IMUNIDADE JURISDICIONAL
Sumário

I - Ainda que para a apreciação de uma situação de competência internacional do Tribunal, cumpre fixar a matéria provada de molde a permitir conhecer se foi ou bem ou mal aplicado o direito correspondente.
II – A teoria restritiva da imunidade jurisdicional dos Estados é hoje dominante.
III - A questão essencial nesse ponto consiste em saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, isto é , se estamos perante actos jure imperii ou jure gestionis, sendo certo que não é pacífico o critério distintivo entre os actos em apreço.
IV – Todavia predomina o critério que atende à natureza do acto, de acordo com o qual constituem actos jure imperii os actos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e configuram actos jure gestionis, actos de natureza privada, que poderiam ser de igual forma praticados por um particular.
V- Configura um acto de jure gestionis por parte de um Estado soberano a contratação de um trabalhador para exercer meras tarefas de âmbito administrativo num Consulado”.
(Elaborado pelo Relator)

Texto Parcial

AA, [1] (…)l, intentou contra “ República Bolivariana da Venezuela”, representada pelo seu Embaixador em Portugal, com sede à Avenida Duque de Loulé, nº 47, 4º, Lisboa, acção , com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho.
Pede que seja declarado ilícito o despedimento efectuado, dada a
inexistência de justa causa ou de procedimento disciplinar e a condenação da Ré no pagamento das retribuições vencidas e vincendas até à reintegração no seu posto de trabalho, reservando-se ainda o direito de exercer a sua opção prevista no artº 439º do CT/2003, e bem assim o pagamento da quantia de € 4 980,68 respeitantes a diuturnidades, bem como o pagamento das retribuições
respeitantes aos meses de Maio e Junho e aos proporcionais, a apurar em sede de futura liquidação.
Alega, em resumo, que , em 11.09.2001 foi contratada pelo Consulado da Ré na Região Autónoma da Madeira para exercer tarefas nas suas instalações administrativas.
Por comunicação escrita de 30.04.2008, a Ré comunicou-lhe que o último dia de vigência do seu contrato se verificava em 30.06.2009. Segundo a descrição das suas funções,  teria direito a uma diuturnidade a partir de 11.09.04 e a duas diuturnidades a partir de 11.09.07, tendo a haver a esse título a quantia de € 4 980,68.
Não lhe foi concedido o gozo de férias a que tinha direito, tendo a haver a quantia de € 864,13, bem como outras retribuições referidas na p.i., a
liquidar em execução de sentença.
Realizou-se audiência de partes.
A Ré contestou.
Todavia a contestação ficou sem efeito, nos termos do artº 33º do C.P.C. ex vi artº 1º, nº2, al.a) do C.P.Trabalho, por despacho proferido a fls. 91 e 92.
Foram juntas traduções dos dois documentos juntos com a petição inicial.
Veio então a ser proferida decisão que na parte que aqui releva teve o seguinte teor:
“ Considerando que a Ré nos presentes autos é um Estado Estrangeiro,
cumpre, antes de mais, apreciar se este Tribunal é internacionalmente competente, o que, a verificar-se, determina a incompetência absoluta do Tribunal, que é de conhecimento oficioso. Cfr. artºs 101º e 102º do C.P.C.
Em ordem a decidir esta questão, será por certo importante situar com rigor os termos da lide.
Ao apresentar os fundamentos de facto da acção a Autora alega que foi
contratada pelo Consulado da Ré na Região Autónoma da Madeira para exercer as tarefas nas suas instalações administrativas.
Resulta do contrato celebrado entre as partes que se acha junto a fls. 8, com tradução a fls. 85 e 86, que a Autora, de nacionalidade  Venezuelana, foi contratada como funcionária local, para exercer as suas funções no Consulado da Venezuela no Funchal, as quais consistiam no pagamento do pessoal e despesas diversas do pessoal, manuseamento de livros de cheques, verificação de transferências bancárias, livro diário e acordos, elaboração das rendições mensais, elaboração da execução orçamental, formulação e elaboração do orçamento, modificações orçamentais, formulação e elaboração do Plano Operativo Anual e seguimento e avaliação do mesmo, fecho do exercício fiscal, bens nacionais, elaborar os contratos de trabalho locais e qualquer outra actividade inerente à área administrativa.
Mais alega que, por comunicação escrita datada de 30.04.08, a Ré
comunicou à Autora que o último dia de vigência desse contrato se verificaria em 30.06.08.
Resulta do documento junto aos autos a fls.9 com tradução a fls. 87 e 88, que A cessação do contrato que vinculava as partes teve como fundamento “ a reestruturação interna do Consulado Geral no Funchal. Razões estruturais devidamente autorizadas, através da comunicação “ confidencial” interna 001817 datada de 14 de Abril de 2008, pelo Serviço de Recursos Humanos, Direcção do Pessoal do Serviço Exterior, Coordenação do Pessoal Local do Ministério do Poder
Popular para os Negócios Estrangeiros, em conformidade com o estabelecido nos nºs 14 e 215 da Circular DGRH/DPDC número 000524 de 7 de Fevereiro de 2000”.
De acordo com o Direito Consuetudinário Internacional os Estados soberanos e independentes gozam reciprocamente de imunidade de jurisdição, com fundamento no princípio da igualdade e da autonomia.
Nesta matéria, entendemos que a imunidade de jurisdição dos Estados
Estrangeiros deve ter um âmbito restrito, isto é, limitado apenas aos actos jure imperii, de gestão pública. É que, se tal regra da imunidade de jurisdição radica no princípio da igualdade e autonomia dos Estados soberanos, isto é, no facto de exercerem funções de soberania, lógico é que essa imunidade só exista quando os Estados exercem funções de soberania e não quando actuam como particulares, despedidos do jus imperii. (neste sentido, vide, entre outros, Ac. da RL de 23.06.2004, em
www.dgsi.pt)
Nos presentes autos, é manifesto que as funções exercidas pela Autora são de carácter subalterno, não lhe podendo, ser reconhecida qualquer posição de direcção na organização do serviço público da Ré ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação.
E, sendo assim, como parece ser, o contrato de trabalho celebrado entre as partes, assume um mero acto de gestão privada, idêntico ao que qualquer empregador pudesse celebrar.
O mesmo não se dirá quando à cessação do contrato na medida em que se enquadra na “ reestruturação interna do Consulado Geral no Funchal”, em conformidade com orientações definidas pelo “ Serviço de Recursos Humanos, Direcção do Pessoal do Serviço Exterior, Coordenação do Pessoal Local do Ministério do Poder Popular para os Negócios Estrangeiros, em conformidade com o  estabelecido nos nºs 14 e 215 da Circular DGRH/DPDC número 000524 de 7 de Fevereiro de 2000”.
Cremos, assim, que estamos perante a prática de um verdadeiro acto de soberania por parte do Estado da República Bolivariana da Venezuela, relativamente ao qual goza de imunidade de jurisdição.
Subscrevemos, assim, o entendimento explanado no Ac. da Relação de
Lisboa, de 22 de Junho de 2005, proferido no processo nº 4107/05, o qual passamos a citar: “ Com efeito, constituiria uma ingerência intolerável face ao princípio da igualdade soberana dos Estados, que um tribunal de um outro Estado pudesse julgar a decisão de um Estado relativamente à sua própria organização interna, como é a  Reestruturação dos serviços consulares”.
E sendo assim, os Tribunais Portugueses são internacionalmente
incompetentes para julgar o Estado da República Bolivariana da Venezuela.
Termos em que, ao abrigo do disposto nos artºs 101º, 102º e 105º, todos do CPC, declaro este Tribunal internacionalmente incompetente e, consequentemente, absolvo a Ré da instância.
Custas pela Autora.
Registe e notifique.
Fixo à causa o valor de € 5 000,01” – fim de transcrição.
Inconformada , a Autora representada pelo MºPº , apelou.
Concluiu que:
(…)
A Ré não contra alegou nos termos legais, visto que não se mostra representada por Advogado.
Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.

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Na presente decisão ter-se-ão em conta os factos constantes do supra elaborado relatório.

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É sabido que o objecto do recurso apresenta-se delimitado pelas conclusões da respectiva alegação (artigos 684º nº 3º do CPC ex vi do artigo 87º do CPT).[i]
In casu, a nosso ver, o presente recurso suscita uma única questão que consiste em saber se o Estado da Venezuela goza de imunidade judiciária no tocante ao litígio em apreço.

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Porém, analisados os autos, antes de mais, constata-se que a decisão recorrida foi dada sem que se tivessem consignado quaisquer factos como assentes para o efeito.
Ora tal como se refere em acórdão da Relação de Lisboa ,de 1.7.1999,  ( vide CJ, Ano XXIV, Tomo IV, pág. 90/91) “ com total ausência de decisão da matéria de facto não pode este Tribunal de recurso exercer o poder censório não só quanto à própria matéria de facto provada, como também sobre o direito aplicado e aplicável.
Os conflitos de interesses entre as partes e as relações materiais controvertidas traduzem-se em factos.
O direito aplica-se aos factos alegados e provados.
Por falta absoluta da matéria provada falta um dos pressupostos necessários ao julgamento, pelo que ignora-se e não é possível conhecer se foi ou bem ou mal aplicado o direito correspondente”.
E a verdade é que a fixação dessa matéria é susceptível  de relevar
para o efeito.
Desde logo, em sede da determinação da natureza do vínculo em causa como resultando de acto praticado pelo Réu no exercício de jure imperii ou de jure gestionis.
Na realidade a imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros continua a ser considerada como princípio fundamental em direito internacional.
Todavia , a concepção absoluta dessa imunidade tem vindo a ser posta de lado , admitindo-se a distinção entre acta jure imperii e acta jure gestionis.
Assim, só em relação aos primeiros a imunidade tem vindo a ser  admitida como salvaguarda da soberania e igualdade dos Estados nas suas relações internacionais.
Por sua vez, a imunidade relativa justifica-se pelo facto de os actos praticados jure gestionis se revestirem de cariz  privado, colocando o Estado estrangeiro ao nível de um particular.
No fundo são actos estranhos ao exercício da soberania.
Como tal a concepção restrita da imunidade encontra-se associada à relevância de que se vêm revestindo as operações comerciais entre os Estados ( encontramo-nos hoje numa “aldeia global”) , efectuadas por organismos muitas vezes de natureza estatal, pelo que a tal título  não se vê motivo para os subtrair à jurisdição do Estado local.

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In casu, porém, argumentar-se-á – e é verídico – que a presente acção não foi contestada , o que sempre implica a aplicação  do preceituado no nº 1º do artigo 57º do CPT/99[2], sendo que desta forma a Relação sempre pode fixar a matéria de facto em falta, visto que dispõe de todos os elementos para o efeito ( isto é: o teor da petição inicial e os documentos que com ela foram juntos e inerentes traduções…).
Como tal fixa-se a matéria de facto (embora apenas a exclusivamente relevante ) para lograr se poder proferir a presente decisão nos seguintes moldes:
1 – Em 11 de Setembro de 2001, a Autora passou a exercer sob as ordens e direcção do Consulado do Réu na Região Autónoma da Madeira tarefas nas suas instalações administrativas.
2 – O acordo entre ambos foi pelos mesmo denominado de “contrato de trabalho”.
3 – Sendo que as partes estabeleceram que se regia pela legislação 
Portuguesa.
4 – A Autora foi qualificada como empregada local do Consulado.
5 – A Autora exercia as tarefas de âmbito administrativo referidas no documento constante de fls. 85/86 cuja cópia aqui se dá por inteiramente transcrita.
6 – Tais tarefas diziam respeito ao funcionamento burocrático do Consulado.
7 – Em 30 de Abril de 2008, através da comunicação cuja cópia constante de fls. 87/88 aqui se dá por inteiramente transcrita, o Réu comunicou à Autora que o último dia de vigência do acordo entre ambos se verificava em 30 de Junho de 2008.
8 – Cessando a relação existente entre ambos em 1 de Julho de 2008.

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Cumpre , agora, salientar que  como se refere em acórdão do STJ de  13-11-2002 (JSTJ000 , Relator: MÁRIO TORRES ,
Nº do Documento: SJ200211130021724 , acessível em www.dgsi.pt[3]) que se passa a citar longamente:
““Não se ignora que a jurisprudência nacional tem-se mostrado, neste domínio, particularmente oscilante, entre uma concepção mais dilatada do alcance da regra da imunidade de jurisdição (cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1997, processo n.º 809/96-A, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, pág. 473; do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Julho de 1989, processo n.º 4918, na Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, 1989, tomo IV, pág. 178, de 4 de Maio de 1994, processo n.º 704/92, de 23 de Fevereiro de 2000, processo n.º 8356; e do Tribunal da Relação do Porto, de 5 de Janeiro de 1981, processo n.º 15 139, na Colectânea de Jurisprudência, ano VI, 1981, tomo I, pág. 183) e uma concepção mais restrita, como a do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30 de Maio de 1990, processo n.º 6319, confirmado pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Janeiro de 1991, processo n. 2927, no Boletim do Ministério da Justiça, n. 403, pág. 267, que ambos decidiram serem os tribunais de trabalho portugueses internacionalmente competentes para conhecer de acção de impugnação de despedimento intentada por empregada doméstica do 1.º Secretário da Embaixada da França em Lisboa. É esta última a concepção que se reputa mais correcta e mais conforme ao estádio actual da prática e da jurisprudência internacionais.
As sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm, desde há vários anos, salientado que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quanto estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil e comercial), o que inclui, além do mais (transacções comerciais, contratos para fornecimento de serviços, empréstimos e obrigações financeiras, titularidade, posse e uso de propriedade, protecção da propriedade industrial e intelectual, acções in rem relativas a navios e cargas, etc.), "contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party" (cfr. artigo III, d), do Projecto de Resolução relativo à Imunidade de Jurisdição dos Estados, apreciado na sessão plenária de Santiago de Compostela, em 1989, publicado no Annuaire de l’Institut de Droit International, vol. 63, tomo II, pág. 83-120; artigo II, c), da Resolução adoptada na sessão de Basileia, em 1991, publicada no Tableau des Résolutions Adoptées (1957-1991), Instituto de Direito Internacional, Paris, 1992, págs. 220-231).
Essa linha de orientação, que se funda na própria razão de ser da imunidade em causa, tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (cfr. Guido Fernando Silva Soares, "As imunidades de jurisdição na justiça trabalhista brasileira", Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, vol. 88, 1993, págs. 519-552; Jean Salmon, "Immunités et actes de la fonction", Annuaire Français de Droit International, vol. XXXVIII, 1992, págs. 314-357; e Didier Nedjar, "Tendances actuelles du droit international des immunités des États", Journal du Droit International, ano 124.º, n.º 1, Janeiro-Março 1997, págs. 59-102).
O tema foi recentemente objecto de desenvolvida monografia (Isabelle Pingel-Lenuzza, Les Immunités des États en Droit International, Éditions Bruylant / Éditions de L’Université de Bruxelles, Bruxelas, 1997), que, a propósito do não reconhecimento de imunidade de jurisdição em litígios laborais, refere que "a prática tende a admitir (...) que o Estado não beneficia da imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual concluiu um contrato de trabalho". Trata-se de regra aplicável em numerosos Estados de common law, quer por expressamente prevista na lei (Reino Unido, Austrália), quer por ter sido consagrada pela jurisprudência (Estados Unidos da América do Norte, Filipinas), bem como em Estados de civil law, como a Áustria, a Bélgica, a Argentina, a Holanda, como o demonstram as numerosas decisões jurisprudenciais citadas nessa obra. A autora adverte, porém, que esta regra tem sido aplicada com "nuances", revelando o exame das jurisprudências nacionais que se a imunidade é geralmente recusada ao Estado estrangeiro nos casos em que o litígio respeita a um trabalhador que exerce funções subalternas, ela já lhe é frequentemente concedida quando a pessoa em causa ocupa funções mais elevadas. A justificação desta orientação assenta no reconhecimento de que só os contratos de trabalho celebrados com pessoal de grau elevado é que é verdadeiramente susceptível de estar relacionado com o exercício do poder público (jus imperii) e de beneficiar, a este título, da imunidade (obra citada, págs. 355 e 356).
Particularmente significativo é o caso sobre que recaiu o acórdão de 10 de Novembro de 1998 da Secção Social da Cour de Cassation francesa, publicado em Recueil Dalloz, 1999, págs. 157-158. Tratava-se de uma acção de impugnação de despedimento de uma enfermeira / secretária médica da Embaixada dos Estados Unidos da América em Paris, cujas funções consistiam em prestar assistência médica aos empregados, americanos e não americanos, da Embaixada e dos organismos anexos, assim como ao pessoal militar (primeiros socorros, cuidados diversos, relações com os médicos e os hospitais, organização de evacuações sanitárias, assistência médica a visitantes importantes), assegurar o secretariado médico (traduções médicas, relatórios médicos, informações) e assegurar a esterilização e a manutenção dos instrumentos cirúrgicos e de tratamentos médicos. A Cour d’Appel de Versalhes havia decidido reconhecer a imunidade de jurisdição por entender que a autora exercia as suas funções em benefício do pessoal civil e militar americano e não americano colocado em Paris e dos visitantes da Embaixada, "no interesse do serviço público organizado pelos Estados Unidos da América em benefício dos seus agentes, dos seus nacionais e dos cidadãos estrangeiros colocados sob a sua autoridade ou responsabilidade". Diversamente, a Cour de Cassation, revogando o acórdão recorrido, afastou a imunidade de jurisdição por considerar que as funções da autora "não lhe conferiam nenhuma responsabilidade particular no exercício do serviço público diplomático, pelo que o seu despedimento constituiu um acto de gestão" (acta de jure gestionis). Anotando este acórdão, Michel Menjucq (local citado, págs. 158 e 159) assinala que ele corresponde ao entendimento jurisprudencial corrente de que o domínio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros não abrange os actos por eles praticados tal como o poderiam ter sido por um particular, mas apenas os que manifestam a sua soberania. Para a distinção releva a natureza da actividade: a imunidade funciona relativamente a actos de poder público, revelado por um critério formal como a existência num contrato de uma cláusula exorbitante do direito comum, ou relativamente a actos praticados no interesse de um serviço público. Ao invés, o Estado estrangeiro não pode beneficiar da imunidade quanto a um acto qualificado como de gestão (jus gestionis), porque então ele intervém como um qualquer particular. Nessa anotação também se salienta a importância da entidade que é demandada: se for o Estado estrangeiro, cuja imunidade tem por finalidade respeitar o exercício da sua soberania, a imunidade é sempre relativa e depende da natureza da actividade em causa; se, pelo contrário, for demandado um determinado agente diplomático, cuja imunidade, nos termos da Convenção de Viena de 18 de Abril de 1961, tende a proteger a sua pessoa por modo a que possa exercer livremente a sua missão, essa imunidade já será absoluta, cobrindo todos os seus actos. Concluindo a anotação, o respectivo autor sintetiza a actual orientação jurisprudencial francesa na matéria afirmando que "unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes oposta a imunidade do Estado estrangeiro, que pratica um acto de soberania ao demiti-las"; pelo contrário, "as pessoas que apenas têm uma função subalterna no serviço público, não implicando qualquer responsabilidade de direcção do serviço, não são consideradas (...) como actuando no interesse do serviço público; consequentemente, a acção judicial por elas intentada não pode ser entravada pela imunidade do Estado estrangeiro, pois este intervém, ao despedi-las, como um simples empregador privado, praticando um acto de gestão".
Estas considerações, iluminando a concepção actual do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, conduzem à procedência do presente recurso, com revogação do acórdão recorrido.
Recorde-se que a acção foi proposta contra o Estado de Israel, e não contra a pessoa do seu Embaixador, e, como se viu, relativamente aos Estados estrangeiros, a imunidade de jurisdição é sempre relativa, dependendo da natureza da actividade desenvolvida pelo autor.” – fim de transcrição.
Neste mesmo sentido aponta acórdão desta Relação de 21-09-2005
( que , igualmente, atenta a sua relevância para o caso concreto se passa a citar de forma alongada - Processo: 4107/2005-4  ,  Relatora: MARIA JOÃO ROMBA acessível em www.dgsi.pt) segundo o qual :
“ A imunidade jurisdicional de Estados estrangeiros é um princípio de direito internacional público, corolário do princípio da igualdade dos Estados, que traduz a velha máxima par in parem non habet iurisdictionem. Visa garantir o respeito pela soberania. De acordo com ele nenhum Estado pode julgar, através dos seus tribunais, os actos de um outro Estado, a não ser com o respectivo consentimento.
Reconhecida, através do Direito Internacional Consuetudinário que, nos termos do art. 8º nº 1 da CRP, faz parte integrante do direito português, discute-se na doutrina se tal imunidade alguma vez teve carácter absoluto[1], isto é, que se considerasse aplicável a qualquer que fosse a actividade do Estado. Ainda que se admita que alguma vez tivesse tido carácter absoluto, é indiscutível que tem vindo progressivamente a perdê-lo, quer na jurisprudência dos diversos países[2] - que, distinguindo entre actos de gestão pública (acta jure imperii) e actos de gestão privada (acta jure gestionis), limita a imunidade apenas aos primeiros – quer, em alguns casos, em países de commun law, através da adopção de  legislação especial (caso da Grã Bretanha[3] e dos Estados Unidos da América[4]).
A matéria encontra-se em vias de codificação internacional.
Impondo-se a exigência de uma solução internacional unívoca sobre as hipóteses em que o exercício da jurisdição seria admissível, o Conselho da Europa, em 16/5/72, em Basileia, abriu à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados, que adopta o critério de enunciar de modo específico (nos art. 1º  a 14º) as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a excepção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros. Assinada por Portugal em 10/5/79, mas ainda não ratificada, esta Convenção foi ratificada por oito Estados (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido e  Suiça).
No seu artigo 5º  dispõe
“1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.
2 – O parágrafo 1 não se aplica :
a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;
b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou
c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objecto do processo.
3...”.
A nível mundial, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados de que resultou  a  elaboração de  um projecto sobre imunidades jurisdicionais dos Estados e da sua propriedade (Draft Articles  on Jurisdictional Immunities of States and Their Property, o atrás referido projecto de Artigos sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens), que adoptou também o critério de enunciar, nos art. 10º a 16º, os actos sujeitos a restrição à imunidade, cujo princípio é formulado no art. 5º.
O respectivo art. 11º é do seguinte teor:
“1 – Salvo acordo contrário entre os Estados envolvidos, um Estado não pode invocar imunidade de jurisdição perante o tribunal de outro Estado que de outro modo seria competente para um processo relacionado com um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para trabalho prestado, no todo ou em parte, no território desse Estado.
2- O parágrafo 1 não se aplica se:
a) O trabalhador foi recrutado para desempenhar funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental;
b) O objecto do processo é o recrutamento, renovação do contrato ou reintegração de uma pessoa singular;
c) O trabalhador não era nacional nem residente habitual do Estado do foro ao tempo em que o contrato foi celebrado;
d) O trabalhador era nacional do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado; ou
e) O Estado empregador e o trabalhador acordaram, por escrito, em sentido diverso, salvo considerações de ordem pública que confiram aos tribunais do foro jurisdição exclusiva em virtude do assunto objecto do processo”
Como refere Jónatas E. M. Machado[5] “...a CDI decidiu em 7/5/99 criar um grupo de trabalho para retomar a questão das imunidades dos Estados e da sua propriedade. Por seu lado a AG da ONU, na sua resolução 55/150, de 12/12/2000, decidiu estabelecer um comité ad hoc para aprofundar o estudo da questão da imunidade de jurisdição dos Estados e da sua propriedade e o trabalho até agora feito. O seu relatório (A/57/22) foi produzido em 13/2/2002, tendo apresentado algumas alterações aos Draft Articles da CDI da ONU.”
Se bem que o referido processo de codificação internacional ainda não esteja concluído, ele é revelador do crescente peso que vem assumindo, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados.
Temos pois como adquirido que a teoria restritiva da imunidade é hoje dominante.      
Com a adopção desta teoria, a questão essencial passa por saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se se estamos perante actos jure imperii ou jure gestionis.
Todavia, não é pacífico o critério distintivo entre actos jure imperii e actos jure gestionis.
Dominante é o critério que atende à natureza do acto, de acordo com o qual  actos jure imperii são, sem dúvida, os actos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e actos jure gestionis, actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular. É certo que alguns Estados defendem que se dê idêntico valor ao critério do fim, como refere Eduardo Correia Batista na obra “Direito Internacional Público”, Almedina, 2004, II vol., a pag. 144. Na nota 279 refere este autor que o art. 2º nº 1 al. c) do Projecto da Comissão de Direito Internacional  define “transacção comercial” em função da sua natureza e não do fim a que se destina e, mais adiante, acrescenta “depois de uma cuidadosa resenha da jurisprudência interna sobre a questão, o grupo de trabalho da CDI, na sua reapreciação da questão, reconheceu que o critério da natureza era predominante, embora, por vezes, o do fim ainda recebesse algum acolhimento.”
Segundo Jónatas Machado (obra referida, pag. 163) “A imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada por uma parte substancial da doutrina como a mais consentânea com a tendência actual no sentido da responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extra-contratuais, causados aos particulares. Com efeito, tende a considerar-se que a imunidade não pode ser invocada, nomeadamente no caso de transacções comerciais, contratos de trabalho, responsabilidade civil por acções ou omissões danosas[6], questões de propriedade imobiliária, mobiliária ou intelectual, participações sociais, utilização de embarcações para fins não oficiais, sempre que os elementos de conexão relevantes se encontrem localizados no território do Estado do foro.”
Também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, a teoria da imunidade restrita tem vindo, ultimamente, a obter acolhimento mais alargado (cfr. ac. STJ 11/5/84, BMJ 337, pag. 305; STJ 30/1/91, BMJ 403, pag.267; STJ 4/2/97, CJ STJ, ano V, T.I, pag. 87; STJ 13/11/2002, CJ STJ ano X, T. III, pag. 276; ac. RL de 13/10/2000, disponível na Internet  e RL 26/6/2004, disponível na Internet).
Merece-nos referência especial o ac. do STJ de 13/11/2002, publicado no CJ STJ como referido e no site do ITIJ, que relativamente à questão de saber se, num determinado litígio laboral, está em causa um acto de soberania ou um acto de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas ou, de algum modo, funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação. “A natureza das actividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular.” É que, como refere Isabelle  Pingel Lenuzza (obra citada, pag. 134) “um serviço do Estado, investido de uma missão de soberania pode empregar certas pessoas que não participam, de forma alguma, no cumprimento dessa missão” – fim de transcrição.
Aqui se perfilham as orientações expendidas em ambos os arestos.
Retornando ao caso concreto afigura-se que as funções exercidas pela autora tinham cariz  subalterno.
Recorde-se que se teve como assente que :
1 – Em 11 de Setembro de 2001, a Autora passou a exercer sob as ordens e direcção do Consulado do Réu na Região Autónoma da Madeira tarefas nas suas instalações administrativas.
2 – O acordo entre ambos foi pelos mesmos denominado de “contrato de trabalho”.
3 – Sendo que as partes estabeleceram que se regia pela legislação 
Portuguesa.
4 – A Autora foi qualificada como empregada local do Consulado.
5 – A Autora exercia as tarefas de âmbito administrativo referidas no documento constante de fls. 85/86 cuja cópia aqui se dá por inteiramente transcrita.
6 – Tais tarefas diziam respeito ao funcionamento burocrático do Consulado.
Como tal, não se vislumbra, com todo o respeito por entendimento diverso, como é que lhe pode ser reconhecida  posição de direcção na organização do serviço público do réu ou de desempenho de funções de autoridade ou de representação.
Na realidade , as funções da Autora eram de âmbito administrativo.
Assim, não se pode concluir que as funções para que a Autora foi contratada  eram de direcção, quando na realidade tinham cariz , carácter subalterno.
A autora cumpria tarefas subalternas, exercendo-as sob a direcção da entidade empregadora.
E evidentemente não eram funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental (jus imperi), não se vislumbrando, igualmente, que implicassem qualquer responsabilidade de direcção do serviço em causa.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, impõe-se o provimento do recurso, cumprindo considerar inexistente a invocada imunidade jurisdicional.
Desta forma, cabe revogar a decisão em causa a fim de ser substituída por outra que considere que não se verifica a invocada imunidade jurisdicional e consequentemente profira (tendo em conta a supra citada matéria de facto e outra que se entenda aditar) decisão nos autos, nos moldes que se reputarem convenientes.
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Em face do exposto, acorda-se em revogar a decisão em apreço, que deve ser substituida por outra que considere que não se verifica a invocada imunidade jurisdicional e se profira (tendo em conta a supra citada matéria de facto e outra que se entenda aditar, tendo em atenção o disposto no artigo 57º do CPT) decisão nos autos, nos moldes que se reputarem convenientes.
Custas pela Ré.
DN. (processado e revisto pelo Relator – nº 5º do artigo 138º do CPC).

Lisboa, 16 de Maio de 2012

Leopoldo Soares
José Eduardo Sapateiro
Maria José Costa Pinto.
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[1] Cabe salientar que o presente processo foi intentado em 26.6.2009, pelo que lhe logra aplicação o CPT aprovado pelo DL nº 480/99, de 9 de Novembro.
[2] O qual estabelece no seu nº 1º:
“se o réu não contestar , tendo ou sido ou devendo considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa , ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito.
[3] Que mereceu o seguinte sumário:
“I - A regra consuetudinária de direito internacional segundo a qual os Estados estrangeiros gozam de imunidade de jurisdição local quanto às causas em que poderiam ser réus não foi revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, uma vez que, na sua formulação mais recente, essa regra não contraria nenhum dos preceitos fundamentais da Constituição.
II - Essa formulação conforme ao sistema constitucional português é a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo dessa imunidade os actos praticados jure gestionis; isto é, a imunidade não abrange os actos praticados pelo Estado estrangeiro tal como o poderiam ter sido por um particular, mas apenas os que manifestam a sua soberania.
III - Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designadamente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional.
IV - Relativamente aos litígios laborais, designadamente acções fundadas em despedimento ilícito, essa prática não tem reconhecido a imunidade do Estado estrangeiro quando o trabalhador exerce funções subalternas, e não funções de direcção na organização do serviço público do réu ou funções de autoridade ou de representação “ – fim de transcrição.

[i] Nas palavras do Conselheiro Jacinto Rodrigues Bastos:
“As conclusões consistem na enunciação, em forma abreviada, dos fundamentos ou razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso…
Se as conclusões se destinam a resumir, para o tribunal ad quem, o âmbito do recurso e os seus fundamentos pela elaboração de um quadro sintético das questões a decidir e das razões porque devem ser decididas em determinado sentido, é claro que tudo o que fique para aquém ou para além deste objectivo é deficiente ou impertinente” – Notas ao Código de Processo Civil, volume III, Lisboa, 1972, pág 299.
Como tal transitam em julgado as questões não contidas nas supra citadas conclusões.
Por outro lado, os tribunais de recurso só podem apreciar as questões suscitadas  pelas partes e decididas pelos Tribunais inferiores, salvo se importar conhecê-las oficiosamente ( vide vg: Castro Mendes , Recursos , edição AAFDL, 1980, pág 28, Alberto dos Reis , CPC, Anotado, Volume V, pág 310 e acórdão do STJ de 12.12.1995, CJSTJ, Tomo III, pág 156).