PROVA PERICIAL
SEGUNDA PERÍCIA
Sumário

I - O Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 522 do CPC, na acção ordinária e para efeitos da decisão sobre a matéria de facto, pode recorrer ao relatório pericial constante do procedimento cautelar apenso quando a audiência contraditória não foi preterida e o exame foi realizado em termos idênticos àqueles em que ocorreria uma perícia em processo declarativo ordinário.
II – Nada impede, todavia, que na acção ordinária seja ordenada nova perícia de objecto idêntico que não se configura como diligência impertinente ou dilatória, mesmo quando equacionada a situação com o princípio da economia processual.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Na acção declarativa com processo ordinário em que à A. “A” e são RR. a Herança de “B”, “C” e “D”, interpuseram estes recurso do despacho que indeferiu o seu requerimento de realização de perícia, formulando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso foi interposto do douto despacho que recaiu sobre o requerimento probatório dos Réus, ora Recorrentes, na parte em que indeferiu “o pedido de realização de perícia, porquanto a mesma já foi realizada no âmbito dos autos de procedimento cautelar”.
II. Sucede que, não só não se encontra ainda concluída a perícia ordenada nos autos de procedimento cautelar apensos aos presentes autos, como também o facto de aí estar a ser efectuado um exame pericial com o mesmo objecto do que foi agora indeferido não pode servir de impedimento a que ele seja efectuado também nestes autos principais.
III. A prova efectuada no âmbito de um procedimento cautelar (ainda que com o mesmo e exacto objecto e ainda que sujeita ao princípio do contraditório) não tem como fim o apuramento definitivo do mérito das pretensões das partes, como sucede na acção principal de que é dependente, pretendendo apenas justificar uma decisão temporária fundada em juízos de mera verosimilhança ou probabilidade.
IV. Por isso é que o n.º 4 do art.º 383.º do C.P.C. dispõe que “nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da acção principal”, e por isso é que - conforme se pode ler no Acórdão de 4 de Dezembro de 2001, desse douto Tribunal, proferido no recurso n.º 10397/2001 (in Colectânea de Jurisprudência 2001, 5.º- 99) - “na acção principal podem as partes renovar todos os elementos de prova já apresentados na providência, independentemente da apreciação que o Tribunal tenha feito naquele procedimento cautelar. É que tal apreciação, tendo em vista uma mera probabilidade da existência do direito, não tem qualquer influência no julgamento da acção principal”.
V. A força probatória da perícia efectuada no procedimento cautelar poderá, pelas menores garantias que esse tipo de processo oferece, conforme referido supra, ter inferior valor probatório à que foi agora vedada aos Recorrentes nos presentes autos.
VI. Acresce que a perícia requerida pelos Recorrentes se insere no âmbito de um incidente de falsidade deduzido pela Autora, ora Recorrida, na respectiva Réplica, a que os Recorrentes, ao abrigo da faculdade que lhes é conferida pelo artigo 545.º, n.º 2 do C.P.C., opuseram a produção de prova da respectiva genuinidade, requerendo a prova pericial e prova testemunhal.
VII. Prova essa que, perante a ausência de despacho sobre o incidente de falsidade referido, e uma vez que essa matéria foi introduzida na base instrutória, os Recorrentes  se viram forçados a renovar, atempada e oportunamente, nos termos do art.º 512.º do C.P.C..
VIII. A decisão em crise tem apenas o efeito de impedir que os Recorrentes façam um dos tipos de prova previstos na lei para uma questão quesitada na base instrutória (cfr. artigos 388.º do Código Civil e 568.º e ss do C.P.C.), que é fulcral para a apreciação do mérito da causa, o que se traduz numa flagrante violação dos Princípios da Legalidade e do Contraditório,
IX. E que cria a situação perversa de permitir que paire no processo uma suspeição sobre a veracidade de um documento (cfr. alínea 31 da base Instrutória), sem que se permita à parte que o juntou fazer prova da sua genuinidade.
XX. Ao decidir como decidiu, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 383.º, n.º 4, 512.º, 545.º, n.º 2 e 568.º e ss do C.P.C., bem como os artigos 341.º, 342.º, n.º 2 e 388.º do Código Civil e ainda os Princípios da Legalidade e do Contraditório.
            Não foram apresentadas contra alegações.
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            II – Definindo as conclusões de recurso o objecto deste, conforme decorre do art. 684, nº 3, do CPC, a questão que se coloca é a de se tem justificação o indeferimento do requerimento de realização de perícia numa acção ordinária pela circunstância de já haver sido ordenada a realização de perícia de objecto idêntico no âmbito dos autos de procedimento cautelar apenso.
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III - Com interesse para a decisão haverá que salientar as seguintes circunstâncias de facto decorrentes da análise dos autos:
            1 - Da Base Instrutória da acção declarativa com processo ordinário em que é A. “A” e são RR. a Herança de “B”, “C” e “D” consta, entre outros, um artigo do seguinte teor: «O cheque referido no art. 23º desta Base Instrutória foi preenchido e assinado por “E”?»                    
            2 – No requerimento de prova por si apresentado em 9-12-2011 os RR. requereram a realização de exame pericial ao cheque cujo original se encontra junto ao procedimento cautelar de arrolamento apenso, a realizar por técnicos do Laboratório de Polícia Científica a fim de determinar se o referido cheque foi preenchido por “E” e se foi assinado por “E”.
            3 – Requereram, ainda, considerando que o mencionado “E” já havia falecido, a comparação: a) com a letra e assinatura do mesmo constantes de contrato-promessa de que juntaram cópia e cujo original seria junto aos autos pela A.; b) com os documentos juntos pela A. a fls. 469, 471, 473, 484, 488, 498 a 499, 502 e 504 a 505 do procedimento cautelar de arrolamento apenso; c) com as cópias de pedidos de bilhete de identidade que requereram que viessem a ser juntos aos autos; d) com cópia da ficha de assinaturas e respectivas alterações relativas à conta bancária que requereram que fosse junta aos autos; e) com os originais – e, caso tal não fosse possível, com as cópias – de cheques emitidos por “E” em data o a mais próxima possível de 31 de Dezembro de 2006, no mínimo de 10 e no máximo de 20, que requereram que viessem a ser juntos aos autos (estes e as cópias da ficha de assinaturas e alterações por ofício dirigido ao «Banco “F”»).
            4 – Quanto ao mencionado em c) e d) aceitaram os RR. em alternativa os documentos já juntos aos autos de procedimento cautelar de arrolamento apenso e quanto ao mencionado em e) que fossem admitidos os originais – ou, caso não fosse possível, as cópias – de cheques que indica.
            5- Sobre tal requerimento recaiu despacho do seguinte teor: «Perícia: indefere-se o pedido de realização de perícia porquanto a mesma já foi realizada no âmbito dos autos de procedimento cautelar» (despacho recorrido).
            6 – Nos autos de procedimento cautelar de arrolamento apensos à acção ordinária a ali requerida – e aqui R. – «para prova da genuidade do preenchimento e assinatura» do cheque acima aludido requereu que fosse ordenada perícia a realizar pelo Laboratório de Polícia Científica a fim de determinar se o referido cheque foi preenchido por “E” e se foi assinado por “E”, tendo o exame por base a comparação com os documentos juntos ao requerimento inicial pela requerente e com os elementos que requereu então que fossem solicitados à Direcção dos Serviços de Identificação Civil.
            7 – O Laboratório de Polícia Científica procedeu a exame - iniciado em 14-12-2011 e concluído em 15-12-2011 – tendo por objecto saber se o cheque em causa foi preenchido por “E” e se foi assinado por “E”, utilizando para o efeito, para além do mesmo cheque: um contrato-promessa de compra e venda datado de 26-3-2004 onde consta uma assinatura daquele; um contrato de compra e venda datado de 24-6-2004 onde consta uma assinatura daquele; 3 fotocópias de pedido de BI (datadas de 5-9-2007, 27-5-97 e 5-8-86) onde constam assinaturas de “E”; três cartões postais sem data, bem como quatro folhas manuscritas onde constam dizeres atribuídos a “E” (e que são, respectivamente, fls. 469, 471, 473, 484, 488, 502 e 504 dos autos de procedimento cautelar); fotocópias de duas fichas de assinaturas do banco “F” datadas de 25-06-2004 e 6-6-1990, onde constam assinaturas de “E”.
8 – A conclusão constante do relatório foi a seguinte: «Admite-se como muito provável que a escrita suspeita … seja da autoria de “E”».
9 – Na nota informativa fornecida pelo Laboratório sobre a hierarquia das expressões utilizadas consta o seguinte:
Muitíssimo Provável
Muito Provável
Provável
Provável Não
Muito Provável Não
Muitíssimo Provável Não
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IV – 1 – É sabido que, consoante decorre do nº 1 do art. 383 do CPC o procedimento cautelar é sempre dependência da causa que tenha por fundamento o direito acautelado, podendo ser instaurado como preliminar ou como incidente da acção declarativa (ou executiva).
A providência cautelar constitui a antecipação da providência definitiva - daí aquela dependência.
Tem, pois, plena justificação a apensação dos autos de procedimento cautelar (procedimento e não acção dada a sua carência de autonomia) aos da acção (nº 2 do art. 383 e nº 2 do art. 83 do CPC).
As providências cautelares fornecem uma composição provisória que será substituída pela tutela que vier a ser definida na acção ([1]) sendo que para atingir a finalidade de evitar a lesão ou a sua continuação a composição provisória tem de ser concedida com celeridade – as providências cautelares implicam, assim, necessariamente, uma apreciação sumária da situação através de um procedimento simplificado e rápido.
Neste contexto, dispõe o nº 3 do art. 383 que «nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da acção principal».
Contudo, a questão que nos ocupa não é a da influência do julgamento da matéria de facto do procedimento cautelar na acção principal (nem sabemos se já ocorreu tal decisão) estando antes relacionada com o aproveitamento dos meios de prova produzidos no procedimento cautelar, bem como com o impedimento de idênticos meios virem a ter lugar na acção.
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IV – 2 - A questão situa-se no que à prova constituenda (ou seja, aquela que se forma ou constitui no decurso do processo) diz respeito.
Dispõe o nº 1 do art. 522 do CPC: «Os depoimentos e arbitramentos produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 355º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e arbitramentos produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova».
Alberto dos Reis ([2]) ensinava, no que à audiência contraditória concerne, que aquilo que importa é que a parte «tenha sido colocada em condições de poder intervir»; quanto à limitação das «garantias inferiores» seria o caso em que a lei determina que qualquer arbitramento será feito por um único perito, «caso em que as partes têm na produção de prova por arbitramento, garantias inferiores às normais».
No que respeita especificamente ao recurso na acção principal aos elementos probatórios constantes do procedimento cautelar, declarando-o o juiz na motivação da decisão sobre a matéria de facto se o fizer e se deles receber algum contributo, refere Abrantes Geraldes ([3]) que a legalidade do aproveitamento de tais elementos resulta do art. 522, mas que se esses meios de prova tiverem sido produzidos no âmbito de um procedimento cautelar em que o requerido não tenha sido ouvido não poderão produzir quaisquer efeitos externos, nem sequer como princípio de prova.
No caso que nos ocupa o exame à letra e assinatura foi produzido em procedimento cautelar em que nada inculca que a audiência contraditória tenha sido preterida; bem como foi realizado pelo Laboratório de Polícia Científica – como previsto no art. 568 do PCP – em termos idênticos àqueles em que ocorreria uma perícia em processo declarativo ordinário.
Do exposto poderemos concluir que o Tribunal, ao abrigo do disposto no art. 522 do CPC, na acção ordinária e para efeitos da decisão sobre a matéria de facto poderia recorrer ao relatório pericial constante do procedimento cautelar.
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IV – 3 - Questão diferente é a de se podendo embora o Tribunal recorrer a tal elemento, estava vedada a possibilidade de na instrução da acção ordinária ser realizada perícia com um objecto idêntico; ou, mais concretamente, se a circunstância de no procedimento cautelar ter sido realizada prova pericial impedia que na acção principal fosse produzida prova pericial de objecto idêntico.
Afigura-se-nos que nada na lei impõe que assim seja. Tendo as provas por função a demonstração da realidade dos factos (art. 341 do CC), a parte, no seu requerimento de prova, poderia pretender que fosse produzido qualquer dos meios de prova que na instrução do processo são, em geral, facultados. Do mesmo modo, que por uma testemunha ter deposto na audiência final do procedimento cautelar, tendo o seu depoimento sido gravado, não deixará de poder voltar a depor na audiência de discussão e julgamento da acção principal, ainda que sobre os mesmos factos ([4]).
A questão colocar-se-á antes em termos de oportunidade e de utilidade da diligência na convergência com o princípio da economia processual. Como salienta Ferreira de Almeida ([5]) «o princípio baseia-se numa equação actividade-resultado, em termos de aplicação racional dos meios processuais (economia de meios). O que se exige é que cada processo, por um lado, resolva o maior número possível de litígios (economia de processos) e, por outro, comporte apenas os actos e formalidades indispensáveis ou úteis (economia de actos e formalidades)».
Assim, o art. 137 do CPC dispõe que «não é lícito realizar no processo actos inúteis».
Vejamos, pois.
Tendo a prova pericial por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, designadamente quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (art. 388 do CC), a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo Tribunal (art. 389 do CC).
Quando alguma das partes o requeira ou o juiz o considere conveniente, os peritos, no decurso da audiência e sob juramento prestarão os esclarecimentos que lhes sejam pedidos (art. 588 do CPC).
Por outro lado, atento o art. 589 do CPC, qualquer das partes pode requerer que se proceda a uma segunda perícia, alegando fundadamente as razões da discordância relativamente ao relatório pericial já apresentado (tal como o tribunal a pode ordenar oficiosamente quando a julgue necessária), tendo a segunda perícia «por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta».
É de sublinhar que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo Tribunal – art. 591 do CPC; não há qualquer prevalência de uma sobre a outra, sendo os resultados de ambas valoradas segundo a livre convicção do julgador.
Como explicam Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto ([6]) a segunda perícia visa «fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art. 590-a) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial».
Neste contexto não nos parece que a realização da pretendida perícia se configure, no caso dos autos, como diligência impertinente ou dilatória.
Se no âmbito da instrução da acção podem ter lugar uma primeira e uma segunda perícias com o mesmo objecto, nas apontadas circunstâncias, porque não poderá realizar-se uma perícia quando da instrução da acção, muito embora outra tenha tido lugar no decurso da instrução do procedimento cautelar apenso, sem prejuízo de o Tribunal desta também se poder aproveitar?
Podendo, assim, os peritos que intervieram no arbitramento que ocorreu quando da instrução da acção virem a ser confrontados com esclarecimentos no decurso da audiência de discussão e julgamento e, deste modo, esclarecer-se mais amplamente a realidade subjacente ao objecto da perícia.
Acresce que, no caso que nos ocupa, para a realização do exame, tendo em conta o anterior falecimento da pessoa a quem são imputadas a letra e a assinatura, são propostos para comparação outros elementos que não apenas os que foram considerados no âmbito da perícia realizada no decurso da instrução do procedimento cautelar, o que facultará aos peritos uma base mais ampla para o seu exame.
Entende-se, pois, que nada impede a realização da perícia solicitada no requerimento de produção de prova dos apelantes.
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V – Face ao exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, em determinar que seja deferido o requerimento de prova pericial deduzido pelos apelantes, dando-se-lhe continuidade.
Sem custas.
                                                           *
Lisboa, 10 de Maio de 2012

Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
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[1] Ver Teixeira de Sousa, «Estudos sobre o Novo Processo Civil», pags. 228-230.
[2] Em «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 545-546.
[3] Em «Temas da Reforma do Processo Civil», vol. III, pag. 140.
[4] Isto sem prejuízo de o juiz poder também ouvir a anterior gravação, como acima apontado.
[5] Em «Direito Processual Civil», vol. I, pag. 264.
[6] No «Código de Processo Civil Anotado», vol. 2, pag. 521.