ACÇÃO INIBITÓRIA
CLÁUSULA GERAL
BANCO
CLAUSULA ABUSIVA
NULIDADE
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário

1. Não há inutilidade superveniente numa ação inibitória em que se pede a declaração de nulidade de regras de arredondamento em alta constantes de cláusulas contratuais gerais, alegando-se que elas são abusivas por violação do princípio da boa fé – embora as regras já tenham sido proibidas para o futuro.
2. Em tal ação inibitória, o MºPº é parte legítima.
3. Tais regras de arredondamento em alta já eram abusivas por violação do princípio da boa fé, mesmo antes de a lei as ter proibido para o futuro.
( Da Responsabilidade do Relator )

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
O 10º Juízo Cível de Lisboa, 3ª Secção, em ação proposta pelo A ( MºPº ,Autor, Recorrido) contra o B ( Banco …. S.A., Réu, Recorrente) (a) declarou nulas, em parte, três cláusulas contratuais gerais usadas pelo Banco, (b) condenou o Banco a abster-se de utilizá-las nos contratos actualmente e no futuro celebrados com os clientes, nos termos referidos naquela decisão, em contratos como os em apreço, (c) condenou o mesmo Banco a publicitar a decisão nos dois jornais de maior tiragem de Lisboa e Porto, e (d) determinou a comunicação da decisão ao Gabinete do Direito Europeu.
O Banco recorreu para este Tribunal, pedindo que a ação seja julgada extinta por inutilidade superveniente e por falta de interesse em agir do MºPº, ou, não se entendendo assim, julgada improcedente, revogando-se a decisão. Juntou parecer jurídico do Doutor João Calvão da Silva, professor catedrático da Universidade de Coimbra.
O MºPº pediu que se mantenha a decisão.
Cumpre decidir (1) se a sentença recorrida excedeu o pedido do Autor; (2) se há inutilidade superveniente da lide e falta de interesse em agir; (3) se a cláusula de arredondamento em alta em discussão nos autos era abusiva mesmo antes de junho de 2007; e (4) se será adequado determinar a publicação da sentença nos jornais de Lisboa e Porto.
Fundamentos
Factos
Apuraram-se os seguintes factos, dados como provados pelo Tribunal a quo:
1. A Ré é uma sociedade anónima, encontrando-se matriculada sob o NIPC ... e com a sua constituição inscrita na 1ª Conservatória do Registo Comercial de Lisboa - conforme documento junto a fls. 15 a 25, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
2. Tem por objecto social a “Realização de operações bancárias e financeiras e prestação de serviços conexos”
3. No exercício de tal actividade, a Ré procedia à celebração do contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor.
4. Para o efeito, a Ré apresentava aos interessados que com ela pretendiam contratar um clausulado já impresso, previamente elaborado, com o título: “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” - conforme documento junto a fls. 27 a 31, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
5. O referido clausulado contém uma primeira página impressa, com o subtítulo “Condições Particulares”, com espaços em branco destinados à identificação dos contraentes, do local de entrega do bem, do bem, do prazo, das datas de início e de termo do contrato, da modalidade de pagamento, das garantias do contrato, do seguro, do valor dado em penhor, do valor dos alugueres e outras retribuições, do indexante e da taxa anual de encargos efectiva global.
1- As quatro páginas impressas seguintes têm o título de “Condições Gerais”.
7. No ponto 4 do contrato, sob a epígrafe “Condições do Contrato”, alínea i) das mencionadas “Condições Particulares”, consta:
“Indexante: Euribor 3 meses Periodicidade da reindexação: No Mínimo Trimestral
Os montantes dos alugueres do contrato serão recalculados, desde que se verifiquem variações superiores a 00,25 entre a taxa do indexante utilizado na última indexação e a do penúltimo dia útil do trimestre em análise. Caso ainda não tenha ocorrido qualquer indexação, deverá ser considerada a taxa do indexante fixada no início do contrato.
Apurada a variação, esta será adicionada ou subtraída à taxa em vigor no contrato com efeitos a partir do período subsequente à correspondente alteração, sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior, donde resultará a taxa a utilizar no recalculo dos alugueres”.
8. A Ré, no exercício da sua actividade, procedia à celebração do contrato de locação financeira.
9. Para o efeito, a Ré apresentava aos interessados que com ela pretendiam contratar um clausulado já impresso, previamente elaborado, com o título: “Contrato de Locação Financeira” - conforme documento junto a fls. 32 a 37, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
10.O clausulado contém uma primeira página impressa com espaços em branco destinados à identificação do locatário e, na parte intitulada “Cláusulas Particulares”, do fornecedor, do bem, do preço de aquisição e da periodicidade, da data de vencimento e do valor das rendas.
11.As restantes quatro páginas impressas têm o título de “Cláusulas Gerais”.
1- No ponto 2, sob a epígrafe “Periodicidade, data de vencimento e valor das rendas”, alínea k) das mencionadas “Cláusulas Particulares”, consta:
“Indexante: Euribor 3 meses Periodicidade da reindexação: No Mínimo Trimestral.
Os montantes das rendas do contrato serão recalculados, desde que se verifiquem variações superiores a 00,25% entre a taxa do indexante utilizado na última indexação e a do penúltimo dia útil do trimestre em análise. Caso ainda não tenha ocorrido qualquer indexação, deverá ser considerada a taxa do indexante fixada no início do contrato.
Apurada a variação, esta será adicionada ou subtraída à taxa em vigor no contrato com efeitos a partir do período subsequente à correspondente alteração, sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior, donde resultará a taxa a utilizar no recalculo das rendas”
13.No exercício da sua actividade, a Ré procedia à celebração do contrato de financiamento para aquisição a crédito.
14.Para o efeito, a Ré apresentava aos interessados que com ela pretendiam contratar um clausulado já impresso, previamente elaborado, com o título: “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” - conforme documento junto a fls. 38 a 41, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
15.O clausulado contém uma primeira página impressa com espaços em branco destinados à identificação do adquirente, do bem ou serviço financiado e do fornecedor, assim como à indicação do valor do financiamento, dos encargos, da TAEG e da forma de pagamento.
16.As restantes três páginas impressas, das quais constam parte da cláusula 3ª e das cláusulas 4ª à 19ª, não contêm quaisquer espaços em branco para serem preenchidos pelos contratantes que em concreto se apresentem, com excepção do reservado ao valor do imposto de selo e dos destinados à data e às assinaturas dos adquirentes e do financiados.
17. A cláusula 4ª, sob a epígrafe “Taxa Anual de Encargos Efectiva Global – TAEG”, preceitua:
1. A referida taxa indicada no nº 3 da cláusula 2ª, foi calculada em conformidade com o disposto no D.L. 359/91 de 21 de Setembro.
2. Esta taxa será variável, tendo por indexante a Eurib. 12 meses fixada para o primeiro período, sendo revista sucessivamente por iguais períodos, no penúltimo dia do período de referência findo, desde que o indexante tenha sofrido uma variação superior a 00,25%.
3. A taxa actualizada será arredondada ao 1⁄4 de ponto percentual igual ou superior”.
18.A Ré, a partir de finais de Agosto de 2007 procedeu a alterações no “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” – conforme documento junto a fls. 59 a 64, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
19.A Ré, a partir de finais de Agosto de 2007 procedeu a alterações no “Contrato de Locação Financeira” – conforme documento junto a fls. 70 a 75 a 31, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
20. A Ré, a partir de finais de Agosto de 2007 procedeu a alterações no “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”” – conforme documento junto a fls. 65 a 69 a 31, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
21. Os contratos identificados em 4, 9 e 14 foram descontinuados em Agosto de 2007.
Análise jurídica
O Tribunal a quo fundamentou-se, no que aqui interessa, nas seguintes considerações:
Quanto à questão da cláusula de arredondamento nos três contratos cuja avaliação foi pedido pela Autora.
No preâmbulo do Dec.-Lei nº 171/2007, de 8.05, veio o legislador esclarecer que, o objectivo do Dec.-Lei nº 240/2006, de 22.12, era o de pôr termo à possibilidade de arredondamento em alta da taxa de juro aplicada aos contratos de crédito para aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento e para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria. Tendo aquele diploma o objectivo de estender e uniformizar os critério utilizados no arredondamento e no indexante da taxa de juro aos diversos contratos de crédito ou de financiamento (leasing, aluguer de longa duração, factoring e outros).
Tudo isto porque veio a demonstrar-se como prática corrente o arredondamento em alta – como visível claramente nos três contratos sob análise nos presentes autos.
Ora, o arredondamento em alta consiste, fundamentalmente, em fixar de forma unilateral um preço superior ao que é devido pela prestação de um serviço ou pela aquisição de um bem em resultado de uma operação aritmética.
Posteriormente, o Dec.-Lei nº 88/2008, de 29.05 veio uniformizar (face à omissão legislativa) o indexante aplicável no cálculo dos juros.
Não há qualquer dúvida, nem tal é colocado em causa pela Ré, que os três contratos em análise, cingindo-nos apenas e tão só às cláusulas objecto do pedido, violam o preceituado nos decretos-lei supra identificados.
Mas também, não há dúvidas que os mesmos foram em tempo alterados (cf. Resulta dos factos provados).
Se após a entrada em vigor dos diplomas, os contratos em causa foram alterados – repete-se: não sendo in casu objecto dos autos, logo não sendo matéria de apreciação directa deste Tribunal, no âmbito deste processo, a questão que resulta é a seguinte: é possível declarar nulas cláusulas que a lei proibiu?
Salvo melhor opinião, sim. Foi o legislador que, desde logo, considerou que o modo como as instituições de crédito e sociedades financeiras (onde se inclui a Ré) estavam a realizar o arredondamento da taxa de juro era contrário à boa prática e à defesa do consumidor. Não só porque inexistia uma prática uniformizada, como a prática que utilizada era compensatória para as entidades, mas claramente lesiva para o consumidor final.
As três transcritas cláusulas, a Ré impunha aos contratantes aderentes o arredondamento da taxa de juro sempre para valor igual ou superior e nunca para valor inferior, logo o arredondamento nunca era feito em desfavor da Ré, mas sempre em prejuízo daqueles contratantes.
Pelo que apenas resta concluir que se tratam de cláusulas que geram um desequilíbrio desproporcio-nado em detrimento do contratante aderente, traduzido num prejuízo económico para este e, em contrapartida, um benefício exclusivo para a Ré, que arrecada a taxa de juro incrementada.
Assim, por se entender, com base nos fundamentos identificados nos preâmbulos dos diplomas citados (que sucintamente esclarecem a ratio da alteração legislativa) e no facto de as cláusulas sob análise demonstrarem um claro desequilíbrio entre os benefícios recebidos e os sacrifícios que a parte contraente faz.
Em suma, se no que se reporta às clausulas sob análise, verifica-se existir violação da boa fé pelo que se impõe a sua fixação como nula.
A isto, opõe o Banco recorrente as seguintes conclusões:
A. O presente recurso é interposto numa acção proposta pelo Ministério Público contra o ora Recorrente, “ao abrigo do disposto nos artigos 24º e seguintes da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro com as alterações introduzidas pelo DL nº 220/95 e 249/99 e 323/2001, de 17.12) e art. 13º , nº 1, al. c) da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96 de 31.7. com as alterações introduzidas pelo DL nº 67/2003, na qual peticionou a declaração de nulidade do último parágrafo in fine do ponto 4, alínea i) das “Condições Particulares” do “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” da Ré, junto como doc. 2, o último parágrafo in fine do ponto 2, alínea k) das “Cláusulas Particulares” do “Contrato de Locação Financeira” da Ré, junto como doc. n.° 3, e o nº 3 da Cláusula 4.ª do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito, junto como doc. 4, ambas a partir de “sendo o seu resultado arredondado para ao ¼ de ponto percentual superior” e também a condenação na abstenção por parte do ora Recorrente de utilizar tais cláusula em contratos que de futuro venha a celebrar, pedindo a condenação do Banco Recorrente a dar publicidade à decisão, e a comprovar nos autos essa publicidade;
B. Ora, do corpo da sentença (ponto V - DECISÃO, alínea a) e sub-alíneas a., b. e c.) resulta, pelo menos para aqui ora Recorrente, que o Tribunal declara nulo todo o teor de cada uma das cláusulas sob censura e não o segmento das mesmas, que é unicamente objecto do pedido; ou seja,
C. O Autor apenas pediu que fossem retirados os últimos parágrafos, in fine, do ponto 4/i e 2/k, dos contratos de Aluguer e Locação Financeira, junto aos autos, a partir de sendo o seu resultado arredondado para ao ¼ de ponto percentual superiore o n.° 3, da Cláusula 4ª do contrato de crédito do Réu, na parte em que refere A taxa actualizada será arredondada ao ¼ de ponto percentual igual ou superior.
D. Eram, pois, estes, e só estes, os segmentos que deveriam constar da decisão.
E. Por isso, a sentença, ao condenar o Réu, a fazer desaparecer por completo todo o ponto 4, alínea i) das “Condições Particulares” do “Contrato de Aluguer de Veículos sem Condutor”, o ponto 2, alínea k), das “Cláusulas Particulares” do “Contrato de Locação Financeira” e a Cláusula 4ª do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, elimina de uma “penada”, quer o corpo das referidas cláusulas quer o n.° 1 e n.° 2, da cláusula 4ª do contrato de crédito, os quais não foram objecto de censura, não são legalmente proibidas nem são ofensivos dos artigos 12°, 15° e 16° da LCCG, nem de quaisquer outras.
F. Ao decidir assim, a sentença, julgou certamente além ou em coisa diversa do que explicitamente se contém no pedido do Autor enfermando, neste caso, da nulidade referida na alínea e) do n.° 1 do artigo 668°, do Código de Processo Civil.
G. Deve, assim, como se requer, suprir-se as nulidades apontadas, modificando-se a decisão no sentido de o Réu ficar obrigado apenas a abster-se de utilizar o último parágrafo in fine do ponto 4, alínea i) das “Condições Particulares” do “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” da Ré, junto como doc. 2, e o último parágrafo in fine do ponto 2, alínea k) das “Cláusulas Particulares” do “Contrato de Locação Financeira” da Ré, junto como doc. n.° 3, ambas a partir de sendo o seu resultado arredondado para ¼ de ponto percentual superiore o n.° 3, da Cláusula 4ª do “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”, junto como doc. n.° 4, “A taxa actualizada será arredondada ao ¼ de ponto percentual igual ou superior.
H. Acresce que nesta concreta acção inibitória está em causa a aplicação no tempo do art. 4.° do Decreto-Lei n.° 240/2006, de 22 de Dezembro (aplicável por força da remissão do art. 1º do Decreto-Lei n.° 171I2007, de 8 de Maio) quanto à matéria do arredondamento da taxa de juro contratual nos contratos de concessão de crédito bancário, desconhecendo-se qualquer decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria;
I. De facto, está em causa nos autos a interpretação do sentido preceptivo da uniformização do modo de arredondar a taxa de juros calculada a partir de um indexante relativamente aos contratos de concessão de crédito a consumidores, seja no âmbito do crédito à habitação, seja no âmbito do crédito ao consumo em geral, constante dos Decretos-Lei n.° 240/2006 e 171/2007, nomeadamente o juízo sobre se a proibição de certas cláusulas contratuais para o futuro implica ou não um juízo sobre a sua nulidade para o passado, por alegadamente revestirem carácter abusivo;
J. A cláusula contratual posta em crise pelo Ministério Público, que é exactamente igual em cada um dos contratos, previa que a taxa de juros nominal, determinada a partir de um indexante (taxa Eurib) em certo período temporal de vigência do contrato de concessão de crédito seria “arredondada ao 1/4 de ponto percentual igual ou superior”, acolhendo um método de “arredondamento em alta”;
K. Em cada uma das minutas contratuais, estava claramente explicitado que a “Taxa Anual de Encargos Efectiva Global TAEG” era calculada com a fórmula matemática constante do Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Dezembro (disciplina de crédito ao consumo) – diploma em vigor até 2009 – que tal taxa era variável, tendo a variação por indexante a referida taxa Eurib a 3 ou 12 meses (consoante o contrato) e que era arredondada pelo modo indicado;
L. A partir da entrada em vigor do Decreto-Lei n.° 171/2007, ocorrida em Junho desse ano, o Banco Recorrente alterou as suas minutas contratuais (e disso juntou prova), substituindo a regra do arredondamento em alta pela regra de arredondamento legal constante do art. 4.° do Decreto-Lei n.° 240/2006;
M. Não obstante, o Ministério Público intentou a presente acção inibitória, sustentando que, antes de Junho de 2007, a antiga cláusula já era nula por ser abusiva, ou seja, violadora do princípio da boa fé, aplicando, de um ponto de vista prático, retroactivamente o referido art. 4.° do Decreto-Lei n.° 303/2007;
N. Na base do seu raciocínio, acolhido pelo saneador-sentença, está a ideia de que os Bancos se locupletavam à custa dos clientes, “ultrapassando” a taxa de juro convencionada e obtendo um enriquecimento ilícito;
O. Este entendimento não é legalmente correcto porquanto vigora entre nós, desde 1993, um princípio de liberdade de estipulação de juros nos contratos bancários que não é incompatível com o chamado arredondamento em alta (sendo certo que só a partir de 2009, por força do art. 28.° do Decreto-Lei n.° 133/2009, foi introduzido um limite máximo à TAEG nos contratos de crédito ao consumo);
P. Os Decretos-Leis nos 240/2006 e 171/2007 vieram conferir um nível mais elevado de protecção aos consumidores e visaram a uniformização das práticas bancárias em matéria de indexantes e arredondamento das taxas de juros, desse modo permitindo uma maior transparência das ofertas de crédito por parte dos Bancos, por reconhecerem que, sobretudo no crédito à habitação, a publicidade incidia sobre um dos elementos da formação da TAEG, o chamado spread, a que acresce a taxa nominal;
Q. Não é sustentável a ideia do Ministério Público de que esses dois diplomas reconheceram a ilicitude ou o carácter abusivo das práticas, em matéria de indexante e arredondamento, para o passado;
R. Com efeito, da análise cuidada desses diplomas, verifica-se que os mesmos não consideram inválidas ou abusivas as cláusulas contratuais sobre indexantes e arredondamentos constantes dos contratos anteriormente celebrados;
S. Prova disso é que esses diplomas não determinam quaisquer correcções para o passado ou quaisquer restituições de valores aos mutuários, como deveria suceder se o legislador fizesse um juízo sobre a invalidade dessas cláusulas.
T. Daí que o ora Recorrente tinha sustentado — embora sem êxito — que devia extinguir-se a instância por inutilidade superveniente, pois, não tendo carácter abusivo a estipulação sobre arredondamento em alta, a sua ilegalização para o futuro implicara a alteração dessa cláusula contratual, não havendo interesse na acção inibitória;
U. E sustentou igualmente que o Ministério Público não tinha, por isso, interesse em agir;
V. De facto, antes da proibição de 2007, o arredondamento em alta, elemento de formação do TAEG, era válido, desde que claramente expresso em cláusula contratual, constando dos elementos publicitados pelos Bancos e das simulações por eles feitas;
W. Tratava-se de uma prática admitida pelo Banco de Portugal – que impunha a divulgação do modo de arredondamento – porque era conforme com o princípio legal de inexistência de uma taxa de juro bancário máximo, a partir do qual haveria anatocismo;
X. O Decreto-Lei n.° 240/2006 não teve eficácia retroactiva, não visando pôr termo a qualquer conflito interpretativo de uma norma legal; o mesmo sucedeu com o Decreto-Lei n.° 171/2007 que remete para aquele;
Y. Daí a validade da cláusula no período anterior a entrada em vigor desses diplomas legais, ocorrido em 2007, na medida em que, pela cláusula do arredondamento (ainda que em alta), o aderente podia conhecer a elevação percentual permitida por acordo e ajuizar da legitimidade do arredondamento em concreto efectuado, uma vez que era explicitado o factor indexante e a percentagem de antemão acordada.
Z. Não existe, pois, nulidade, não tendo a cláusula, para o passado, qualquer carácter abusivo;
AA. Afigura-se desproporcional face ao caso dos autos, a condenação do Recorrente em proceder à publicação da decisão em 2 jornais diários, não sendo esta a forma mais correcta para atingir o fim de informar os consumidores da não aplicação da dita cláusula, até porque encontra-se demonstrado nos autos que a minuta de contrato em que tal cláusula se inseria há muito que não é utilizada pelo Recorrente, não sendo igualmente aplicada nos contratos ainda em vigor, existindo actualmente um regime imperativo quanto ao modo como se efectuam os arredondamentos das taxas de juro;
BB. A lesão à imagem do Recorrente pela aplicação das medidas previstas no n.° 2 do artigo 30.° da LCCG, corresponde a um erro na interpretação do mesmo artigo, imputando às mesmas uma função punitiva que estas claramente não têm;
CC. A decisão em recurso é, por isso, ilegal, mostrando-se violados os arts. 12°, 15°, 16° e 30º da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (Decreto-Lei n° 446/85, versão em vigor), bem como a norma transitória constante do Decreto-Lei n.° 171/2007;
DD. Não subsistindo a declaração incidental de nulidade, deve a presente acção ser julgada extinta por inutilidade superveniente e por falta de interesse em agir do Ministério Público ou, quando assim se não entenda, deve ser julgada improcedente, revogando-se em consequência o douto saneador-sentença ora recorrido, (...)
Mas o MºPº contrapõe o seguinte:
1ª A utilização pela Recorrente de clausulados dos quais não constam as cláusulas declaradas nulas de todo não retira utilidade à declaração de nulidade de tais cláusulas.
2ª Por um lado, somente essa declaração terá a virtualidade de sanar eventuais efeitos danosos já produzidos em contratos celebrados com a inclusão de tais cláusulas, permitindo aos prejudicados exigir da Ré valores que se apurem devidos, nos termos dos arts. 32º, nº 2 e 33º, ambos da LCCG.
3ª Por outro, para o legislador é bastante a possibilidade de utilização da cláusulas,“independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”, só com a só com a decisão judicial do mérito da causa sendo possível garantir que não voltará a inserir em contratos futuros tal clausulado.
4ª Aliás, na presente Acção, a Ré foi condenada “a abster-se de utilizar as cláusulas contratuais gerais supra referidas nos contratos que actualmente, e no futuro, celebrem com os clientes, nos termos definidos nesta decisão, em contratos como os em apreço”.
5ª Pelo que bem andou a Mmª Juíza ao declarar improcedente a analisada excepção peremptória, assim como a falta de interesse em agir do Ministério Público, que era consequência daquela.
6ª Nesta demanda, foram as cláusulas declaradas nulas por força do art. 15º da LCCG, pelo que tal declaração não significa a aplicação retroactiva do Decreto-Lei nº 240/2006.
7ª O recurso aos referidos Decretos-Lei nos 240/2006 e 171/2007 justifica-se designadamente em termos de interpretação sistemática, de consideração pela “unidade do sistema jurídico”, em consonância com o imposto pelo art. 9º , nº 1 do Código Civil.
8ª E concretamente quanto ao princípio da boa fé, é de referir ser “de um nexo de supraordenação entre duas regulamentações (a legal, ou inferível do sistema, e a unilateralmente preformulada), não do afastamento desta por factores particulares, que resultam verdadeiramente os limites cuja observância é objecto de controlo”.
9ª Nesta esteira, o carácter abusivo das cláusulas em apreço infere-se desde logo quer do preâmbulo do Decreto-Lei nº 240/2006 quer da Directiva nº 93/13/CE do Conselho, de 5 de Abril, que aquele pretende respeitar e que havia já sido transposta para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei nº 220/95 que alterou a LCCG.
10ª Com efeito, esta Directiva apresenta como princípio orientador a aproximação das legislações dos Estados – membros relativas a cláusulas abusivas em contratos celebrados entre profissionais e consumidores.
11ª Contra a pretensa aplicação retroactiva do Decreto-Lei nº 240/2006 feita pela sentença recorrida, acresce nesta ter sido a condenação de abstenção de utilização das cláusulas proferida quer para o presente quer para o futuro.
12ª É óbvio e surge claro no preâmbulo do Decreto-Lei nº 240/2006 serem independentes as questões da livre negociação das taxas de juro entre as instituições de crédito e os clientes e da prática do arredondamento incidente sobre aquelas, nomeadamente quanto ao juízo relativo às respectivas validades.
13ª A menção legislativa, no Aviso nº 9/2006 do Banco de Portugal, aos “critérios de arredondamento da taxa de juros utilizados pela instituição” não pode ser entendida como permissiva da fixação de critérios atentatórios do princípio da boa fé.
14ª A alusão a este princípio no art. 15º da LCCG possibilita, na prática, que o julgador intensifique a defesa do consumidor, não lhe sendo fornecida “uma regra apta a aplicação imediata, mas apenas uma proposta ou plano de disciplina, exigindo a sua mediação concretizadora”.
15ª Desempenhando, na intervenção do juiz, “um papel fundamental a ideia de um adequado equilíbrio contratual de interesses”, que é colocado em causa se o proponente procura alcançar, através do contrato, os seus próprios objectivos, sem considerar, de modo minimamente razoável, os interesses legítimos do cliente.
16ª Dar razão à Recorrente neste segundo entendimento que expõe – aquele em que justifica o arredondamento em alta com a permissão legal de critérios de arredondamento da taxa de juro – corresponderia, em última análise, ao rejeitar da aplicação do princípio da boa fé, ao declinar a necessidade de constatação do aludido equilíbrio contratual.
17ª O arredondamento da taxa de juro não se integra nos elementos essenciais do contrato: enquanto que aquele configura uma cláusula contratual geral, estes correspondem a cláusulas particulares, concretas e individuais, sendo o seu preciso alcance medido e interiorizado e, por regra, decisivo para a constituição da vontade de contratar.
18ª A Recorrente aceita esta distinção, não questionando a natureza de cláusula contratual geral da cláusula respeitante ao arredondamento, por um lado e, por outro, excluindo os elementos essenciais do contrato do “controlo do conteúdo das cláusulas gerais”, o que necessariamente significa que não se tratam de cláusulas gerais.
19ª A dicotomia cláusulas particulares / cláusulas gerais é característica de um contrato de adesão, sendo aquelas as que, por norma, podem e devem ser modificadas de forma a adequar o modelo a cada situação concreta e estas as para ser aplicadas a todos os clientes.
20ª Atentas as palavras empregues na cláusula, parece-nos óbvio que, por regra, o consumidor comum, leigo na matéria, não irá consciencializar sequer, aquando da celebração do contrato, o conteúdo, o significado do arredondamento da taxa de juro para 1⁄4 de ponto percentual superior.
21ª Mais do que não participar na conformação da estipulação relativa ao arredondamento, os aderentes irão aceitá-la cegamente, sem que dela possuam um conhecimento cabal.
22ª Atrevemo-nos a qualificar de notório o despertar da consciência social para o significado do arredondamento em alta das taxas de juro praticado pelas instituições bancárias, surgindo como consequência da divulgação feita pela comunicação social na ocasião, devida à entrada em vigor da já mencionada Lei nº 240/2006.
23ª Subjaz à LCCG a intenção “de assegurar que as expectativas que o aderente forma com base nas cláusulas negociadas não sejam defraudadas por aplicação de ccg cujo conteúdo, compreensivelmente, não consciencializou”, como a cláusula de arredondamento.
24ª Essas cláusulas contratuais gerais são caracterizadas pela “capacidade de interferência com as determinações centrais do objecto da prestação e do preço, que limitam, modificam ou concretizam de forma muitas vezes inesperada para o aderente.”.
25ª Demonstrando a presente Acção que “justamente porque se sabe que o aderente fixa a sua atenção e assenta a base das suas expectativas no núcleo do acordo, é contrário à boa fé introduzir ccg que, de forma não facilmente perceptível para a contraparte, o desfigurem”.
26ª Sendo esse o caso da estipulação relativa ao arredondamento da taxa de juro, factor adicional que, possibilitando estabelecer em escalões superiores a taxa anual nominal, vai influir na prestação, em proveito da predisponente Ré.
27ª Precisamente a respeito da interferência, prejudicial para o cliente, do arredondamento da taxa de juro noutro elemento que no contrato assume maior visibilidade, lê-se no preâmbulo do mencionado Decreto-Lei nº 240/2006: “Os arredondamentos em alta têm permitido fixar em escalões superiores a taxa anual nominal aplicada aos contratos de crédito à habitação”. Este diploma, aliás, norteia- se também pela pretensão da transparência dos contratos quanto ao aspecto em causa.
28ª Acertada se mostrou, pois, a decisão judicial ao declarar proibidas as cláusulas sub judice por violação da boa fé, nos termos do art. 15º da LCCG.
29ª Foi a Recorrente também condenada “a publicitar a proibição que advém desta decisão, nos dois jornais diários de maior tiragem de Lisboa e Porto, em três dias consecutivos, de tamanho não inferior a 1⁄4 de página”.
30ª A Recorrente insurge-se contra esta condenação porquanto entende ser a mesma “desproporcional face ao caso dos autos”, invocando ainda a “lesão à imagem do Recorrente”.
31ª Ponderando o princípio da proporcionalidade cuja inobservância é preconizada pela Recorrente, é de considerar ser a publicidade em que a mesma foi condenada: adequada ao prosseguimento dos fins que a lei visa; necessária para o alcance de tais fins, por meios diversos, menos onerosos, não se encontrarem disponíveis; não excessiva quanto aos fins conseguidos.
32ª No que concerne às decisões de procedência de acções inibitórias, é de salientar que “A difusão do conhecimento dessas decisões é um dos suportes de eficácia do sistema criado pelo presente diploma (cfr. o art. 31º , nº 2).”, pela LCCG, até porque “as empresas tenderão, em regra, a corrigir ou a ajustar as suas condições gerais, tendo em conta as decisões entretanto proferidas”.
33ª Aliás, a publicitação da sentença proferida na acção inibitória relativa a cláusulas contratuais gerais é presentemente obrigatória, em consonância com o consignado no art. 11º , nº 3 da Lei de Defesa do Consumidor.
34ª Nem sequer é concebível “que a salvaguarda da imagem de uma instituição de crédito sobreleve no confronto dos interesses dos clientes daquela, designadamente consumidores, seguramente mais frágeis e expostos.”.
35ª Deverá, pois, igualmente permanecer nos seus precisos termos a condenação judicial na publicidade da proibição.
1- A sentença recorrida parece exceder o pedido do Autor
O Banco reclamou da sentença, por a decisão exceder os limites do pedido do Autor.
Referiu que o MºPº apenas pediu que fossem declaradas nulas:
- no último parágrafo do ponto 4-i das Condições Particulares do Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor (doc. 2) o período “sendo o seu resultado arredondado para o ¼ de ponto percentual superior”;
- no último parágrafo do ponto 2-k das Cláusulas Particulares do Contrato de Locação Financeira (doc. 3) o período “sendo o seu resultado arredondado para o ¼ de ponto percentual superior”;
- e na cláusula 4ª-3 do Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito (doc. 4) o período “A taxa será arredondada ao ¼ de ponto percentual igual ou superior”.
Mas segundo o Banco, da decisão resulta que o Tribunal declara nulo todo o teor de cada uma dessas cláusulas, e não apenas a parte referida pelo MºPº.
O Tribunal apreciou a reclamação e decidiu que:
“Analisada a sentença constante dos autos, não se vislumbra na mesma qualquer nulidade nos moldes pretendidos pelo Réu, pelo que se indefere o requerido”.
Veio agora o Banco, nas alegações de Recurso, retomar aquela reclamação.
O MºPº não tomou posição sobre o assunto.
Tem alguma razão o Recorrente. A redação da Decisão recorrida pode dar origem a dúvidas de interpretação, que convém evitar – parecendo ter declarado nulas todas as cláusulas que transcreve, e não apenas a parte que era questionada pelo Autor.
Toda a questão debatida nos autos girou à volta do segmento das cláusulas que permitia ao Banco arredondar em alta as taxas de juro para o ¼ de ponto percentual superior.
O MºPº não invocou a nulidade de todo o ponto 4-i do doc. 2 (v. nº 7 dos factos provados), ou de todo o ponto 2-k do doc. 3 (v. nº 12 dos factos provados), ou de toda a cláusula 4ª do doc. 4 (v. nº 17 dos factos provados).
Apenas invocou as nulidades das partes que o Recorrente refere.
Assim, determina-se que a redação da alínea a) do ponto V- DECISÃO da sentença recorrida passa a ser a seguinte:
Por todo o exposto o Tribunal julga a presente acção parcialmente procedente e em consequência:
a)
Declaro nulas as cláusulas, nas seguintes partes:
a. No contrato denominado: “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” (Doc. nº 2, fls. 27), a seguinte parte do terceiro período do ponto 4-i:
“sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior”.

b. No contrato denominado “Contrato de Locação Financeira” (Doc. nº 3, fls. 32), a seguinte parte do terceiro período do ponto 2-k:
“sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior”.
c. No contrato denominado “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” (Doc. nº 4, fls. 39), o nº 3 da cláusula 4ª, com a seguinte redação:
“3. A taxa atualizada será arredondada ao ¼ de ponto percentual igual ou superior”.

2- Não há inutilidade superveniente nem falta de interesse em agir
Para o Banco recorrente, há inutilidade superveniente da lide e falta de interesse em agir por parte do MºPº.
Considera, por um lado, que a estipulação do arredondamento de juros em alta era permitida pela legislação vigente antes de junho de 2007; e que os decretos-leis 240/2006, de 22 de dezembro, e 171/2007, de 8 de maio, que uniformizaram as práticas bancárias em matéria de arredondamento das taxas de juro, não determinaram quaisquer correções para o passado, mas apenas para o futuro. Tendo sido ilegalizada a prática do arredondamento em alta, mas apenas para o futuro, aqueles diplomas implicaram a alteração dessa cláusula contratual, não havendo assim interesse na presente ação inibitória. Pelo que o MºPº também não teria aqui interesse em agir.
Objeta a isto o MºPº que mesmo que o Banco tivesse retirado aquelas cláusulas de arredondamento em alta nos novos contratos celebrados, a declaração de nulidade não perde a utilidade: por um lado porque com esta declaração os eventuais prejudicados por esse arredondamento ficam habilitados a exigir ao Banco os valores que se apure ser-lhes devidos; e por outro porque só com a decisão judicial aqui pedida ficará garantido que o Banco não voltará a inserir tal clausulado em contratos futuros.
Como é sabido, aquele DL 240/2006 estabeleceu um novo regime de arredondamento das taxas de juro nos contratos de crédito à habitação, aplicável aos novos contratos (celebrados após a sua entrada em vigor) e aos contratos já em execução (devendo ocorrer refixação das taxas de juro para efeitos de arredondamento após a entrada em vigor do diploma). O arredondamento passou a ser à milésima, por excesso quando a 4ª casa decimal fosse superior a 5, e por defeito quando a 4ª casa decimal fosse inferior a cinco (art. 4º). A violação destas regras, mesmo por negligência, ficou a ser punível com coima (art. 7).
O DL 171/2007 veio estender aquele regime designadamente aos contratos de crédito e financiamento para gozo temporário de bens móveis de consumo duradouro.
Estas inovações legislativas foram justificadas pelo legislador neste contexto de “forte concorrência entre instituições de crédito”, em que a publicidade se havia tornado “mais criativa, agressiva e apelativa para os consumidores” (preâmbulo do DL 240/2006). Inovações legislativas destinadas a salvaguardar os direitos dos consumidores, e que previam a refixação das taxas de juros estabelecidas pelos contratos já em execução, com regras de arredondamento que deviam ser aplicadas logo após o início da vigência dos diplomas.
Estas regras de arredondamento, nomeadamente a do art. 4º do DL 240/2006 (arredondamento à milésima, por excesso quando a 4ª casa decimal é igual ou superior a 5, e por defeito quando essa 4ª casa decimal é inferior a 5; e arredondamento apenas da taxa de juro, sem adição do spread) aplicam-se aos contratos em execução – art. 2º do DL 240/2006 e art. 2º-3 do DL 171/2007. Mais precisamente, o arredondamento segundo as novas regras deve ocorrer logo que estes decretos-leis entraram em vigor. Isto é, não podem manter-se as regras de arredondamento constantes daquele clausulado contratual geral aqui em causa.
Tanto basta para assegurar o interesse da presente ação inibitória e a legitimidade processual do MºPº.
A ação tem utilidade e interesse porque visa satisfazer um objetivo legal: a alteração das referidas regras de arredondamento em alta que a lei já não consente, mesmo para os contratos em execução. Para satisfazer esse objetivo, a via adequada é a declaração judicial de nulidade das cláusulas contratuais gerais em causa e a condenação do Banco a abster-se futuramente de utilizá- -las. Não bastando o Banco dizer que deixou de utilizá-las.
E o MºPº tem legitimidade porque tem interesse direto em demandar para proteção dos consumidores dos serviços referidos – art. 26-A do CPC, art. 26-1-c da LCCG, Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, e art. 13-1-c da LDC, Lei de Defesa do Consumidor.
É certo que o DL 240/2006 mandou operar aquela retificação apenas para o futuro, embora também nos contratos em execução. Por exemplo, não mandou operar tal retificação nos contratos já executados. E também não estabeleceu aqui a retroatividade do sistema de arredondamento que considerou lógico e legítimo. O legislador ponderou aqui todos os interesses em jogo e concluiu decerto que uma solução mais radical viria trazer mais conflitos que soluções – e dificuldades sérias de aplicação da lei. As considerações de segurança jurídica prevaleceram aqui sobre as considerações de lógica intrínseca do sistema.
Esta situação mais reforça o interesse da ação: a situação em que o público está carecido de tutela judicial, que incumbe ao MºPº promover.

3- A cláusula de arredondamento em alta em discussão nos autos era abusiva mesmo antes de junho de 2007.
Considera o Banco que a estipulação do arredondamento de juros em alta não tinha caráter abusivo, sendo até permitida pela legislação vigente antes de junho de 2007: antes da proibição de 2007, o arredondamento em alta era válido, desde que claramente expresso em cláusula contratual, constando dos elementos publicitados pelo Banco e das simulações por ele feitas. Acrescenta que desde 1993 passou a vigorar entre nós um princípio de liberdade de estipulação de juros nos contratos bancários compatível com o arredondamento em alta. Que os decretos-leis 240/2006 e 171/2007 não vieram reconhecer a ilicitude desses arredondamentos em alta, pois não determinaram quaisquer correções para o passado ou quaisquer restituições de valores aos mutuários, como deveria suceder se o legislador tivesse considerado inválidas aquelas cláusulas. Pela cláusula do arredondamento (ainda que em alta), o aderente podia conhecer a elevação percentual permitida por acordo e ajuizar da legitimidade do arredondamento em concreto efectuado, uma vez que era explicitado o factor indexante e a percentagem de antemão acordada.
O Tribunal recorrido, porém, ponderou que o Banco impunha sempre cláusulas de arredondamento em alta, e por isso o arredondamento era sempre feito em prejuízo do consumidor, e nunca em prejuízo do Banco: tais cláusulas geravam um desequilíbrio desproporcionado entre as partes e em contrapartida um benefício exclusivo para o Banco; um claro desequilíbrio entre os benefícios e os sacrifícios da outra parte. Havia assim uma violação da boa-fé. E foi o próprio legislador que considerou que o arredondamento em causa era contrário à boa prática e à defesa do consumidor.
Os juros eram baixos. Mas a alma do negócio eram os arredondamentos, sempre em vantagem do Banco, nunca em vantagem do cliente. Esta era aliás uma prática generalizada de toda a Banca portuguesa na altura, e daí o DL 240/2006.
Levanta-se, assim, a questão de saber se a prática do arredondamento sistemático em alta violaria o princípio da boa fé.
Na verdade, o art. 15 da LCCG (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais), na atual redação, proíbe “as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”. E o art. 16 adianta que na aplicação deste princípio “devem ponderar-se os valores fundamentais do direito, relevantes em face da situação considerada, e, especialmente: (a) A confiança suscitada nas partes pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer elementos atendíveis; (b) O objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado”.
Este princípio foi estabelecido já desde 1985 (DL 446/85, de 25 de outubro, que criou o regime inicial das cláusulas contratuais gerais). Na nova redação, republicadada pelo DL 220/95, de 31 de janeiro, este princípio foi mantido sem alteração, apenas tendo havido alteração de numeração.
Convém, no entanto, desenvolver melhor o alcance de tal princípio.

4- Bona fides: o princípio da boa fé na análise económica do direito
Bona fides é uma fórmula latina antiga que no entanto pouco ou quase nada tem a ver com a noção moderna de boa fé contratual. No direito romano havia boa fé na posse e a distinção entre acções de boa fé e acções de direito estrito. A noção de bona fides como exigência para se converter a posse em propriedade por usucapião parece ter sido introduzida nos finais da República. Surgiu também a noção de contratos bonae fidae, introduzida pelo ius honorarium: só estes geravam obrigações bilaterais. Enfim, no Digesto de Justiniano aparece a contraposição entre bonae fidae judicia e stricti juris judicia.
Mas a boa fé como lealdade ou equilíbrio nas relações contratuais só surge nos teólogos e canonistas medievais, em paralelo com a Fé como virtude teologal.
A boa fé nos contratos é sobretudo uma criação da Lex Mercatoria e do direito comercial medieval. Seguiu-se-lhe uma laboriosa construção doutrinal. Em Portugal, um alvará pombalino de 1771.11.16 principiava por notar que “não ha sociedade ou commercio algum que possa sem ella subsistir”. E também uma lei de 1771.12.15 acrescentava que “os verdadeiros e bons negociantes a tem por util e solido fundamento de seus interesses” (Auxiliar jurídico. Apêndice às Ordenações Filipinas, II:525, fac-simile da edição de 1870, Fund. Gulbenkian, Lisboa, 1985).
Na common law, o princípio está estabelecido pelo menos desde o século XVIII. No caso Carter v. Bohem (1766), Lord Mansfield expressou-o assim: “Good faith forbids either party by concealing what he privately knows, to draw the other into a bargain from his ignorance of that fact, and his believing the contrary.
Uberrima fides é a fórmula que estabelece as exigências de alguns contratos no direito inglês e americano, e desde logo nos contratos de seguros. Significa “confiança mais fértil” e baseia-se na consideração de que, nesses contratos, tem de haver a maior confiança entre as partes, porque só uma delas conhece todas as condições de facto que rodeiam o contrato e portanto tem a obrigação de revelá-las completamente à outra, sob pena de responsabilidade.
No direito alemão, a boa fé, Treu und Glauben, é um critério decisivo da interpretação dos contratos. Dos §§ 157 e 242 do BGB, Buergerliches Gesetzbuch nasceu o princípio da protecção da confiança, típico dos direitos germânicos.
(Sobre a boa-fé na história do direito europeu, consulte-se La bonne foi – Travaux de l'Association Henri Capitant vol. XLIII , Litec, Paris, 1994. E em especial sobre a bona fides romana, Paul du Plessis, 2010, Borkowski's Textbook on Roman law, 4th. ed., 400 pp., Oxford University Press).
Já no Código Civil de 1867 (o Código de Seabra) se estabelecia que “o erro que procede de dolo ou de má fé … produz nullidade” (entendia-se por má fé a dissimulação do erro do outro contraente, depois de conhecido) – art. 663.
Havia nulidade, mas não indemnização por culpa na formação dos contratos: esta é uma construção dos direitos napoleónico e alemão, que serviram de modelo ao actual Código Civil de 1966.
No atual Código Civil português, a má fé passou a ser expressamente um requisito na impugnação pauliana: entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor que intenta a impugnação; a impugnação só procede se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé; se o ato for gratuito, procede ainda que eles tenham agido de boa fé – art. 612 do Código Civil de 1966. Este Código tem em conta a boa fé das partes na formação dos contratos (art. 227), na simulação (art. 243), na posse (art. 1260), na herança (arts. 2076-2077) e até no casamento putativo (art. 1648).
Hoje, a boa fé na formação dos contratos é uma exigência legal erigida em princípio jurídico. Mais do que uma norma, este é um princípio jurídico, e como tal um elemento basilar do edifício do direito civil. Recebido entre nós no art. 227-1 do Código Civil, que assim estabelece: “Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.
Na análise económica do direito, o princípio da boa fé é abordado do ponto de vista da teoria da informação assimétrica. A informação é assimétrica quando numa negociação uma das partes tem mais ou melhor informação do que a outra: isto cria um desequilíbrio de poder negocial, podendo conduzir a uma situação de falha de mercado.
(As análises dos mercados com informação assimétrica levaram à atribuição do Prémio Nobel da Economia a G. Akerlof, M. Spence e J. Stiglitz em 2001).
Na informação assimétrica, pelo menos uma das partes não dispõe de toda a informação possível sobre as circunstâncias em que está a negociar. Esta situação é particularmente crítica quando uma das partes deliberadamente esconde à outra essas circunstâncias ou quando falseia deliberada ou mesmo fraudulentamente essa situação. Na fraude em matéria dos seguros, a margem entre o dolo civil e o dolo criminal pode tornar-se assim ténue.
G. Akerlof estudou um caso típico de informação assimétrica, a que acontece no mercado dos automóveis usados com defeitos ocultos, no artigo clássico da análise económica do direito The market for lemons: quality uncertainty and the market mechanism, 1970, Quarterly Journal of Economics, 84:3:488-500, reproduzido em A.W. Katz, 1998, Foundations of the economic approach to law, Oxford Univ. Press, pp. 239-244 (lemons é um termo de “calão” americano que pode traduzir-se em português por “barretes”). Akerlof estudou mercados onde os vendedores têm mais informação do que os compradores. Mostrou que os produtos de inferior qualidade tendem a expulsar do mercado os produtos de maior qualidade e que os preços destes podem ficar reduzidos em consequência.
Para uma introdução geral à análise económica do direito pode ver-se a obra basilar de Richard Posner, 2009, Economic Analysis of law, 748 pp., 7th. Ed. Aspen Publ., N.York. Também recente é o livro de J. Harrison / J. Theeuwes, 2008, Law and economics. 552 pp., Norton, N. York. Uma boa aproximação aos direitos de raiz continental é a de H.-B. Shaefer e Claus Ott, Manual de analisis economico del derecho civil, Trad., 374 pp., Tecnos ed., Madrid, 1991.
Enfim, um balanço dos resultados dos trabalhos de Akerlof, Spence e Stiglitz sobre a compreensão dos mercados de informação assimétrica está disponível na internet, em J.E. Stiglitz, “Information and the change in the paradigm in economics”, Prize lecture, December, 8, 2001. Stiglitz sustenta aí que esta Information Economics representa uma mudança fundamental no paradigma dominante da teoria económica. Os problemas de informação (assimétrica) são centrais para a compreensão da economia de mercado, mas também da teoria económica da política. Mais tarde, Stiglitz avançou, contra a corrente dominante da teoria económica, a ideia de que a “mão invisível” de Adam Smith não existe: os mercados frequentemente não só não conduzem à justiça social, mas principalmente nem sequer produzem resultados eficientes. Então, o alcance óptimo da intervenção do Estado é muito mais largo do que o sugerido pela escola tradicional das “falhas do mercado”.
Estamos aqui no centro das discussões atuais da moderna análise económica do direito.
A análise económica do direito desloca a questão da responsabilidade civil do regime de tratamento do comportamento dos indivíduos para o regime de tratamento do próprio sistema de justiça que é chamado a intervir em situações de conflito.
Põe-se assim a questão não só de reparar a situação particular, o conflito que é levado à apreciação do tribunal, mas sobretudo a questão de corrigir o sistema de justiça que intervém em situações de conflito. A análise económica do direito é desde logo uma prática crítica do direito.
Esta análise crítica parte das considerações da teoria económica do bem-estar, ela própria um ramo importante da micro-economia (a micro-economia é a parte da análise económica que se refere à tomada de decisões por pequenos grupos: indivíduos, famílias, associações, empresas, organismos do Estado; estuda o modo como os recursos escassos são por eles atribuídos em situações de utilização alternativa).
A análise micro-económica assume que os indivíduos, nessa tomada de decisões, se movem por considerações racionais. No entanto, só é possível um desenvolvimento jurídico destes pressupostos económicos nos limites e no quadro do direito vigente. Os indivíduos actuam normalmente nesse quadro jurídico como actores racionais.
Impor às partes que usem da maior sinceridade na prestação de informações à contraparte – nomeadamente não disfarçando os vícios da situação – , é assim um princípio geral do direito dos contratos, para evitar a assimetria da informação e o consequente desequilíbrio das prestações.
Sobretudo, uma exigência da análise económica do direito é a eliminação dos regimes jurídicos economicamente ineficientes. Aqui, o dispositivo legal da responsabilidade civil do nosso direito civil revela-se economicamente ineficiente porque não contém um mecanismo dissuasor da prática de ilícitos.
Ora bem.
Uma situação de informação assimétrica é justamente o que encontramos nas cláusulas em apreço. As cláusulas de arredondamento em alta eram introduzidas nestes contratos,sem que os clientes do Banco se pudessem aperceber imediatamente das suas consequências económicas no futuro: isto é, que, por via deste arredondamento em alta, acabariam por perder as vantagens de um prometido juro baixo, com que o Banco lhes acenava.
Como observa o Tribunal recorrido, tal prática de arredondamento em alta era compensatória para a Banca, mas claramente lesiva para o consumidor final.
No caso em apreço, continua o Tribunal, o Banco
impunha aos contratantes aderentes o arredondamento da taxa de juro sempre para valor igual ou superior e nunca para valor inferior, logo o arredondamento nunca era feito em desfavor da Ré, mas sempre em prejuízo daqueles contratantes.
Pelo que apenas resta concluir que se tratam de cláusulas que geram um desequilíbrio desproporcio-nado em detrimento do contratante aderente, traduzido num prejuízo económico para este e, em contrapartida, um benefício exclusivo para a Ré, que arrecada a taxa de juro incrementada.
Assim, por se entender, com base nos fundamentos identificados nos preâmbulos dos diplomas citados (que sucintamente esclarecem a ratio da alteração legislativa) e no facto de as cláusulas sob análise demonstrarem um claro desequilíbrio entre os benefícios recebidos e os sacrifícios que a parte contraente faz.
Como bem conclui o Tribunal recorrido, este “desequilíbrio desproporcionado”, em detrimento constante do cliente do Banco, traduz-se numa sonegação de informação no momento da assinatura do contrato, e uma violação grosseira do princípio da boa fé, que deve presidir sempre à celebração destes contratos bancários.
Há aqui, pois, uma situação de informação assimétrica que a lei não consente.
Havendo violação patente do princípio da boa fé, estas cláusulas contratuais gerais são obviamente proibidas, como decorre do art. 15 da LCCG.
Não se pode, pois, arguir aqui que estes arredondamentos em alta eram permitidos pela legislação anterior a 2007. Pelo contrário, eram proibidos por desconformidade com o princípio da boa fé, conforme se viu.

5- Princípios e normas na construção jurisprudencial do direito privado
É que a consequência da desconformidade entre as normas e os princípios jurídicos, por vezes não é convenientemente ponderada.
Por vezes, os princípios são erradamente assimilados a normas jurídicas. Pelo que convém esclarecer a questão.
A noção “princípio jurídico” começou a ser utilizada na linguagem jurídica no século XIX. Embora não se encontre no Código Civil de 1867 (Código de Seabra), já a Constituição de 1822 dizia expressamente no seu preâmbulo que “As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesas (…) reconhecem e decretam como Bases dela os seguintes princípios, por serem os mais adequados para assegurar os direitos individuais do Cidadão, e estabelecer a organização e limites dos Poderes Políticos do Estado”. Segue-se uma enumeração desses princípios.
Porém, foi só depois do fim da II Guerra Mundial, que houve uma teorização e até um vivo debate sobre a questão dos princípios jurídicos.
Para o positivismo formalista até aí dominante, a questão não tinha interesse. A nossa Constituição de 1933, e a legislação do Estado Novo, embora contivesse princípios, não os enumerava como tal. Foi a Constituição democrática de 1976 que adoptou uma sistematização que começa expressamente pelos “princípios gerais”, logo nos seus primeiros artigos e depois a encimar os artigos 12, 80, 108, 202 e 235. Mas nem todas essas disposições são princípios, assim como outras disposições que não recebem tal nome o são.
No fim da II Guerra Mundial, o positivismo formalista não conseguiu dar uma resposta satisfatória sobre a validade e vigência das leis de excepção aprovadas pelo regime nacional-socialista, como as leis racistas de Nuremberga e a lei de delegação de plenos poderes no Führer para legislar à revelia do Parlamento. Depois da guerra, o Supremo Tribunal Federal alemão, e depois o novo Tribunal Constitucional, tiveram que analisar esta questão. Foi neste clima que surgiu na Alemanha e na Áustria a discussão dos direitos humanos ou dos direitos fundamentais, e também a discussão dos princípios jurídicos.
Um livro de Josef Esser teve grande repercussão em 1956: Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts (Princípio e norma na elaboração jurisprudencial do direito privado – houve tradução para Castelhano em 1961). Esser recusou encerrar-se na dicotomia entre o jusnaturalismo e o juspositivismo, lançando para o debate a perspectiva hermenêutica da construção jurisprudencial do direito. Com ele, a aplicação do direito passou a ser vista como um processo criativo do intérprete, antecedida de uma pré-compreensão que tem em conta as condições individuais e sociais da decisão judicial. Não havia só normas a considerar, havia também princípios jurídicos em vigor. Um momento importante deste debate foi também a obra de Viehweg, 1953, Topik und Jurisprudenz (Tópica e Teoria do Direito), que porém não será desenvolvida aqui.
Mais tarde, aquele debate teve importante repercussão nos países anglo-saxónicos porque Dworkin adoptou a terminologia de Esser, criticando o positivismo de H.L.A. Hart, acusado de não ter em conta os princípios jurídicos na sua sistematização positivista do direito como um sistema de normas: Dworkin, Taking rights seriously, 1977. Até Hans Kelsen, pai da Teoria Pura do Direito, democrata acima de toda a suspeita e o mais profundo jurista de língua alemã do século XX, mas estritamente positivista, não tinha sido capaz de encontrar uma solução convincente para estas questões.
Entre as numerosas obras relacionadas com este tema podem citar-se:
Theodor Viehweg, 1953, Topik und Jurisprudenz. Trad.: Tópica e jurisprudência, Fabris, Porto Alegre, 2008
Josef Esser, 1956, Grundsatz und Norm in der richterlichen Fortbildung des Privatrechts. Trad.: Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Bosch, Barcelona, 1961.
J. Raz, 1972, Legal principles and the limits of law. Yale Law Journal 81:823-854.
Ronald Dworkin, 1977, Taking rights seriously.
Jorge Miranda, 1983, Manual de Direito Constitucional, vol. II, p. 200 ss, Coimbra Editora, Coimbra.
José Lamego, 1985, A discussão sobre os princípios jurídicos. Revista Jurídica, AAFDL, Lisboa.
António Barbas Homem, 1998, A utilização de princípios na metódica legislativa. Legislação, Cadernos de Ciência de Legislação, 21, 1998, INA, Lisboa.
J.J. Gomes Canotilho, 2008, Direito constitucional e teoria da Constituição, 7ª ed., pp. 1172 ss., Almedina, Coimbra.

Resumindo: Os princípios jurídicos não são opiniões subjectivas do juiz, nem fantasias, nem normas de direito natural. São lei vigente, ainda quando não expressamente formulados em textos legislativos. Os princípios consagram direitos, tal como as normas. Os princípios legais estão acima das normas, e contra eles as normas legais não prevalecem, porque as normas são de nível inferior. O problema que se coloca ao juiz, quando há aparente contradição entre um princípio jurídico e uma norma jurídica, é o da interpretação dessa norma em conformidade com aquele princípio. Não há aqui, a bem dizer, um problema de ilegalidade ou de conflito de direitos. Há é um problema de determinação judicial do direito.
Os princípios jurídicos funcionam como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão coerência geral ao sistema: o sentido exacto das normas legais tem de ser construído em harmonia com os princípios.
Concluindo-se que o princípio da boa fé proíbe os arredondamentos em alta, mais não resta que dizer que todas as normas que aparentemente os permitem, devem ser interpretadas como proibindo esses arredondamentos.

O Parecer do Doutor João Calvão da Silva, apresentado pelo Banco, examina exaustivamente a questão da legalidade das cláusulas em questão – mas fora do contexto do princípio da boa fé.
Começa por notar que essas cláusulas são claras e compreensíveis como elementos determinantes da contraprestação (juros) do empréstimo. Historia o regime da liberalização das taxas de juro e concorrência interbancária, desde o Aviso 3/88 (p. 16). Cita a jurisprudência pertinente do Supremo Tribunal de Justiça e da Relação de Lisboa. Pronuncia-se pela validade da cláusula de juros, se negociada livremente (p. 23). Refere que a prática do arredondamento em alta foi não só tolerada como mesmo reconhecida pelo Banco de Portugal (p. 28). Debruça-se sobre o regime introduzido pelo DL 240/2006 (p. 30). Estuda a validade do arredondamento à luz do regime dos contratos de adesão (p. 37 e 50). E conclui o seguinte:
a) Nas cláusulas de juros em apreço, o arredondamento constitui claramente um dos três elementos conformadores ou integrantes do preço remuneratório do capital emprestado, não disfarçado no biombo de mera operação liquidatária conveniente ou necessária para o cálculo, em termos certos e determinados, do juro integrado apenas por indexante e diferencial, sendo por isso
b) Válidas as cláusulas de juros em apreço, não sujeitas ao controlo do conteúdo especialmente previsto nos contratos de adesão pelo Decreto-Lei nº 446/85, porquanto relativas à adequação entre o preço ou a remuneração do bem ou serviço (dinheiro) fornecido em contarpartida a definir pelas partes.

Sem dúvida, esta linha de argumentação é coerente, mas não tem em conta que aqui a questão central era o arredondamento sistemático em alta, arredondamento sistemático que não é permitido pelo princípio da boa fé.
As cláusulas de arredondamento estipuladas pelo Banco seriam válidas e legítimas, mas só se previssem também arredondamentos em baixa – justamente o que o DL 240/2006 veio impor.
Esta ausência de ponderação da questão à luz do princípio da boa fé é uma ausência particularmente significante, tendo em conta que essa questão foi levantada desde o início do processo. Vem logo mencionada nos parágrafos 31 e seguintes da petição inicial. Se um jurista respeitado como o Doutor João Calvão da Silva, conhecido especialista de direito civil, direito comercial, direito bancário e direito do consumo, não a aborda no seu parecer, é decerto por ter fortes razões para tal. Também por isso, este Tribunal não pode deixar de tirar daqui as devidas ilações.
Em conclusão: as cláusulas de arredondamento em questão já eram abusivas antes de 2006, face ao princípio da boa fé constante da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

6- É adequada a publicação da decisão em jornais de Lisboa e Porto
Afigura-se ao Banco ser “desproporcional face ao caso dos autos, a condenação do Recorrente em proceder à publicação da decisão em 2 jornais diários, não sendo esta a forma mais correcta para atingir o fim de informar os consumidores da não aplicação da dita cláusula, até porque encontra-se demonstrado nos autos que a minuta de contrato em que tal cláusula se inseria há muito que não é utilizada pelo Recorrente, não sendo igualmente aplicada nos contratos ainda em vigor, existindo actualmente um regime imperativo quanto ao modo como se efectuam os arredondamentos das taxas de juro”
Acrescenta o Banco que “a lesão à imagem do Recorrente pela aplicação das medidas previstas no n.° 2 do artigo 30.° da LCCG, corresponde a um erro na interpretação do mesmo artigo, imputando às mesmas uma função punitiva que estas claramente não têm”.
Mas, como bem nota o MºPº, é a própria LCCG que prevê no seu art. 30-2 a possibilidade de se dar publicidade à proibição, “pelo modo e durante o tempo que o tribunal determine”.
Não se trata aqui, note-se, de uma publicação integral da sentença condenatória, mas apenas da publicação da concreta proibição das cláusulas. A decisão “especificará o âmbito da proibição, designadamente através da referência concreta do seu teor e a indicação do tipo de contratos a que a proibição se reporta” – art. 30-1.
Considerando a publicidade que a Banca dá usualmente a este tipo de contratos, é inteiramente adequado, e não desproporcional que seja dada publicidade à proibição em dois jornais de maior tiragem de Lisboa e Porto em três dias consecutivos: dois jornais de Lisboa e dois jornais do Porto.
Não há aqui qualquer intenção punitiva, mas apenas de esclarecimento público, que deve presidir sempre à publicidade comercial.
Esta publicidade em nada afeta a imagem do Banco, e pelo contrário só lhe é benéfica, pela divulgação pública de que o Banco passou a seguir o regime clausular que melhor defende os interesses dos consumidores, aliás estabelecido para a generalidade da Banca, pelo DL 240/2006 e DL 171/2007.
Sumário:
(...)

Decisão
Assim, e pelo exposto, acordamos em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
(a) Alteramos a redação da alínea a) da sentença recorrida, que passa a ser a seguinte:
a) Declarar nulas nas cláusulas contratuais gerais seguintes:
a. No contrato denominado: “Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel sem Condutor” (Doc. nº 2, fls. 27), a seguinte parte do terceiro período do ponto 4-i :
“sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior”.

b. No contrato denominado “Contrato de Locação Financeira” (Doc. nº 3, fls. 32), a seguinte parte do terceiro período do ponto 2-k:
“sendo o seu resultado arredondado para 1⁄4 de ponto percentual superior”.
c. No contrato denominado “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito” (Doc. nº 4, fls. 39), o nº 3 da cláusula 4ª, com a seguinte redação:
“3. A taxa atualizada será arredondada ao ¼ de ponto percentual igual ou superior”.
(b) No mais, confirmamos a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.

Processado e revisto: nova ortografia.

Lisboa, 2012.03.27

João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton