INVENTÁRIO
CAUSA PREJUDICIAL
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

Não constitui causa prejudicial de processo de inventário, justificativa da suspensão da respectiva instância, acção de execução específica de contrato-promessa de transmissão de direito a quinhão na herança a partilhar.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Em 28.10.2009 A requereu nos Juízos Cíveis de Lisboa que se procedesse a inventário para partilha de herança aberta por óbito de seus avós “B” e “C”.
A requerente alegou que os de cujus faleceram no estado de solteiros, mas haviam vivido em união de facto, tendo tido três filhos, dos quais “D”, pai da ora requerente, faleceu antes dos respectivos pais. A ora requerente é herdeira universal de seu pai e por conseguinte é herdeira dos de cujus em representação do pré-falecido filho destes. As outras herdeiras são as filhas dos de cujus, “E” e “F”.
A requerente indicou como cabeça-de-casal a mencionada “E”.
Em 11.02.2010 a cabeça-de-casal prestou as legais declarações e apresentou relação de bens.
Em 02.3.2010 a requerente “A” reclamou da relação de bens, acusando a omissão de bens móveis.
Em 18.3.2010 a interessada “F” requereu que o inventário fosse suspenso, até que fosse proferida decisão final no processo n.º 1539/1997, pendente no 3.º Juízo Cível da Comarca de Loures.
Para fundamentar tal requerimento a interessada alegou que a aludida acção fora interposta por si e pelo seu falecido marido contra a ora requerente e seu marido, tendo em vista obter a execução específica de um contrato-promessa que havia sido celebrado entre as partes dessa acção, nos termos do qual a requerente “A” e o marido prometeram vender à interessada “F” o quinhão hereditário que a “A” detinha na herança de “B” e na herança de “C”, contrato-promessa esse que a “A ”e o marido se têm recusado a cumprir. Por conseguinte a requerente “A”e os filhos não podem invocar a qualidade de herdeiros de “B” e de “C”, impugnando-se a sua legitimidade para o presente processo de inventário, o qual deve ser suspenso até decisão final naquela acção, nada podendo ser entretanto pago ou adjudicado à “A” e filhos por força e à conta das referidas heranças.
“A” opôs-se ao requerido, alegando que foi habilitada como herdeira dos de cujus, tendo legitimidade para exigir a partilha das respectivas heranças assim como para requerer que se proceda a inventário e a nele intervir, não se descortinando razões para a requerida suspensão da instância.
A cabeça-de-casal declarou concordar com a suspensão do inventário nos termos do art.º 1335.º do Código de Processo Civil.
Em 13.7.2011 foi proferido despacho em que, invocando-se o disposto no art.º 279.º nº 1 do CPC, declarou-se suspensa a instância até que se mostrasse decidida, com trânsito em julgado, a acção com o n.º 1539/1997, que corre termos junto do 3.º Juízo Cível de Loures.
A requerente “A”apelou deste despacho, tendo apresentado motivação na qual formulou as seguintes conclusões:
I. Vai o presente Recurso interposto do despacho proferido nos autos que declarou suspensa a instância por suposta questão prejudicial referente a pendência de acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda do quinhão hereditário dos réus na herança de “B” e na herança de “C”, que se visa partilhar no processo de inventário.
II. Pretende a A. da referida acção, “F”, Requerida no processo de inventário, que seja proferida sentença que declare e ordene a transmissão para os autores da propriedade do quinhão hereditário dos réus nas heranças referidas.
III. Uma análise mais ponderada não conduz à conclusão de que a acção judicial referida é prejudicial em relação ao presente processo de inventário desde logo porque o quinhão hereditário da Requerente, objecto do contrato-promessa de cessão que se discute naquela acção, já foi cedido a terceiro há mais de 4 anos, apesar de omitido pela Requerida “F”.
IV. A cessionária nesse negócio ainda não se habilitou no processo de inventário, pelo que até lá a Requerente é herdeira e tem legitimidade para exigir das outras herdeiras a partilha e para agir em juízo.
V. Para além da cessão do quinhão hereditário, entende a ora Recorrente que o douto despacho recorrido não faz a melhor aplicação da lei.
VI. Segundo o raciocínio do Tribunal a quo, o processo de inventário é suspenso em virtude de este considerar que, por força de decisão favorável à A. na acção de execução específica, a ora Requerente nos autos, deixará de ter legitimidade no processo de inventário, porque vende o seu quinhão nas heranças que com aquele pretende partilhar.
VII. Não podemos perfilhar o entendimento do Tribunal a quo de que tal facto constitui uma questão prejudicial que motiva a suspensão da instância.
VIII. O Tribunal a quo pretende suspender a instância porque a Requerente do processo de inventário, que hoje tem legitimidade processual para intervir nele, mas amanhã poderá já não ter, por, entretanto, vender os seus quinhões das heranças que se pretende partilhar, à Requerida “F”.
IX. Mas esta é uma questão referente a modificações subjectivas na pendência da instância que são vicissitudes processuais que a lei processual não resolve com suspensões da instância, mas antes com substituição de interessados, nos termos do artº271 nº1 do CPC.
X. Se a Requerente tinha, e continua a ter, legitimidade para intervir e requerer o processo de inventário em causa, este tem de prosseguir, pois o problema da transmissão do quinhão da Requerente está solucionada na lei processual com uma substituição daquela pelos cessionários do quinhão, e não pela suspensão dos autos até o Tribunal a quo confirmar a legitimidade daquela nestes autos.
XI. Assim também entende a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, em Acórdão de 13.02.1996, consagrou que «(…) sendo o inventário instaurado, como aqui, a requerimento do cedente, este “continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio da habilitação, admitido a substituí-lo (artigo 271 n.1 do cit. Código) (…)».
XII. E nem se diga que a partilha dos bens das heranças pelos herdeiros impossibilitará a execução de uma sentença favorável aos seus autores no processo a correr no 3º Juízo Cível de Loures, pois o quinhão em causa já foi transmitido a terceiro, conforme supra referido.
XIII. Mais acresce que os interessados na execução específica daquele contrato-promessa têm sempre ao seu alcance meios judiciais que lhes permitem salvaguardar a eventual alienação dos bens que lhe couber na partilha das heranças pela herdeira “A”, dos quais até já lançaram mão quando intentaram acção de anulação de cessão do quinhão da Requerente.
XIV. O Tribunal a quo está, assim, a confundir modificação subjectiva da instância com questão prejudicial, com violação das normas constantes no artº270, al. a) e nº1 do 271º do CPC e nº1 do artº279, também do CPC.
XV. A questão da prejudicialidade não se coloca nesta situação, pois não pode existir nexo de prejudicialidade de objectos processuais de acções judiciais em que não é possível a formação de casos julgados contraditórios.
XVI. No caso sub judice, a partilha das heranças resultante do presente processo de inventário, qualquer que ela seja, não é susceptível de contradizer uma sentença que determine a venda de um quinhão nessa herança.
XVII. Tanto mais que a Requerente já alienou o quinhão hereditário que é objecto do referido contrato-promessa. Caso assim não se considere, sempre se dirá que,
XVIII. No processo de inventário instaurado pela Recorrente discute-se nesta fase que bens pertencem à herança, já que a Requerente deduziu reclamação da relação de bens apresentada pela cabeça de casal,
XIX. Estando ainda por dirimir questões lógica e processualmente prévias à fase de conferência de interessados com vista à partilha da referida herança.
XX. Pelo que antes de chegado o momento da partilha, nunca que se poderá colocar um problema de prejudicialidade.
XXI. A decisão de suspender o processo de inventário viola, nestes termos, o disposto no nº1 e 2 do artº1335º e 279º nº1 do CPC e artº2101 do C. Civil ao fazer uma incorrecta aplicação daquelas normas.
XXII. Caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, sempre se dirá que, a lei processual previu expressamente para os processos de inventário a admissibilidade da suspensão da instância quando «estiver pendente causa prejudicial em que se debata algumas das questões a que se refere o número 1 do artº1335 do CPC».
XXIII. No entanto, o nº3 do artº1335 do CPC admite o prosseguimento do inventário, com vista à partilha, sujeita a posterior alteração, em conformidade com o que vier a ser decidido, quando, nomeadamente, ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
XXIV. Da conjugação do nº2 com o nº3 do artº1335º do CPC, resulta que antes de se entender pela suspensão da instância por alegada pendência de causa prejudicial, é necessário ponderar que acção foi proposta, em que data, qual a natureza da acção e em que estado se encontra, de modo a poder aquilatar-se do eventual prosseguimento do inventário ou decretamento da suspensão da instância.
XXV. A acção que o Tribunal a quo colocou na dependência do ora processo de inventário foi intentada há mais 14 anos e ainda não tem data de julgamento marcada nem previsão para tal!
XXVI. A base instrutória desta acção tem 92 quesitos, encontra-se numa fase instrutória, com uma questão pericial pendente para prova do quesito 47º, tal como decorre da certidão dos autos da acção em causa (Cfr. fls 201 dos autos).
XXVII. A acção está pendente há 14 anos as heranças dos de cujus permanecem por partilhar há mais de 34 anos!
XXVIII. Não é razoável, e não é possível extrair qualquer sentido de justiça numa decisão que obriga uma herdeira, ao fim de 34 anos de herança jacente e 14 anos de pendência de uma acção alegadamente prejudicial, esperar, sem qualquer perspectiva de data de desfecho, pelo trânsito em julgado da mesma se ainda for viva…
XXIX. Mesmo que o Tribunal a quo concluísse pela prejudicialidade da acção, sempre teria que atender ao estatuído no nº3 do artº 1335 do CPC e considerar que a demora absolutamente excessiva para a decisão da causa pendente não permitiria o decretamento da suspensão do processo de inventário.
XXX. Decorre da própria fundamentação do despacho que nada do supra referido foi ponderado pelo Tribunal a quo, decisão essa que colide frontalmente com a celeridade e economia processual estatuídas no nº1 do artº265 do CPC, que com esta decisão foi violada.
A apelante terminou pedindo que o despacho recorrido fosse revogado.
A cabeça-de-casal “E” contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1ª - O douto despacho de suspensão proferido nos autos de inventário não merece qualquer censura;
2ª – Foi proferido com base no artigo 279º nº 1 do CPC. e, bem fundamentado;
3ª – O processo nº 1539/ 1997 pendente no 3º Juízo Cível de Loures é prejudicial ao presente inventário, na medida em que, caso seja julgada proced nte, alterará a composição subjectiva da presente acção.
Assim,
4ª – Deve ser mantido o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão a apreciar neste recurso é se a instância do presente inventário deve ser suspensa em virtude da pendência da acção supra referida.
O factualismo a ter em consideração é o supra referido e ainda:
1. Por escritura pública de 21 de Dezembro de 1977 foram habilitadas, como únicas herdeiras do supra identificado “B”, suas filhas “E” e “F” e bem assim, em representação de seu pai pré-falecido “D”, a requerente “A”.
2. Por escritura pública de 27 de Maio de 1997 foram habilitadas, como únicas herdeiras da supra identificada “C”, suas filhas “E” e “F” e bem assim, em representação de seu pai pré-falecido “D”, a requerente “A”.
3. Em 29.10.1997 “F” e seu marido “G” instauraram no Tribunal Judicial de Loures acção declarativa com processo ordinário contra “A” e marido “H”, pedindo que fosse proferida sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial em falta dos Réus, ou seja, declarar-se e ordenar-se a transmissão para a Autora da propriedade do quinhão hereditário da Ré na herança indivisa de “B” e da propriedade da mesma Ré na herança indivisa de “C”.
4. Para tanto os AA. alegaram que por contrato-promessa constante de documento escrito datado de 12.6.1996, os Réus declararam vender à A. mulher e esta prometeu comprar-lhes o quinhão hereditário da Ré na herança ainda indivisa do seu avô “B” e na herança ainda indivisa de sua avó “C”, tendo sido ajustado o preço global de Esc. 35 000 000$00, que os Réus já receberam, sendo certo que não cumpriram a promessa.
5. Os RR. contestaram a aludida acção, tendo sido proferido despacho saneador e redigida especificação e questionário.
6. À data do despacho recorrido o processo referido em 3 a 5 encontrava-se a aguardar a realização de perícia para avaliação do quinhão hereditário.
O Direito
Nos termos do art.º 279.º n.º 1 do CPC, o tribunal pode ordenar a suspensão da instância quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta.
Entende-se por causa prejudicial aquela que tenha por objecto pretensão que constitui pressuposto da formulada na causa “prejudicada” (v.g., Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume 1.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 544).
No despacho recorrido entendeu-se que ocorria entre as duas acções em presença um tal nexo de prejudicialidade, com a seguinte fundamentação:
“(…) atento o objecto da acção que corre os seus termos junto do 3.º Juízo Cível de Loures, constata-se que o desfecho de tal acção pode, caso a mesma seja procedente, alterar os presentes autos ao nível subjectivo, na medida em que a procedência daquela terá como consequência inevitável que a requerente do presente processo de inventário, “A”, deixe de ser interessada nos presentes autos de inventário. Ora, colocando-se a hipótese de a interessada “F” vir a adquirir os quinhões hereditários da requerente nas heranças dos ora inventariados, deve ser esta a exercer, nos presentes autos de inventário, as faculdades e direitos que na qualidade de interessada lhe assistem nos termos da lei de processo.
Com efeito, o contrato-promessa em causa na referida acção versa não sobre bens concretos, mas sobre quinhões hereditários, sem discriminação de quaisquer bens que os componham, não sendo, como tal, indiferente para a interessada “F”, caso obtenha vencimento de causa, a forma como serão compostos os referidos quinhões hereditários que lhe foram prometidos vender.
Nestes termos, entendo que a decisão a proferir nos presentes autos se mostra dependente daquela outra que vier a ser proferida pelo 3.º Juízo Cível de Loures, na medida em que aquela poderá alterar a composição subjectiva da presente acção (…)”.
Discordamos do entendimento exposto na decisão recorrida.
Em ambas as acções é pacífico que a interessada “A” é herdeira dos supra referidos de cujus, estando como tal habilitada. Ou seja, tem os poderes necessários para requerer inventário e para nele intervir (art.º 1327.º n.º 1 do CPC). Ora, não se suscitando no inventário dúvidas sobre a identidade dos herdeiros, nem pendendo acção destinada a resolver tal questão, não existe fundamento para suspender a instância. O que se passa é que, no caso de a acção declarativa pendente na comarca de Loures proceder, o direito da interessada “A” ao quinhão na herança a partilhar transmitir-se-á para a interessada “F”, em execução do contrato-promessa de compra e venda alegadamente celebrado. Mas tal decisão, como se disse, não interfere com a resolução de qualquer questão objecto do inventário, podendo apenas ter relevância ao nível da modificação subjectiva da instância.
Com efeito, citado o Réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir (princípio da estabilidade da instância), salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei (art.º 268.º do CPC).
Quanto às pessoas, a instância pode modificar-se, nomeadamente “em consequência da substituição de alguma das partes quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio” (alínea a) do art.º 270.º do CPC).
No caso de transmissão da coisa ou direito litigioso por acto entre vivos, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo (n.º 1 do art.º 271.º do CPC). A transmissão não implica, assim, a suspensão da instância até que se deduza o incidente de habilitação (que está regulado no art.º 376.º do CPC).
Quer isto dizer que no caso de procedência da aludida acção a instância do inventário continuará com a requerente “A”, até que seja deduzido o necessário incidente de habilitação, prosseguindo então, após a habilitação, a instância com o cessionário.
O facto de a eventual adquirente do quinhão hereditário se ver afastada das diligências de preenchimento do quinhão, por não ter intervindo antes no inventário, constitui aspecto que não releva no plano sub judice, pois não traduz dependência do inventário face à acção onde se processará a transmissão da quota hereditária, mas, quando muito, reflexo do andamento do inventário no interesse substantivo prosseguido pela autora na referida acção. Ora, os interesses a ter em consideração, para o efeito da modalidade de suspensão da instância sub judice, são os presentes na acção a suspender, tendo em consideração a configuração que aí assumem, e não os atinentes a outras acções. Ou seja, os eventuais reflexos negativos da prossecução do inventário na utilidade prática da acção de execução específica do contrato-promessa de transmissão de quinhão hereditário revelam que é esta acção que, nessa medida, depende do inventário e não o contrário. Quer isto dizer que a aludida acção declarativa não é prejudicial em relação ao inventário, o qual não deve ser suspenso.
Conclui-se, pois, que a apelação merece proceder.

DECISÃO
Pelo exposto julga-se a apelação procedente e consequentemente revoga-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo da cabeça de casal e da requerida “F”.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2011

Jorge Manuel Leitão Leal
Pedro Martins
Sérgio Almeida