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CAUTELA SOCINIANA
LEGÍTIMA
Sumário
I – A intangibilidade da legítima é relativa, uma vez que, no fundo, o que a lei reserva imperativamente ao herdeiro legitimário é apenas e só um determinado valor aritmético do património hereditário reconstruído que se apurará, no momento da abertura da sucessão, em conformidade com o critério estabelecido no artigo 2162º do Código Civil, onde se incluem o relictum e as liberalidades realizadas em vida pelo de cujus. II - O legislador no artigo 2164º do Código Civil não preveniu os termos do funcionamento da cautela sociniana quando existam vários herdeiros legitimários e, mormente, quando se verifique entre eles desacordo relativamente ao cumprimento ou não do legado, o mesmo é dizer quanto ao exercício - ou não - desta faculdade. III – São aplicáveis ao exercício da faculdade prevista no artigo 2164º, em caso de pluralidade de herdeiros legitimários, as regras relativas à compropriedade ( artsº 1403º a 1413º do Código Civil ), vigorando a regra constante do artº 1405º, nº 1, do Código Civil, segundo a qual os contitulares exercem em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular ; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas, encontrando-se este princípio encontra-se em estreita consonância com o consignado no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil. IV - Esta circunstância não prejudicará, em caso algum, o direito que assiste, à partida, a qualquer dos herdeiros legitimários à intangibilidade quantitativa da sua legítima subjectiva – reduto inexpugnável em relação ao qual a vontade do de cujus terá inexoravelmente que soçobrar. V - Estando em causa, apenas e só, a defesa qualitativa – e não quantitativa - da legítima, carece de consistência prática e jurídica o recurso ao instituto do cautela sociniana quando se encontra plenamente salvaguardada a legítima subjectiva do único herdeiro legitimário interessado no não cumprimento do encargo. VI - Constituindo um vector essencial do nosso sistema jurídico-sucessório o respeito pela vontade do autor da sucessão – a quem exclusivamente pertencia todo o património objecto da partilha –, e pela liberdade de testar enquanto princípio basilar no domínio jurídico-privado, não há fundamento substantivo capaz de explicar a protecção da reserva destinada a cada um dos herdeiros legitimários para além do valor que, no âmbito da sua legítima subjectiva, lhe virá efectivamente a caber. VII - O que significa que não existe, neste sentido, ofensa à legítima, para efeitos da aplicação do instituto previsto no artigo 2164º do Código Civil, quando o herdeiro legitimário interessado em não cumprir o legado ( oferecendo em troca a quota disponível ), não tenha efectiva necessidade de recorrer a este expediente técnico-formal para receber aquilo que imperativamente lhe está reservado por lei. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).
I – RELATÓRIO.
Requereu D. inventário por óbito de J. e mulher B., falecidos em 25 de Março de 1998 e 25 de Maio de 1998, respectivamente, que eram pai e madrasta do requerente.
Foi nomeada cabeça de casal M., a qual prestou juramento e declarações conforme fls. 60 a 61.
Veio a cabeça de casal apresentar a relação de bens de fls. 64, donde constam, como activo, um automóvel, a nua-propriedade de um imóvel e o respectivo recheio e, do lado passivo, o direito de usufruto vitalício sobre o mesmo imóvel em favor de M..
Juntou o testamento de fls. 65 a 66, donde consta : “ No dia dezasseis de Fevereiro de mil novecentos setenta e oito, na Secretaria Notarial do Funchal, perante mim ( … ) compareceu B. ( … ) a qual declarou : Que é casada segundo o regime de separação de bens com J. e que não tem descendentes, sendo também falecidos os seus ascendentes. Assim, lega à sua afilhada M., solteira, consigo residente, todo o recheio ( móveis e utensílios ) que à hora da sua morte existir dentro da sua residência. ( …) “.
Juntou o testamento de fls. 67 a 68, donde consta : “ Aos vinte e nove dias do mês de Julho de mil novecentos e setenta e seis, na Secretaria ( … ) compareceu a outorgante B., ( … ), casada com J. , no regime imperativo de separação de bens, filha de… . ( … ) Disse que faz seu o testamento por forma que segue : Que constitui herdeira universal de todos os seus bens, direitos e acções, sua afilhada M., solteira, maior, com ela residente. ( … ) “.
Juntou o testamento de fls. 69 a 70, donde consta : “ Aos oito do mês de Fevereiro de mil novecentos e noventa e seis, no … Cartório Notarial do Funchal, perante mim ( … ) compareceu J. ( … ) Disse : Que é casado em regime imperativo de separação de bens com B. em segundas núpcias e tem um filho do seu primeiro casamento. Que revogo qualquer testamento anteriormente feito nomeadamente o que fez em dezanove de Agosto de mil novecentos e setenta e seis, lavrado a folhas noventa e três verso no livro dezassete deste Cartório. Que por conta da sua quota disponível lega à sua afilhada M. o usufruto vitalício do seu prédio urbano situado ao…, com todo o seu recheio e que é a casa da sua residência. Que a sua afilhada é solteira e residente na referida morada ( … ) “.
Após a realização de conferência de interessados foi dada a forma à partilha nos seguintes termos : “ Procede-se a inventário por morte de J. e B.. Para a forma à partilha importa atender ao seguinte : 1 – Os inventariados faleceram, respectivamente, em 25 de Março de 1998 e 25 de Maio de 1998. 2 – Eram casados um com o outro em segundas núpcias e segundo o regime de separação de bens. 3 – A inventariada deixou dois testamentos : um instituindo M. herdeira universal de todos os seus bens, outro legando-lhe todo o recheio da sua residência. 4 – O inventariado deixou testamento pelo qual lega, por conta da quota disponível, usufruto vitalício sobre o prédio com todo o seu recheio. 5 – Existe passivo. 6 – O inventariado deixou um filho do seu primeiro casamento. 7 – A inventariada não deixou ascendentes nem descendentes. Assim, deve proceder à partilha do seguinte modo : Somam-se os valores de todos os bens relacionados acrescido do aumento proveniente das licitações e subtrai-se o passivo aprovado. Herança de J.. Divide-se em três partes iguais, constituindo uma delas a quota disponível. As restantes constituem a legítima, sendo, por sua vez dividida em duas partes iguais, cabendo metade ao cônjuge sobrevivo e a outra metade ao filho do inventariado. Por força da herança de J. dar-se-á pagamento ao legado que instituiu, na certeza de que, se o valor deste exceder a quota disponível, poderá o herdeiro legitimário lançar mão do mecanismo legal previsto no artigo 2164º do Código Civil. Se, pelo contrário, não a esgotarem, atribuir-se-á o que remanescer ao herdeiro legitimário do interessado. Herança de B.. A inventariada instituiu a M. sua herdeira universal por testamento de 1976. A considerar ainda o legado do recheio da sua residência. A composição dos quinhões deverá ser feita atendendo às licitações e ao acordado na conferência de interessados. O passivo deverá ser pago por ambos os interessados na proporção dos respectivos direitos. “.
( fls. 176 ).
Nesta sequência foi elaborado o mapa de partilha de fls. 178 a 179.
Veio a cabeça de casal M. apresentar o requerimento de fls. 180 a 181, alegando essencialmente que para poder decidir sobre a bondade ou não do funcionamento da cautela sociniana, é indispensável determinar e fazer constar do Mapa de Partilha o valor do usufruto, não sendo, sem isso, possível verificar se a legítima subjectiva do reclamante foi atingida com o legado do usufruto.
Conclui requerendo que nas operações de partilha do respectivo mapa seja referido o valor do legado de usufruto a favor da ora reclamante.
Foi proferido despacho a fls. 182 deferindo o requerido.
Nesta sequência, procedeu-se ao cálculo do direito ao usufruto relativamente à verba nº 10, considerando-se a propriedade plena com o valor de € 50.000,00 ; o usufruto com o valor de € 15.000,00 ( 40% ) e a nua propriedade com o valor de € 35.000,00 ( cfr. fls. 183 ).
Seguidamente veio o interessado D., na sua qualidade de herdeiro legitimário de J. e tendo em conta que a quota disponível é igual a 1/3, ou seja, 33,333…, sendo inoficioso o legado por ofender a legítima do herdeiro legitimário, ao abrigo do disposto no artº 2164º do Código Civil, oferecer à legatária M. , em substituição do legado do usufruto, a quota disponível do inventariado.
Notificada, veio a cabeça de casal M. responder, a fls. 185 a 187, alegar que o legado não ofende a legítima do herdeiro legitimário, uma vez que o valor do usufruto é de € 15.000,00, portanto menor do que o quinhão da legatária, que é de € 34.000,00.
Respondeu o interessado D. pugnando pelo indeferimento do requerido ( cfr. fls. 188 ).
Foi proferido o despacho de fls. 191 a 192, nos seguintes termos : “ Elaborado o mapa de partilha vieram os interessados pronunciar-se sobre o carácter inoficioso, ou não, da liberalidade do inventariado a favor de M.. Resulta dos autos que : O inventariado deixou testamento pelo qual lega, por conta da quota disponível, usufruto sobre o prédio com todo o seu recheio. A quota indisponível da herança do inventariado J. tem o valor de € 17.000,00. Foi feito o cálculo do valor do usufruto : 40% - € 15.000,00 ( cfr. fls. 472 ). Conforme ensina Lopes Cardoso (in Partilhas Judiciais, Volume II, 4ª edição, pag. 404) importa distinguir se a liberalidade foi feita a estranhos ou a herdeiros legitimários: ali pode haver excesso da parte disponível do inventariado, aqui excesso da quota do respectivo interessado. Ora, in casu, tratando-se de legado a favor de estranho, o mesmo deverá ser imputado na quota disponível do testador. Assim, afigura-se-nos que em face dos cálculos efectuados o legado do usufruto a M. ( que vale € 15.000,00 ) não é inoficioso, uma vez que não ultrapassa o valor da quota disponível do testador ( € 17.000,00 ). Pelo exposto, e sem necessidade de tecer quaisquer outras considerações, atendendo ao que fica dito, deverá ser alterado o mapa de partilha, nos termos requeridos a fls. 480. “.
Veio o interessado D. apresentar o requerimento de fls. 193, onde referiu que existe um erro no mapa de partilha já que 40% de 50.000,00 não são 15.000,00, mas sim 20.000,00. Pede a respectiva rectificação.
Foi proferido o despacho de fls. 196, datado de 31 de Março de 2011, nos seguintes termos : “ No mapa elaborado para a determinação no valor do usufruto elaborado pela secção consta o seguinte : propriedade plena - € 50.000,00 ; usufruto 40% - € 15.000,00 ; Nua propriedade - € 35.000,00. Verifica-se, assim, que existe um erro de cálculo já que 40% de 50.000,00 não são 15.000,00 mas sim 20.000,00. Trata-se de erro de cálculo ou de escrita que pode, e deve, ser rectificado. Consequentemente, nos termos do disposto no artº 667º nº 1 do CPC ordena-se a rectificação do valor do usufruto que é o de € 20.000,000 e não de € 15.000,00 como erradamente foi escrito no mapa de partilha elaborado pela secção. “.
Procedeu-se a novo cálculo, rectificando-se os valores em conformidade com o ordenado.
Foi proferido o despacho de fls. 202, datado de 30 de Junho de 2011, nos seguintes termos : “ Corrigido o valor do usufruto legada à interessada M., cumpre retirar as conclusões do cálculo feito. Conforme se disse no despacho datado de 22 de Fevereiro de 2011, importa distinguir se a liberalidade foi feita a estranhos ou a herdeiros legitimários : ali pode haver excesso da parte disponível do inventariado, aqui excesso da quota do respectivo interessado. Ora, in casu, tratando-se de legado a favor de estranho, o mesmo deverá ser imputado na quota disponível do testador. Assim, afigura-se-nos que em face dos cálculos efectuados, o legado do usufruto a M. ( que vale € 20.000,00 ) é inoficioso uma vez que ultrapassa o valor da quota disponível do testador ( € 17.000,00 ). Consequentemente, nos termos do disposto no artigo 2164º do Código Civil, o herdeiro legitimário tem a faculdade de cumprir o legado ou entregar ao legatário tão somente a quota disponível. Pelo exposto, declara-se inoficioso o legado do usufruto e defere-se a requerida substituição do legado pela quota disponível do inventariado. “.
Apresentou a cabeça de casal recurso desta decisão, o qual foi admitido como de agravo ( cfr. fls. 204 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 1 a 10, formulou a agravante, as seguintes conclusões :
a) O inventariado J. , faleceu em 1998, no estado de casado em segundas núpcias dele, primeiras dela, deixou testamento, feito em 1996, onde legou à ora requerente o usufruto vitalício do prédio urbano, com o seu recheio, o qual é a residência da legatária.
b) Interessados na herança eram, então, (1) a viúva B. , (2) o filho único D., ambos herdeiros legitimários – art. 2.157º do Código Civil – e (3) a ora recorrente, afilhada do testador, legatária daquele usufruto.
c) A viúva, B. faleceu logo a seguir ao marido, em 25 de Maio de 1998, no estado de viúva, sem ascendentes, nem descendentes.
d) Esta B. fez dois testamentos, em Julho de 1976 e Fevereiro de 1978, instituindo a ora recorrente sua herdeira universal e legando-lhe o usufruto do referido prédio, com o seu recheio.
e) A legatária tinha, na data do óbito do primeiro inventariado, 56 anos de idade e, actualmente, tem 70 anos de idade.
f) Ao prédio foi atribuído o valor 50.000€ e o valor total da herança é de 51.000€, o valor do usufruto, à data do óbito do inventariado marido, era de 40% do valor do prédio (20.000€), e é de 30%, se considerarmos a idade actual da legatária.
g) Daqui resulta que a legítima objectiva ou global na herança dos autos (os 2/3 do total da herança) se divide em partes iguais pelo cônjuge e pelo filho, ou seja, metade para cada um deles (1/3 para cada).
h) Esta metade da legítima (1/3 do total), aquela que cabe a cada um dos herdeiros legitimários dos autos, constitui a legítima subjectiva de cada um destes.
i) A legítima do recorrido é de 17.000,00€.
j) Dispõe o artigo 2.164º do Código Civil: “Se, porém, o testador deixar usufruto ou constituir pensão vitalícia que atinja a legítima, podem os herdeiros legitimários cumprir o legado ou entregar ao legatário tão-somente a quota disponível”
k) O legislador não diz “se o usufruto for inoficioso” mas usa uma expressão com significado diferente “usufruto que atinja a legítima”, mostrando quem tem legitimidade para fazer essa escolha que o artigo 2.164º faculta.
l) A letra da lei torna claro que se trata dum direito subjectivo dos herdeiros legitimários, direito que só existe se a legítima subjectiva do reclamante for atingida com o legado do usufruto.
m) O artigo 2.164º não diz que os herdeiros legitimários têm direito a essa cautela se o usufruto exceder a quota disponível, mas, sim, se o usufruto atingir a legítima.
n) Só o herdeiro legitimário cuja legítima (subjectiva) for atingida, é que poderá socorrer-se dessa cautela.
o) Os herdeiros legitimários são dois e um deles, o cônjuge sobrevivo nunca quis usar tal cautela sociniana e a sua sucessora, a ora recorrente, também não quer!
p) A cautela sociniana, porém, foi (ilegalmente) deferida com fundamento de que o usufruto é inoficioso, isto é, excede a quota disponível do testador.
q) A legítima subjectiva do único herdeiro que requer a cautela sociniana é de 17.000€ e esta só será “atingida” se os restantes 34.000€ não forem suficientes para satisfazer o encargo do usufruto.
r) Assim se vê que o pagamento ou atribuição do usufruto – são € 20.000 – não atinge a legitima desse herdeiro.
s) A legatária era “afilhada” dos testadores, com ele viveu toda a vida e foi com o seu trabalho que eles sobreviveram na velhice.
t) A decisão de que se recorre conduz, afinal de contas, a um resultado aberrante, qual é o de que, no momento em que um dos herdeiros legitimários vem requerer a cautela sociniana, o agora único co-interessado na herança tem direito a 2/3 da herança (34.000€), mas, apesar disso, o tribunal retira-lhe um bem, que vale 20.000, mais do que o valor a que o recorrido tem direito!.
u) Acresce que os inventariados, sabendo da pobreza e incapacidade económica da recorrente, sua afilhada, quiseram garantir-lhe agasalho e habitação enquanto fosse viva, proporcionando-lhe o usufruto da sua habitação, ao passo que o recorrido, esse, vive na Inglaterra há muitíssimos anos, onde trabalha e é gerente de hotel, só com dificuldade se desloca à Madeira e é óbvio que apenas pretende a casa para fazer obras e usá-la, talvez, em férias.
v) Ou seja, o deferimento da cautela sociniana coloca a recorrente numa situação de desespero, para permitir um luxo ao recorrido.
w) Donde resulta que, mesmo que ao recorrido coubesse o direito à cautela sociniana – o que não se concede –, o uso de tal pretenso direito conduziria, neste caso concreto, a resultados imorais e injustos, ofensivos das legítimas expectativas da ora recorrente, o que constitui um abuso de direito.
x) Esta decisão ora recorrida ofende o disposto nos artigos 334º, 2.139º, 2.159º e 2.164º todos do Código Civil.
Contra-alegou o restante interessado, pugnando pela improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
Foi proferido despacho de sustentação conforme fls. 45.
II – FACTOS PROVADOS. Os indicados no RELATÓRIO supra.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar :
Pressupostos do exercício da cautela sociniana ( artigo 2164º do Código Civil ). Pluralidade de herdeiros legitimários. Defesa qualitativa da legítima. Alegado abuso de direito. Passemos à sua análise :
Da figura da cautela sociniana.
Historicamente, a cautela sociniana parte da seguinte situação de facto :
Um nobre florentino tinha três filhos.
Entendeu deixar ao mais novo bens que excediam a quota que lhe cabia.
Impôs-lhe, no entanto, a obrigação de, caso viesse a falecer sem deixar filho varão, transmitir os bens recebidos aos irmãos que lhe sobrevivessem.
Como alternativa à sujeição a este fideicomisso, o beneficiário poderia optar por receber apenas a sua legítima[1].
O jurista Mariano Socino Gualdense ( 1482-1566 ), no século XVI, foi o defensor desta solução jurídica que constitui uma defesa da instituição legitimária de raiz, originando precisamente o título de cautela sociniana[2].
Dispunha, sobre esta figura, o antecedente artigo 1788º do Código Civil de Seabra : “ Se o testador dispozer de certo usufructo, ou de alguma pensão vitalícia, cujo valor exceda a quota disponível, poderão os herdeiros legitimários cumprir o legado, ou entregar ao legatário tão somente a quota disponível. “.
Estabelece o actual artigo 2163º do Código Civil vigente, sob a epígrafe “ Proibição de encargos “ : “ O testador não pode impor encargos sobre a legítima, nem designar os bens que a devem preencher, contra a vontade do herdeiro. “.
Acrescenta, neste contexto, o artigo 2164º : “ Se, porém, o testador deixar usufruto ou constituir pensão vitalícia que atinja a legítima, podem os herdeiros legitimários cumprir o legado ou entregar ao legatário tão sómente a quota disponível. “.
A cautela sociniana consagra fundamentalmente um mecanismo de defesa da legítima, no plano qualitativo, que é conferido ao herdeiro legitimário.
Com efeito,
Prevendo a lei dispositivos destinados a evitar as violações do autor da sucessão à reserva hereditária dos sucessíveis legitimários[3], este instituto permite-lhes libertar a legítima do legado que a afecte, entregando ao legatário a quota disponível da herança[4].
Escreve, a este propósito, José Gonçalves Proença in “ Direito das Sucessões “, pags. 133 a 134 : “ Trata-se do princípio da intangibilidade da legítima que, na opinião da generalidade da doutrina, confirma a natureza “ reservatária “ da quota legitimária, como parte indisponível da herança, em contraposição à concepção obrigacional ou dever de integração da quota pelo de cujus com actos dispositivos favoráveis aos legitimários. ( … ) Não obstante, porém, a intangibilidade legal da “ legítima “, o legislador não ignora que em alguns casos o testador se sinta tentado a sobrecarregar os legitimários com encargos que afectam valorativamente aquela intangibilidade. E é precisamente para atender a tais situações que surge a “ cláusula “ sub judice, tal como está definida na lei. O que, por outras palavras, significa que se o valor do legado ( usufruto ou pensão ) implicar um encargo que afecta a “ legítima “ ( sendo, portanto, de valor superior à quota disponível do de cujus ) o legitimário pode recusar-se a cumprir o legado entregando ao legatário toda a quota disponível de de cujus a “ troco “ de manter integra a sua legítima. Ou, como escreve um ilustre autor, o legitimário pode converter o legado de usufruto ou pensão vitalicia em “ deixa da quota disponível “ que será entregue ao respectivo beneficiário, ficando o legitimário com a sua “ legítima “ desonerada de qualquer encargo. Processo complementar, como se vê, de defesa da intangibilidade da legítima hereditária. “.
A intangibilidade da legítima.
Encontramo-nos aqui, portanto, no âmago da temática que se prende, em geral, com a denominada intangibilidade – quantitativa ou qualitativa[5] - da legítima, legalmente assegurada no artigo 2156º do Código Civil[6].
E cumpre, a este propósito, referir que esta intangibilidade é relativa[7].
No fundo,
O que a lei reserva imperativamente ao herdeiro legitimário é apenas e só um determinado valor aritmético[8] do património hereditário reconstruído[9] que se apurará, no momento da abertura da sucessão, em conformidade com o critério estabelecido no artigo 2162º do Código Civil, onde se incluem o relictum e as liberalidades realizadas em vida pelo de cujus[10].
A sua posição é delimitada por um determinado valor base imposto à liberdade de disposição do autor da sucessão, o qual fica impedido de retirar a relevância económica nestes termos estabelecida à posição do legitimário - seu herdeiro forçado[11].
A este respeito, prevê-se no artigo 2164º do Código Civil que a deixa de usufruto ou a constituição de pensão vitalícia possa “ atingir a legítima “.
Acerca deste conceito importará fazer referência à abordagem realizada por Carlos Pamplona Corte Real in “ Curso de Direito das Sucessões “, Volume II, pags. 272 a 282 , onde pode ler-se : “ …qual o sentido exacto da expressão “ atingir a legítima “, em princípio não sobreponível à expressão “ ofender a legítima “ ( artigo 2168º ) ( … ) Em abstracto, poder-se-ia dizer que um encargo, tal como o previsto no artigo 2164º, atinge a legítima, quando o património ou capital hereditário, integral ou parcialmente afecto à sua efectivação, ultrapasse, “ de per si “ o montante da quota disponível. Relevaria aqui a distinção entre capital e rendimento, e seria do montante daquele, onerado, que dependeria a aplicabilidade do instituto da cautela sociniana. Outra solução possível passaria pelo recurso a critérios de quantificação dos próprios encargos. ( … ) A operação de quantificação de encargos a que se reporta o artigo 2164º, para se saber se atingiriam a legítima, para além de certa dose de arbítrio, face à alea que envolvem, como que reconduziria, no fundo, a figura da cautela sociniana ao instituto da inoficiosidade, com os riscos inerentes, ainda, à controversa legitimidade da transposição dos ditos critérios fiscais e processuais para o plano substantivo. ( … ) Em conclusão, a cautela sociniana tem predominantemente preocupações qualitativas. A “ quantificação “ dos encargos, sendo possível mediante o recurso a regras específicas, fiscais ou processuais, só interessa quando existam outras disposições imputáveis na quota disponível, para apurar quais as disposições redutíveis, e ou a exequilibilidade da própria cautela sociniana – o que só acontecerá, como se sustentou, se a parte livre ou liberta da quota disponível puder abarcar, quantitativamente, o valor do encargo. “.
Sobre este mesmo ponto, sublinha Rabindranath Capelo de Sousa, in “ Lições de Direito das Sucessões “, Volume I, pag, 163, nota 340 que “ …é pressuposto da aplicação da cautela sociniana o prejuízo da legítima, em termos objectivos e com o recurso aos critérios gerais de fixação do valor de raiz dos bens e dos seus encargos. Por outro lado, e em conjugação com o artigo 2163º, é de presumir, perante as expressões “ encargo sobre a legítima “ e “ designar os bens que a ( legítima ) devam preencher “ do artigo 2163º e os termos “ porém “ e “ atinja a legítima “, que na hipótese do artigo 2164º os encargos incidem prioritariamente sobre a quota disponível apenas extravasando para a legítima. “.
Situação de pluralidade de herdeiros legitimários chamados à sucessão.
Por outro lado,
cumpre salientar que
o legislador no artigo 2164º do Código Civil não preveniu os termos do funcionamento da cautela sociniana quando existam vários herdeiros legitimários e, mormente, quando se verifique entre eles desacordo relativamente ao cumprimento ou não do legado, o mesmo é dizer, quanto ao exercício - ou não - desta faculdade.
Escreve, sobre este ponto, Luís Carvalho Fernandes in “ Lições de Direito das Sucessões “, pag. 386 : “ Perante o silêncio da lei, havendo uma situação de contitularidade – embora específica – entendemos correcto o recurso ao regime da compropriedade, cuja aplicação, a título subsidiário, é legitimado pelo artigo 1404º. “.
No mesmo sentido, referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume VI, pag. 266 a 267 : “ Muito controvertida tem sido, entretanto, quer na doutrina portuguesa, quer na literatura estrangeira, a questão de saber como deve agir-se quando, entre os co-herdeiros legitimários, haja divergência de opções sobre a solução a adoptar ( cfr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, IX, pag. 760 ). A solução mais avisada parece ser a de, na falta de acordo, aplicar à divergência entre co-herdeiros as regras próprias da contitularidade de direitos sobre a mesma coisa ( arts. 1406º e segs ). Solução especial foi adoptada no artigo 550, II, do Código italiano. “.
Sobre esta mesma temática, escreve Manuel da Costa Martins, in “ A Cautela Sociniana ( sentido e limites ) “, pags. 59 a 60 : “ Os herdeiros legitimários podem ser vários e nem todos serem unânimes quanto à conduta a ter face à disposição testamentária que institui um legado de usufruto ou pensão. Uns poderão querer cumprir o legado, outros, entregar ao legatário a quota disponível. Ou se entende que a opção tem carácter individual e havendo vários herdeiros legitimários, só por acordo unânime a deixa testamentária ou a entrega da quota disponível, se tornará eficaz, ou ainda, a fim da disposição neste caso se tornar eficaz, a falta de acordo unânime é superada pelo tribunal. Partindo do princípio de que os herdeiros legitimários têm direito à herança considerando-os individualmente, entendem alguns não haver necessidade de acordo unânime. Outro admitem, tratando-se de um direito indivisível não havendo acordo unânime deverá recorrer-se ao tribunal. Considerando que não se pode obrigar o legatário a dividir o seu direito recebendo parte com um encargo – porque vários herdeiros optaram nesse sentido – e parte em nua proprieadade – porque outros assim entenderam – admitem outros autores ser impossível considerar o carácter individual da opção. ( … ) pensamos que a nossa lei não referindo expressamente a necessidade de acordo unânime admite não ser forçoso existir tal exigência. De qualquer modo, podemos sempre recorrer ao artigo 2091º do Código Civil, como princípio a aplicar. ( … ) Os principais elementos disponíveis para esse fim são fundamentalmente : a) a interpretação do testamento b) a natureza da deixa testamentária c) O interesse dos herdeiros legitimários. Na medida em que o artigo 2164º é expressão de uma harmonia possível entre a vontade do autor do testamento e o interesse dos herdeiros legitimários, tendo em consideração o conteúdo da disposição testamentária, o cumprimento do legado, ou a entrega da quota disponível, só terá execução a solução que não colida com a vontade e interesses subjacentes à própria disposição testamentária. “.
Refere, por seu turno, Jorge Duarte Pinheiro in “ O Direito das Sucessões Contemporâneo “, pag. 397 : “ A faculdade que é prevista neste artigo ( 2164º ), designada por cautela sociniana, pode ser exercida por cada legitimário em separado e independentemente de serem várias as deixas que atingem a legítima “. Norteados por estas considerações de ordem geral
Debrucemo-nos, agora, sobre o caso em apreço.
A situação sub judice pode resumir-se nos seguintes termos :
À sucessão aberta por óbito de J. foram chamados, como herdeiros legitimários, a esposa B. – com quem era casado no regime imperativo da separação de bens - e o filho do de cujus D. , ora agravado.
O autor da sucessão fez testamento em favor da sua afilhada M. – ora agravante – a quem legou “ por conta da sua quota disponível, o usufruto vitalício do seu prédio urbano situado…, com todo o seu recheio e que é a casa da sua residência…”.
Da mesma forma, B. elaborou testamento no qual institui a afilhada M. única e universal herdeira.
B. veio a falecer dois meses após o óbito do marido J..
Do património hereditário de J., dito relictum, constam, como activo, um automóvel, a nua propriedade do imóvel referido e respectivo recheio, no valor total de € 51.000,00.
O valor do usufruto vitalício constituído por via testamentária em favor da agravante ascende a € 20.000,00, sendo atribuído à propriedade plena o valor de € 50.000,00.
Estes montantes foram aceites pelas partes, que não os impugnaram, sendo nessa medida indiscutíveis.
Resta apurar se, neste condicionalismo, funcionará - sob impulso do ora agravado - o instituto da cautela sociniana previsto no artigo 2164º do Código Civil, possibilitando a um dos herdeiros legitimários – o filho do de cujus – entregar à legatária a integralidade da quota disponível, obviando por essa via ao respectivo cumprimento e libertando desse modo a legítima objectiva.
Respondeu afirmativamente a esta questão o juiz a quo considerando que o facto do valor do usufruto constituído por testamento - € 20.000,00 – superar os limites da quota disponível – in casu, € 17.000,00 – legitimava, sem necessidade de qualquer outra análise, o deferimento da pretensão do herdeiro legitimário em causa.
A ofensa à legítima objectiva, enquanto reserva intocável que se sobrepõe à vontade do testador, justificou básica e essencialmente a decisão que veio a ser proferida em 1ª instância.
Discordamos, porém, deste entendimento. Vejamos :
Foram chamados à sucessão dois herdeiros legitimários – e não apenas um.
Conforme se salientou supra, a lei não preveniu a hipótese do exercício da faculdade em que se traduz a cautela sociniana quando há mais do que um herdeiro legitimário – e, em especial, face ao desacordo sobre o cumprimento, ou não, do encargo.
Esta questão ganha particular acuidade no caso concreto na medida em que a herdeira legitimária de J. – o cônjuge B. – faleceu dois meses após o de cujus, sem existir notícia de haver aceite ou repudiado a sucessão deste.
Nos termos do artº 2058º do Código Civil, transmitiu-se o direito de suceder a J. em favor dos herdeiros da transmitente, in casu a instituída testamentariamente como sua “ universal herdeira “, a ora agravante M..
Ora, entendemos serem aplicáveis ao exercício da faculdade prevista no artigo 2164º, em caso de pluralidade de herdeiros legitimários, as regras relativas à compropriedade ( artsº 1403º a 1413º do Código Civil )[12].
Vigorará, portanto, a regra constante do artº 1405º, nº 1, do Código Civil, segundo a qual os contitulares exercem em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular ; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas.
Daqui resulta que apenas com o acordo dos dois herdeiros legitimários – o filho e o cônjuge do falecido – seria possível o recurso à cautela sociniana[13].
Este princípio encontra-se em estreita consonância com o consignado no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil segundo o qual : “ Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos ou contra todos os herdeiros. “[14].
Sobre este ponto propugna Inocêncio Galvão Telles in “ Sucessão Legítima e Sucessão Legitimária “, pag. 55, que, na hipótese de falta de unanimidade, deverá observar-se o critério da maioria, por referência ao artigo 985º, nºs 3 e 4 do Código Civil.
De salientar, não obstante, que
Esta circunstância não prejudicará, em caso algum, o direito que assiste, à partida, a qualquer dos herdeiros legitimários à intangibilidade quantitativa da sua legítima subjectiva[15] – reduto inexpugnável em relação ao qual a vontade do de cujus terá inexoravelmente que soçobrar[16].
Note-se que, na situação sub judice, todos os elementos factuais reunidos conferem a absoluta certeza de que, nem o de cujus J., nem a sua sucessível B., admitiam ou aceitavam o não cumprimento integral deste usufruto vitalício, conforme resulta inequivocamente do teor dos testamentos que ambos tiveram o cuidado de redigir[17].
A sua vontade era realmente a de que a afilhada M. permanecesse a residir na habitação onde com os mesmos residia, o que visaram especificamente assegurar através da constituição do usufruto vitalício sobre esse bem imóvel.
Por outro lado,
Estando em causa, apenas e só, a defesa qualitativa – e não quantitativa - da legítima, carece de consistência prática e jurídica o recurso ao instituto do cautela sociniana quando se encontra plenamente salvaguardada a legítima subjectiva do único herdeiro legitimário interessado no não cumprimento do encargo.
Ou seja,
Constituindo um vector essencial do nosso sistema jurídico-sucessório o respeito pela vontade do autor da sucessão[18] – a quem exclusivamente pertencia todo o património objecto da partilha –, e pela liberdade de testar enquanto princípio basilar no domínio jurídico-privado, não há fundamento substantivo capaz de explicar a protecção da reserva destinada a cada um dos herdeiros legitimários para além do valor que, no âmbito da sua legítima subjectiva, lhe virá efectivamente a caber[19].
O que significa que não existe, neste sentido, ofensa à legítima, para efeitos da aplicação do instituto previsto no artigo 2164º do Código Civil, quando o herdeiro legitimário interessado em não cumprir o legado ( oferecendo em troca a quota disponível ), não tenha efectiva necessidade de recorrer a este expediente técnico-formal para receber aquilo que imperativamente lhe está reservado por lei. Concretizando :
Valendo a legítima subjectiva do filho do autor da sucessão € 17.000,00, que o mesmo virá efectivamente a receber concomitantemente com o cumprimento do usufruto vitalício em favor de um legatário – que vale € 20.000,00 -, não há razão para permitir o oferecimento da quota disponível quando este acto se destina exclusivamente à defesa do montante respeitante à restante legítima subjectiva - € 17.000,00 – que cabe ao herdeiro legitimário que não manifestou nenhum interesse – bem pelo contrário – na desoneração do cumprimento do legado[20].
Se os autos fornecerem elementos seguros de que este último herdeiro certamente preferiria ver a sua legítima subjectiva diminuída de modo a cumprir-se quantitativamente o legado[21] – mantendo-se intocável a posição do legitimário interessado na cautela sociniana – é essa a solução legal que, em sintonia com a presumível vontade do autor da sucessão e em coerência com os excepcionais limites, perspectivados substantivamente, aos seus poderes de disposição, deverá ser perfilhada. In casu,
Curiosamente, o valor destinado ao outro herdeiro legitimário – a falecida B. – veio a ser transmitido, nos termos do artigo 2058º do Código Civil, à própria legatária-usufrutuário que acaba por ter direito na herança aberta por óbito de J. ao montante global de € 34.000,00 ( € 20.000,00 + 14.000,00 - de forma a poder respeitar-se a legítima do herdeiro legitimário sobrante ).
Manter-se-á, por conseguinte, o legado – o usufruto vitalício constituído sobre o imóvel -, beneficiando o filho do autor da sucessão do valor atinente à respectiva nua propriedade que satisfaz plenamente o valor equivalente à sua legítima subjectiva - € 17.000,00.
Não há lugar, portanto, à aplicação in casu do instituto da cautela sociniana.
Diga-se, finalmente, que o recurso ao instituto do abuso de direito, genericamente consagrado no artigo 334º, do Código Civil, e avocado nas alegações da agravante, sempre seria plenamente justificado, enquanto “ válvula de segurança “ do sistema se necessário fosse para corrigir qualquer entorse na interpretação da lei[22].
Seria o caso de se entender que a mesma propiciava a que a sucessível com direito, por via hereditária, a um montante global de € 34.000,00, não poderia, mesmo assim, manter o usufruto vitalício da casa onde reside e residia com o de cujus, em virtude da pretensão de outro sucessível que, afrontando directamente a inequívoca vontade do autor da sucessão e pretensamente em nome da defesa duma concreta posição de legitimário que não era neste caso, como se viu,beliscada, o procurasse enviesadamente aniquilar através do argumentário puramente formalista/contabilístico referido ( disposição testamentária para além do limite da quota disponível ), de aplicação automática e indiferente à prevalência dos interesses substanciais que estão verdadeiramente em jogo.
O agravo merece provimento.
IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em conceder provimento ao agravo, revogando a decisão recorrida e considerando inaplicável à situação sub judice o instituto da cautela sociniana previsto no artigo 2164º do Código Civil - sendo em qualquer circunstância salvaguardada a legítima subjectiva do agravado na sucessão de J. ( € 17.000,00 ), ainda que à custa da integralidade da legítima subjectiva de B. ( nos termos e com os fundamentos explanados supra ).
Custas pelo agravado.
Lisboa, 26 de Junho de 2012.
Luís Espírito Santo
Gouveia Barros
Conceição Saavedra
--------------------------------------------------------------------------------------- [1] Vide António da Costa Martins in “ A Cautela Sociniana ( Sentido e Limites ) “, pags. 21 e 22. [2] Vide Cunha Gonçalves, in “ Tratado de Direito Civil “, Volume IX, pag. 758 ; Pires de Lima e Antunes Varela in “ Código Civil Anotado “, Volume VI, pag. 266, onde os autores sublinham que : “ A ideia da defesa da legítima, com a força correspondente aos interesses de ordem pública que justificam a sua instituição, apoiada na necessária coesão da sociedade familiar ( recorde-se o officium pietatis com que já o tribunal dos centúnviros reagia contra os excessos da liberdade de testar ) transparece aqui no facto de a faculdade de opção entre duas soluções abertas em alternativa por lei competir ao herdeiro legitimário – e não ao legatário. “. [3] Estão neste caso, a legitimidade conferida aos herdeiros legitimários para arguir a nulidade e do negócio simulado realizado com o propósito de os prejudicar ( artº 242º, nº 2 do Código Civil ) ; a possibilidade de arguirem a nulidade de disposição testamentária que imponha, contra a sua vontade, encargos sobre a legítima ou que designe os bens que a devam preencher ( artigos 2163º, 294º e 2308 do Código Civil ). Constituem meios complementares e indirectos de protecção da legítima a inabilitação do autor da sucessão por prodigalidade ( artsº 156º e 141º do Código Civil ) ; a necessidade de consentimento dos demais descendentes na venda feita a um deles ( artigo 877º do Código Civil ) e as curadorias provisória e definitivas ( artigos 89º a 98º do Código Civil ). [4] Sobre a questão de saber se se tratará da entrega do seu valor em dinheiro ou da redução do usufruto ou da pensão vitalícia até se confinarem aos limites da quota disponível, vide Rabindranath Capelo de Sousa, in “ Lições de Direito das Sucessões “, Volume I, pags. 163 a 164, sustentando o autor a primeira das soluções. [5] Sobre estas duas modalidades vide Jorge Duarte Pinheiro in “ O Direito das Sucessões Contemporâneo “, pags.388 a 403. ; Oliveira Ascensão in “ Direito Civil. Sucessões “, pag. 355, o qual refere : “ Poderíamos falar de um princípio da intangibilidade da legítima, com incidências qualitativas e quantitativas. Quantitativamente, garante a quota, e é tutelado pela sanção das disposições inoficiosas. A incidência qualitativa tem a sua expressão mais forte no artigo 2163º, do qual resulta a proibição do preenchimento da quota pelo autor da sucessão, contra a vontade do herdeiro, bem como a regra de que “ o testador não pode impor encargos sobre a legítima. “”. [6] Onde se dispõe : “ Entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários. “. [7] Vide Oliveira Ascensão in “ O Herdeiro Legitimário “, conferência proferida em 6 de Dezembro de 1996 durante o Ciclo de Homenagem ao Dr. João António Lopes Cardoso, promovido pela Ordem dos Advogados ( Porto ). [8] O Código Civil de 1966 introduz, no âmbito da determinação da legítima, o sistema da quota variável, em função do número e categoria dos herdeiros legitimários chamados à sucessão. Anteriormente vigorava o sistema da quota fixa : a Lei de 9 de Setembro de 1769 estabelecia, como princípio geral, dois terços da herança global ( metade no caso do chamamento de ascendentes de 2º grau ou superiores ) ; o Decreto de 31 de Outubro de 1910 diminuiu a quota legitimária, fixando-a, em geral, em metade, sendo um terço no caso de ascendentes de 2º grau e superiores ( artigo 1785º do Código Civil de Seabra ). Sobre esta matéria, vide Rabindranath Capelo de Sousa in “ Lições de Direito das Sucessões “, Volume I, pags. 152 a 153 ; José Gonçalves Proença in “ Direito das Sucessões “, pags. 113 a 114. [9] Utilizando a expressão e sustentando esta visão vide Armindo Ribeiro Mendes in “ Considerações sobre a natureza da legítima no Código Civil de 1966 “, publicado na Revista “ O Direito “, Ano 105 – 1973 – pags. 3 a 198. [10] A lei garante imperativamente aos herdeiros legitimários uma determinada parcela da herança ( com o sentido que lhe é, de forma ampla, conferido pelo artigo 2162º ) de que o autor da sucessão não pode privá-los, sem que aqueles sejam, não obstante, titulares de qualquer direito novo sobre ela a exercer no momento da morte. O que lhes assiste é um direito próprio a determina reserva assegurada por lei, não exequível em vida do de cujus – sobre este ponto, vide José Gonçalves Proença, in “ Direito das Sucessões “, pag. 115. [11] Escreve, a este propósito, Carlos Pamplona Corte Real, in “ Curso de Direito das Sucessões “, Volume II, pags. 282 : “ O herdeiro legitimário, como afinal o herdeiro em geral, é um adquirente mortis causa ( especial ) que, tal como o legatário, surge como um credor da herança relativamente ao valor da sua quota legitimária. Crédito que se pagará, após o dos legados, e que está envolvido numa teia jurídica protectora, essa sim bem vigorosa e que lhe permite pagar-se pelo donatum mesmo que não haja bens no relictum. Aí residirá o cerne do direito à legítima. Tudo se reconduz, afinal, a saber se, e em que medida, o conceito de herança se altera para efeitos do cálculo da legítima, e, em geral, da sucessão legitimária. “. Em sentido diverso, vide Diogo Leite Campos, in “ Lições de Direito da Família e das Sucessões “, pag. 599, onde pode ler-se : “ Quanto à natureza jurídica da legítima, há que acentuar que esta não é o direito a uma parte do valor dos bens da herança, mas sim o direito a uma parte dos bens da herança. O herdeiro legitimário não é um simples credor da herança por uma quantia em dinheiro calculada sobre o valor desta ; mas tem direito a uma quota abstracta da herança. Este ponto de vista resulta, não só da definição da legítima como “ porção de bem “ ( artigo 2156º, como do princípio da intangibilidade da legítima ( artigo 2163º ) ( … ). “. [12] O que não significa que, em termos genéricos, a comunhão hereditária, enquanto universalidade jurídica, se confunda com a compropriedade – sobre este ponto vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Abril de 2009 ( relator Azevedo Ramos ), publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XVII, tomo II, pags. 35 a 37. [13] Em sentido contrário, vide Cunha Gonçalves in “ Tratado de Direito Civil “, Volume IX, pags. 760 a 761, onde se pode ler : “ …pode cada co-herdeiro adoptar a solução que mais lhe convenha, porque, não sendo divisível a quota legitimária, não o pode ser, também, o direito de opção de que se trata “. [14] Referem Pires de Lima e Antunes Varela, a este propósito, in “ Código Civil Anotado “, Volume VI, pag. 152 : “ A grande regra subjacente a todos os artigos anteriores, e que não prejudica de modo nenhum a solução dada à questão da legitimidade processual posto no artigo 2078º, é a de que os direitos relativos à herança – e não os fenómenos periféricos da sucessão – só podem ser exercidos ( conjuntamente ) por todos os herdeiros ou ( do lado passivo ) contra todos os herdeiros. “. [15] Conforme refere Inocêncio Galvão Telles in “ Direito das Sucessões – Noções Fundamentais “, pag. 92 : “ …se chegada a morte do de cujus se verifica, feitas as contas, que ele não desviou a legítima qua tale para outros herdeiros mas que a esvaziou no todo ou em parte por meio de liberalidades singulares, na forma de legados ou de doações, então os herdeiros legitimários podem opor-se a esses liberalidades. Não é uma imposição directa da sua expectativa, que reveste carácter universal, mas um modo indirecto de assegurar a consistência prática de tal expectativa. “.[16] E aqui deverá conferir-se particular enfâse à clara distinção e autonomia entre a intangibilidade qualitativa da legítima, consubstanciada através da cautela sociniana, e o instituto da inoficiosidade, denunciados desde logo pelos termos intencionalmente utilizados pelo legislador para as definir : “ atingir a legítima “ ( artigo 2164º ) versus“ ofender a legítima “ ( artigo 2168º ) – sobre este ponto concreto, vide Carlos Pamplona Corte Real in “ Curso de Direito das Sucessões “, Volume II, pags. 272 a 277. [17] A insistência em deixar expressamente consignado em ambos dos testamentos ( elaborados por J. e B. ) que a instituída, sua afilhada, era consigo residente só pode querer significar o desejo comum a ambos os testadores de que esta continuasse, após a sua morte e por via do usufruto vitalício constituído, a residir nesse mesmo local. [18] Note-se que a própria liberdade de testar, enquanto manifestação da autonomia privada, merece consagração constitucional no artigo 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa que dispõe : “ A todos é reconhecido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição “. [19] Escreve, a este propósito, José Gonçalves Proença in “ Direito das Sucessões “, pag. 115 : “ …a proibição estabelecida na lei, artigo 2163º, de o testador designar os bens que devem preencher a legítima, contra a vontade do herdeiro, bem demonstrativa da superioridade ( ou titularidade ) dos direitos do legitimário sobre os bens que deverão integrar a sua legítima subjectiva. Não se trata apenas de limitar a intervenção do testador, trata-se de impedir que ele entre na estruturação e concretização da quota legitimária. “ ( sublinhado nosso ). [20] Consolida esta solução a circunstância de ser própria lei a minimizar o referido princípio da intangibilidade qualitativa da legítima ao permitir, designadamente : a partilha em vida ( artigo 2029º ) ; a instituição do legado por conta e em substituição da legítima, desde que aceites por um dos legitimários ( artigo 2165º ), na perspectiva do direito à intangibilidade qualitativa da legítima dos herdeiros legitimários sobrantes ; o regime da redução das liberalidades inoficiosas quanto estejam em causa bens indivisíveis ( artigo 2174º, nº 2 ) – Sobre esta temática vide Carlos Pamplona Corte Real, in “ Curso de Direito das Sucessões “, Volume II, pags. 278 a 279. [21] Note-se que está em causa o propósito de um dos herdeiros legitimários ( B. ) em que se cumpra inteira e fielmente a vontade do testador ( que coincide, por sinal, com a sua ) o que equivale, por um lado, à renúncia da sua parte ao exercício da cautela sociniana e, por outro, ao inequívoco consentimento – que nenhum princípio de ordem ou interesse público proíbe – à parcial afectação quantitativa da sua própria legítima subjectiva, cuja intangibilidade ( a todo o preço ) inviabilizaria afinal o cumprimento do legado. [22] Conforme impressivamente salienta Mota Pinto in “ Teoria Geral do Direito Civil “, pags. 124 e 127 : " A boa fé é hoje um princípio fundamental da ordem jurídica, particularmente relevante no campo das relações civis e, mesmo, de todo o direito privado. Exprime a preocupação da ordem jurídica pelos valores ético-jurídicos da comunidade, pelas particularidades da situação concreta a regular e por uma juridicidade social e materialmente fundada. A consagração da boa fé corresponde, pois, à superação de uma perspectiva positivista do direito, pela abertura a princípios e valores extra-legais e pela dimensão concreto-social e material do jurídico que perfilha. Significa o que acabamos de dizer que o princípio da boa fé se ajusta a – e contribui para – uma visão do direito em conformidade com a que subjaz ao Estado de Direito Social dos nossos dias, intervencionista e preocupado por corrigir desequilíbrios e injustiças, para lá das meras justificações formais.”.