os períodos de prisão sofridos anteriormente e que culminaram em Não Pronúncia ou em Absolvição, em Decisões proferidas anteriormente, não podem ser imputados no desconto da pena, o Tribunal a quo violou os arts. 1º, 13º e 32º da Lei Fundamental.
11- Tal interpretação acarreta inconstitucionalidade de norma e presta-se a casos aberrantes que traduzem manifesta desigualdade perante a mesma Lei.
12- Se o arguido foi condenado e vê a pena englobada / descontada em sede de Cúmulo Jurídico, por maioria de razão há-de ver descontado o período de tempo em que foi absolvido, mesmo que em processo diferente e por Decisão muito anterior.
13- A Lei é feita pelo homem e é sujeita a ERRO (errare humanum est). O Direito é a ciência de aplicação, é uma técnica do BOM e do EQUITATIVO (ius est ars nobi et aequi). A tudo isto sobrepõe-se a JUSTIÇA e só há Justiça quando os Homens são IGUAIS perante a LEI e o DIREITO!
14- A pena deve ser subordinada ao Princípio da Humanidade e não prorrogar ad eternum a retenção do cidadão numa cela fria e húmida de 5 m2, devendo a LEI SER IGUAL PARA TODOS: “um dos Princípios fundamentais do direito penal é o da igualdade nas decisões da Justiça e de ausência de disparidades injustificadas na aplicação da penas. O cidadão comum não percebe muitas vezes as Decisões Judiciais porque casos semelhantes têm soluções diametralmente díspares, sendo umas pessoas castigadas com grande severidade e outras beneficiando de uma especial brandura...” -Senhor Juiz Conselheiro Simas Santos e Mestre Paulo Pinto Albuquerque in Expresso - 7 Fevereiro 2009 - pág. 37
15- Ora, “... a igualdade consiste em tratar por igual o que é essencialmente igual e em tratar diferentemente o que essencialmente for diferente. A igualdade proíbe as distinções arbitrárias ou sem fundamento material bastante...” Ac Tribunal Constitucional 433/87 in B.M.J. 371, 145
16- Nestes termos e face ao expendido e atenta na sua essência a Decisão de Cascais - Doc 1- deve ser descontada na pena de 8 anos os períodos de prisão já sofridos pelo recorrente nos supra id. processos, pois só assim há JUSTIÇA IGUAL!
A não se atender a pretensão do recorrente constata-se violação dos arts. 1º, 13º, 29º, 30º, 32º da Lei Fundamental e arts. 3º, 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Normas violadas: artº 80º do Cód Penal, artsº 1º, 13º, 29º, 30º e 32º da Lei Fundamental e arts. 3º, 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
O Tribunal a quo interpretou o artº 80 do CP no sentido de que os tempos de prisão sofridos em processos / Decisões anteriores à dos presentes autos, o arguido não tem direito a descontar esses períodos de prisão...
O recorrente entende que, tendo sofrido perseguição do Estado Português e tendo estado preso 837 dias sem ser condenado / não pronunciado, deve ver “creditado/ descontado” tal quantum na pena que cumpre, isto é 8 anos = 96 meses devem ser reduzidos em 28 meses e
21 dias para 67 MESES e 6 dias pois só assim há Justiça em Portugal!!!
Caso contrário é impossível compreender / aceitar a imposição de pena desenquadrada Vida e da Justiça dos Homens que deve (deveria) ser IGUAL para todos!
À Lei “errada” ou “injusta” do Legislador comodamente sentado nas poltronas da Assembleia da República sobrepõe-se o Direito e a JUSTIÇA!!!
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O Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância propugnou porque fosse negado provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1- A questão que o arguido coloca no seu recurso é apenas a de se saber se o artº 80 nº 1 do Código Penal contempla a ideia de descontar no tempo de prisão em que arguido foi condenado num processo todo o período de privação da liberdade que suportou em outro ou outros processos autónomos pelos quais veio a ser absolvido/despronunciado, quando tais decisões tenham sido proferidas em momento anterior à data da prática dos factos que levaram à sua condenação.
2- De acordo com a exegese do dito preceito e atento à interpretação mais recente que os Tribunais Superiores têm dele vindo a fazer, só é de descontar no cumprimento da pena de prisão todas as medidas de coacção referidas no número 1 e sofridas pelo arguido, ainda que aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
3- O artº 80 nº 1 do Código Penal, contempla um verdadeiro requisito objectivo de aplicabilidade, qual seja, as privações de liberdade sofridas em processos distintos àquele em que foi condenado em prisão e dos quais foi absolvido ou despronunciado, só são de descontar no processo condenatório se os factos a ele respeitante tiverem sido cometidos antes da prolação daquelas decisões.
4- O crime por que o recorrente foi condenado e pelo qual tem de cumprir 8 anos
de prisão foi cometido depois das decisões absolutórias proferidas no processo nº 292/98 jglsb, da 1ª Vara Criminal de Lisboa, 582/04.0TBSSB, da Comarca de Sesimbra - Ministério Público e no processo que correu termos pelo Tribunal de Condeixa.
5- Sendo assim, não há pois que proceder ao desconto na condenação de oito anos de prisão sofrida nestes autos do tempo de privação da liberdade sofrido no âmbito dos processos invocados pelo recorrente.

Nesta Relação, a Digna Procuradora-geral Adjunta emitiu douto Parecer em que acompanha a posição defendida pelo Ministério Público na primeira instância.
O recorrente respondeu nos termos já explanados no recurso.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

Em questão está a interpretação do nº 1 do art. 80º do Cód. Penal.
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Fundamentação
A decisão recorrida é a seguinte:
O arguido A… foi condenado nos presentes autos, nos termos do acórdão proferido a 4 de Junho de 2010, confirmado por douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e posteriormente alterado pelo douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 2011, transitado em julgado, na pena de 8 (oito) anos de prisão.
O arguido foi detido no dia 3 de Março de 2009 e foi sujeito à medida de prisão preventiva, em sede de primeiro interrogatório judicial, no dia 4 de Março de 2009, situação em que se manteve ininterruptamente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória (art. 80º, nº 1 do Código Penal).
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Veio o arguido A… requerer, nos termos do requerimento de fls. 5149 e seguintes, alegadamente nos termos do art. 80º, nº 1 do Código Penal, o desconto do tempo de prisão preventiva pelo mesmo sofrido nos Processos nº 292/98.3JGLSB, da 1ª Vara Criminal de Lisboa (segundo o arguido, 28 meses) e 581/04.OTBSSB, do Tribunal Judicial de Sesimbra (segundo o mesmo, 6 meses e 3 dias), bem como de 3 meses de prisão sofridos em processo que correu termos no Tribunal Judicial de Condeixa, cujo número não indica, alegando que no primeiro foi absolvido e no segundo nem sequer foi pronunciado (nada referindo, a este propósito, no que diz respeito ao terceiro processo).
Atendendo a que não constam dos autos quaisquer elementos que permitam, com rigor, contabilizar o tempo de prisão preventiva, detenção ou obrigação de permanência na habitação sofridos pelo arguido A… à ordem dos referidos autos, não constando igualmente qualquer informação acerca do teor das decisões finais proferidas no âmbito dos mesmos, respectivas datas e trânsitos em julgado, o que desde logo se afigura essencial para definir a aplicação do art. 80º, nº 1 do Código Penal, sempre se dirá que:
O art. 80º, nº 1 do Código Penal dispõe que a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sida aplicadas em processo diferente daquele que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Ora, pela simples leitura do requerimento apresentado pelo arguido, e fazendo fé nas datas de prisão pelo mesmo alegadas, tudo leva a crer que a decisão absolutória proferida no Processo nº 292/98.3JOLSB, da 1ª Vara Criminal de Lisboa é anterior (ou concomitante) a 4 de Junho de 2007, data em que o arguido foi libertado à ordem desses mesmos autos; e que o despacho de não pronúncia proferido no Processo nº 581/04.0TBSSB, do Tribunal Judicial de Sesimbra, é anterior ou concomitante a 17 de Outubro de 2004, data em que o arguido foi igualmente libertado à ordem do mesmo.
Datando os factos em causa nos presentes autos de Fevereiro e Março de 2009, pode, pois, verificar-se que os mesmos foram praticados posteriormente (diríamos, muito posteriormente) às supra referidas decisões absolutória e de não de pronúncia, pelo que não pode o tempo de prisão sofrido pelo arguido à ordem de tais processos ser descontado na pena a cumprir à ordem dos presentes autos, por não se mostrar verificado o circunstancialismo a que alude o nº 1 do art. 80º.
Pelo exposto, e desde já, cumpre proceder à liquidação da pena do arguido A…, sem prejuízo, para que não resultem quaisquer dúvidas, até porque se desconhece o sucedido no alegado processo que correu termos no Tribunal Judicial de Condeixa, de se oficiar a todos os referidos processos, nos termos supra referidos.
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Assim, para os fins do art. 61º do Código Penal, o arguido:
- atingirá o meio da pena em 3 de Marco de 2013
- atingirá os 2/3 da pena em 3 de Julho de 2014
- atingirá os 5/6 da pena em 3 de Novembro de 2015
- atingirá o fim da pena em 3 de Março de 2017.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

O recorrente pretende ver reconhecido que o nº 1 do art. 80º do Cód. Penal abrange a possibilidade de descontar no tempo de prisão em que foi condenado num processo, todo o período de privação da liberdade que suportou noutro ou noutros processos autónomos pelos quais veio a ser absolvido/despronunciado, mesmo que tais decisões tenham sido proferidas em momento anterior à data da prática dos factos que levaram à sua condenação.
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O instituto do desconto prevê a possibilidade de que o arguido possa ver descontado, no cumprimento da pena de prisão em que venha a ser condenado, o tempo sofrido em medidas de privação de liberdade – como a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação – que lhe tenham sido aplicadas (cfr. o art. 80º do Cód. Penal), e em pena anterior que venha a ser substituída por outra (cfr. o art. 81º do mesmo Cód.), ainda que as medidas processuais ou a pena anterior, pelo mesmo ou pelos mesmo factos, tenham sido sofridas pelo agente no estrangeiro (cfr. o art. 82º seguinte).
O caso agora em análise insere-se na previsão do art. 80º do Cód. Penal.
Estipula o nº 1 do art. 80º que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
Estribado na última parte do preceito, o Mmo. Juiz a quo indeferiu a pretensão do recorrente de que lhe fossem descontados os períodos de privação de liberdade sofridos noutros processos autónomos, em que foi despronunciado ou absolvido, mas em que tais decisões foram proferidas muito antes da prática dos factos agora em causa.
É contra tal interpretação, literal, que se insurge o recorrente, que entende que só pode haver “justiça”, se forem consideradas igualmente como passíveis de desconto, no tempo de prisão em que agora foi condenado, todos os períodos de detenção que suportou nos processos em que foi absolvido ou despronunciado, mesmo que tais decisões sejam anteriores à prática dos factos por que foi condenado.

Diga-se, antes de mais, que ao instituto do desconto subjaz uma ideia de justiça material.
Com efeito, como refere Figueiredo Dias (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 297), tal instituto assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido lhe devem aproveitar, sendo imputadas ou descontadas na pena em que o agente, em virtude de uma condenação já transitada em julgado, deva cumprir.

No que rege ao instituto do desconto, estatuía o nº 1 do art. 80º do Código Penal aprovado pelo D.L. nº 400/82, de 23 de Setembro, que “a prisão preventiva sofrida pelo arguido no processo em que vier a ser condenado é descontada no cumprimento da pena que lhe for aplicada”.
Na versão introduzida pelo D.L. nº 48/95, de 15 de Março, o nº 1 do art. 80º passou a determinar que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação, sofridas pelo arguido no processo em que vier a ser condenado, são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão que lhe for aplicada”.
A actual redacção do nº 1 do art. 80º foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, estipula, como supra se disse, que “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
Como se vê, no regime anterior eram descontadas na pena as medidas de privação de liberdade de carácter processual sofridas pelo arguido no processo em que viesse a ser condenado. Com a redacção da Lei nº59/2007, de 4 de Setembro, foi eliminado o anterior pressuposto da unidade processual, admitindo-se a extensão do desconto a um processo diferente daquele em que tinha tido lugar a aplicação daquelas medidas de privação de liberdade.
Na Proposta de Lei nº 98/X, que teve por fonte os trabalhos da Unidade de Missão para a Reforma Penal, criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 113/2005, de 29 de Julho, com, além de outros, o objectivo de elaborar uma proposta de diploma de reforma do Código Penal, o nº 1 do artigo 80º tinha a seguinte redacção: “a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado”. A propósito desta redacção, pode ler-se na exposição de motivos da mesma proposta de lei que “estatui-se que todas as medidas privativas da liberdade sofridas antes da condenação são descontadas na pena de prisão. Incluem-se neste cômputo a simples detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação. A inovação consiste em prescindir, para efeito de desconto, da exigência de as medidas terem sido aplicadas no mesmo processo, admitindo-se de modo expresso que digam respeito a processo diferente”.
Mas, na sequência da aprovação na generalidade e baixa à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias daquela Proposta de Lei n.º 98/X, o art. 80º veio a incluir a proposta oral do PS de aditamento de um final ao nº 1, com o seguinte teor “quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”, redacção que veio a ser aprovada, na reunião da Comissão de 11 de Julho de 2007.
Ou seja, o legislador abandonou a unidade do processo como requisito do desconto, mas não acolheu um sistema ilimitado de desconto.
De facto, como refere Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, em anotação ao art. 80º, p. 292), um sistema ilimitado de desconto poderia constituir um incentivo objectivo à prática de crimes.
Neste sentido, esclarece Jorge Baptista Gonçalves (in A revisão do Código Penal: Alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares, Revista do Cej, Jornadas sobre a revisão do Código Penal, 1º Semestre 2008, Nº 8 (Especial), pp. 15-40), no anteprojecto e na Proposta de Lei nº 98/X previa-se um sistema “que podemos chamar de conta-corrente de liberdade, em que se lançariam a crédito os tempos de privação da liberdade (por detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação) aplicados em qualquer processo, lançando-se a débito as condenações transitadas em julgado. Como não se estabelecia qualquer limite temporal, a norma permitia, numa interpretação literal, que se guardasse ‘em carteira’ um período de privação da liberdade (sofrido, por exemplo, num processo que findara com uma absolvição) para descontar em penas sofridas por factos praticados em momento posterior, o que colocaria em crise as finalidades preventivas gerais associadas à previsão dos crimes e cominação das penas”.
Em suma, como se escreve no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência de 20.10.2011 (proferido no âmbito do Processo 29/04.0JDLSB-O.S1 e que versa sobre o instituto do desconto, embora não directamente sobre a questão agora em análise), “No sistema actual – eliminado o requisito da unidade processual –, o desconto pode (deve) ser efectuado em processo diferente daquele em que as medidas processuais privativas de liberdade (detenção, prisão preventiva, obrigação de permanência na habitação) foram aplicadas ao arguido desde que verificado o pressuposto de o facto objecto de condenação ser anterior à prolação da decisão final no processo em que as medidas foram aplicadas.
Nos termos da lei, a condição única para o desconto de medidas processuais privativas de liberdade em processo diferente daquele em que essas medidas foram aplicadas é a anterioridade do facto por que o arguido for condenado relativamente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
Ou, dito de outro modo, só não se efectuará o desconto da detenção, da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação em processo diferente daquele em que o arguido a elas foi sujeito quando o facto por que o arguido for condenado for posterior à decisão final do processo em que essas medidas foram aplicadas.
Neste requisito da anterioridade do facto objecto de condenação num processo, em relação à decisão final de outro processo, no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, esgota-se o inciso final do n.º 1 do artigo 80.º que traduz o objectivo de estabelecer um limite temporal inultrapassável para o desconto na pena de prisão em que o arguido venha a ser condenado num processo, das medidas processuais privativas de liberdade, por ele sofridas, em um outro distinto processo. Tal limite temporal é a data da decisão final proferida no processo no âmbito do qual essas medidas foram aplicadas.
Deste modo, obsta-se a que o arguido que foi sujeito a medidas processuais privativas de liberdade num processo, no âmbito do qual não pôde proceder-se ao desconto das medidas processuais sofridas ou não pôde proceder-se ao desconto, por inteiro, das medidas processuais sofridas, mantenha, a seu favor (em seu benefício), um tempo de privação de liberdade, que lhe possa vir a aproveitar, por via do desconto, na eventual condenação por crime futuro, quer dizer, por crime praticado posteriormente à decisão final do processo em que sofreu tais medidas.

A limitação prevista no último inciso do artigo 80.º, n.º 1, de que só se desconte o tempo de privação de liberdade sofrido noutras causas por factos anteriores à decisão final do processo no âmbito do qual o arguido sofreu as medidas processuais privativas da liberdade tem o sentido de evitar o desconto do tempo de privação de liberdade anteriormente sofrido em processos por factos posteriores de forma a não gerar, em quem tivesse a seu favor um tempo de privação de liberdade sobrante, um crédito ou saldo positivo de tempo de privação de liberdade por conta de um futuro crime o que poderia equivaler a uma compensação em pena futura como se de um convite a delinquir se tratasse.
Desta forma, do que se trata é de evitar situações que repugnariam aos fins preventivos das penas”.
Acresce que, como lembra Maia Gonçalves (Código Penal Português, Anotado e Comentado, 18ª edição, Almedina, em anotação ao art. 80º, pp. 317 e 318), “a versão da Proposta governamental para o nº 1 deste artigo prestava-se a severas críticas, designadamente porque podia fornecer aos arguidos um somatório de antigas medidas processuais de coacção a descontar em futuras condenações que obstariam ao cumprimento de penas que podiam até ser necessárias para a sua integração”.

Assim, ao contrário do que defende o recorrente, forçoso é concluir que o desconto só pode ser efectivamente aplicado “quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
Por outro lado, nem a letra da Lei (nº 1 do art. 80º do Cód. Penal) nem esta interpretação – diga-se, de acordo com a letra e com o espírito da Lei – ofendem os arts. 1º, 13º, 29º, 30º e 32º da Constituição da República Portuguesa, ou os arts. 3º, 5º e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e confirmam o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) UCs, sem prejuízo do disposto na alínea j) do nº 1 do art. 4º do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 6 de Dezembro de 2011

Relator: Alda Tomé Casimiro;
Adjunto: Paulo Barreto;