NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
INEFICÁCIA
PROCESSO-CRIME
Sumário

I – De acordo com o n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a acusação deve ser comunicada às pessoas indicadas no n.º 3 do artigo 277.º, «prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes».
II – O campo de aplicação da parte final desta disposição legal não se restringe, de forma alguma, nem se vê qualquer razão para se restringir, aos casos em que essa ineficácia se ficou a dever ao desconhecimento do paradeiro da pessoa a notificar.
III – Uma tal interpretação restritiva deixaria por resolver parte dos casos que a alteração legislativa visou precisamente solucionar.
IV – Diferente entendimento das coisas facilitaria, injustificadamente, a prescrição do procedimento criminal uma vez que, não ocorrendo a interrupção do respectivo prazo com a constituição de arguido – artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal –, nem com a notificação da acusação – artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma –, nem tendo este mesmo acto efeito suspensivo da prescrição – artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código –, não obstante a clara manifestação da intenção de exercer a acção penal por parte do Ministério Público, a extinção do procedimento criminal viria a ocorrer logo que decorresse o prazo previsto no artigo 118.º do Código Penal.

Texto Integral


Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa



I – RELATÓRIO
1 – No dia 16 de Maio de 2011, foi proferido o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:

Em sede de encerramento de inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de acusação do arguido Joel.

Vieram os autos remetidos à distribuição e, nessa sequência, foi-nos dado verificar que o arguido não prestou Termo de Identidade e Residência, em virtude de se encontrar em «coma profundo no TMG, Residência para Seniores, Lda., situada na Rua Ourém» (folhas 21) e na sequência de diligências efectuadas em vista à notificação do arguido através de entidade policial competente, na referida morada/estabelecimento, resultou esta negativa, porquanto «Por informação da assistente social (...) o arguido encontra-se em estado de saúde muito grave, de tal modo que não se encontra em condições de compreender ou assinar qualquer documento».

Vê-se que o arguido não está notificado do despacho de encerramento de inquérito, pelo que, salvo o devido respeito por opinião contrária, entende a signatária que não estão verificados os pressupostos para a remessa a distribuição.

De resto, com tal acto, ocorre a preterição de formalidade legal que consubstancia uma irregularidade processual, a qual pode afectar o valor do acto de recebimento dos autos (cf. artigos 311.º, n.º 1, e 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), por implicar a preterição da faculdade de que o arguido goza, ainda, de requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.

Considerando o que ficou dito, impõe-se a reparação da irregularidade apontada, mediante o integral cumprimento do disposto no artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal ex vi do art. 283.º, n.º 5, do mesmo diploma legal.

Em face do exposto, dê baixa à distribuição, remetendo os autos aos Serviços do Ministério Público.

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

1. Interpõe-se o presente recurso da douta decisão proferida a fls. 40 e 41 dos autos, com fundamento em violação, por errada interpretação, do disposto nos artigos 123.º, 283.º, n.º 5, parte final, e 311.º, todos do Código de Processo Penal.
2. Na verdade, a douta decisão sob recurso entendeu que "não estão verificados os pressupostos para a remessa à distribuição" por ter ocorrido "uma irregularidade processual, a qual pode afectar o valor do acto de recebimento dos autos (cf. artigo 311.º, n.º 1, e 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), por implicar a preterição de uma faculdade de que o arguido goza, ainda, de requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal” e conclui que "...impõe-se a reparação da irregularidade apontada, mediante o integral cumprimento do disposto no artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 283.º, n.º 5, do mesmo diploma legal."
3. No entanto, resulta claramente dos autos que não se mostrou possível proceder ao interrogatório do arguido porque este no dia 24.03.2011 "se encontra internado há nove meses em estado de coma profundo no TMG, residência para Seniores, Lda., situada na... Ourém" – certidão negativa de fls. 21 – e na data de 23 de Abril de 2011 que "o arguido encontra-se internado na unidade de cuidados continuados de longa duração "TMG - Residência para Seniores Lda.", com a morada acima indicada. Por informação da Assistente social Filipa o arguido encontra-se em estado de saúde muito grave, de tal modo que não se encontra em condições de compreender e assinar qualquer documento" – cf. negativa de fls. 37.
4. Neste circunstancialismo, não se vislumbra que tenha ocorrido a irregularidade invocada no douto despacho sob recurso que, ainda que ocorresse, é questionável que fosse sanada nos termos invocados no mesmo douto despacho.
5. Na verdade, o artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal reporta que pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade no momento em que da mesma se tiver conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

6. No caso, o acto ferido de invalidade seria o acto de notificação da acusação, da estrita esfera de competência do Ministério Público a praticar em sede de inquérito e em cujo âmbito de intervenção não se vislumbra intervenção do Juiz de Julgamento, tanto que é uma faculdade que não se encontra prevista no artigo 311.º do Código de Processo Penal.

7. Em todo o caso, a questão que releva e se pretende equacionar no presente recurso prende-se com a concreta viabilidade do acto de notificação pretendido pela Mma Juiz pois que os autos foram remetidos para julgamento por não se ter logrado a notificação do arguido nem se vislumbrar êxito na realização de outras diligências de notificação, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 5, 2.ª parte, do Código de Processo Penal.

8. Na verdade, como se referiu, o arguido encontra-se em coma profundo desde a data do acidente – 26 de Junho de 2010 – e, embora com paradeiro localizado, não se encontra capaz de compreender a notificação.

9. Esta situação configura, quanto a nós, uma impossibilidade de notificação sendo que a lei não distingue se a impossibilidade decorre de ausência por paradeiro desconhecido ou, como no caso, de uma objectiva incapacidade para receber a notificação, superveniente aos factos.

10. Em sede de inquérito, indiciando-se a prática do crime e face à incapacidade superveniente, não existe alternativa de procedimento que não seja a dedução da acusação prosseguindo os autos perante a ineficácia dos procedimentos de notificação – artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

11. Nesta conformidade, entende-se não existir qualquer irregularidade tendo o douto despacho recorrido violado o disposto nos artigos 123.º, 283.º, n.º 5, e 311.º, todos do Código de Processo Penal.

12. O artigo 283.º, n.º 5, do Código de Processo Penal foi interpretado no sentido de restringir a impossibilidade de notificação às situações de paradeiro desconhecido do arguido, quando a letra e o espírito da lei não permitem essa restrição e deveria ter sido interpretado no sentido de entender que a impossibilidade de notificação não se restringe às situações de paradeiro incerto mas, também, qualquer outra impossibilidade de notificação, designadamente a que resulta de incapacidade superveniente, devendo, consequentemente, ser proferido despacho de recebimento de acusação e designação de dia para julgamento.
13. Não será despiciendo, neste momento, recordar as razões pelas quais se justificou a alteração do n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, por força da Lei 59/98, que acrescentou a parte final ao citado n.º 5 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, por razões que se encontram também certamente subjacentes ao Assento para fixação de Jurisprudência do STJ de 4.2.1999, onde se decidiu pela admissibilidade de notificação edital nas situações de impossibilidade de notificação da acusação ao arguido, prosseguindo depois o processo para a fase de julgamento.
14. Na verdade as garantias de um julgamento justo estão asseguradas ao arguido por via do instituto da contumácia, que igualmente não limita os motivos da impossibilidade de notificação à situação de paradeiro desconhecido e não impede a sua aplicação à situação em concreto, que reporta uma impossibilidade psíquica de receber a notificação.
15. O artigo 123.º do Código de Processo Penal foi interpretado no sentido de existir irregularidade de notificação perante a impossibilidade objectiva de se proceder à notificação, apesar dos esforços efectuados nesse sentido, quando deveria ter sido interpretado no sentido de permitir reconhecer a inexistência de qualquer vício.

16. O artigo 311.º foi interpretado no sentido de viabilizar ao Juiz de Julgamento a possibilidade de proferir despacho não compreendido no âmbito do artigo 311.º do Código de Processo Penal quando deveria restringir-se ao conhecimento das questões ali enunciadas, pois que não se vislumbra, como o douto despacho recorrido reconhece, qualquer nulidade de que cumprisse conhecer.

Termos em que, revogando a douta decisão sob recurso e substituindo-a por outra que considerando verificada a situação prevista no artigo 283.º, n.º 5, parte final, do Código de Processo Penal receba a acusação e designe dia para julgamento farão V.a Ex.a a costumada justiça.

3 – Não foi apresentada qualquer resposta à motivação do recorrente.

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 74.

II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – O n.º 5 do artigo 283.º da redacção originária do Código de Processo Penal mandava aplicar à acusação o disposto no artigo 277.º, n.º 3, do mesmo diploma, disposição legal que determinava que o despacho de arquivamento deveria ser «comunicado ao arguido, ao assistente, ao denunciante com a faculdade de se constituir assistente e às partes civis», impondo que a comunicação ao arguido e ao assistente revestisse a forma de notificação nos termos previstos no artigo 113.º, n.º 1 daquele Código.
A questão que então se colocava era a de saber se, gorada a notificação pessoal do arguido, era admissível a sua notificação edital, dividindo-se a jurisprudência a esse respeito[1] [2].
A questão veio a ser resolvida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, que, no essencial, deu ao n.º 5 do artigo 283.º a sua actual redacção[3].
De acordo com essa redacção, a acusação deve ser comunicada às pessoas indicadas no n.º 3 do artigo 277.º, «prosseguindo o processo quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes».
O campo de aplicação da parte final desta disposição legal não se restringe, de forma alguma, nem se vê qualquer razão para se restringir, aos casos em que essa ineficácia se ficou a dever ao desconhecimento do paradeiro da pessoa a notificar.
Uma tal interpretação restritiva deixaria por resolver parte dos casos que a alteração legislativa visou precisamente solucionar.
E não se diga, como parece fazer o despacho recorrido, que, com isto, se desprotege o arguido, que vê os seus direitos de defesa injustificadamente reduzidos, perdendo, nomeadamente o direito de requerer a realização de instrução.
De facto, não se pode ignorar que a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, deu, simultaneamente, uma nova redacção ao n.º 3 do artigo 336.º do Código de Processo Penal.
Aí passou a prever-se que, se o processo tivesse prosseguido nos termos do artigo 283.º, n.º 5, parte final, o arguido, no momento da cessação da contumácia, fosse notificado da acusação, podendo então «requerer a abertura de instrução no prazo a que se refere o artigo 287.°, seguindo-se os demais termos previstos para o processo comum».

6 – Diferente entendimento das coisas facilitaria, injustificadamente, a prescrição do procedimento criminal uma vez que, não ocorrendo a interrupção do respectivo prazo com a constituição de arguido – artigo 121.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal –, nem com a notificação da acusação – artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma –, nem tendo este mesmo acto efeito suspensivo da prescrição – artigo 120.º, n.º 1, alínea b), do Código –, não obstante a clara manifestação da intenção de exercer a acção penal por parte do Ministério Público, a extinção do procedimento criminal viria a ocorrer logo que decorresse o prazo previsto no artigo 118.º do Código Penal.

7 – Resta dizer que, se no decurso do inquérito tivesse sido praticada qualquer nulidade ou irregularidade de conhecimento oficioso ou que, não o sendo, tivesse sido oportunamente arguida por quem para tanto tivesse legitimidade, competiria ao juiz de julgamento, no momento em que proferisse o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, apreciar a questão, declarando, se fosse esse o caso, a irregularidade cometida e determinando a sua reparação – artigos 122.º e 123.º do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido e determinando que o mesmo seja substituído por outro que, inexistindo qualquer outro obstáculo, ordene o prosseguimento do processo.
Sem custas.

²

Lisboa, 14 de Março de 2012

 (Carlos Rodrigues de Almeida)
 (Horácio Telo Lucas)
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[1] Veja-se, nomeadamente, a jurisprudência citada por SANTOS, Manuel Simas, LEAL-HENRIQUES, Manuel, e PINHO, David Borges de, in «Código de Processo Penal Anotado», 2.º volume, Rei dos Livros, Lisboa, 1996, p. 132 e ss.
[2] Para resolver esta questão, um Anteprojecto de revisão do Código de Processo Penal elaborado em meados dos anos 90 por uma comissão presidida por Figueiredo Dias, aditava ao artigo 283.º um n.º 6 cujo texto era o seguinte: «É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 113.º, n.º l, alíneas a) e b), prosseguindo o processo quando, depois de se terem utilizado as duas vias de notificação, elas se tenham revelado ineficazes».
[3] O primeiro Projecto da Comissão presidida por Germano Marques da Silva (1996/97) propôs que a declaração de contumácia pudesse ocorrer, neste tipo de casos, antes de o processo ser remetido para a fase de julgamento, sendo para esse efeito competente o juiz de instrução criminal, alternativa que veio posteriormente a ser abandonada (vejam-se os artigos 285.º a 285.º-C desse projecto).