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CONSTRUÇÃO DE OBRAS
DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESSUPOSTOS
ÓNUS DA PROVA
Sumário
As obras de reparação da fachada principal de um edifício (contíguo a outro, revestido a azulejo), consistentes em picar, rebocar e pintar, e para execução das quais foi necessário montar um andaime naquela fachada não constituem actividade perigosa para efeitos do disposto no nº 2 do artigo 493º do CC ( Da responsabilidade da Relatora )
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
A propôs contra B ( Condomínio do Prédio Urbano, em regime de propriedade horizontal, sito ….em Lisboa ) , e contra C acção declarativa de condenação, sob forma comum e processo ordinário.
Alegou, em síntese, que: é proprietário do prédio urbano sito na Rua …., nº 2-A, em Lisboa, contíguo ao que tem o nº 2-B; este último pertence a várias pessoas, sendo o Condomínio representado nesta acção pelo respectivo Administrador, Sr. ….; o Condomínio do prédio nº 2-B deliberou a execução de obras de reparação do mesmo, nomeadamente picar, rebocar e pintar a fachada principal do edifício; as obras iniciaram-se pouco depois de 5.3.02 e foram executadas pelo 2º réu; porque, com negligência grosseira, os operários do 2º réu picaram a fachada com maceta e ponteiro, partiram cerca de 50 dos azulejos que revestem o prédio do autor; o 2º réu pretendeu, então, substituir os azulejos partidos por outros de cor diferente, pelo que o autor se opôs à colocação; uma vez que já não existem azulejos iguais aos do seu prédio, mostra-se necessário substituir todos os azulejos da fachada principal do prédio por outros com características idênticas, de modo a assegurar a harmonia do conjunto que antes existia; o 1º réu, como dono da obra, tinha a obrigação de vigiar a sua execução, sendo responsável pelos danos causados ao autor, nos termos do artigo 493º do Cód. Civ.; o transporte, montagem e desmontagem de andaimes, a remoção dos azulejos da fachada principal do seu prédio, o subsequente reboco, a colocação de novos azulejos, os inerentes seguros e a necessária licença camarária orçam em 30.880,50€; uma vez que a reconstituição material é de muito difícil execução, o autor opta pela indemnização pecuniária. Conclui, assim, pela condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia de 30.880,50€, acrescida de juros à taxa legal desde a citação.
Os réus contestaram. Sustentando que as obras foram realizadas de acordo com as regras técnicas e da arte exigíveis, explicaram que algumas metades dos azulejos que compõem a meia faixa de separação entre os dois edifícios estavam coladas ao reboco do prédio do 1º réu, razão pela qual, ao retirar ou picar o reboco, os azulejos vieram atrás ou descolaram-se. Aliás, das 50 metades de azulejos partidos foram substituídas 45, mais não tendo sido feito por oposição do autor. Os azulejos substituídos apresentam diferenças mínimas relativamente aos antigos, sendo certo que o autor rejeitou uma outra solução proposta pelos réus, que passava pela execução de uma ilharga em cimento e pintada. Os valores apresentados pelo autor dariam para remodelar três fachadas iguais à dos autos. Mais consideraram abusivo o pedido do autor, ao pretender que os réus suportem o custo de uma nova fachada do prédio, quando o autor recusou todas as propostas apresentadas e estão em causa, apenas, 5 metades de azulejos. Os réus requereram, ainda, a condenação do autor em multa e indemnização por litigância de má fé.
O autor replicou, enjeitando qualquer abuso no pedido e/ou má fé na sua conduta.
O processo foi objecto de saneamento e condensação.
Foi realizada perícia colegial.
Falecido o 2º réu, foram habilitados Bruno D , E e F para, em lugar daquele, prosseguirem a causa.
Realizada audiência de discussão e julgamento, com inspecção ao local, foi proferida sentença que, considerando verificar-se abuso de direito, absolveu os réus do pedido.
De tal sentença apelou o autor, formulando as seguintes conclusões:
a) A Sentença recorrida deverá ser revogada por V.Excelências, porquanto não fez um correcto enquadramento jurídico dos factos apurados (cfr. items 1. a 25. da Sentença) ao direito aplicável;
b) Contrariamente ao que pretende a Sentença recorrida a parede contígua entre os edifícios em causa não é meeira, conforme se demonstrou nos pontos 2. e 3. da alínea A) desta alegação;
c) E os apelados não lograram provar factos que afastasse a presunção legal de culpa prevista no art.º 493º/2 do Código Civil, que estabelece uma inversão do ónus da prova, pois o que provaram, no fundo, foi que pensaram utilizar uma rebarbadora e que "mesmo com todo o cuidado e zelo" partiram 50 azulejos;
d) Sucede que a expressão "mesmo com todo o cuidado e zelo” (item 19.) não afasta a presunção legal estabelecida a favor do A./lesado, já que mais não é do que uma conclusão que deveria ter sido extraída de factos que não foram alegados;
e) Com efeito, estamos, no caso vertente, em face de obras de construção civil cuja actividade é perigosa, por sua própria natureza, atendendo a que se tratavam de obras de intervenção melindrosa efectuadas no limite dos dois prédios e com uma junta de dilatação entre eles exígua;
f) A exoneração de responsabilidade dos apelados só poderia verificar-se se eles tivessem alegado e provado factos que mostrassem que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de evitar os danos;
g) A falta de alegação da técnica utilizada na construção não poderia ter sido suprida por aquela conclusão – que nunca poderia ter sido objecto de quesito – logo não deveria ter sido considerada na Sentença, a qual a deveria ter por não escrita, pelo que ao fazê-lo violou o art.º 646º/4 do C.P.C.;
h) A Sentença não tomou conhecimento da realização de obras efectuadas em prédio alheio, à revelia do apelante, que as não autorizou, violando ilicitamente o direito de propriedade do apelante;
i) A Sentença recorrida aceita que essas obras podiam ser realizadas contra a vontade do apelante;
j) O A. verificou que os azulejos que estavam a ser colocados, por iniciativa dos apeladas - e à sua inteira revelia – não eram iguais (cfr. fotografias de fls. 165, 172 e 173), o que prejudicava o conjunto da fachada do edifício e, por conseguinte, desvalorizava a sua propriedade;
l) Estão em falta cinquenta azulejos e não os cinco que refere a Sentença e são estes cinquenta azulejos que estão por recolocar. E é este o dano que os apelados estão obrigados a indemnizar — e que a Sentença incompreensivelmente esqueceu;
m) A Sentença não podia ter invocado o abuso de direito, já que este é uma figura residual que só é de aplicar quando não haja outra solução;
n) O apelante, ao mover a presente acção, não praticou qualquer acto ilícito, a sancionar com o recurso ao abuso de direito, pois como resulta dos factos provados, foi lesado no seu direito de propriedade e para que não seja prejudicada a harmonia do edifício faltam colocar 50 azulejos;
o) Em face do exposto, o apelante pede a V.Excelências que revoguem a Sentença recorrida, com as consequências legais;
p) Acresce que, o apelante (A. nesta acção) propôs a presente acção contra os apelados (dono da obra e empreiteiro) pedindo a condenação solidária no pagamento de uma indemnização por danos reais, nos temos formulados na p.i. e isto por entender que os apelados estavam obrigados a indemnizá-lo com base em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito;
q) Caso V.Excelências considerem procedente a argumentação do apelante e revoguem a Sentença, entende o apelante que nos autos foi feita prova bastante para que a presente acção possa proceder parcialmente;
r) E isto porque os factos alegados (items 1. a 7. e 9. a 14. da Sentença) e os documentos juntos consubstanciam responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, encontrando-se reunidos neste processo todos os seus pressupostos e que são os referidos no ponto 42. desta alegação, o que obriga os apelados a indemnizarem o apelante dos danos sofridos pela destruição dos 50 azulejos e pelo desalinhamento do alçado esquerdo da fachada devido à realização das obras ilícitas;
s) Como ainda não estão determinadas todas as consequências do facto ilícito que leve ao cálculo do montante da indemnização a pagar ao apelante, deverá o Tribunal da Relação condenar os apelados, nos termos do art.º 661°/2 do C.P.C., em quantia a liquidar no incidente de liquidação de sentença previstos nos art.º 378º e sgs. do C.P.C..
Os réus apresentaram contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.
*
São os seguintes os factos que a sentença considerou provados:
1. O A. é proprietário do prédio urbano sito na Rua …., freguesia de ..., concelho de Lisboa.
2. Nessa Rua … e contíguo ao prédio do autor, situa-se o prédio urbano constituído em propriedade horizontal, com o n° de polícia 2-B.
3. Antes de 5 de Março de 2002, o condomínio do prédio referido em 2. deliberou executar obras de reparação do mesmo.
4. Para executar a obra foi necessário montar um andaime no saguão comum aos dois prédios e outro na fachada do prédio do condomínio do 1° réu, o que foi comunicado ao autor por carta.
5. Em carta de 5 de Março de 2002, os administradores do condomínio 1° réu, para além de pedirem autorização para a montagem do andaime, comprometiam-se ainda a assumir todos os danos que ocorressem na execução da obra.
6. As obras a realizar no prédio do condomínio 1° réu, para além de outras, consistiram em reparar a fachada principal do mesmo, a qual foi picada, rebocada e pintada.
7. A obra (na fachada) iniciou-se pouco tempo após o dia 5 de Março de 2002 e foi executada pelo Sr. …., empreiteiro e empresário em nome individual, aqui 2° réu.
8. O A. alertou um dos administradores do condomínio 1° réu, Sr. …., para que executasse a obra em devidas cautelas, já que a fachada do seu prédio era revestida a azulejo.
9. No decurso da obra, os operários que nela trabalhavam partiram metade de um azulejo do prédio do autor.
10. O Autor, em consequência do sucedido, entrou em contacto telefónico com o Sr. …., chamando-lhe a atenção para a situação, ao que este respondeu" que não se incomodasse que aquilo não era um azulejo especial".
11. No dia seguinte ao telefonema referido em 10., o A. referiu ao Sr. …, encarregado da obra, que também tinha havido obras no prédio n° 2, ou seja, um prédio contíguo ao prédio do autor, em que igualmente foi picada e rebocada a fachada, e que apenas tinham causado no seu prédio (2-A) um pequeno dano.
12. No dia seguinte ao referido em 10., à noite, o A. falou de novo com o administrador do condomínio, referindo-lhe que os operários tinham partido cerca de 50 azulejos, tendo o Sr. …. tranquilizado o A., dizendo-lhe que "estivesse descansado", "que o empreiteiro deixaria o prédio no estado em que se encontrava anteriormente" e "que eles eram homens das obras que sabiam muito bem onde encontrar azulejos iguais àqueles", ao que o Autor retorquiu que talvez não fosse assim tão fácil, uma vez que a fábrica que os tinha fabricado já encerrou.
13. Nas obras realizadas no prédio contíguo ao do A., levadas a cabo pelo 2º réu, e na sequência das mesmas, caíram e partiram-se 50 metades de azulejos situados na divisão dos dois prédios, quer a nível do rés do chão, 1º, 2º e 3º andares.
14. Posteriormente, o A. deparou que estavam a ser colocadas metades dos azulejos para substituir os que existiam, mas de cor não totalmente igual, ao que o A. se opôs, pelo que não foram colocadas cinco metades dos azulejos em falta.
15. O A. contactou uma empresa de construção civil, a "….Construções", pedindo-lhe um orçamento para a remoção total do azulejo e colocação de novo, tendo sido apresentado um valor total de 25.950,00€, pela colocação de andaime na frente, remoção de todo o azulejo, afinação de paredes para colocação de azulejo novo, tendo ainda sido dado um outro orçamento ao A. no valor de 4.250,00€, correspondente a 4.250 azulejos.
16. Está em causa a perda de cinco metades de azulejos, tendo quarenta e cinco sido recolocados e existindo diferença de cor em 37 metades de azulejo.
17. Algumas metades de azulejos que compõem a meia faixa de separação entre os dois edifícios estavam coladas ao reboco do prédio propriedade do 1º réu.
18. Foi o A. que os mandou colocar há cerca de 15 a 20 anos, sem ter o cuidado de os separar do reboco.
19. Ao retirar-se, ou ao picar-se esse reboco, mesmo com todo o cuidado e zelo, alguns desses azulejos deslocaram-se e/ou vieram atrás desse mesmo reboco.
20. Pensou-se utilizar uma rebarbadora, mas constatou-se que, dada a vibração da mesma, o uso desta não iria evitar a queda de alguns azulejos da fachada do prédio contíguo.
21. Actualmente estão por recolocar cinco metades de azulejo.
22. Querendo-se fazer cópias de azulejos mais antigos, é impossível que estes fiquem exactamente iguais aos originais, por não se poder controlar integralmente o processo de fabrico, nomeadamente as cozeduras e a reacção dos pigmentos ao fogo.
23. Mesmo em azulejos tidos de primeira qualidade, existem sempre tonalidades diferentes, mesmo em azulejos da mesma caixa e da mesma fornada, e, por isso, os próprios fabricantes até aconselham, em todas as embalagens, a aplicação variada e ao mesmo tempo de azulejos de diversas caixas.
24. Analisando o local onde está a meia faixa de azulejos e a própria fachada em si, é notória a deterioração das argamassas ligantes dos azulejos originais do prédio.
25. Esses mesmos azulejos apresentam tendência para cair, não só pelo desgaste provocado pelo tempo, mas também por outros elementos como a poluição, intempéries, e até a falta de manutenção, nomeadamente a betumagem das juntas, falta essa que leva a pequenas infiltrações e provoca, ainda mais, o envelhecimento natural dos ligantes e, consequentemente, a queda dos azulejos, o que já acontece.
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I - A primeira questão a resolver é a de saber se, no caso em apreço, estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.
A sentença considerou que “a construção num prédio poderá constituir uma actividade perigosa”, mas entendeu afastar a responsabilidade dos réus por entender que a matéria de facto dada como provada preenchia a excepção prevista na parte final do nº 2 do artigo 493º do Cód. Civ..
O apelante sustenta que os réus não lograram provar terem agido sem culpa, pois que a expressão “mesmo com todo o cuidado e zelo”, constante do ponto 19. da matéria de facto (que corresponde à resposta afirmativa dada ao quesito 25º), deve ser considerada não escrita.
A) Incumbe, em princípio, ao lesado alegar e provar os pressupostos da responsabilidade e, designadamente, a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (artigos 342º nº 1, 344º nº 1 e 487º nº 1 do Cód. Civ.).
Um desses casos é, precisamente, o do nº 2 do artigo 493º do Cód. Civ., que se reporta àquele que exerce uma actividade perigosa.
Nessa situação, “o ónus da prova reparte-se entre o lesado e o agente: sobre o primeiro recai o encargo de provar os factos de onde emerge a presunção de culpa, a existência de danos e o nexo de causalidade; ao segundo, para se desonerar, é atribuído o encargo de provar o cumprimento dos deveres de diligência ajustados ao exercício de actividades que comportam o maior risco de ocorrência de sinistros” (Ac. RL de 19-03-2002, CJ II, págs. 80 a 84).
Ou dito de outro modo: “É ao lesado que cabe o ónus de provar o nexo de causalidade entre os danos alegados e o exercício pelo réu de uma actividade perigosa.
A presunção legal a que alude o artigo 493.º, n.º 2 do Código Civil respeita em exclusivo à culpa, como pressuposto autónomo de responsabilidade” (Ac. RC de 29.09.1999, BMJ, 489:412).
No caso previsto no nº 2 do artigo 493º do Cód. Civ., o legislador quis adoptar um critério intermédio entre a responsabilidade objectiva, fundada sobre a máxima ubi commoda civis et incommoda, e a responsabilidade por culpa, fazendo recair sobre o lesante o ónus de provar a ausência dos pressupostos da responsabilidade e exigindo, aparentemente, um mais intenso dever de diligência em relação à previsibilidade de um dano.
Como refere Vaz Serra, “o Código, entre a tese da responsabilidade objectiva e a da responsabilidade baseada na culpa foi para uma solução intermédia, pois, tendo conservado a culpa como fundamento da responsabilidade, agravou a medida da ordinária diligência que o agente deve prestar, pondo a seu cargo o dever de adoptar todas as medidas aptas a evitar o dano; além disso inverteu o ónus da prova (…)” («Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades», BMJ 85:379/380).
A norma do artigo em exame não se encontrava no Código de Seabra de 1867. Perante o número e a gravidade dos perigos que crescentemente derivam do desenvolvimento técnico da vida moderna, o legislador de 66 entendeu reagir com a formulação de uma regra de carácter geral. A norma do nº 2 do artigo 493º do Cód. Civ. diz, de facto, genericamente respeito aos danos derivados de actividades perigosas, não se aplicando àqueles danos que derivam de actividades perigosas especiais, como os que derivam da circulação de veículos terrestres, para os quais se definiu regime particular (cfr. Assento do STJ n.º 1/80, DR, 1.ª Série, de 29.01.80 e BMJ 291:285).
Não é possível dar em abstracto uma noção exacta de actividade perigosa. Por isso e bem o legislador não procedeu a qualquer individualização específica.
Há, sem dúvida, um conjunto de situações, tais como o emprego de energia nuclear, de substâncias radioactivas, a manipulação de líquidos corrosivos, o fabrico de explosivos, etc., que não suscitam dúvidas quanto à sua periculosidade.
Mas, se pensarmos que a maior parte dos comportamentos humanos, na sociedade técnica e de massas que em boa parte ainda é a nossa, envolve, em maior ou menor grau, alguma dose de perigo, seja para o agente, seja para terceiros, então a qualificação como perigosas de certas actividades complica-se, chamando a necessidade de se interpretar restritivamente uma norma, já de si com forte potencialidade expansiva.
A delimitação da zona de perigo conta com poucos pontos de apoio normativos.
Os limites postos pelo legislador à noção de periculosidade são apenas de carácter objectivo. A actividade deve ser perigosa “por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados” e não por causa do comportamento negligente ou imprudente do homem.
Pese embora a evidência da distinção, em termos teóricos, entre periculosidade da conduta e periculosidade da actividade em si mesma considerada, nem sempre é fácil captar, em concreto, quando estamos em face destas realidades.
Por outro lado, numa perspectiva dinâmica, uma actividade que, normalmente, não seria perigosa, pode passar a sê-lo devido às circunstâncias.
Caberá, pois, ao intérprete, perante a directiva genérica que o legislador lhe forneceu procurar outros pontos de apoio no seu trabalho concretizador.
Pires de Lima e Antunes Varela afirmam que, no silêncio da lei, “é matéria, pois, a apreciar, em cada caso, segundo as circunstâncias” (Código Civil, anotado, Vol I, 4.ª ed. Coimbra ed., Coimbra, 1987:495).
M.J. Almeida Costa refere que “como se apura, o legislador limitou-se a fornecer ao intérprete uma directiva genérica para identificação das actividades perigosas” (Direito das Obrigações, 4.ª ed. Coimbra Ed., Coimbra, 1984:386).
Cabe, por conseguinte, ao juiz determinar, caso a caso, com o recurso a essa directiva, à experiência comum e à comparação dos casos já apreciados pela jurisprudência, se uma dada actividade permite a qualificação de perigosa.
Escusado será sublinhar que as decisões jurisprudenciais valem sobretudo pela casuística que lhes está subjacente.
Vejamos, então, sem qualquer pretensão de exaustividade, como a nossa jurisprudência tem procedido a esta qualificação (cfr., para mais dados jurisprudenciais, entre outros, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I., 5.ª ed., Coimbra, 2006:324, nota 680).
Assim, foram consideradas actividades perigosas:
- A abertura na rua de uma cidade, de uma vala com cerca de 1 metro de largura, o comprimento de 2 metros e meio metro de profundidade (Ac. STA de 29.6.72, BMJ 220:197);
- A distribuição de gás, em virtude do poder de se inflamar e deflagrar (Ac. RL de 22.10.73, BMJ 230:155);
- O estabelecimento onde se guardam materiais inflamáveis, pelo risco de incêndio espontâneo ou provocado por qualquer condicionalismo extrínseco (Ac. STJ de 24.3.77, BMJ 265:233);
- A navegação de uma grua flutuante, destinada a fazer transbordo de mercadorias, desprovida de meios técnicos de propulsão e direcção (Ac. STJ de 29.11.77, BMJ 271:251);
- A utilização de locomotivas a carvão em época quente e seca e numa região de matas e de florestas onde, nessa época, sopra normalmente um vento nordeste forte (Ac. STJ de 27.3.79, BMJ 285:304);
- A actividade de colar aglomerados de cortiça com utilização de colas e diluentes em cuja composição e natureza entram produtos altamente voláteis e inflamáveis (Ac. STJ de 4.10.84, BMJ 340:370);
- A actividade de captação, condução e transporte de água potável (Ac. RL de 6.4.89, BMJ 386:497; em sentido contrário, Ac. RL de 30.05.1996, BMJ 457 e do STJ de 18.02.1997, BMJ 464:502);
- A monda química aérea (Ac. RL de 4.5.89, BMJ 387:644);
- Uma prova de rally, por se tratar de actividade incontestavelmente perigosa (Ac. RP de 5.11.91, BMJ 411:647);
- O empilhamento de toros de madeira, quando as pilhas atingem 100 metros de comprimento e 6 a 7 metros de altura, sendo constituídas por rolos de eucaliptos de 2 a 2,2 metros de comprimento por 5 a 15 centímetros de diâmetro (Ac. RC de 27.10.92, BMJ 420º:664);
- O fabrico e a comercialização de bombas de Carnaval (Ac. STJ de 15.6.93, CJ/STJ 93-2º-147);
- O uso de explosivos para proceder ao rebentamento de rochedos (Ac. RP de 14.12.93, CJ 93-5º-242);
- A demolição de um prédio (Ac. RC de 15.3.94, BMJ 435:908);
- A escavação para implantação de fundações de um edifício, levada a cabo em terreno com bastante declive, após um período prolongado de chuvas copiosas (Ac. RE de 7.12.94, CJ 94-5º-288);
- A actividade desenvolvida na construção civil com emprego de compressor com ponteiro de aço na demolição e perfuração de estruturas de cimento e ferro (Ac. STJ de 6.4.95, BMJ 446:217);
- A utilização de energia eléctrica de alta tensão (Ac. STJ de 5.6.96, CJ/STJ 96-2º-119);
- A produção de pasta de papel com utilização de substâncias sulfurosas altamente corrosivas (Ac. RE de 27.11.97, CJ 97-5º-267);
- O fornecimento de combustível através de um posto de abastecimento (Ac. STJ de 2.6.98, BMJ 478:332);
- As armas que lançam à distância projécteis impulsionados por ar comprimido (Ac. STJ de 30.6.98, BMJ 478:310);
- As obras de construção civil que interfiram com tráfico rodoviário (Ac. RL de 2.7.98, CJ 98-4º-88);
- Os escorregas, as piscinas, as pistas, etc. existentes num parque aquático, dotados de cursos de água em movimento e desníveis acentuados (Ac. RL de 4.5.00, CJ 00-3º-75);
- O armazenamento e manuseamento de resinas naturais ou de outros materiais inflamáveis (Ac. STJ de 28.2.02, CJ/STJ 02-1º-114);
- O transporte fluvial entre as duas margens do estuário do Tejo, no trajecto Lisboa-Cacilhas, notoriamente sujeito a grande densidade de tráfego oriundo de portos, gares fluviais e estaleiros navais, quer a jusante, quer a montante (Ac. STJ de 30.10.02, http://www.dgsi.pt Proc nº 03B2825);
- A movimentação de carga pesada por grua em obra de construção civil (Ac. RL de 18.3.03, CJ 03-2º-77);
- O lançamento de fogo de artifício (Ac. RG de 5.11.03, CJ 03-5º-289);
- A circulação de comboios alimentada por um feeder, fio condutor de energia de alta tensão instalada sobre a via férrea (Ac. RL de 25.10.05, CJ 05-4º-38);
- A execução de trabalhos de soldadura sobre uma chapa que contém no seu interior material de fácil combustão (Ac. RP de 10.1.06, http://www.dgsi.pt Proc nº 0526397);
- O içamento de embarcações com utilização de uma grua de 60 toneladas (Ac. RE de 30.11.06, CJ 06-5º-252);
- A operação de montagem e desmontagem de uma viga de lançamento com cerca de 100 toneladas e 30 metros de altura constituída por várias peças (Ac. STJ de 14.5.09, http://www.dgsi.pt Proc nº 162/09.1YFLSB);
- A prática de salto mortal numa aula de ginástica, por uma aluna de 15 anos de idade, sem vigilância e assistência do professor (Ac. STJ de 30.11.10, http://www.dgsi.pt Proc nº 1166/04.6TBLSD.P1.S1).
Na perspectiva inversa, a jurisprudência entendeu não consubstanciar actividade perigosa:
- A actividade de construção de um prédio habitacional, que se encontra na fase de montagem de elevadores, com o respectivo fosso não sinalizado nem de acesso impedido (Ac. STJ de 11.6.03, http://www.dgsi.pt Proc nº 03A3883);
- As operações de escavação na via pública com a utilização de uma máquina escavadora cujo ripper apenas escava de 60 a 70 cm de terreno natural por cada vez que é utilizado (Ac. STJ de 12.2.04, http://www.dgsi.pt Proc nº 04B025);
- A actividade de construção civil consistente numa operação de betonagem – com recurso a camiões betoneiras, camião bomba para bombear o betão, pás e aparelhos denominados vibradores – num tramo de um viaduto com uma altura de cerca de 20 metros, provido de guarda-corpos (Ac. STJ de 10.10.07, http://www.dgsi.pt Proc nº 05S2089).
Acresce que vêm os nossos tribunais considerando que, de um modo geral e ao menos em abstracto, a actividade de construção civil não apresenta especial perigosidade (a título exemplificativo, cfr. Ac. STJ de 28.10.04, de 22.4.08 e de 2.6.09, http://www.dgsi.pt, respectivamente, Proc nº 05A830, 08B626 e 1583/1999.S1).
Ora, sendo este o entendimento doutrinal e jurisprudencial sobre o que deve considerar-se actividade perigosa, cremos que estão longe de merecer essa qualificação as obras de reparação da fachada principal do edifício do 1º réu (contíguo ao edifício do autor, sendo este revestido a azulejo), consistentes em picar, rebocar e pintar e para execução das quais foi necessário montar um andaime naquela fachada.
Pelo que ao autor incumbe, para além dos demais pressupostos, a prova da culpa do lesante.
B) Sucede que não o logrou fazer.
A culpa é hoje maioritariamente entendida com um sentido normativo e não psicológico.
“A culpa pode ser definida como o juízo de censura ao agente por ter adoptado a conduta que adoptou, quando de acordo com o comando legal estaria obrigado a adoptar conduta diferente” (Luís Menezes Leitão, op. cit:311).
Na petição inicial, depois de alegar que os operários do 2º réu tinham partido metade de um azulejo do seu prédio (artigo 10º), o autor invocava que o comportamento daqueles e do encarregado da obra continuara a “pautar-se por negligência grosseira, já que tendo de picar a fachada do prédio «de maceta e ponteiro», o deveriam ter feito com as devidas precauções e cautelas atendendo a que o prédio do lado era revestido a azulejos” (artigo 12º). Mais referia o autor que até aconselhara o encarregado da obra “a abrir entre os dois prédios um sulco de alto a baixo com uma rebarbadora (rectificadora) de modo a separar o reboco do prédio em obras (nº 2 B) dos azulejos do prédio do autor (nº 2-A) e assim evitar que se partissem (artigo 13º). E prosseguia, qualificando o comportamento dos operários do 2º réu de “altamente reprovável” e de “grosseiro”, comportamento esse que dera “origem a que neste dia tivessem os operários do 2º R. partido cerca de 50 azulejos no prédio do A. (do lado esquerdo e a nível do rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares)” – artigos 15º e 17º da p.i..
Aquando da condensação do processo, o tribunal considerou assente o alegado no artigo 10º da p.i.. E, expurgada dos qualificativos de natureza conclusiva, a restante matéria foi levada à base instrutória:
- O quesito 1º incorporou o alegado no artigo 13º da petição;
- No quesito 2º perguntava-se se, nesse dia, além de populares que passavam, um vizinho, o Sr. …., chocado com o que se estava a passar, chamara a atenção dos operários do 2º réu, dizendo-lhes “por este andar partem tudo ao homem”;
- No quesito 3º perguntava-se se o autor assistira a tudo sem nada poder fazer, perante atitudes provocatórias dos operários do 2º réu que, além de o ofenderem verbalmente, ainda ironizavam, dizendo “o azulejo está todo podre”;
- No quesito 4º perguntava-se se esse comportamento dos operários do 2º réu dera origem a que, nesse dia, tivessem partido cerca de 50 azulejos no prédio do autor, do lado esquerdo e a nível do r/c, 1º, 2º e 3º andares.
Os quesitos 1º, 2º e 3º obtiveram respostas negativas; e ao quesito 4º, o tribunal respondeu restritivamente, em termos que correspondem ao ponto 13. da matéria de facto, ou seja, considerando que não se provara a imputação da destruição dos 50 azulejos aos operários do 2º réu.
Ao invés, demonstrou-se que algumas metades dos azulejos contíguos ao prédio do 1º réu estavam coladas ao reboco desse prédio, tendo sido o autor a ordenar a respectiva colocação, sem ter o cuidado de os separar do reboco (pontos 17. e 18. da matéria de facto). E, assim, ao retirar-se ou ao picar-se esse reboco, mesmo com todo o cuidado e zelo, alguns desses azulejos deslocaram-se e/ou vieram atrás desse reboco (ponto 19. da matéria de facto).
É certo que a expressão “mesmo com todo o cuidado e zelo” – à semelhança do que acima dissemos quanto à alegação do autor – assume natureza conclusiva, devendo, assim, ser declarada não escrita, por aplicação analógica do nº 4 do artigo 646º do Cód. Proc. Civ..
Mas tal eliminação não desvirtua o sentido e alcance do ponto 19. da matéria de facto, nem dela decorre a culpa do 2º réu que, como vimos, o autor não logrou demonstrar.
Acresce que, a propósito da solução preconizada pelo autor para evitar que os azulejos se partissem (aqui residindo a conduta que, na sua óptica, os operários deveriam ter adoptado para não incorrerem no juízo de censura em que a culpa se traduz), provou-se que a mesma não evitaria a queda dos azulejos, dada a vibração que produziria (ponto 20. da matéria de facto).
É, ainda, de salientar que os azulejos da fachada do prédio do autor evidenciam tendência para cair, mercê do desgaste das argamassas ligantes, provocado pela idade e outros elementos (pontos 24. e 25. da matéria de facto).
Por último, cabe referir que, a tratarem-se de azulejos serigrafados – como o autor alegou, embora o não tenha provado – imporia a prudência que tivessem sido salvaguardadas eventuais necessidades de futuras substituições, através da conservação de excedentes.
Sendo certo que a obrigação de indemnização a cargo dos réus implicaria a verificação cumulativa dos pressupostos previstos no artigo 483º do Cód. Civ., desnecessário se mostra analisar os demais para concluir pela improcedência do pedido (que, em todo o caso, sempre mereceria particulares considerações).
II - E, em consequência de tal conclusão, queda prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pelo apelante.
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Por todo o exposto, acordamos em julgar improcedente a apelação e, embora por razões diversas, mantemos a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Lisboa, 17 de Abril de 2012
Maria da Graça Araújo
José Augusto Ramos
João Ramos de Sousa