COMODATO
EFICÁCIA
TERCEIRO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
EMBARGOS DE TERCEIRO
Sumário

1. Nos termos do artigo 406º nº2 do CC, o contrato de comodato tem eficácia apenas entre as partes, sendo o direito do comodatário um direito pessoal de gozo que não é oponível ao terceiro que venha a adquirir o prédio objecto do contrato.
2. Não lhe sendo oponível o contrato de comodato, o terceiro adquirente do prédio objecto desse contrato pode exigir a sua entrega à comodatária, a não ser que a sua actuação configure um abuso de direito, para o que será necessário que o seu comportamento seja manifestamente violador da boa fé, não bastando que tenha conhecimento do contrato.
( Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
Por apenso à providência cautelar de restituição de coisa locada, prevista no DL 149/95 de 24/6, que o A ( Banco…., SA ) intentou contra B ( …Sociedade Imobiliária, SA ), veio C deduzir os presentes embargos de terceiro alegando, em síntese, que o prédio objecto da providência cautelar é a casa de morada de família da embargante, seus filhos e seu marido desde 1984, ano em que foi adquirido pelo seu marido, com quem é casada no regime de bens de comunhão e adquiridos, pelo que, quando este vendeu o prédio à sociedade H..., a embargante deu o seu consentimento para a venda, na condição de esta sociedade celebrar consigo um contrato de comodato, que efectivamente foi celebrado, em que a referida sociedade compradora do prédio se obrigou a ceder o imóvel a título gratuito para habitação própria da comodatária, ora embargante, até à sua morte e, depois desta, dos seus parentes em 1º grau que à data do seu falecimento habitassem o imóvel, ficando a comodante ainda obrigada a informar por escrito eventuais interessados em adquirir o prédio da existência deste comodato, assim como a informar disso a comodatária, tudo com o objectivo de a embargante não perder os seus direitos, mesmo que o prédio fosse transmitido.
Alegou ainda que lhe foi comunicada a transmissão do prédio para o A , ora embargado, mediante dação em cumprimento, dando-se-lhe conhecimento da existência do contrato de comodato, com o qual o embargado se conformou por não lhe interessar a respectiva posse, mas sim apenas a sua propriedade e aceitando a permanência da embargante no prédio durante anos, sendo que, posteriormente o embargado celebrou um contrato de locação financeira com a sociedade B , tendo por objecto o imóvel e onde se previa a possibilidade de este vir a ser arrendado aos filhos da embargante, sempre com o objectivo de a casa voltar a pertencer ao património da família da embargante.
Mais alegou que, tendo-se verificado dificuldades financeiras por parte da locatária, veio a ser proferida decisão na providência cautelar apensa, que, deferindo o pedido do A , ora embargado, determinou que lhe fosse entregue o prédio, o que viola os direitos da embargante sobre o mesmo e que o A está obrigado a respeitar, de acordo com os princípios gerais da boa fé, pois, embora não seja parte no contrato de comodato, sempre o aceitou.
Concluiu pedindo a procedência dos embargos com a revogação da decisão proferida na providência cautelar.
Produzida prova indiciária, foram os embargos recebidos e suspensa a providência cautelar.
Apenas o embargado A contestou, alegando, em síntese, que o contrato de comodato é nulo quer porque não foi outorgado pelo marido da embargante, pessoa que representava a sociedade H... à data, quer porque o comodato, sendo gratuito, não está de acordo com o objectivo de obtenção de lucro da sociedade, nem está de acordo com o objectivo imediato de revenda do prédio que ficou a constar na escritura de aquisição do prédio pela sociedade H....
Alegou também que tal contrato de comodato não lhe é oponível porque tem efeitos meramente obrigacionais, não vinculando terceiros, como é o caso do contestante, que não outorgou o contrato e é assim parte ilegítima.
Concluiu pedindo a procedência das excepções de nulidade do contrato e de ilegitimidade passiva e a improcedência dos embargos.
A embargante replicou alegando que o contrato de comodato foi outorgado por uma mandatária da sociedade H..., com poderes para o acto, que a declaração de que a aquisição do prédio era para revenda se destinou a adiar o pagamento do imposto, que a aquisição do imóvel trouxe um aumento de capital à sociedade H... e ainda que o embargado é parte legítima, sendo-lhe oponível o contrato de comodato por sempre o ter reconhecido e aceitado.
Concluiu como na petição inicial e pedindo a improcedência das excepções.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva e procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos e determinou o prosseguimento do procedimento cautelar.
*
Inconformada, a embargante interpôs recurso e alegou, pedindo a revisão da matéria de facto e a revogação da sentença com as seguintes conclusões:
1. A mandatária foi notificada por carta registada datada de 23/6/2010, sendo que o terceiro dia útil posterior ao do registo, nos termos do artigo 254º, nº1 e 3 do CPC, é o dia 28/6/2010.
2. Nos termos dos arts 685º, nº1 e 691º, nº5 do CPC, pese embora o art 357º, nº1 do CPC, por mera jurisprudência das cautelas, pelo que o presente recurso é tempestivo.
3. Nos termos do artigo 685º-B, nº1, al. a) e b) do CPC, deve a apelante mencionar na impugnação da matéria de facto os concretos pontos que considere incorrectamente julgados e concomitantemente demonstrar quais os concretos meios probatórios constantes dos autos susceptíveis de demonstrar o contrário.
4. Tendo a douta sentença considerado que não ficou provado que o banco embargado tinha conhecimento do contrato de comodato, por não se poder inferir tal conhecimento pelo facto assente M),
5. Há que refutar tal interpretação já que deste facto constam os documentos integralmente reproduzidos e portanto totalmente provados de fls 38 (carta enviada à apelante a comunicar a participação efectuada ao banco embargado da existência do contrato de comodato), de fls 39 (carta datada de 10/11/2033 enviada a … a informar da existência do contrato de comodato tendo como anexo o referido contrato) e de fls 40 (cópia do livro de protocolo com assinatura do Director do embargado …. em como recebeu em 10/11/2003 a referida carta e o contrato anexo), os quais demonstram que o embargado tinha conhecimento do contrato de comodato.
6. O banco embargado não contestou estes documentos, nem impugnou o conhecimento do contrato de comodato ou do seu conteúdo, directa ou indirectamente, pelo que, nos termos do art. 490º, nº2 do CPC, os factos foram admitidos por acordo, determinando sem dúvida uma valoração da prova diferente da efectuada, com repercussões directas na sentença nos termos do art. 659º, nº3 do CPC.
7. Do testemunho de …., prestado a 21/4/2009, nos termos do art. 354º do CPC, conforme se pode comprovar na gravação audio com a referência 20090421102006-1601305-64489WMA com início em 10:27 e término a 10:29:45, retira-se objectivamente que o banco embargado sabia da existência e conhecia o contrato.
8. A douta sentença vem admitir, contudo, mais à frente, que, tendo o embargado subscrito a escritura de dação em cumprimento (fls 57 a 62 e 63 a 66, integralmente reproduzidos) sem declarar que o mesmo se encontrava livre de ónus e encargos, e sabendo que o imóvel continuaria a ser a casa de morada de família da apelante, não se pode excluir que o banco conhecia o contrato de comodato, fls 307 da sentença.
9. Prosseguindo, a douta sentença considera que nenhum comportamento do embargado permite entender expressa ou tacitamente a aceitação deste a que a apelante permanecesse no imóvel até ao final da sua vida e que depois da sua morte os seus filhos ainda pudessem aí residir, fls 307 da sentença.
10. O que igualmente se refuta, porque, só por si, é uma contradição perante os factos assentes Q), M) e N) e em face do disposto nas cláusulas do próprio contrato, mais concretamente a cláusula 4ª, que estipula um prazo vitalício para a apelante e filhos que se encontrem a habitar o imóvel na data da sua morte.
11. Uma vez que os contratos têm de ser pontualmente cumpridos nos termos do art. 406º do CC e se provou que o embargado conhecia e aceitou o contrato de comodato.
12. Tendo presente os factos provados M), N), O), P) Q) e R), não é admissível considerar, como faz a douta sentença, que a permanência no imóvel a título gratuito por mais de cinco anos da apelante é uma mera tolerância
13. E o embargado não pode ser considerado um terceiro adquirente de boa fé, já que não foi surpreendido a posteriori com um contrato de comodato.
14. A invocação, pelo embargado, da cláusula 6ª, nº3 do contrato de locação financeira, está em frontal contradição com a factualidade provada, em concreto nas alíneas U) e V), que demonstram que, para o embargado, o comodato não era um obstáculo à dação em cumprimento, porquanto não estava em causa a utilização do imóvel mas “o pagamento de um montante elevado ao banco permitindo-lhe melhorar as contas anuais” – facto assente R).
15. No que ao interesse próprio diz respeito, a sentença exibe uma incongruência interna, pois começa por referir que o contrato de comodato foi gizado no interesse próprio da H..., com o objectivo de demonstrar a existência de uma contrapartida que inviabilizaria a classificação do contrato como comodato nos termos do art. 1129º do CC, por suposta onerosidade,
16. Para, logo na página subsequente, descortinar a inexistência de interesse próprio da sociedade H..., atribuindo nulidade ao contrato de comodato em face do art. 6º do CSC, a fls 303 da sentença.
17. Ainda no âmbito do interesse próprio da sociedade e quanto à BI, nºs 1 a 8, ficou provado, no doc. reproduzido de fls 164 a 165, o interesse próprio da sociedade, explicando-se que, com a compra e venda do imóvel e o subsequente aumento de capital, a sociedade se dotava de maior solidez patrimonial e financeira, o que, aliás, é reiterado no facto assente em G) e no depoimento de ….., gravação áudio 20090421102006-1601305-64489 WMA, de 21/4/ 10:21:50 e término 10:23.2009.
18. Os quesitos 5 e 7 da BI não têm razão de ser em face dos docs. de fls 117 a 118, onde se demonstra o aumento de capital de 400 000$00 para 180 000 000$00, sendo as escrituras de compra e venda e de aumento de capital, dadas como provadas, celebradas no mesmo dia.
19. Com o objectivo de demonstrar uma hipotética onerosidade imanente ao contrato de comodato sub judice – o que obstaria à sua classificação como comodato – a douta sentença confunde condição com contrapartida – de resto nem nunca refere a existência da condição – o que não é aceitável em face dos documentos dados como provados.
20. Com efeito, ao contrário do que se refere na sentença (fls 302), no considerando D) do contrato não se assume expressamente uma contrapartida.
21. Nem na acta referida na alínea CC) do ponto II (fls 299) tal é assumido expressamente, já que aqui a contrapartida é referida a propósito da compra e venda (aquisição) que consistiu no património da sociedade H... aumentado de valor, dotando-se de maior solidez patrimonial e financeira.
22. Na verdade, no considerando D) do contrato de comodato, integralmente reproduzido a fls 31 a 37, expressamente se declara que a apelante deu o seu consentimento para a transmissão sob condição da outorga do contrato de comodato.
23. Pelo que, pretender “transmutar” uma condição numa contrapartida quando, na realidade, do texto do contrato em análise apenas resulta uma prestação da H... a favor da comodatária, não existindo qualquer contraprestação desta seja a que título for – sendo por conseguinte o contrato gratuito – é transcender a realidade dos factos, em contradição insanável com a matéria provada.
24. Referindo a sentença que “a principal questão que se coloca é a de saber se a entrega ordenada nos autos de procedimento cautelar ofende a posse ou algum direito da embargante” (fls 300 da sentença), retira-se do facto provado em N) uma nulidade, de conhecimento oficioso, a qual se prende com a escritura de dação em cumprimento de fls 57 a 62 e 63 a 66, onde não consta, porque não existe, qualquer consentimento da apelante à dação em cumprimento, o qual é condição da validade.
25. Estando em causa a casa de morada de família (art. 1682º-A, nº2 do CC), e uma empresa – H... – detida pelo marido da apelante, reputa-se essencial, nos termos do ac. do STJ de 28/11/1984, a assinatura de ambos os cônjuges para a venda do imóvel, mesmo que o imóvel pertença a uma empresa de apenas um do cônjuges, desde que casados em regime de comunhão de adquiridos, o que resulta provado no doc. integralmente reproduzido, de fls 26 a 28.
26. Na lógica de interpretação seguida pela douta sentença e sabendo-se do papel central que o consentimento da apelante tem no litígio, deveria a sentença atender a essa nulidade e retirar as devidas consequências relativamente ao que diz ser a ofensa de algum direito da embargante.
27. No âmbito da impugnação da matéria de direito, a douta sentença começa por obviar à classificação do contrato como de comodato nos termos do art. 1129º do CC, porquanto considera não ter sido o mesmo gratuito, já que supostamente havia constituído a contrapartida do consentimento da embargante à alienação.
28. A sentença confunde, portanto, condição com contrapartida, daí derivando a suposta onerosidade do contrato de comodato.
29. A onerosidade, todavia, implica uma prestação que constitua o equivalente ou o correspectivo da atribuição efectuada pelo comodante, não resultando da análise do contrato de comodato, seja sob que prisma for, qualquer prestação a cargo da apelante em virtude da utilização do imóvel, pelo que não existe qualquer onerosidade imanente ao contrato que obste à sua classificação como comodato, em face do art. 1129º do CC.
30. Com efeito, ao contrário do eu se refere na sentença (fls 302), no considerando D) do contrato não se assume expressamente uma contrapartida.
31. Nem na acta referida na alínea CC) do ponto II (fls 299) tal é assumido expressamente, já que aqui a contrapartida é referida a propósito da compra e venda (aquisição) que consistiu no património da sociedade H... aumentado de valor, dotando-se de maior solidez patrimonial e financeira.
32. A apelante impôs sim uma condição para a venda do imóvel à sociedade H..., isto é, subordinou os efeitos da venda a um facto futuro e incerto, independentemente do nomem iuris que se dá.
33. A aposição de uma condição negocial é uma cláusula em virtude da qual a eficácia de um negócio é posta na dependência de um acontecimento, ou seja, a verificação dessa condição e a sua aptidão para a produção dos efeitos queridos pelas partes é determinante para a validade do negócio, in casu da compra e venda à H....
34. Na sequência de uma errónea interpretação factual, a qual entra em contradição insanável com a fundamentação subsequente, a sentença considera – num primeiro momento – a existência de um interesse próprio da H..., para vislumbrar uma contrapartida que determinaria a onerosidade do contrato.
35. Não se coloca em causa, naturalmente, a existência do interesse próprio da H... na celebração do negócio, porquanto ficou com um imóvel e concomitantemente viu o seu capital aumentado.
36. Insiste-se contudo que, para a classificação de um contrato como oneroso ou gratuito, apenas contribui o que as partes dispuseram no texto do contrato, e no caso em apreço não há nenhuma prestação por parte da apelante que permita classificar o contrato como oneroso.
37. Mas o que não é aceitável é o duplo juízo feito sobre os factos, já que – num segundo momento – a sentença considera já não existir interesse próprio da H... para determinar que o contrato de comodato sempre seria nulo nos termos do art. 6º do CSC, em face da supostamente demonstrada – agora falta – de interesse próprio da sociedade, desconsiderando factos dados como provados, mais concretamente a acta de 12/3/1999, doc. fls 164 e 165 dada como reproduzida.
38. A douta sentença conclui que o contrato celebrado, segundo ela erroneamente classificado de comodato, mais não é do que um direito real de habitação, celebrado ao abrigo do disposto no art. 1484º, nºs 1 e 2 do CC, porquanto a coisa objecto do direito, a casa de morada de família, a referência aos familiares do titular e o prazo de utilização, vitalício, em tudo o aproximariam desta figura.
39. No entanto, na data em que o contrato foi celebrado imperava o regime da sua celebração nos mesmos moldes do usufruto, que o mesmo é dizer por escritura pública (actualmente abolida na sequência das alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 4 de Julho), sendo assim determinante para operar a sua nulidade mercê da inobservância da forma legal.
40. Contudo, a salvação do negócio, quando esteja em causa meramente a forma, decorre da boa fé, como refere António Meneses Cordeiro, ao invocar as mesmas razões que concorrem para tornar o sistema mais justo e que incitam, na sociedade, ao cumprimento dos negócios livremente celebrados, ainda que sem observância da forma legal, falando-se mesmo numa pressão sobre o dispositivo legal que determina as nulidades formais.
41. Ora, in casu, entendendo-se que estávamos em última instância perante um direito real de habitação, sempre teríamos de indagar se o negócio seria nulo por falta e forma ou se, contrariamente, seria passível de aproveitamento e apto à produção de efeitos mercê da boa fé das partes aquando da sua celebração e da legislação posterior que não impõe a forma de escritura pública para a sua celebração. Pelo que sempre haveria que determinar se o alegado vício de forma seria susceptível de inquinar o acto obstando à produção dos efeitos pretendidos pelas partes, sobretudo após a alteração legislativa.
42. Acontece que é determinante para a classificação de um negócio jurídico atender à vontade das partes, nos termos do art. 236º e mercê do art. 405º, ambos do CC, e o que as partes efectivamente quiseram foi celebrar um contrato de comodato, porventura com algumas especificidades do direito real de habitação, as quais não são estranhas ao regime do comodato e que, quando muito, determinariam a existência de um contrato com regime misto.
43. Em nome do aproveitamento e do princípio da conservação dos negócios jurídicos, assim como do princípio da boa fé, é de optar pela classificação do contrato que se harmonize com o convencionado e cuja validade se conserve, desde que a tal não obste a boa fé.
44. Tendo sido dado como provado que a apelante habita o imóvel como casa de morada família, desde 1984 de forma ininterrupta até aos dias de hoje, a douta sentença considera, no entanto, não existir posse, porquanto a comodatária alicerçava a sua pretensão num contrato de comodato, o que daria origem a uma posse precária nos termos do art. 1253º do CC.
45. Refuta-se o disposto na douta sentença, já que, nos termos do art. 1251º do CC, a posse verifica-se quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade.
46. Da actuação da apelante, proprietária desde 1984, que exerceu sempre a sua posse pública de forma ininterrupta, não se descortina qualquer alteração no que diz respeito ao corpus e ao animus susceptível de abonar aquela interpretação, pelo que jamais se poderia qualificar a posse da embargante aqui apelante como sendo uma posse precária.
47. Refuta-se também, a alegada precariedade da posse da apelante com base no facto de o comodato conferir um direito pessoal de gozo – o qual tem características muito similares e próximas do direito real – e se não veja-se, por exemplo, que a lei permite a utilização de acções possessórias contra terceiros que privem o titular da coisa.
48. E é precisamente por força dessa conexão com o direito real, pelo facto de a forma como é exteriorizada permitir o conhecimento por terceiros, que não pode afastar-se a eficácia externa do contrato de comodato perante terceiros, sem mais.
49. A apelante sempre habitou de forma pública e pacífica o imóvel, trocando o banco embargado correspondência com esta, para a morada do imóvel, demonstrando, por conseguinte, claramente o seu conhecimento da situação e conformando-se com a utilização do imóvel pela apelante, tendo por base o contrato de comodato que conhecia, aceitou e cumpre.
50. O banco embargado não aparece como um terceiro exógeno às obrigações contratuais estipuladas, mas sim como um terceiro comprometido com essas obrigações que conhecia, aceitou e manteve.
51. Note-se que o banco celebrou a escritura de dação em cumprimento consigo próprio com base numa procuração da H... para o efeito, tendo pretendido com isto obviar ao consentimento da apelante, essencial nos termos do art. 1682-A, nº2 do CC (fls 57 a 60), demonstrando assim a sua má fé.
52. Isto porque, sendo o imóvel pertença de uma sociedade do marido e sendo o regime entre o casal o da comunhão de adquiridos (fls 26 a 30), o STJ proferiu um acórdão onde claramente define a necessidade do consentimento para a venda sendo o imóvel casa de morada de família, ainda que pertença de uma empresa de apenas um dos cônjuges.
53. Pelo que o banco bem sabia da necessidade deste consentimento, tendo-a “conformado” através de uma procuração que não obsta à geração de invalidade da dação efectuada naqueles moldes, a qual por se traduzir numa nulidade é do conhecimento oficioso do tribunal (ac. STJ de 14/1/2010 já citado).
54. A este propósito conclui-se de acordo com o assento do STJ publicado no DR 1ª Série de 17/05/1995, pág. 2939 a 2941: “Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no nº1 do art. 289º do CC”.
55. É neste contexto que se tem de analisar e concluir sobre o comprometimento do banco embargado relativamente ao contrato de comodato, pois que, na escritura de dação em cumprimento que celebrou consigo próprio não referiu que o imóvel se encontrava “livre de ónus e encargos”, assumindo em consequência, também por esta via, o conhecimento e a vinculação ao comodato.
56. Não basta analisar em abstracto que um direito de natureza obrigacional, como o classifica a douta sentença – o que apenas se enuncia mas se refuta – é inoponível a terceiros, sendo necessário subsumir o direito à realidade dos factos, fazendo o seu enquadramento e “…atentar também nas circunstâncias envolventes, evitando soluções em que a realidade que reclama uma solução materialmente justa fique escondida pela peneira dos argumentos de pura lógica formal”.
57. Note-se que a cláusula 14ª do contrato prevê a comunicação da existência do comodato a terceiros eventuais adquirentes do imóvel, salvaguardando-se a apelante com a necessidade de lhe ser feita a prova de que essa comunicação foi efectuada, tendo no caso vertente sido anexado o contrato de comodato, querendo com esta situação reforçar-se o efeito externo do contrato existente.
58. E, de facto, como resultou da prova documental e testemunhal, o banco embargado teve conhecimento da existência do comodato e do seu conteúdo, o que aliás foi igualmente admitido por acordo nos termos do art. 490º, nº2 do CPC.
59. O que se demonstra claramente, também tendo em linha de conta o comportamento adoptado pelo banco após a celebração da escritura de dação em cumprimento, nunca tendo solicitado rendas à apelante ou sequer a devolução do imóvel, conformando-se com a existência do contrato e o seu conteúdo.
60. A este propósito refere o ac. da Relação de Lisboa que “Em suma, os mesmos factos que, isolados das circunstâncias envolventes, seriam insuficientes para conceber a existência de um vínculo autónomo (…) quando inseridos no contexto de uma relação mais complexa, em que estão presentes vínculos mais específicos entre os sujeitos, ganham uma nova forma e um novo significado, permitindo perceber a presença de uma fonte geradora de obrigações”.
61. Em suma, ainda que o banco não seja parte directa no contrato tal não significa que não o tenha aceite, o que acarreta como corolário a assunção da obrigação contraída pela comodante e, consequentemente, o respeito por não lesar direitos alheios.
62. Não reconhecendo a sentença qualquer direito à apelante por força da existência do contrato, interpretou a situação à luz do art. 334º do CC, com o objectivo de verificar se, em face das circunstâncias, se podia qualificar o comportamento do banco embargado de abusivo, já que um comportamento é ilegítimo quando o titular de um direito excede manifestamente os limites impostos pela boa fé.
63. Do que se trata aqui é da valoração da conduta do embargado em todo este processo, chegando mesmo a douta sentença a admitir o conhecimento do contrato de comodato pelo embargado.
64. Mencionando a hipótese de que talvez o embargado não tivesse conhecimento da cláusula 4ª do contrato, convencendo-se por isso de que assim poderia supostamente solicitar a restituição do imóvel a todo o tempo…
65. A sentença desvaloriza, por isso, em toda a linha a conduta do embargado ao arrepio do que os factos tão objectivamente traduzem, o que não é admissível.
66. Mas tal fundamentação contraria frontalmente o art. 406º do CC, o qual refere que os contratos têm de ser pontualmente cumpridos, não podendo “escolher-se” apenas algumas cláusulas do seu conteúdo.
67. E note-se que, tendo o embargado consciência do seu patente comprometimento com o contrato de comodato, torneou o problema fazendo-se valer de um contrato de locação financeira que havia celebrado com um terceiro, para solicitar a devolução do imóvel.
68. O suposto direito de propriedade torna-se inalegável quando exercido em desproporcionalidade, em clara situação de abuso de direito. Como refere Menezes Cordeiro “… o abuso de direito é um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da ciência do direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes”.
69. O abuso de direito, que é de conhecimento oficioso, obsta a que determinada posição jurídica que, aparentemente demonstra um pretenso direito subjectivo, na prática torne inalegável esse direito por o mesmo constituir um claro abuso e atente directamente contra a boa fé e a tutela da confiança como valores fundamentais que o ordenamento jurídico acolhe e tutela.
70. Ou seja, por recurso à boa fé e à contextualização e enquadramento do comportamento do banco embargado – que tinha conhecimento da existência do ónus sobre o imóvel e por esse motivo os funcionários do banco que outorgaram em simultâneo em representação do banco e da H... não declararam que o mesmo se encontrava livre de ónus e encargos – promove-se uma solução justa em detrimento do que resultaria da aplicação do direito estrito a um situação meramente formal.
71. A vinculação autónoma do embargado ao comodato, a univocidade do comportamento, susceptível de gerar uma situação de confiança na apelante (aceitou o comodato, trocava correspondência com a apelante para aquela morada, nunca em mais de cinco anos pediu o pagamento de uma renda ou a devolução do imóvel), demonstrando na consciência da exteriorização desse comportamento é susceptível de gerar uma situação de confiança que o ordenamento valora e protege.
72. E note-se que a argumentação que sustenta a interpretação da douta sentença nem sequer é utilizada pelo embargado, o qual bem sabia não a poder invocar, designadamente, porque conhecia o contrato de comodato bem como o seu conteúdo e pautou o seu comportamento tendo em conta o aí estipulado.
73. A existência de venire contra factum proprium – que traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente – determina a existência de uma situação de confiança que se gera na esfera jurídica da apelante, que é reconhecida e protegida pelo ordenamento.
74. Ora, não é adequado a douta sentença invocar argumentos que nem sequer o embargado se atreveu a utilizar, já que é óbvio que a renúncia do embargado ao poder de actuar, derivado da sua aceitação do contrato de comodato, gerou uma situação de confiança na apelante.
75. Os factos provados demonstram claramente e à saciedade que o banco embargado conhecia o contrato de comodato, teve conhecimento da sua existência e conteúdo muito antes da celebração da escritura de dação em cumprimento, aceitou-o e pautou a sua actuação pelo que aí se encontrava estipulado, ou seja, vinculou-se voluntaria e autonomamente ao contrato.
76. Em face do exposto, a desconstrução do conceito de abuso de direito conduz-nos a uma outra figura parcelar, que é descrita usualmente na doutrina como surrectio e que determina que, por força da boa fé e da convicção que criou na embargada pelo decurso do tempo,
77. O exercente (in concretu o embargado) “… vê contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria”, neste caso o da embargante, que o limita na forma como pretende fazer valer esses direitos, verificando-se assim a criação de uma convicção na apelante de uma situação de confiança, que limita a actuação do embargado, ainda que alicerçada num hipotético direito de propriedade.
78. Verifica-se, por conseguinte, que a apelante se encontra de boa fé, tendo sido confrontada com o pedido de devolução do imóvel, ainda que com base num título diferente daquele que a legitima a permanecer no imóvel.
79. A confiança da apelante surge como sendo justificada, porquanto desde 2003 que o embargado se intitula proprietário e nunca solicitou rendas, pagamentos ou sequer a devolução do imóvel.
80. Tendo em devida atenção os pressupostos da vontade da apelante que estiveram subjacentes à condição imposta e consentimento para venda do imóvel que era e continua a ser a casa de morada de família, a devolução do imóvel ao embargado, deixando ao apelante sem casa, seria uma injustiça clamorosa.
81. Pelo que não tem razão a douta sentença ao pretender demonstrar que não há um investimento da confiança, até porque, contrariamente ao que se afirma, o embargado, ao aceitar o contrato de comodato por todos estes anos, agindo nos exactos termos aí dispostos, levou a apelante a crer que os seus interesses estariam acautelados.
*
O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e o recurso é uma apelação, com subida imediata, nos autos e tem efeito suspensivo nos termos do artigo 692º nº3 b) do CPC.
As questões a decidir são:
I) Impugnação da matéria de facto.
II) Natureza do direito atribuído à embargante no contrato que celebrou com a sociedade H... em 5 de Março de 1999.
III) Validade desse contrato.
IV) Validade do contrato de dação em pagamento celebrado entre a sociedade H... e o embargado BCP em 28 de Junho de 2004.
V) Natureza da “posse” da embargante e oponibilidade do contrato de 5 de Março de 1999 ao embargado BCP, SA.
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FACTOS.
Os factos considerados provados pela sentença recorrida são os seguintes:
A - Nos autos de procedimento cautelar que o A instaurou contra B , a que os presentes embargos de terceiro estão apensos, foi proferida decisão no dia 05.02.2009, que determinou a entrega àquele requerente, por aquela requerida, do prédio urbano sito na R. ..….., nºs ... e ...-A, na freguesia de ..., em Lisboa, descrito na 3ª CRP de Lisboa sob o nº0000 (anterior ficha nº00000, do Livro nº79) e inscrito na matriz sob o artigo 0000 (A).
B – Sobre o prédio referido na al. A) mostram-se registadas as seguintes inscrições:
16.04.1986 – aquisição, por compra, a favor de …..csado com a ora embargante C no regime de comunhão de adquiridos;
23.11.2001 – hipoteca voluntária a favor do A;
31.01.2002 – hipoteca voluntária a favor do A ;
30.09.2002 – aquisição, por compra, a favor de ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda;
13.01.2004 – aquisição, por dação em cumprimento, a favor do A ;
29.10.2004 – locação financeira, por 30 anos, a favor de B ;
Tudo conforme documento de fls 110 a 130, que se dá por reproduzido (B).
C – Desde 1984, o prédio identificado na al. A) é a casa de morada de família da embargante, que nele habita com o marido, os seus três filhos e um neto (C).
D – Por escritura pública outorgada no 4º Cartório Notarial de Lisboa, no dia 05.03.1999, a fls 112 a 112v do livro nº 000-B, A.F.C. ..., por si e em representação, na qualidade de gerente com poderes para o acto, da sociedade ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, declarou vender àquela sociedade, livre de ónus e encargos, pelo preço de 190 659 000$00, o prédio referido na al. A), declarando, ainda, que aquela sociedade aceita a venda nos termos exarados e que o imóvel se destina a revenda, conforme documento de fls 26 a 28, que se dá por reproduzido (D).
E – A embargante subscreveu o documento cuja cópia consta a fls 30, datado de 05.03.1999, intitulado “Autorização”, que aqui se dá por reproduzido, no qual consta, nomeadamente, “(…) autorizo o meu referido marido, A.F.C. ..., a vender à firma ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Limitada (…)” o prédio referido na al. A), fazendo tal documento parte integrante da escritura referida na alínea anterior, conforme documento e fls 29, que também se dá por reproduzido (E).
F – A embargante subscreveu, na qualidade de Segunda Contraente ou Comodatária, o documento cuja cópia consta a fls 31 a 37, que aqui se dá por reproduzido, onde consta como Primeira Contraente ou Comodante a sociedade ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, datado de 05.03.1999, intitulado “Contrato de Comodato”, tendo por objecto o prédio identificado na al. A) (F).
G - Do documento referido na alínea anterior conta o seguinte:
Considerando:
(…)
B) Que o marido da Comodatária, no quadro da estratégia definida para a H-F…. , SGPS, SA doravante Grupo H.F…. , o qual é por ele maioritariamente detido, se disponibilizou a transmitir o imóvel de modo que o mesmo passe a integrar o património imobiliário do Grupo H.F…., conferindo-lhe ma maior solidez patrimonial;
C) Que a Primeira Contratante, no quadro da estratégia definida para o Grupo H.F…. que sobre si exerce uma relação de domínio total, passou nesta data a ser proprietária e legítima possuidora do imóvel melhor identificado no considerando A), o qual adquiriu através de escritura pública celebrada no 4º Cartório Notarial de Lisboa em 5 de Março de 1999;
D) Que tendo a Comodatária que dar o seu consentimento para a transmissão do imóvel que é habitação própria e permanente da Comodatária e seu agregado familiar, correspondendo à casa de morada de família desde 1984, a Comodatária o fez sob condição de outorga do presente contrato” (G).
H – Sob a Cláusula 2ª do “Contrato de Comodato” referido na al. F), consta que:
1- Pelo presente contrato, a Primeira Contratante cede à Segunda Contratante, que aceita, a título gratuito, o imóvel supra indicado, para que esta se sirva dele, mantendo-se o mesmo como habitação da Segunda Contratante, nas condições constantes das cláusulas seguintes.
2- Estando nesta data, e desde 1984, a Segunda Contratante a ocupar o imóvel como sua habitação, não há necessidade de proceder à entrega nem à transmissão do mesmo, considerando-se por isso a traditio operada na data de transmissão do imóvel” (H).
I – E sob a sua Cláusula 3ª consta que:
O imóvel ora cedido destina-se a ser utilizado para habitação própria e permanente da Segunda Contratante” (I).
J – E sob a sua Cláusula 4ª consta que:
1- O presente contrato é celebrado vitaliciamente, podendo a Segunda Contratante utilizar o imóvel como habitação familiar até à data da sua morte, tendo ainda em atenção o disposto no número seguinte.
2- Por morte da Segunda Contratante, todos os parentes em primeiro grau que, comprovadamente, naquela data se encontrem a viver no imóvel manterão todos os direitos inerentes ao contrato de comodato ora celebrado, os quais se extinguirão quando o último deixe de habitar em permanência o imóvel ou faleça” (J).
L – E sob a sua Cláusula 14ª consta que:
1- Se e quando vierem a ser desencadeadas eventuais negociações que possam conduzir à transmissão da propriedade do imóvel para terceiros, dentro ou fora do Grupo H.F….., a Comodante, por si própria ou através da sua detentora, obriga-se a informar os mesmos, por escrito, de que existe um contrato de comodato referente ao imóvel.
2- Do mesmo modo, a Comodante obriga-se, por si própria ou através da sua detentora H.F…., a fornecer à Comodatária cópia da comunicação referida no número anterior com a respectiva recepção” (L).
M – H.F….., SA, remeteu à embargante a carta cuja cópia consta a fls 38 e 40, datada de 11.11.2003, pela qual lhe envia em anexo cópia de uma carta por si dirigida ao A , datada de 10.11.2003 e na qual informa que sobre o imóvel sito na Rua ….., ..., em Lisboa, existe um contrato de comodato (M).
N – Por escritura pública outorgada, no dia 28.06.2004, no 22º Cartório Notarial de Lisboa, a fls 2 a 3v do Livro nº 000-G, … e ….. , nas qualidades simultâneas de procuradores e em representação do A e de procuradores substabelecidos e em representação de A.C...., este na qualidade de gerente e em representação da sociedade …- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, declaram que a sociedade representada dá ao A , em cumprimento do crédito de um milhão de euros que o referido A detém sobre aquela sociedade, o prédio identificado na al. A), tendo ainda declarado aceitar tal dação em cumprimento para o seu representado A , tudo conforme documentos de fls 57 a 62 e 63 a 66, que se dão por reproduzidos (N).
O – O A bem sabia que o prédio referido na al. A) sempre foi a casa de morada de família da embargante, para onde, aliás, enviava a correspondência (O).
P – E bem sabia que tal prédio continuaria a ser a casa de morada de família da embargante (P).
Q – E conformou-se com a situação, nunca tendo solicitado a saída da família ou o pagamento de renda (Q).
R – O grande objectivo do A era que a “dação em cumprimento” a que alude a al. N) representasse o pagamento de um montante elevado ao banco, permitindo-lhe melhorar as contas anuais, do que veio efectivamente a beneficiar (R).
S – O A e a sociedade B subscreveram o documento cuja cópia consta a fls 45 a 54, intitulado “Contrato de Locação Financeira Imobiliária”, datado de 26.10.2004, cujo teor se dá por reproduzido, pelo qual o primeiro deu de locação financeira à segunda, pelo prazo de 3 anos, o prédio referido na al. A) (S).
T – Sob a Cláusula 6ª, nº3, das Condições Gerais do contrato referido na alínea anterior, consta que “será permitida a sub-locação total do referido imóvel a favor de José ….., Raquel …. e Maria ….. ”, filhos da embargante C (T).
U – A cláusula referida na alínea anterior foi negociada tendo em vista a eventual hipótese de se poderem acontecer, em simultâneo e cumulativamente, dificuldades financeiras da locatária que inviabilizassem o pagamento das rendas ao locador, falecimento da embargante e nenhum dos seus parentes em primeiro grau habitar o imóvel na data do falecimento, podendo assim o prédio manter-se na propriedade da família, por via de os filhos da embargante reaverem a propriedade através da sua “recompra”, contemplada no “contrato de locação financeira” (U).
V – Não obstante ter-se verificado dificuldades financeiras da locatária no referido “contrato de locação de financeira”, não foi considerado oportuno accionar a permissão de arrendamento aos filhos da embargante, por não ter ocorrido simultânea e cumulativamente, nenhuma das outras situações referidas na alínea anterior, não estando em causa a garantia de utilização do imóvel como habitação da embargante (V).
X – A embargante nunca pagou o que quer fosse às sociedades …- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda , B ou A , a título de rendas, pela ocupação do prédio referido na al. A) (X).
Z – A sociedade ……– Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda encontra-se matriculada na CRP de Lisboa, sob o nº 000000000, com o objecto social “compra e revenda de imóveis, urbanização de terrenos, aluguer de propriedades”, obrigando-se com a assinatura de um gerente, tendo sido nomeado seu gerente, para os triénios 1996/1998, 1999/2001 e 2002/2004, A.F.C. ..., conforme documentos de fls 131 a 138 (Z).
AA – A Sociedade ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda adoptou os “Estatutos” que constam do documento de fls 139 a 143, que se dá por reproduzido, onde se lê:
Art.13º
(…)
3. Os gerentes têm a faculdade de constituir mandatários da sociedade para a prática de quaisquer actos que se tornem necessários.
Art. 14º
1. A sociedade obriga-se em todos os seus actos e contratos com a assinatura de um gerente” (AA).
BB – A.F.C. ... não assinou o documento referido na al. F) (BB).
CC – No dia 12.03.1999 reuniu a assembleia geral da sociedade ….– Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, tendo sido lavrada a acta cuja cópia consta a fls 164 e 165, que se dá por reproduzida, da qual consta o seguinte: “Entrou-se depois no segundo ponto da ordem de trabalhos, tendo-se procedido à ratificação, por unanimidade dos sócios presentes, da aquisição do imóvel sito em Lisboa, na Rua ……., número vinte, pela sociedade e respectiva escritura de compra e venda outorgada no 4º Cartório Notarial de Lisboa pelo gerente, bem como da outorga pela Drª …… no âmbito dos poderes conferidos, do contrato de comodato que lhe está inerente e que foi condição sem a qual a aquisição não era realizada, pelo interesse próprio da sociedade, que viu em contrapartida da aquisição deita nesses termos o seu património aumentado de valor, dotando-se de maior solidez patrimonial e financeira” (CC).
DD – No dia 28.02.1999 reuniu a assembleia geral da sociedade ….– Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, tendo sido lavrada a acta cuja cópia consta a fls 166 a 168, que se dá por reproduzida, da qual consta o seguinte: “(…) foi também deliberado por unanimidade aumentar o capital da sociedade de 400 000$00 para 180 000 000$00, sendo o aumento de 179 000 000$00 realizado por incorporação do suprimento que a sócia ….. – Sociedade de Gestora de Participações Sociais, SA detém para reforço da sua quota (…)” (DD).
EE – Por escritura pública outorgada no dia 05.03.1999 (e não 05.02.1999, como certamente por lapso conta da sentença, como se retira do documento nº3 junto com a réplica e do facto de esta escritura der sido posterior à assembleia de 28.02.1999), no Cartório Notarial de Lisboa, a fls 117 a 118 do Livro 469-B, A.F.C. ..., na qualidade de gerente da sociedade …..- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, declarou que, em cumprimento da deliberação de 28 de Fevereiro de 1999, altera parcialmente o contrato social, com referência ao artigo terceiro, que passa a ter a seguinte redacção: “o capital social, integralmente realizado em dinheiro, é de 180 000 000$00 e corresponde à soma das quotas, sendo uma de 179 000 000$00, pertencente à sócia …- Sociedade Gestora de Participações Sociais, SA e a outra de 40 000$00, pertencente à sócia H.F…….– Sociedade Gestora de Participações Sociais, Lda”, conforme documento de fls 169 a 171, que se dá por reproduzido (EE).
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Impugnação da matéria de facto.
A apelante vem impugnar a matéria de facto, pretendendo, por um lado, que seja incluído na matéria fáctica provada o facto por si alegado na petição inicial de que pelo menos desde 11/11/2003 o embargado A tinha conhecimento da existência do contrato de comodato celebrado em 5/03/99 e, por outro lado, que sejam considerados provados todos os oito artigos da base instrutória.
Quanto ao conhecimento do embargado da existência do contrato de comodato, tal facto foi alegado pela embargante na petição inicial, nos seus artigos 31º, 44º, 48º, 55º, 104º e 106º.
(…)
Conclui-se, portanto, que, procedendo parcialmente a impugnação da matéria de facto, deverão acrescer à matéria fáctica provada as seguintes alíneas:
FF) Desde pelo menos 11/11/2003, o embargado A tinha conhecimento do contrato celebrado em 5/03/99 entre a embargante e a …..-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda , referido em F).
GG) O documento a que alude a al. F) foi subscrito por S….., em representação da sociedade …..- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda (1º).
HH) A vontade da ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda era, na realidade, a de não revender o prédio identificado na escritura pública a que alude a al. D) (3º).
II) Ao outorgar a escritura pública referida na al. D), a ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda teve como objectivo dotar-se de solidez patrimonial e financeira (4º).
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II) Natureza do direito atribuído à embargante no contrato que celebrou com a sociedade H... em 5 de Março de 1999.
Como resulta dos factos das alíneas F), G), H), I) e J), no dia 5 de Março de 1999 a embargante celebrou com a sociedade ….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda um contrato mediante o qual esta lhe cedeu gratuitamente o imóvel em causa, para dele se servir como sua habitação permanente, enquanto fosse viva e, após a sua morte, para habitação dos seus parentes em 1º grau que nessa data se encontrassem a viver no imóvel, até o último deles aí deixar de habitar permanentemente ou falecer.
A sentença recorrida entendeu que este contrato não constitui um contrato de comodato, mas sim um contrato que atribui à embargante um direito de uso e habitação e que está ferido de nulidade, por não ter sido celebrado por escritura pública.
A apelante discorda, defendendo que estamos perante um contrato de comodato.
A lei, no artigo 1129º do CC, define o contrato de comodato como “… o contrato gratuito pelo qual uma das artes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
O contrato de comodato pode ser celebrado com ou sem prazo e com ou sem um uso determinado.
Se não for fixado prazo nem um uso determinado, o comodante pode exigir a restituição a qualquer momento; o mesmo não acontece se houver prazo, caso em que o comodatário só é obrigado a restituir a coisa no termo do prazo, ou se houver um uso determinado, findo o qual deverá ser restituída a coisa (artigo 1137º do CC).
Por seu lado, o direito de uso e habitação está previsto no artigo 1484º, que estabelece, no seu nº1, “o direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família” e, no seu nº2, “quando este direito se refere a casa de morada, chama-se direito de habitação”.
Nos termos dos artigos 1485º e 1490º do CC, o direito de uso e habitação constitui-se e extingue-se pelos mesmos modos que o direito de usufruto e aplicam-se-lhe as disposições que regulam este, quando conformes à natureza daqueles direitos, pelo que se extingue por morte do usuário, ou, se não for vitalício, no termo do prazo por que foi conferido (artigo 1476º nº1 a) do CC).
Face a estas características legais, tem de se concluir que no caso dos autos estamos perante um direito de comodato e não perante um direito de uso e habitação.
Desde logo, foi acordado, como prazo para o contrato, a data da morte da embargante ou, caso nessa data residissem na casa parentes no 1º grau, a cessação de residência deste ou a data da morte do último.
Ou seja, o direito atribuído à embargante não cessa necessariamente com a sua morte, como acontece no direito de uso e habitação.
Também o conteúdo do direito atribuído à embargante, embora se destine à sua residência permanente no prédio, não é definido pelas suas necessidades ou da sua família, como acontece com o direito de uso e habitação, mantendo-se pelo menos até à data da sua morte, independentemente dessas necessidades (sem prejuízo do direito à resolução por justa causa, contemplado no artigo 1140º do CC).
Só relativamente aos parentes da embargante que eventualmente residam na casa à data da sua morte da embargante é que foi estipulada a cessação do contrato no caso de estes deixarem de habitar o imóvel, tal não acontecendo com a embargante, cujo direito perdurará até à data da sua morte (cfr sobre a distinção entre comodato e direito de uso e habitação o acórdão RP de 27/02/2007, P. 0622593, em www.dgsi.pt e ainda P. Lima e A. Varela em CC anotado, volume III, página 553, no sentido de que, no caso do direito do usuário, qualquer interessado poderá requerer a extinção do direito se cessarem as respectivas necessidades, o que não acontecerá no direito da ora embargante, para quem foi fixado no contrato um prazo que durará pelo menos até à data da sua morte).
Igualmente a definição de “família” para efeitos do direito de uso e habitação, prevista no artigo 1487º do CC, não coincide com o conceito de familiares fixado no contrato em causa, que poderão eventualmente suceder no direito da embargante por aí residirem à data da sua morte.
Nem se poderá dizer, como na sentença recorrida, que não estamos perante um contrato de comodato porque este não existe apenas no interesse da embargante, dado que o mesmo só foi celebrado porque esta deu o seu consentimento para a venda do prédio, por se tratar da casa de morada de família.
É verdade que o contrato de comodato, sendo gratuito, visa o interesse do comodatário; mas no caso dos autos o contrato não deixa de ser gratuito e no interesse da embargante, que, perante a comodante, poderá usar a casa sem qualquer contrapartida durante toda a sua vida.
O facto de a embargante ter dado o seu consentimento para a venda na condição de ser celebrado este contrato não afasta a natureza gratuita deste, sendo esse consentimento apenas o motivo que esteve por trás da vontade das partes.
Conclui-se, portanto, que o direito da embargante é um direito de comodatária e não de uso e habitação.
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III) Validade do contrato celebrado entre a embargante e a …….- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda , em 5 de Março de 1999.
O embargado invocou a invalidade do contrato de comodato celebrado entre a embargante e a sociedade H..., alegando que o mesmo não foi outorgado pelo marido da embargante, que era o representante legal da ….. - Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda e que o contrato foi celebrado contra a norma imperativa expressa do artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais, por se tratar de acto gratuito que é contrário à finalidade de obtenção de lucro que subjaz à sociedade comercial, para além de não ter sido cumprido o declarado na escritura de aquisição no sentido de que o prédio adquirido se destinava a revenda.
Relativamente à representação da ……-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda , não se verifica qualquer invalidade, face aos factos provados nas alíneas AA), BB), CC) e GG) (esta última aditada como consequência da procedência parcial da impugnação da matéria de facto), das quais resulta que na escritura interveio pessoa com poderes para representar a …..-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda.
No que diz respeito à nulidade do contrato por violação do artigo 6º do CSC, entendeu a sentença recorrida que, nos termos dos artigos 280º e 294º do CC, a mesma se verificaria caso estivéssemos perante um contrato de comodato.
Contudo, não só os factos são insuficientes para se chegar a tal conclusão, como a matéria da alínea II) (aditada pela procedência parcial da impugnação da matéria de facto) a desmente.
Na verdade, o contrato de comodato, embora naturalmente gratuito, foi simultâneo com o próprio contrato de aquisição do prédio, por via do qual foi aumentado o património da sociedade; por outro lado, a escritura de aumento de capital da …..-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda, foi outorgada na mesma data em que foi adquirido o prédio e em que foi celebrado o contrato de comodato (5/03/1999), factos estes que indiciam a existência de factores que se desconhecem e que não permitem concluir linearmente que o contrato de comodato foi prejudicial aos interesses da sociedade …..- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda .
Do mesmo modo, o facto de não ser verdadeira a declaração feita na escritura de aquisição do prédio de que este se destinava a revenda não é motivo de invalidade do contrato de comodato, pois o vício, a existir (não se apurou a razão de ser de tal divergência), ocorreria no contrato de aquisição do prédio e não no contrato de comodato, sendo certo que, caso tenha visado o adiamento do pagamento do imposto de sisa, a consequência seria a nulidade do contrato objecto dessa simulação relativa e não do negócio real celebrado pelas partes (artigos 240º e 241º do CC).
Conclui-se, pois, que não foi feita a prova da invalidade do contrato de comodato, que incumbia ao embargado, como facto impeditivo do direito da embargante (artigo 342º do CC).
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IV) Validade do contrato de dação em pagamento celebrado entre a …..- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda e o embargado A em 28 de Junho de 2004.
Alega a apelante que deve ser declarada a “nulidade” do contrato de dação em pagamento ao embargado em virtude de a embargante não ter dado o seu consentimento para a transmissão, necessário por força do artigo 1682º-A do Código Civil, na medida em que se trata da casa de morada de família, sendo tal transmissão efectuada por uma sociedade ligada ao cônjuge da embargante.
Esta questão não foi invocada na 1ª instância, sendo, portanto, uma questão nova que este tribunal não pode conhecer.
Isto porque a invocada invalidade não seria uma nulidade de conhecimento oficioso (artigo 286º do CC), mas sim a anulabilidade prevista no artigo 1687º do CC, a qual, por força do nº2 deste artigo, teria de ter sido arguida no prazo de seis meses a contar do conhecimento do interessado, prazo este que, no caso concreto, há muito que já decorreu, pelo que sempre improcederia necessariamente esta pretensão da apelante.
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V) Natureza da “posse” da embargante e oponibilidade do contrato ao embargado A.
A sentença recorrida entendeu também que, independentemente da qualificação que se dê ao contrato, é precária a posse da embargante, que não será titular de qualquer direito que possa ser afectado pela diligência decretada no procedimento cautelar.
O direito de comodatária da embargante não é um direito real, mas sim um direito pessoal de gozo, isto é, um direito de crédito que envolve o gozo de uma coisa.
Tratando-se de um direito de crédito, o exercício do direito do comodatário nunca poderá ser considerado como posse, de acordo com o artigo 1252º do CC, porque não corresponde ao exercício de um direito real.
A “posse” da comodatária é uma posse precária nesse sentido, pois não corresponde ao exercício de um direito real, sendo a coisa usada pela comodatária por via da cedência do titular do direito real sobre a mesma.
Contudo, permite o artigo 1133º nº2 do CC que o comodatário privado ou perturbado no exercício do seu direito possa usar, mesmo contra o comodante, dos meios facultados ao possuidor no artigos 1276º e seguintes, entre o quais os embargos de terceiro previstos no artigo 1285º.
A questão que se coloca é a de saber se este contrato de comodato é oponível ao embargado A , o terceiro que adquiriu o prédio e que não foi parte nesse contrato.
Conforme acima se referiu, o direito do comodatário é um direito pessoal de gozo e não um direito real.
Como direito de crédito e ao contrário do que acontece com os direitos reais, o direito do comodatário não goza de sequela e produz efeitos apenas entre as partes nos termos do artigo 406 nº2 do CC, segundo o qual “em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei”.
Como exemplo de casos especialmente previstos na lei de eficácia dos contratos relativamente a terceiros, temos a já referida norma do artigo 1133º nº2 do CC que permite ao comodatário defender-se da acção de terceiros se o seu direito for perturbado, norma esta que tem correspondência para o arrendamento, no artigo 1037º nº2 do mesmo código.
Outro exemplo é o caso do artigo 1057º do CC, que, no contrato de arrendamento, estabelece que o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador.
Todavia, não existe qualquer norma que, à semelhança do artigo 1057º no arrendamento, preveja a transmissão da posição do comodante para um terceiro adquirente da coisa.
Assim, no contrato de comodato, o direito do comodatário só vale perante o comodante e não perante terceiros, nomeadamente perante terceiros que venham a adquirir o prédio.
O comodatário que, como a embargante, tem o direito de se servir do prédio vitaliciamente, só o poderá fazer enquanto o prédio estiver dentro da esfera jurídica do comodante, mas já não depois de o prédio ser transmitido a terceiro, podendo este exigir a sua restituição (cfr neste sentido acórdão RL 16/05/2006, P. 3834/2006.7, em www.dgsi.pt).
No presente caso, o embargado A adquiriu o prédio através do contrato de dação de em cumprimento de 28/06/2004 e, não tendo sido parte no contrato de comodato, poderá à primeira vista exigir a entrega do prédio.
A apelante alega que o embargado A actua de má fé, pelo que se terá de considerar que o contrato lhe é oponível.
Tem sido efectivamente entendido que, apesar da consagração legal do princípio da relatividade dos contratos, o contrato poderá ser oponível a terceiro se a conduta deste for particularmente censurável, através da figura do abuso de direito (cfr. Almeida Costa “Direito das Obrigações”, 3ª ed., página 69 e A. Varela “Das Obrigações em Geral”, 5ª ed., vol. I, página 173 e acórdão da RL de 16/05/2006 acima citado).
Estabelece o artigo 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A apelante sustenta que o embargado A sempre soube da existência do contrato e se conformou com ele, agindo sempre em conformidade com o mesmo.
Porém, para haver responsabilização de terceiro adquirente pela prestação de um contrato de comodato que não outorgou, não será suficiente que se prove que o terceiro tinha conhecimento da existência do contrato, sendo necessário que a sua conduta exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do seu direito de proprietário.
Como se vê dos factos, nomeadamente da alínea FF) (aditada como consequência da procedência parcial da impugnação da matéria de facto), o embargado A tinha conhecimento da existência do contrato de comodato à data em que adquiriu o prédio por dação em cumprimento.
Desde então (2004) e até à propositura da providência cautelar apensa, o embargado sempre aceitou que a embargante residisse no prédio, para aí dirigindo a sua correspondência.
Serão então estes factos suficientes para considerar que o embargado A actuou de má fé, comportando-se consistentemente de uma forma que levou a embargante a crer que lhe era reconhecido um direito que depois lhe é negado?
Parece-nos que estes factos não são suficientes para tal conclusão.
Com efeito, existem outros factos que levam a concluir que, pelo contrário, o comportamento do embargado não foi de molde a criar na embargante a expectativa de que o direito de comodatária seria respeitado sem qualquer limite.
Vejamos então.
O prédio encontrava-se onerado com hipotecas, por dívidas ao embargado A, das sociedades ligadas ao cônjuge da embargante, entre as quais a …..-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda .
Ao transmitir o prédio para o embargado em Junho de 2004, a ….-Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda viu extinta a sua dívida e o banco embargado, ao receber o prédio em cumprimento, viu extinto o seu crédito (837º do CC).
É certo que, sendo a …..- Sociedade de Comércio Imobiliário, Lda ligada à família da embargante, é provável que o prédio não tivesse sido dado em cumprimento se não houvesse uma expectativa de que o embargado respeitaria o contrato de comodato.
Contudo, quatro meses depois da dação em cumprimento, o banco embargado celebrou um contrato de locação financeira com a sociedade B , por via do qual esta ficou obrigada a entregar-lhe as respectivas rendas, prevendo-se nesse contrato uma eventual sublocação para os filhos da embargante.
Com este contrato de locação financeira é manifesto que o banco embargado não estava disposto a receber um prédio como pagamento do seu crédito, sem que dele pudesse dispor ou retirar rendimentos durante duas gerações, não podendo deixar de se considerar que o embargado aceitou que a embargante aí continuasse a residir apenas na expectativa de receber as rendas da locação.
Na verdade, a locação foi feita a uma sociedade mais uma vez ligada à família da embargante, como resulta do facto de a locatária se dispor a pagar as rendas ao embargado, apesar de a embargante permanecer no prédio e do facto de se prever uma eventual locação aos filhos da embargante.
Deste modo, não é credível que a embargante não soubesse que o embargado tinha a expectativa de receber as rendas da locação e que desse recebimento dependia a sua tolerância quanto à permanência da embargante no imóvel.
Antes da dação em cumprimento, o banco embargado estava em posição de executar as hipotecas e obter o prédio sem qualquer condição, caso o seu crédito não fosse satisfeito.
Depois da dação em cumprimento o banco embargado viu satisfeito o seu crédito recebendo o prédio, mas, se não pudesse dispor dele, como pretende a embargante, ficaria em pior situação do que estava antes da dação em cumprimento, só se compreendendo que tenha aceitado que a embargante aí permanecesse face à expectativa de receber as rendas da locação que viria a celebrar.
Quando as rendas da locação financeira deixaram de ser pagas, só através da possibilidade de dispor do prédio é que o banco embargado pôde ficar na mesma situação em que estaria se a dação em cumprimento não tivesse sido realizada, em que o embargado poderia ter executado as hipotecas e obtido o prédio sem qualquer outro encargo.
Ao celebrar o contrato de dação em cumprimento e o contrato de locação financeira, as partes agiram manifestamente com o objectivo de proporcionar aos devedores uma forma mais fácil de pagamento e de, simultaneamente, não os privar do gozo do prédio que havia sido dado como garantia, objectivo que não veio a ser cumprido a partir do momento em que as rendas da locação deixaram de ser pagas.
Não se vê assim que da parte do embargado A haja má fé, violação dos bons costumes e muito menos que tenha excedido os limites do fim social e económico do seu direito.
Não havendo abuso de direito por parte do embargado, não está o mesmo obrigado pelo contrato de comodato e, por isso, pode exigir a entrega do prédio, improcedendo as alegações da embargante.
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DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida, embora por fundamento diferente.
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Custas pela apelante.
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Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011

Maria Teresa Pardal
Tomé Ramião
Jerónimo Freitas