SOCIEDADES COMERCIAIS
GERENTE
RENÚNCIA
COMUNICAÇÃO
FORMA ESCRITA
Sumário

I - Apenas para a respectiva comunicação à sociedade, e não para o próprio acto de renúncia à gerência, é exigida a forma escrita.
II - Tal comunicação deve ser dirigida a outro gerente ou, se não o houver, ao órgão de fiscalização, ou não o havendo a qualquer sócio, sendo que, perante a sociedade, tal renúncia só se torna eficaz oito dias após o recebimento de tal comunicação pela sociedade.
III - Encontrando-se sujeita a registo e publicidade obrigatórias, não é oponível a terceiros antes da publicação do registo.
IV - O art. 168º do CRC consagra um conceito lato de terceiros, abrangendo todo aquele que é estranho ao facto sujeito a registo.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):

I – RELATÓRIO.
A (…), LDA., intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário contra,
BANCO (…), S.A.,
alegando, em síntese:
em 25 de Setembro de 2008, o gerente da A., J (…), réu nestes autos, renunciou à gerência da sociedade autora, confirmando esta decisão por carta datada de 3 de Outubro de 2008 ao autor;
a 13 de Outubro de 2008 o sócio-gerente JP (…) dirigiu-se à sucursal do banco réu comunicando a sua exclusiva autorização para quaisquer pagamentos, à excepção de leasings, relativamente à conta de que autora era titular;
paralelamente, solicitou a desvinculação da conta do réu J (…);
a 20 de Outubro de 2008, foram realizadas duas transferências bancárias para a conta de um terceiro, no valor de 4 700€ e 900€, respectivamente, sem autorização e consentimento do único sócio gerente da A., J (…);
o réu banco não cumpriu os deveres de diligência impostos pela actividade bancária.
Em consequência, pede a condenação do réu no pagamento à A. da quantia de 5 600€, acrescida de juros vincendos, calculados à taxa legal em vigor, até integral e efectivo pagamento, e de juros de mora, à taxa legal, desde a data em que se verificou o pagamento daquela quantia.
            A Ré apresentou contestação, alegando em síntese:
aquela conta da autora poderia ser movimentada isoladamente, sem que fosse necessário a assinatura dos dois gerentes;
a acta junta aos autos não tem qualquer valor uma vez que carece da assinatura de um dos sócios presentes na Assembleia-Geral, de 25 de Setembro de 2008, pelo que era impossível para o banco considerar aquela acta válida;
a Ré alertou de imediato a A., na pessoa do gerente JP (…), para o facto de a cópia da acta não constituir documento idóneo nem suficiente para comprovar a renúncia do gerente J (…), informando-o ainda de que iria entrar em contacto com este;
contactado o referido J (…) pela Ré para esclarecimento da situação, o primeiro deu, por escrito, ordens contrárias às do gerente J (…), pelo que, o banco entendeu ser um desentendimento entre os gerentes da sociedade autora, não podendo, portanto, desrespeitar as ordens, do réu J (…), enquanto sócio-gerente, de transferência;
no que concerne à carta enviada pelo gerente JP.. (…) ao réu banco, este não poderia dela conhecer, já que foi remetida por fax, em 20 de Outubro de 2008, pelas 17h14m.
Conclui pela improcedência da acção.
A A. respondeu à contestação, requerendo a intervenção principal provocada, de J (…), contra o qual passa a ser igualmente deduzido o pedido, ao abrigo do art. 31º-B, do CPC.
Regularmente citado, o R. Interveniente não deduziu oposição.
Proferido despacho saneador, realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida decisão sobre a matéria de facto.
Foi proferida sentença que julgando a acção procedente, condenou os RR., Banco e J (…) no pagamento solidário da quantia de 5.600,00 €, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, até integral pagamento.
Não se conformando com a mesma, veio a Ré, Banco (…), S.A., dela interpor recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
I – A decisão do Douto Tribunal a quo, considerou que a data da renúncia do Sócio gerente da A., J.., ocorreu em 25/09/2008, considerando-se por isso, naquele momento, formada a vontade da sociedade no sentido da aceitação da renúncia, o que não pode ser tido como assente, por não existir cobertura legal.
II – A Acta apresentada pelo sócio-gerente JP… é inválida e sofre de irregularidades, não constituindo documento idóneo para efeitos de registo comercial, por não se encontrar assinada por todos os sócios presentes na Assembleia-Geral.
III – Tal acta não constitui assim, documento bastante para, sem mais, o Banco poder certificar-se cabalmente da validade de tal renúncia, quando recebe instruções contrarias do outro sócio-gerente, no sentido de que tal acta é invalida, e não são apresentados quaisquer outros documentos escritos ou certidão do registo comercial, que ateste a existência de tal renúncia.
IV – O Banco, mesmo que tal acta seja considerada válida, quanto à renúncia nela expressa, e seus efeitos, o que se concede apenas hipoteticamente, para efeitos de raciocínio, é terceiro de boa fé, nos termos do disposto nos nºs 1, 2, e 3 do art.º 14º Código do Registo Comercial.
V – Pelo que beneficia da protecção que o registo comercial confere a terceiros.
VI – Pois a renúncia à gerência do gerente de uma sociedade só é oponível a terceiros depois do respectivo registo e publicação.
VII – Da matéria dada como provada consta que não foi entregue ao Banco o documento comprovativo do registo da Renúncia à gerência, por parte do J …, ou sequer, que tal registo tenha sido efectuado, sendo tal registo obrigatório, pelo que não pode considerar-se que o Banco tenha tido conhecimento de tal renúncia, antes da data de 20/10/2008, data em que é enviado ao Banco aqui Apelante, a declaração recebida pela A., em 7/10/2008, na qual o sócio gerente declara renunciar à gerência.
VIII – Não estão reunidos os pressupostos cumulativos da responsabilidade civil, por inexistir qualquer dolo, culpa ou acto ilícito por parte do Banco, que, pelo contrário procurou cumprir com zelo e diligência os deveres a que estava adstrito, enquanto entidade bancária.
IX – Não sendo o Banco, aqui Apelado, responsável pelos danos causados à A., inexiste solidariedade.
X – Foram assim mal aplicados pelo Tribunal a quo o disposto nos artºs 483 e 497 do CC.
XI – O Douto Tribunal a quo, aplicou mal as disposições legais constantes dos artºs 166 do CSC, 3, nº 1, 15, nº 1, 14, 1, 2, e 3 , todos do CRC, bem como o disposto nos artºs 248, nº 6 e 258 do CSC.
XII – Tais normas jurídicas deveriam ter sido aplicadas e interpretadas, no sentido da invalidade da renúncia constante da acta em apreço, bem como que, tal renúncia só seria operante em relação ao Banco aqui Apelante, na sua qualidade de terceiro de boa fé, depois da data do respectivo registo; inexiste assim, responsabilidade civil e encontra-se afastada a solidariedade do Banco, aqui Apelante.
O A/recorrida apresentou contra-alegações, no sentido da confirmação do decidido uma vez que, pelo teor da acta, o Banco teve conhecimento da renúncia à gerência por parte do J (…), não sendo razoável assumir posição idêntica à de terceiro de boa-fé.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir  são unicamente as seguintes:
1. Eficácia da renúncia perante a própria sociedade.
2. Eficácia da renúncia perante a ora Ré.

III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
            A. Matéria de Facto.
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
1. A autora “A (…), Lda.” é titular da conta de depósito à ordem com o n.º … aberta na sucursal do réu “Banco (…), S.A.”, no edifício dos Bombeiros Voluntários de …, sito à Rua de …, n.º …, em ….
2. Na acta da Assembleia-Geral Ordinária da “A (…), Lda.”, datada de 25 de Setembro de 2008, e assinada por JP…,J …, E … e R …, foi declarado o seguinte: “Iniciados os trabalhos, o sócio J (…) tomou a palavra e disse no uso dela, que renunciaria à Gerência a partir daquele momento, a qual foi aceite pelo sócio JP (…).”
3. J (…) remeteu à autora, escrito datado de 03.10.2008, recebido por J (…), em 07.10.2008, na qualidade de gerente da autora, com o seguinte teor: “J (…) vem, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 258 do Código das Sociedades Comerciais, informar que renuncia às funções de gerente que até à data vem exercendo nessa sociedade.”
4. Em 13 de Outubro de 2008 JP… dirigiu-se à sucursal do réu id. no ponto 1 e comunicou o seguinte: “solicito o cativo/bloqueio a débito da conta supra, de forma a não haver quaisquer pagamentos sem autorização expressa do sócio gerente J (…), com excepção dos leasings em vigor”.
5. No dia 13 de Outubro de 2008 o gerente da autora JP… preencheu um formulário do banco ora réu, onde comunicou ao banco réu, o seguinte: “solicito desvinculação da conta em epígrafe o ex sócio gerente J …”.
6. O banco/réu recebeu os documentos referidos em 3) a 5), e nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 4) e 5), JP… entregou no banco a acta mencionada em 2).
7. Em 20.10.2008 foram realizadas duas transferências bancárias para a conta de um terceiro, uma no valor de 4 700,00€ e outra no valor de 900,00€, sem autorização ou consentimento de JP ….
8. A conta mencionada em 1) podia ser movimentada mediante a assinatura de um dos gerentes da autora, seus titulares.
9. O Banco/réu recebeu, por fax, o escrito mencionado em 3) em 20.10.2008.
10. O Banco/réu contactou o réu J… que lhe deu instruções escritas contrárias às do gerente JP…, de movimentação da conta dentro das condições de movimentação vigentes, ou seja, por qualquer um deles.
11. JP… não apresentou ao Banco/réu o documento comprovativo do registo da renúncia à gerência por parte de J ….
12. As transferências realizadas em 20.10.2008, mencionadas em 7) foram ordenadas por J …, em 19.10.2008 (domingo), através do site internet empresas.
13. A autora tem o capital social de 34 916,00€, sendo JP … o sócio maioritário com uma quota de 22.695,40€.
Consideraremos ainda como provado o seguinte facto, por se encontrar provado documentalmente (ao abrigo do disposto no nº1 do art. 712º do CPC), face ao seu interesse para a decisão da questão em apreço:
14. A cessação de funções do gerente J …, por renúncia de 03.10.2008, foi levada a registo pela Ap. … 12:50:55 UTC, e nessa data objecto de publicação (certidão junta como doc. 2, pela Ré, a fls. 45 a 48).
 B. O Direito.
1. Eficácia da renúncia perante a sociedade.
A renúncia do gerente deve ser comunicada por escrito à sociedade e torna-se efectiva oito dias depois de recebida a comunicação – nº1 do art. 258º do Código das Sociedades Comerciais.
O termo “renúncia” é usado no art. 258º para indicar o acto do gerente pelo qual ele, só por si, põe termo à relação de gerência criada por qualquer dos meios de designação permitidos pela lei, exceptuada a nomeação judicial[1].
É o acto unilateral, praticado pelo gerente pelo qual ele põe termo à situação jurídica da administração ou de gerência[2].
Segundo Raul Ventura, o nº1 do art. 258º, ao referir que a denúncia deve ser comunicada por escrito à sociedade, parece abrir uma distinção entre o acto de renúncia, que não necessitaria de forma especial e a comunicação que deve revestir a forma escrita:
“Tanto por natureza como força deste preceito, a renúncia é um acto receptício, que só pela recepção se torna eficaz para com o destinatário. Pode suceder que o agente exteriorize, por qualquer forma e perante quaisquer entidades a sua vontade de renunciar ao cargo e só posteriormente a comunique à sociedade, mas também pode acontecer que essa vontade seja expressa pela primeira vez na comunicação à sociedade, na qual se cumulam renúncia e comunicação dela[3]”.
Exigindo o art. 258º que a comunicação seja feita à sociedade, tal norma deve ser completada com o nº5 do art. 260º do CSC – a comunicação deve ser dirigida a outro gerente, ou, se não houver outro gerente, ao órgão de fiscalização, ou não o havendo a qualquer sócio[4].
Das considerações expostas, resulta, desde logo, a ausência de razão da apelante do teor das conclusões I a III das suas alegações.
Com efeito, apenas para a sua comunicação, e não para o próprio acto de renúncia é exigida forma especial – o acto de renúncia pode ser manifestado, até, verbalmente, desde que posteriormente comunicado por escrito à sociedade.
Tornam-se, assim, irrelevantes as supostas irregularidades da acta da Assembleia-Geral ocorrida a 25 de Setembro de 2008 – a manifestação de renúncia efectuada em tal assembleia, ainda que efectuada verbalmente, sempre seria inteiramente válida.
Ora, tal manifestação de renúncia não só terá sido expressa verbalmente, como foi reduzida a escrito na acta da assembleia-geral cuja cópia se encontra junta aos autos, na qual o gerente JP… apôs a sua assinatura, (ponto 2 da matéria de facto descrita na sentença).
 Dúvidas não poderão restar que, ao apor a sua assinatura num documento onde consta a declaração de renúncia do gerente, o gerente não renunciante tomou conhecimento da mesma.
Ou seja, tal renúncia foi devidamente levada ao conhecimento da sociedade, através de comunicação escrita dirigida à pessoa do seu outro sócio gerente.
De qualquer modo, e à cautela, o gerente/renunciante, posteriormente, enviou ainda à autora um escrito, datado de 03.10.2008, recebido pelo referido gerente J (…) a 7.10.2008, pelo qual a informava da sua renúncia às funções de gerente.
Assim, quer através da aposição da assinatura do gerente não renunciante, J (…), na acta da Assembleia geral de 25.09.2008, quer pela recepção da carta que foi por si recebida a 07.10.2008, ter-se-á por realizada a comunicação à sociedade exigida por lei.
A renúncia não se torna efectiva no momento em que a comunicação é recebida pela sociedade: tal efectividade ou eficácia é adiada para oito dias após o recebimento de tal comunicação por parte da sociedade.
Segundo Raul Ventura, trata-se do compromisso entre o interesse do agente em terminar imediatamente as suas funções e a conveniência da sociedade em ter tempo para designar outro gerente:
“Como estão em causa interesses da sociedade, é lícito a esta aproveitar o prazo legal, podendo, designadamente, eleger novo gerente antes dele ter decorrido.”
Uma vez que tal prazo é concedido no interesse da sociedade nada obstará a que a sociedade, por vontade própria, antecipe tal eficácia, fazendo-a coincidir com o momento de recepção da comunicação de renúncia, desde que, pelo teor do respectivo contrato de sociedade a respectiva gerência se mostre assegurada.
De qualquer modo, tendo o sócio gerente assinado a referida acta da assembleia geral, ainda que considerássemos que o prazo de oito dias não poderia ser objecto de antecipação, sempre tal renúncia se teria por eficaz em relação à sociedade, o mais tardar, oito dias depois, ou seja, a 3 de Outubro de 2008.
Questão diferente será a da produção dos efeitos de tal renúncia face a terceiros, questão que passamos a analisar.
2. Eficácia da renúncia perante terceiros.
As sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o seu pacto social designarem – art. 21º, nº1, do CPC.
A sociedade por quotas é administrada por um ou mais gerentes – art. 252º do CSC.
Os actos relativos às sociedades, nomeadamente a designação e a cessão funções, por qualquer causa que não tenha a ver com o simples decurso do tempo, dos órgãos de administração das sociedades, encontram-se sujeitos a registo e publicação obrigatórios – arts. 3º, nº1, al. m), 15º, nº1, 70º, nº1, do CRCom., e 166º, do CSC.
E, por força do disposto no art. 14º, nº2 do Código de Registo Comercial, tais factos só produzem efeitos contra terceiros depois da data da publicação do registo dos mesmos, ou seja, tais factos só são oponíveis a terceiros depois da data em que o seu registo for publicado.
A noção de terceiros para efeitos do art. 168º, nada tem a ver a com a noção de terceiros em sentido técnico-registral (terceiros com interesses incompatíveis), respeitando a um conceito lato de terceiros que, com excepção das partes, seus herdeiros e representantes, se aplica a quaisquer pessoas, incluindo interessados com interesses incompatíveis[5].
E, na opinião de Soveral Martins, destinando-se a dar publicidade à situação das sociedades comerciais tendo em vista a segurança do comércio jurídico, “parece adequado afirmar que o terceiro de que se fala no art. 14º do CRCom. E no art. 168º do CSC será aquele que é estranho ao facto sujeito a registo[6]”.
“As enunciadas regras têm a ver com a necessidade de proteger os muitos intervenientes no comércio jurídico, os quais, pelas notórias razões que presidem ao comércio em geral, não podem conhecer como interlocutores comerciais senão aqueles que estão publicitados através do respectivo registo[7]”.
“O registo comercial visa publicitar a situação dos comerciantes, sociedades comerciais e demais sociedades a eles sujeitas, com vista à segurança do comércio jurídico.
Trata-se de uma publicidade registral, visto que não se limita a tornar público, ou seja, a dar notícia do facto registado, mas ainda indissoluvelmente lhe acrescenta a produção de efeitos legalmente previstos[8]”.
O registo comercial destina-se a satisfazer não só o interesse particular de quem tem de requerê-lo, mas também interesses gerais do tráfico jurídico – interesses estes que reclamam um meio fácil e seguro de conhecimento, por terceiros, de determinados factos ou situações jurídicas que podem afectá-los. A realização do registo, embora continue confiada aos particulares, é-lhes imposta pelo legislador como um dever jurídico cujo incumprimento, além de ter igualmente como consequência a inoponibilidade do facto não registado a terceiros, sujeita o infractor a determinadas sanções sancionando com uma coima a sua inobservância (art. 17º do CRCom.)[9].
A publicidade conferida pelo registo tem como consequência a eficácia em relação a terceiros. Essa eficácia divide-se num aspecto positivo (a eficácia em relação a terceiros do que foi publicitado) e num aspecto negativo (eficácia limitada ou nula dos factos sujeitos a registo mas que não foram inscritos)[10].
No que às sociedades diz respeito, há que distinguir, por um lado, os factos sujeitos a registo mas que não devem ser obrigatoriamente publicados e, por outro, os actos sujeitos a registo e a publicação obrigatória.
Os primeiros são oponíveis pela sociedade a terceiros depois de o registo estar efectuado – art. 168º, nº4 CSC e 14º, nº1, do CRCom).
Os actos sujeitos a registo e a publicação obrigatória tornam-se oponíveis pela sociedade a terceiros depois da data da publicação ou, se a sociedade prova que o registo teve lugar e que o terceiro conhecia o acto em causa, depois da data do registo – art. 168º, nº2.
No caso em apreço, no dia 13 de Outubro de 2008, o gerente da A., JP…, solicitou na sucursal da Ré, que procedessem ao “cativo/bloqueio da conta o ex sócio gerente, J (…), apresentando o seguinte documento:
- a referida acta da assembleia geral realizada a 25 de Setembro de 2008, da qual consta a renúncia à gerência do referido J …, e a aceitação deste pelo gerente J (…), acta esta que se encontra assinada por este.
            Entretanto, o Banco/Réu contactou o J … que lhe deu instruções escritas contrárias às do gerente JP…[11], de movimentação da conta dentro das condições de movimentação vigentes, ou seja, por qualquer um deles.
            A 19.10.2008, J …, ordenou duas transferências bancárias, através do site da internet de empresas, transferências que foram realizadas a 20.10.2008.
            Ora, seria exigível à Ré que impedisse tais operações por parte do sócio gerente renunciante, face ao pedido formulado pelo gerente JP…, e face ao único documento então apresentado, como pretende a autora?
            A nosso ver, e ao contrário do decidido pela 1ª instância, a resposta terá de ser negativa.
            A questão em causa reside na apreciação da eventual responsabilidade da Ré, decorrente dos movimentos efectuados 20 de Outubro de 2008, na sequência de ordem dada pelo gerente renunciante a 19 de Outubro de 2008.
            O depósito bancário constitui um depósito regular, a que se aplicam as regras do mútuo na medida do possível, estando sujeito às regras do depósito mercantil (arts. 403º a 407º, do Código Comercial) e mais disposições legais aplicáveis, subsidiariamente os estatutos e usos bancários mercantis.
            “Entre a instituição financeira e o cliente depositante estabelece-se uma relação de clientela, uma relação obrigacional complexa e duradoura, assente na estreita confiança pessoal entre as partes (ubérrima fides), que pode originar, mesmo no silencio do contrato, a responsabilidade contratual da instituição financeira imprudente ou não diligente, se não cumprir, entre outros, em consonância com os ditames da boa-fé (art. 672º, nº2, do CC), os deveres de informação ou de protecção dos legítimos interesses do cliente[12]”.
            Ora, no caso em apreço, embora a 13 de Outubro de 2008, tivessem já decorrido os oito dias desde a comunicação da renúncia à sociedade e mesma tivesse já produzido efeitos relativamente à sociedade, nessa data não havia ainda sido objecto de registo nem de publicação.
            Por outro lado, se dúvidas se lhe levantaram sobre a legalidade da acta que então lhe foi apresentada pelo sócio JP…[13], nomeadamente depois da oposição do gerente renunciante ao pedido de bloqueio da conta, o certo é que J (…) não apresentou ao Banco/réu o documento comprovativo do registo à renuncia por parte de J (…).
Segundo os termos do contrato de depósito celebrado entre a A. e ora Ré, a conta em apreço poderia ser movimentada por qualquer um dos gerentes, pelo que, face ao desacordo existente entre o gerente renunciante e o outro gerente não/renunciante, quanto a tal questão[14] ou quanto à alteração das clausulas do contrato, só a prova efectiva da cessação das funções de gerente do sócio J (…) poderia obrigar a Ré a impedir qualquer movimentação da conta por parte deste[15].
Ora, o documento comprovativo do registo nunca foi apresentado pelo referido gerente à Ré (à data do pedido de bloqueio da conta, tal registo nem sequer se encontrava efectuado) e não era à Ré que incumbia decidir da validade (ou invalidade) da acta da assembleia geral em questão e se a mesma constituía documento bastante para comprovar a alegada renúncia à gerência[16].
Por outro lado, embora os terceiros, se nisso tiverem interesse, se possam prevalecer de um acto não registado (art. 161º, nº1 do CSC)[17], uma sociedade comercial não pode opor a terceiros um acto sujeito a registo enquanto ele não for registado (art. 168º, nº4, do CPC).
Sem o registo, os actos não podem ser opostos a terceiros pela sociedade mesmo quando os terceiros conheciam o acto[18].
A uma sociedade não é permitido, portanto, opor a terceiros factos que não inscreveu no registo, quando a lei o exija; mas aos terceiros é permitido invocá-los em seu proveito[19]”.
O acto de renúncia à gerência encontrava-se sujeito a registo e a publicidade obrigatórios, tornando-se oponível pela sociedade a terceiros depois da data da publicação, ou, se a sociedade prova que o registo teve lugar e que o terceiro conhecia o acto em causa, depois da data do registo (art. 168º, nº2).
E, de acordo com o art. 168º, nº3, antes de decorridos dezasseis dias sobre a data da publicação os actos poderão não ser oponíveis a terceiros se estes provarem que estiveram, durante esse período, impossibilitados de tomar conhecimento da publicação.
Ora, se é certo que à data da ocorrência das transferências em causa, a renúncia já havia sido objecto de publicação e de registo (três dias antes), a autora não alega ter informado a Ré de tal facto, nem lhe apresentou o respectivo documento comprovativo.
Com efeito, quer na petição inicial, quer na sua resposta à contestação, a Autora baseia a responsabilidade da ré unicamente no facto de o banco ter tomado conhecimento de tal acta a 13 de Outubro de 2008, e do facto de, “pelo menos desde 13 de Outubro de 2008, o Banco ora R. tenha conhecimento de que o J (…) renunciou à gerência” (cfr., arts. 3º a 8º, da p.i., e 11º a 17º da resposta), sendo completamente omissa quanto ao registo e publicação de tal facto, dos quais apenas vimos a ter conhecimento pela junção aos autos, por parte da R., da certidão de registo comercial respeitante à Autora.
À data em que o gerente JP… (…) formulou o pedido de bloqueio da conta relativamente ao gerente renunciante, tal renúncia não havia ainda sido objecto de publicação ou registo.
Como tal, e face às dúvidas que lhe possam ter suscitado o único documento até então apresentado pela autora e à oposição do réu renunciante, o comportamento da Ré não nos merece um juízo de censura – face aos termos do contrato de depósito em vigor, segundo o qual a conta podia ser movimentada por qualquer dos gerentes, na falta de acordo entre ambos quanto à desvinculação do segundo, só a prova de que tal renúncia havia sido objecto de registo e de publicidade poderia fundamentar a alteração do modo de movimentação da conta e o pretendido bloqueio da conta relativamente ao gerente renunciante.
Ou seja, não tendo a autora informado a Ré de que tal registo e publicidade tivesse entretanto ocorrido, não seria exigível à Ré que bloqueasse “provisoriamente” a conta em causa até que a autora lhe apresentasse a certidão comprovativa do registo ou que diariamente fosse consultar o sítio da internet onde têm lugar as publicações respeitantes ao registo comercial.
Enquanto não fosse feita junto da Ré prova do referido registo, as movimentações da referida conta encontrar-se-iam sujeitas às regras acordadas entre as partes, não incorrendo a Ré em responsabilidade perante a autora pelas alegadas transferências, quando efectuadas de acordo com as regras ainda em vigor.
A apelação interposta pela Ré será de proceder, com a sua consequente absolvição.


IV – DECISÃO.
 Pelo exposto, os juízes deste tribunal da Relação acordam em julgar a apelação procedente, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, absolvendo-se a Ré, Banco (…), S.A., do pedido.
Custas da apelação a suportar pela A/recorrida, sendo as custas da acção a suportar a meias pela Autora e pelo Interveniente J (…).
             
Lisboa, 24 de Janeiro de 2012

Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira
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[1] Cfr., Raul Ventura, “Sociedades por Quotas”, Vol.III, Almedina 1999, 2ª reimp., pag. 122.
[2] António Menezes Cordeiro, “Manual do Direito das Sociedades”, II Vol., Almedina 2006, pag. 422.
[3] Raul Ventura, obra e local citados, pag. 122 e 123. No sentido de se tratar de um acto recipiendo, se pronuncia ainda Menezes Cordeiro, obra citada, pag. 423.
[4] Neste sentido, Raul Ventura, obra e local citados pag. 123 e Menezes Cordeiro, obra citada, pag. 423.
[5] Cfr., neste sentido, J. Seara Lopes, “Direito dos Registos e do Notariado”, 5ª ed., Almedina, pag. 205.
[6] “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coordenação de J. M. Coutinho de Abreu, IDET, Almedina, pag. 720.
[7] Acórdão do TRL de 30-06-2009, relatado por Afonso Henrique, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl.
[8] Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral (Predial e Comercial), Coimbra Editora, pag. 315.
[9] Cfr., neste sentido, M. Henrique Mesquita, em Anotação ao Ac. do STJ de 18.05.1999, in RLJ Ano 133, pag. 314 e 315.
[10] Alexandre Soveral Martins, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, coordenação de J. M. Coutinho de Abreu, IDET, Almedina, pag. 714.
[11] Cfr., ponto 10 da matéria de facto considerada e documento junto a fls. 51, datado de 17 de Outubro de 2008, pelo qual o ex-gerente solicita “seja retirado o bloqueio à conta (..), da qual sou titular e possuo poderes para o mesmo, não havendo motivo para existência de bloqueio”.
[12] Calvão da Silva, “Direito Bancário”, Almedina, pag. 334 e ss.
[13] Encontra-se provado que a carta, datada de 03 de Outubro de 2008, pela qual o gerente JP…, mais uma vez, dava conhecimento à sociedade da sua renúncia à respectiva gerência, foi enviada à Ré somente no dia 20 de Outubro de 2008.
[14] Contactado o R. J (…), este deu-lhe instruções escritas contrárias à do gerente JP (…), de movimentação da conta dentro das condições de movimentação vigentes, ou seja, por qualquer um deles (ponto 10 da matéria de facto considerada).
[15] O teor da fundamentação constante do despacho que respondeu à base instrutória é esclarecedor quanto às dúvidas que se terão levantado à Ré, quanto à atitude que tomar face ao pedido de bloqueio da conta formulado pelo gerente JP (…): a Ré terá começado por proceder ao bloqueio da conta e, só depois de contactado o R. J (…) para assinar um documento para se desvincular da conta, que este não assinou, preenchendo antes um pedido em sentido contrário, o banco volta a trás e retira o bloqueio da conta (cfr. desp. De fls. 201 e 202 e doc. juntos a fls. 50 a 52).
[16] Quanto aos registos por transcrição, como é o caso do registo da cessação de funções do gerente, ao Conservador incumbirá a apreciação da viabilidade do pedido de registo, em face sãs disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e registos anteriores, verificando a validade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos (art. 47º do CRCom.).
[17] No Código das Sociedades Comerciais Anotado, IDET, II Vol., Almedina, da coordenação de Coutinho de Abreu, pag. 713, tenta-se responder à seguinte questão:
“Se os terceiros se podem prevalecer dos actos cujo registo e publicação não tiveram lugar, perguntar-se-á se também podem não se prevalecer.
Nos casos em que o terceiro contou com um certo acto verdadeiro mas não registado nem publicado e invocar o que está registado e publicado?
Pensamos que sim. O terceiro não deve ser prejudicado por não ter ocorrido o registo e publicação e a sociedade é que deve suportar, em princípio os atrasos na realização desse registo e dessa publicação.”
[18] Cfr., neste sentido, Soveral Martins, obra e local citados, pag. 715.
[19] Cfr., M. Henrique Mesquita, local citado, pag. 313.