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RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
CHEQUE BANCÁRIO
ENDOSSO
Sumário
I - A responsabilidade do banco sacado pelo pagamento de um cheque com endosso irregular será aferida, em princípio, segundo as regras da responsabilidade contratual, presumindo-se a culpa do banco nos termos do art. 799º CC. II - O art. 35º da LUCh impõe ao banco sacado uma mera obrigação de verificação formal da legitimidade do apresentador do cheque – apenas está obrigado a verificar a regularidade dos endossos, não sendo obrigado a conferir a assinatura atribuída ao endossante. III - Nas relações entre o cliente e o banco sacado, tal obrigação mantém-se ainda que o sacador não tenha tido qualquer contacto físico com o cheque, pelo facto de o mesmo ter sido apresentado a pagamento a outro banco que o remeteu à compensação. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):
1 – RELATÓRIO. (…), Lda., veio propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra: A (…), C.R.L.,
pedindo a condenação desta ao pagamento da quantia de € 4.986,96 acrescida de juros moratórios legais desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, e da quantia de € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais.
Alega, para tal, em síntese:
a A. emitiu no dia 1 de Fevereiro de 2008, dois cheques cruzados, sobre a Ré, um no valor de € 3.941,17 e outro no montante de € 1.045,79;
os referidos cheques foram remetidos às sociedades à ordem das quais foram sacados, por correio, cada um dentro do seu envelope, nunca tendo chegado ao seu destino;
os cheques foram subtraídos dos respectivos envelopes e depositados por desconhecidos, à ordem de uma conta da R.;
para tal, foi aposto no verso de cada um deles a marca de um carimbo e um autógrafo ilegível, de modo a simular um endosso;
a R., através de um seu funcionário, limitou-se a proceder à transferência dos montantes referentes aos aludidos cheques sem controlar a regularidade dos endossos, incumprindo assim a sua obrigação de só aceitar cheques de uma perfeita regularidade aparente, correctamente redigidos e que não ofereçam qualquer traço, emenda ou viciação;
desse comportamento resultaram danos patrimoniais e ainda danos não patrimoniais dado que a sua reputação comercial foi atingida pelo comportamento da R..
A R. contestou, alegando, em síntese:
os dois cheques em causa não foram entregues, e muito menos os respectivos valores levantados, em qualquer dos seus balcões, pelo que nada pagou;
os cheques foram depositados na máquina automática designada por Balcão … existente na sua Delegação de …, para os respectivos valores serem creditados numa conta da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da … e não em conta sediada na R.;
os cheques uma vez retirados da máquina foram enviados para o serviço de compensação de cheques junto da Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, em …;
não recebeu nem pagou qualquer quantia, tendo sido mera intermediária no movimento dos cheques, não sendo, sequer, a entidade sacada.
a A. enquanto subscritora dos cheques tinha estrita obrigação de zelar pela segurança dos mesmos, por forma a que eles fossem entregues, sem problemas, com vista a um pagamento seguro e efectivo, nomeadamente, apondo-lhe os dizeres “NÃO À ORDEM”.
Conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
A A. veio responder à contestação, requerendo a intervenção principal da B (…), SRL, com fundamento no contrato de abertura de conta entre si e a entidade sacada e na violação do artigo 35º da LUCH.
Por despacho de fls. 85 e 86, foi deferida a requerida intervenção da chamada B (…), S.R.L., e ordenada a citação da chamada.
Citada a chamada, veio contestar, alegando, em síntese, que, segundo o ponto 18.3., al. b) da Instrução do Banco de Portugal nº 25/2003 (Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária), quem é responsável pela verificação, em todos os cheques, da regularidade dos endossos, é o participante tomador; por outro lado, quando a importância aposta no cheque é inferior a 10.000,00 € não há circulação física do cheque, tornando-se impossível ao sacado a verificação do endosso.
Conclui pela improcedência total da acção relativamente a si.
Foi proferido despacho saneador que julgou a Ré parte legítima para a acção, fixando a base instrutória.
Por documento junto a fls. 241 e segs., a A. e a Ré, A (…), CRL, acordaram em por termo ao litígio que as opunha mediante transacção[1], que foi devidamente homologada, determinando-se o prosseguimento dos autos unicamente contra a chamada B (…), CRL, para conhecimento do pedido no montante do que remanesce à transacção tal como requerido pela A..
Realizada audiência de julgamento, foi proferido despacho de resposta à matéria de facto constante da Base Instrutória.
Foi proferida sentença a julgar a acção improcedente, por não provada, absolvendo a chamada do pedido contra ela deduzido.
Inconformada com tal sentença, a Interveniente dela interpôs recurso de apelação, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1. Nos termos do artº. 35º. da LUCH o sacado que paga o cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade dos endossos.
2. A apelada tem a qualidade de entidade sacada, nos termos do artº. 1º. nº. 3 e 3º. da LUCH, pelo que é sobre ela que incumbe o cumprimento dessa obrigação.
3. Não constitui fundamento para a exclusão da responsabilidade da apelada o facto de o pagamento ter ocorrido através da Câmara de Compensação, uma vez que face ao artº. 800º do Código Civil, o devedor é responsável objectivamente pelos actos das entidades que utilize para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor.
4. Tendo a apelada confessado o não cumprimento do seu dever de confirmar a regularidade dos endossos, não pode o Tribunal considerar que não seria possível neste caso fazê-lo, dado que tal implica fazer presumir a relevância negativa da causa virtual fora dos casos em que a lei o prevê.
5. Tendo a apelada incumprido a sua obrigação de confirmar a regularidade dos endossos, torna-se responsável de acordo com o artº. 798º. do C.C. por todos os danos causados à apelante, razão porque a acção teria que ser julgada procedente.
6. Não pode ser atribuído em qualquer caso aos Clientes dos Bancos o risco de falsificação dos endossos, sob pena de a confiança no sistema bancário ficar em causa.
Termos em que deve ser lavrado douto Acórdão que revogue a sentença recorrida, julgando a acção procedente, por provada.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Dispensados que foram os vistos legais, ao abrigo do disposto no nº4 do art. 707º, do CPC, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
Considerando que as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste tribunal, as questões a decidir são unicamente as seguintes:
1. Responsabilidade da Interveniente/sacada pela verificação da regularidade dos endossos:
a. Conteúdo da obrigação prescrita no art. 35º da LUCh – regularidade aparente dos endossos.
b. Responsabilidade do banco sacado pelos actos praticados por intermédio de outros bancos no âmbito da compensação.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
A. Matéria de Facto.
São os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:
a) A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a actividade agropecuária. (al. A) fac. assentes);
b) A R. é uma instituição bancária. (al. B) fac. assentes);
c) Para pagamento de parte de uma factura da sociedade comercial C… Portugal, Lda., a A. emitiu no dia 1.02.2008 à ordem daquela sociedade, o cheque cruzado nº 9645762473, sacado sobre a B (…). S.R.L., no montante de € 3.941,17. (al. C) fac. assentes);
d) Nesse mesmo dia, a A. emitiu ainda à ordem da sociedade comercial, sua fornecedora BI…, Lda., o cheque cruzado nº ..., também sacado sobre a B (…), S.R.L., no montante de € 1.045,79 (al. D) fac. assentes).
e) Os referidos cheques foram remetidos às sociedades à ordem das quais foram sacados, por correio, cada um dentro de seu envelope (al. E) fac. assentes);
f) Os cheques referidos em C) e D) nunca chegaram ao seu destino (al. F) fac. assentes);
g) Os referidos cheques foram subtraídos dos respectivos envelopes (al. H) fac. assentes);
h) No cheque referido em c) foi aposto no respectivo verso, a marca de um carimbo com os dizeres “C. P. SA // A Gerência” e um autógrafo (al. I) fac. assentes);
i) No cheque referido em d) foi aposto, igualmente no verso, a marca de um carimbo com os dizeres “BI…LDA // A Gerência e um autógrafo (al. J) fac. assentes);
j) A marca e o autógrafo, apostos no cheque referido em c), não são nem o carimbo da sociedade C. P., Lda., nem a assinatura do seu gerente (al. K) fac. assentes).
k) A marca e o autógrafo, apostos no cheque referido em d), não são nem o carimbo da sociedade BI…, Lda., nem a assinatura do seu gerente (al. L) fac. assentes).
l) Devido ao desaparecimento dos cheques e ao seu levantamento, a A. apresentou a respectiva denúncia contra incertos ao Departamento de Investigação Criminal de … da Polícia Judiciária (al. M) fac. assentes).
m) O cheque referido na alínea c) foi depositado na delegação de S. Brás da R. (al. N) fac. assentes).
n) A R. foi intermediária no movimento do cheque identificado na alínea c). (al. O) fac. assentes).
o) A chamada procedeu ao pagamento dos cheques identificados em c) e d). (al. P) fac. assentes).
p) O cheque junto aos autos com o nº …, no valor de € 1.045,79, referido em d) foi entregue no Balcão de …erta junto da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de … (al. Q) fac. assentes).
q) O referido cheque foi fisicamente entregue a trabalhadora da chamada, para que esta procedesse ao depósito nos termos indicados em p) (al. R) fac. assentes).
r) A referida trabalhadora procedeu ao depósito do cheque à ordem da referida conta conforme talão de depósito junto a fls. 220, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido (al. S) fac. assentes).
s) Os cheques referidos em c) e d) foram depositados à ordem da conta nº 40213901745 da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de … (resp. art.1º BI).
t) A A. tem ao longo da sua existência cumprido escrupulosamente todas as suas obrigações para credores e fornecedores (resp. art. 4º BI).
B. O Direito.
1. Responsabilidade da Interveniente (Banco Sacado) pela verificação da regularidade dos endossos.
Encontra-se em causa a responsabilidade da interveniente, B (…), S.R.L. (banco sacado), pelo pagamento de dois cheques cruzados, emitidos pela autora à ordem de duas sociedades comerciais, cheques estes que, tendo sido enviados pelo correio, nunca chegaram ao seu destino, tendo sido depositados por terceiros:
a) um, no valor de 3.941,17 €, depositado numa delegação da primitiva Ré, A (…), CRL;
b) outro, no valor de 1.045,79 €, entregue num balcão da Interveniente/sacada.
A sentença recorrida considerou encontrar-se afastada a responsabilidade da ora interveniente quanto ao pagamento do 1º dos referidos cheques, com fundamento em que se não provou que a mesma tenha, em algum momento, tido qualquer contacto físico com o mesmo.
Quanto ao 2º cheque, conclui igualmente pela irresponsabilidade da ré, com base na inexistência de qualquer irregularidade no endosso que fosse detectável – não seria exigível à funcionária da Interveniente que suspeitasse que o carimbo e a assinatura não pertenciam à beneficiária do cheque.
Insurge-se a Apelante contra tal entendimento, sustentando que era à Interveniente, na qualidade de sacada, que impunha o cumprimento da obrigação prevista no art. 35º da LUCH, ainda que por intermédio de outras pessoas, pelas quais responderá nos termos do art. 800º do CC, sendo irrelevante o facto de ter não ter tido contacto físico com o 1ª cheque.
Quanto ao 2º cheque, segundo a Apelante, a simples confissão por parte da Interveniente, de que não verifica os endossos, implicará que não cumpriu a sua obrigação.
Passamos, assim, a analisar a responsabilidade da Interveniente/sacada no pagamento dos cheques em causa.
Situando-nos no âmbito das relações entre o banco sacado e o seu cliente depositante, encontrar-se-á em causa a responsabilidade contratual do banco sacado.
Na base da emissão de um cheque é comum destacarem-se duas relações jurídicas distintas: a relação de provisão (que pode consistir num depósito, numa abertura de crédito, numa conta corrente, num desconto, etc.) e o denominado contrato de cheque – acordo celebrado entre o banco e o titular da provisão, por via do qual o primeiro acede a que o segundo mobilize, por meio de emissão de cheques, os fundos em relação aos quais detém um direito de crédito.
“Só pela celebração do contrato de cheque, o banco fica obrigado para com o cliente a pagar, aos eventuais beneficiários, os cheques que por aquele venham a ser emitidos, até ao limite da provisão. Tudo se passa, por conseguinte, entre o banco (sacado) e o cliente (sacador)[2]”.
Segundo Sofia Sequeira Galvão, o contrato de cheque é um contrato de prestação de serviços, na modalidade de mandato sem representação (art. 1180º CC)[3] – o banco obriga-se a perante a contraparte (sacador) a, por conta deste, praticar actos jurídicos; o Banco, por força do contrato de cheque, compromete-se a pagar os cheques emitidos pelo seu Cliente, actuação que faz sempre em nome próprio.
Sendo um contrato bilateral, o contrato de cheque repousa, antes de mais, na existência de um dever de protecção baseado na confiança. Um dever mútuo de não prejudicar a contraparte.
Nas palavras de Sofia de Sequeira Galvão[4], tal relação contratual assenta, caracteristicamente, numa recíproca obrigação de diligência entre as partes: cabe ao cliente a obrigação de dar imediatamente notícia de uma eventual perda, extravio ou roubo, e ao banco a obrigação de cumprir as ordens do Cliente e de zelar pelos seus interesses.
E se o principal dever do banco é o dever de pagamento dos cheques emitidos pelo Cliente e que lhe sejam apresentados, o mesmo encontra-se ainda obrigado a outros deveres laterais, entre os quais se destaca o dever de verificar cuidadosamente os cheques que lhe são apresentados[5].
Quanto aos deveres de diligência a cargo do banco, Pedro Fuzeta da Ponte destaca, o dever de verificação da assinatura do sacador, o dever de verificação da validade formal do portador nos cheques nominativos, o dever de verificação da regularidade da sucessão de endossos, o dever de verificação da validade material dos portadores dos títulos e o dever de verificação dos elementos consubstanciadores do título[6].
Antes de mais, haverá que distinguir entre o cheque falso e o cheque falsificado.
O cheque falso é aquele em que a contrafacção atinge a assinatura do sacador, assinatura que nele foi aposta, não pelo titular da conta mas por um terceiro infractor.
O cheque é falsificado quando o conteúdo das declarações cambiárias foi intencionalmente alterado, fazendo-se, em documento verdadeiro, alteração ou intercalação que faz variar o seu sentido.
Assim, enquanto que no cheque falso, a falta de assinatura do titular legítimo atinge o próprio título, conduzindo à nulidade do mesmo (arts. 2º e 6º, nº1 da LUC), o cheque falsificado, cumprindo os requisitos do art.1º da LUC, reúne as condições formais para ser considerado cheque[7].
Não regulamentando a Lei Uniforme de Cheque as consequências do pagamento de cheques falsos ou falsificados, e encontrando-nos no domínio da responsabilidade contratual, teremos de recorrer aos princípios gerais da responsabilidade civil[8].
Na responsabilidade contratual, a ilicitude consistirá na desconformidade entre o comportamento devido (a prestação debitória) e o comportamento observado.
E sobre o banco impenderá a presunção de culpa prevista no art. 799º do Código Civil, sendo que, só ele estará em condições de fazer a prova de que agiu com o zelo que lhe era devido.
E, embora o legislador, ao mandar aplicar à culpa no domínio da responsabilidade contratual o mesmo critério de apreciação da culpa no domínio da responsabilidade extracontratual (nº2 do art. 799º CC), remetendo para a tese da culpa em abstracto, determinada pelo modelo do bonus pater famílias, a doutrina e a jurisprudência apontam para um novo conceito de diligência profissional em matéria bancária:
“A diligência que o banco deve aplicar no exame da genuidade e fidelidade do cheque apresentado a pagamento, deve “ser referida não à de um qualquer observador de médio interesse e de média diligência, mas à de um examinador atento e previdente pelo maior grau de atenção e de prudência que a profissionalidade do serviço permite esperar[9]”.
Ou, nas palavras de Paulo Olavo e Cunha, a diligência esperada deverá ser “a de um profissional habilitado e dotado de meios técnicos e humanos especialmente adequados ao exercício da actividade bancária, proporcionados por recursos financeiros consideráveis[10]”.
Segundo Fernando Correia Gomes, “é precisamente no plano da omissão dos deveres de diligência impostos pela actividade bancária que deve ser apreciada a existência de culpa, traduzida no nexo de imputação subjectiva do facto ao agente. E para que se possa afirmar a diligência do comportamento é necessário não só que o banco ignore a não correspondência da situação aparente à situação real, mas também que lhe tivesse sido impossível averiguar essa não correspondência, fazendo uso da diligência exigível, referida ao profissional médio[11]”.
No caso em apreço, encontra-se em causa a irregularidade do endosso[12] aposto em cada um dos dois cheques apresentados a pagamento, cujo carimbo e assinatura não correspondem ao carimbo e assinatura do gerente das sociedades a favor de quem tais cheques se encontram emitidos (als.k) e L) dos factos assentes).
Tratar-se-ão de cheques falsificados, ou seja, de documentos em si verdadeiros, cuja vicissitude ocorre posteriormente ao saque e colocação em circulação e que respeita, tão só, ao endosso aposto em cada um deles.
Encontrar-se-á em causa o devido cumprimento da obrigação contida no art. 35º da LUCh, segundo o qual “o sacado que paga um cheque endossável é obrigado a verificar a regularidade da sucessão dos endossos, mas não a assinatura dos endossantes”.
Como refere Sofia de Sequeira Galvão, o que a lei consagra é mero dever de verificação formal da legitimidade do apresentador do cheque[13]”, ou seja, o sacado apenas está obrigado a verificar a regularidade dos endossos, não sendo obrigado a conferir a assinatura atribuída à gerência da beneficiária.
E, para que se verifique uma regular cadeia de endossos, basta que eles se sucedam logicamente, o que acontece quando a assinatura do endossante corresponde ao nome do (anterior) beneficiário ou do (último) endossatário e assim sucessivamente[14].
Dadas as diferentes característicasdo endosso aposto em cada um dos cheques, faremos a respectiva apreciação em separado. 1.a. Cheque emitido à ordem da BI…, Lda.
No cheque emitido à ordem de BI… Lda., no valor de 1.045,79 €, foi aposto, no respectivo verso, a marca de um carimbo com os dizeres “BI…., Lda.// A Gerência”, e um autógrafo.
E, em relação a tal cheque, concordamos com o raciocínio exposto na sentença de que se recorre: constando do verso do cheque um carimbo com os dizeres do nome da sociedade identificada no rosto do cheque, a funcionária da Interveniente não se encontrava legalmente obrigada a verificar a regularidade da assinatura do endossante, sendo irrelevante que a assinatura aposta sobre o referido carimbo fosse ilegível.
A tal respeito, fez-se constar da sentença recorrida: “O endosso mostrava-se materialmente feito nos termos previstos nos arts. 15º e 16º da LUCh e 260º do Código das Sociedades Comerciais. Ao homem médio colocado na posição da referida funcionária, não era exigível que suspeitasse que o carimbo e assinaturas não pertenciam à beneficiária do cheque, pois nada se provou que naquele momento fundamentasse essas suspeitas. Aliás, diga-se que a própria A. nada alegou relativamente a este cheque que constituísse incumprimento dos deveres a que a chamada estava obrigada”.
Há apenas uma assinatura que tem de ser verificada – a do sacador. As assinaturas dos intervenientes não são, nem têm de ser, objecto de verificação[15].
E note-se que, segundo Paulo Olavo e Cunha, ainda que o cheque cujo endosso tenha sido falsificado se encontre cruzado, “a obrigação do banco não se altera: o sacado que paga um cheque endossável só tem de verificar a regularidade formal dos endossos, mesmo que se trate de um cheque com cruzamento geral; não tem de conferir a assinatura do endossante, mesmo que o endosso seja em branco[16]”.
Quanto ao exacto alcance do dever que impende sobre o sacado de averiguar da regularidade formal da respectiva cadeia de endossos, afirma ainda Paulo Olavo e Cunha:
“A Lei Uniforme tão pouco impõe que os endossantes aponham carimbo que os identifique, se forem pessoas colectivas. Será suficiente, em nosso entender, que a assinatura do endossante seja perceptível, para poder ser comparada com o nome do endossatário, mas não há meio de apurar se ela foi de facto aposta por este ou se resultou do punho de terceiro.
Assim, não sendo exigível ao banco que identificasse o endossante ou detectasse a anomalia, não aparente, sublinhe-se, não se entende como é que pode vir a ser responsabilizado por um pagamento indevido que tenha efectuado[17]”.
De qualquer modo, embora o artº 35º não obrigue o banco a verificar a assinatura do endossante, admite-se que, em determinadas circunstâncias, o dever de diligência e de averiguação da regularidade do cheque possa ir mais longe: como se afirma no Acórdão do TRC de 18.10.2011[18], a ocorrência de circunstâncias específicas relacionadas com o cheque ou ocorridas no momento em que o mesmo é apresentado a pagamento, susceptíveis de, por si só, alertar o Banco para qualquer anomalia ou irregularidade material do mesmo e particularmente do endosso, poderão obrigar o Banco a cuidados acrescidos na análise desse título de crédito, “através da verificação e confirmação de um facto que, em regra, não está obrigado a verificar: a assinatura do endossante”.
Contudo, no caso em apreço, foi aposto no verso do cheque um carimbo com a identificação da sociedade beneficiária do cheque – e a funcionária da Ré não tinha como aferir se o referido carimbo correspondia, ou não, ao usado habitualmente pela beneficiária do cheque –, não tendo sido alegada por parte da autora qualquer circunstância que pudesse levar levar o banco a desconfiar da sua autenticidade.
Vem agora a Autora, nas suas alegações de recurso, alegar que a Interveniente teria confessado no art. 31º da sua contestação que “não verifica os endossos dos cheques”.
Contudo, da leitura da contestação apresentada por tal Interveniente não se descortina tal suposta confissão – nem no citado artº 31º, nem nos restantes.
Com efeito, a Interveniente limita-se a afirmar que a obrigação de verificação da regularidade do endosso (prevista no ponto18.3 das Instruções do banco de Portugal nº 25/2003), recai sobre o banco tomador, e que sempre que não há circulação física do título se torna impossível impor ao sacado a verificação do endosso.
Contudo, tal defesa é assumida pela Ré unicamente quanto ao cheque no valor de 3.941,17 €, por tal cheque ter sido apresentado a pagamento numa sucursal da primitiva Ré, não fazendo qualquer sentido quanto ao cheque no valor de 1.045,79 €, que foi entregue directamente num dos balcões da Interveniente/sacada.
Concluindo, quanto ao endosso aposto em tal cheque e dada a sua aparente regularidade, o banco sacado logrou afastar a presunção de culpa que sobre o mesmo impendia, não podendo vir a ser responsabilizado pelo pagamento de tal cheque[19]. 1.b. Cheque emitido à ordem da C. P.,, Lda..
Maiores considerações nos merecerão o pagamento pela Interveniente do cheque no valor de 3.941,17 €, e que foi depositado numa delegação da primitiva Ré.
Com efeito, neste cheque foi aposto no respectivo verso um carimbo com os dizeres “C. P. SA. A Gerência”, e sobre ele uma assinatura ilegível, quando o referido cheque se encontra emitido à ordem de “C.P.., Lda.”.
Ora, tal divergência é suficientemente grave para levantar suspeitas ao funcionário da primitiva Ré da delegação de …, onde tal cheque foi depositado.
A comparação da denominação da sociedade beneficiária (“Lda.”) com a denominação aposta no carimbo (S.A.), respeitando a diferentes tipos de sociedades previstos na lei, seria de molde a levantar imediatas dúvidas sobre a verificação da necessária coincidência entre o beneficiário e o endossante.
Como se afirma no Acórdão do STJ de 22.03.2010[20], “relativamente ao cheque dos autos, uma pessoa, medianamente informada e diligente, teria notado a divergência em termos de, pelo menos, se lhe colocar dúvida determinante da suspensão do processo de pagamento, com a apresentação ao Banco sacado, sem previamente obter informação sobre a regularidade do título, objectivamente fora da normalidade”.
Como já foi referido, a sentença recorrida afastou, contudo, a responsabilidade da Interveniente/sacada, com fundamento na circunstância de “esta não ter tido contacto físico com o cheque em questão”.
Recebendo as instituições bancárias cheques sacados sobre outras instituições, chama-se compensação à troca de informações sobre títulos de crédito ou outros valores, que poderão, ou não ser trocados fisicamente, efectuada entre instituições de crédito, tendo em vista o encontro e a liquidação de obrigações recíprocas.
Ora, um dos princípios que vigora na rede interbancária de comunicações, gerida pela SIBS – Sociedade Interbancária de Serviços, S.A., é o da truncagem, por via do qual, os títulos que reúnem determinadas condições (é o caso dos cheques de valor inferior a determinado quantitativo) não circulam fisicamente entre as instituições de crédito, ou seja, não vão ao balcão onde está constituída a respectiva relação de provisão.
É precisamente por tal motivo que o “Regulamento do Sistema de Compensação Interbancária – SICOI[21]”, no seu ponto 18.3. responsabiliza “o participante tomador”:
“Pela verificação, para todos os cheques e documentos afins que lhe sejam apresentados, da regularidade:
· do seu preenchimento, com excepção da data de validade do impresso cheque;
· da sucessão dos endossos, apondo no verso, nos casos em que não exista endosso, a expressão “valor recebido para crédito na conta do beneficiário” ou equivalente.”
Contudo, como se afirma no Acórdão do STJ de 23-02-2010[22] – que, a propósito de uma situação semelhante, concluiu pela responsabilidade quer do banco apresentante ou tomador, quer do banco sacado –, “os efeitos do Regulamento em causa, cujo objecto é a regulamentação do Sistema de Compensação Interbancária, tendo como destinatário as entidades bancárias participantes no Sistema, não só não é fonte directa de direito, como, por desde logo isso, não é oponível aos demandantes, sem prejuízo dos efeitos que dele possam retirar as demandadas em sede de determinação de responsabilidades nas relações entre si”.
Ou seja, nas relações entre o Cliente e o banco sacado, continua a vigorar o princípio contido no art. 35º da LUCh, segundo o qual é sobre o sacado que impende o dever de verificar a regularidade dos endossos.
Pronunciando-se sobre os riscos da telecompensação, e sobre o facto de esta, devido ao princípio da truncagem, contribuir para um significativo afrouxamento no cumprimento dos deveres que sobre os bancos impendem em decorrência dos contratos de cheque que firmam sobre os clientes, afirma Fernando Correia Gomes:
“Não parece aceitável sacrificar os legítimos interesses dos clientes em prol do desenvolvimento de novos meios tecnológicos colocados ao dispor dos bancos e da organização dos seus meios operativos. O cliente nunca pode ser prejudicado por um abrandamento no cumprimento das obrigações do banco que, seja, meramente, ditado por objectivos de redução dos custos ou de celeridade do trânsito[23]”.
Também Paulo Olavo e Cunha se pronuncia no sentido de que se, abdicando intencionalmente, ou por efeito do funcionamento do próprio sistema bancário (truncagem), de proceder à conferência da assinatura do sacador, a que se encontra contratualmente obrigado, o banco não procede diligentemente, deverá assumir os resultados dessa omissão[24].
E, quanto à norma constante do Novo Regulamento do SICOI (Instrução nº 3/2009)[25], pronuncia-se igualmente no sentido se tratar de uma mera “norma de regulação”, “responsabilizando o banco depositário perante o sacado”, continuando o sacado a responder pela eventual inobservância do disposto no referido art. 35º[26].
Já Pedro Fuzeta da Ponte aponta um outro fundamento para a responsabilização do banco sacado – o banco responde objectivamente (não se exige culpa in eligendo, nem culpa in vigilando) quando se serve de auxiliares para cumprir a obrigação nos termos do art. 800º do CC:
“A situação mantém-se a mesma, i.e., os deveres da banca são sempre os mesmos, independentemente da forma de transmissão do título – endosso pleno, endosso em branco ou simples tradição – quer da qualidade em que os bancos agem – quer do próprio tipo dos cheques – cheques ordinários, cruzados ou para levar em conta[27]”.
Concluindo, a Interveniente sacada será responsável pela reposição do valor correspondente ao cheque no valor de 3.941,17 € (o respectivo pagamento fez diminuir na mesma proporção, a provisão existente na conta do cliente), e respectivos juros.
Contudo, e uma vez que a quantia peticionada a título de danos patrimoniais se encontra reduzida ao valor de 2.986,96 € (pelo facto da A. ter recebido da primitiva Ré a quantia de 2.000, 00 €, em sede de transacção), a condenação da Interveniente terá como limite este último valor.
Já quanto aos alegados danos não patrimoniais, que a Autora peticionou no valor de 2.500,00 €, a improcedência de tal pedido é manifesta – independentemente da questão da (in)admissibilidade da atribuição de indemnização por danos morais a uma pessoa colectiva[28], os factos alegados pela autora como integrantes do alegado prejuízo, foram dados, pura e simplesmente, como não provados (cfr. respostas negativas aos pontos 5 e 6 da Base Instrutória).
A Apelação procederá parcialmente.
IV – DECISÃO.
Pelo exposto, os juízes deste tribunal da Relação acordam em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se, em consequência, a Interveniente a pagar à Autora a quantia de 2.986,96 €, acrescida de juros vencidos desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.
Custas da apelação a suportar pela Apelada/Interveniente.
Lisboa, 17 de Abril de 2012
Maria João Areias
Luís Lameiras
Roque Nogueira
---------------------------------------------------------------------------------------- [1] Pela qual a autora reduziu o pedido formulado contra a Ré para o montante de 2.000,00 €, sem prejuízo do prosseguimento da acção contra a Interveniente pelo remanescente da dívida. [2]Fernando J. Correia Gomes, “A Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Cheques Falsos ou Falsificados”, Studia, VISLIS Editores, 2003, pag. 14. [3], Cfr., “Contrato de Cheque”, LEX, Lisboa 1992, pag. 60 a 63; em igual sentido se pronuncia Fernando J. Correia Gomes, obra citada, pag. 21 a 23. [4] Obra citada, pag. 44 e 45. [5] Cfr., neste sentido, Sofia Sequeira Galvão, obra citada, pag. 46 e 51, e Fernando Correia Gomes, ora citada, pag. 19. [6] “Da Problemática da responsabilidade civil dos bancos decorrente do pagamento de cheques com assinaturas falsificadas”, estudo publicado na Revista da Banca, Nº31 (1994), pag. 67 e 68. [7] Cfr., neste sentido, Pedro Fuseta da Ponte, obra citada, pag. 68 e 69; Segundo Márcia Regina Frigeri, enquanto que na falsidade o título não chegou sequer a formar-se, a falsificação parte de um título verdadeiro que posteriormente é deturpado. [8] Cfr., neste sentido, entre outros, António Caeiro e NogueiraSerens, “Responsabilidade do Banco Apresentante (ou cobrador) e do Banco Sacado pelo pagamento de cheques com endosso falsificado”, estudo publicado na Revista de Direito e Economia IX – 1 e 2, pag. 59, e Pedro Fuzeta da Ponte, estado citado, pag. 74, e, na jurisprudência, Ac. STJ de 23.02.2010, relatado por Alves Velho, Ac. TRC de 18.10.2011, relatado por Isaías Pádua, Ac. TRC de 18.10.2011, relatado por Henrique Antunes, disponíveis in http://www.dgsi.pt. [9] Cfr., Alberto Luís, “O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Créditos”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59, Vol. III (Dez. 1999), pag. 910. [10] “Cheque e Convenção de Cheque”, Almedina 2009, pag. 674. [11]Cfr., obra citada, pag. 38. [12] Tratar-se-á de um endosso em branco – apenas se encontra aposta no verso um carimbo e a suposta assinatura da sociedade beneficiária de cada um dos cheques, que terão sido apresentados a pagamento para depósito na conta de um terceiro. [13] Obra citada, pag. 72; em igual sentido, cfr., Ac. do TRL de 20.01.2011, relatado por Jorge Vilaça, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrl. [14] Cfr., neste sentido, Paulo Olavo e Cunha, obra citada, pags. 643 e 644. [15] Cfr., Paulo Olavo e Cunha, obra citada, pag. 630, nomeadamente nota 1346. [16] Obra citada, pag. 645. [17] “Cheque e Convenção de Cheque”, Almedina, Setembro 2009, pag. 645. [18] Ac. TRC de 18.10.2011, relatado por Isaías Pádua, disponível in http://www.dgsi.pt. [19] No sentido de que o banco logrará afastar a sua responsabilidade desde que consiga provar que agiu sem culpa, se pronunciou Fernando Correia Gomes (obra citada, pag. 35).
Não desconhecemos o desenvolvimento que tem vindo a assumir a teoria do risco profissional como fundamento de responsabilização do banco sacado nos casos de ausência de prova de culpa do cliente e do banco sacado: assim, segundo Pedro Fuzeta da Ponte, “o perigo da apresentação de cheques falsificados e o prejuízo derivado do seu pagamento, fica compensado com o lucro obtido por aquela entidade no conjunto das suas operações” (obra citada, pag. 80); também Paulo Olavo e Cunha, partindo da consideração de que a falsificação, seja qual for a modalidade sob a qual ocorra, corresponde a uma vicissitude sistematicamente produzida quando o sacador já perdeu o domínio sobre o cheque, aceita que o risco deverá ser suportado pelo banco, com a consequência de correrem por conta deste os prejuízos decorrentes do pagamento indevido, não lhe “repugnando aceitar que o banco, na qualidade de entidade especializada, seja responsável, salvo se (se) demonstrar que o sacador actuou com culpa ou foi negligente no cumprimento dos respectivos deveres (cfr., obra citada, pags. 683 e 695).
Contudo, e além do mais, no caso em apreço, encontrando-se o pedido limitado ao excedente do valor recebido pelo autor em sede de transacção, o resultado final sempre seria igual para o autor – ainda que se concluísse pela responsabilidade da interveniente também pelo pagamento indevido deste cheque, a condenação da ré nunca poderia exceder o valor de 2.986,96 €, valor este já integralmente coberto pela responsabilização da Ré pelo pagamento indevido do cheque no valor de 3.941,17 €. [20] Acórdão relatado por Alves Velho, disponível in http://www.dgsi. [21] Tal Regulamento encontra-se reproduzido em Anexo, na citada obra de Fernando Correia Gomes, in “A Responsabilidade Civil (…). [22] Acórdão relatado por Alves Velho, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj. [23] Obra citada, pag. 29 e 30. [24] Cfr., obra citada, pag. 675. [25] Segundo a qual, com a adesão ao sistema, nos cheques levados à compensação “O sacado delega automaticamente no tomador e este aceita a responsabilidade enunciada no art. 35º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, relativamente à verificação da regularidade dos endossos”. [26] Cfr. Paulo Olavo e Cunha, obra citada, pags. 675 e 676, nota 1452. [27] Estudo e local citados, pag. 75. Também António Caeiro e Nogueira Seréns se pronunciam no sentido de que o banco sacado não s pode eximir às suas responsabilidades pelo facto de se ter verificado a intervenção do Banco apresentante (obra citada, pag. 102, nota 97). [28] Embora a doutrina e a jurisprudência actualmente maioritárias reconheçam a ressarcibilidade dos danos morais sofridos por pessoas colectivas em consequência da ofensa ao seu bom nome, prestígio ou confiança de que gozam (cfr., neste sentido, entre outros, Ac. do TRP de 10.03.2005, Ac. TRC de 12.05.2010, e Ac. TRL de 23-03-2010), tal questão continua a ser objecto de discussão, em especial no âmbito da responsabilidade contratual (cfr., Rui Soares Pereira, “A responsabilidade por Danos Não Patrimoniais do Incumprimento das Obrigações No Direito Civil Português”, Coimbra Editora 2009, pags. 250 a 257).