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CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
HERANÇA
SUCESSÃO
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
PARTILHA
Sumário
Para a situação da casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança, mas o cônjuge e demais partilhantes têm em relação à utilização da casa em questão enquanto a partilha não esteja efectuada, os mesmos direitos e obrigações que tinham em vida do falecido. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I – “A” intentou a presente acção declarativa com processo sumário contra “B” e “C”.
Alegou a A., em resumo:
A A. era casada com “D”, falecido em 2000, no regime da comunhão geral de bens, sendo cabeça-de-casal da herança por este deixada e da qual faz parte o prédio misto, ao sítio do …, freguesia de … do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º …/… da freguesia de ….
Os RR. são filha e genro da A. que os acolheu provisoriamente na casa que faz parte da herança e é sua residência. A relação entre a A. e os RR. vem-se deteriorando e, pretendendo a A. voltar a viver sozinha, os RR. recusam-se a sair da casa.
Não foi, ainda, efectuada partilha dos bens deixados por óbito do marido da A. e pai da R., pretendendo a A. ser restituída à totalidade da posse do identificado imóvel, porquanto tem o direito a ser encabeçada no direito de habitação, sobre a casa de morada de família, não abdicando do mesmo.
Pediu a A. a condenação dos RR. na restituição da totalidade da posse do referido prédio.
Citados, os RR. contestaram. Essencialmente defenderam que a A. não pode exercer os seus direitos de administração da herança em seu proveito exclusivo e que o direito a que alude o art.º 2103-A apenas se concretiza no momento da partilha, sendo A. e R. titulares de um direito indivisível, pelo que não tem a pretensão da A. suporte jurídico. Acrescentaram que a R. já intentou processo de inventário, entendendo que a instância deverá ser suspensa até à realização da partilha.
A A. respondeu e foi proferida sentença que absolveu os RR. do pedido.
Da sentença apelou a A., concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:
I - A recorrente era casada com o senhor “D”, entretanto falecido, sendo a recorrida mulher, filha de ambos;
II- O casal constituído pela recorrente e pelo seu falecido marido, tinha a sua residência habitual no prédio situado ao sítio do …, freguesia de …, concelho do Funchal;
III- Após o óbito do marido, a recorrente continuou a viver nesse prédio, mas agora sozinha;
IV- Aconteceu que os recorridos foram despejados da casa onde viviam, ao sítio dos …, da cidade do Funchal;
V- Afim de ajudar a filha, o genro e a neta, a recorrente decidiu recolhê-los na casa onde esta vivia;
VI- Recorrente e recorridos, estão incompatibilizados;
VII- Por esse motivo, a recorrente intentou a presente acção, tendo em vista ser restituída à totalidade da posse do prédio, onde todos viviam;
VIII- A recorrente, enquanto viúva, é a cabeça de casal dos bens deixados por óbito do seu falecido marido “D”, funções que sempre exerceu, até ao dia de hoje;
IX- A recorrente sempre administrou o prédio onde vive, apôs o óbito do marido, pelo que tem o direito a ser restituída à totalidade da posse do mesmo;
X- Ao julgar a presente acção improcedente, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o artigo 2088º do C. Civil.
Não foram produzidas contra alegações.
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II - O Tribunal de 1ª instância não fixou os factos que já se encontram provados, mas estes - atentos os documentos juntos aos autos e o acordo das partes nos articulados - reconduzem-se aos seguintes,:
1 – Em 16-5-2000, no 3º Cartório Notarial do Funchal, foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros por óbito de “D”.
2 – Dessa escritura resulta que aquele faleceu em 13-2-2000, no estado de casado no regime da comunhão geral com “A”, deixando como únicos herdeiros para além desta, três filhos: “E”, “F” e “B”, casada com “C”.
3 – Em 24-6-1986, no 3º Cartório Notarial do Funchal, foi celebrada escritura pública de compra e venda, nos termos da qual “D”, casado no regime da comunhão geral com “A”, comprou o prédio misto, ao sítio do …, freguesia de … concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o n.º …/… da freguesia de São Martinho.
4 – Nesse prédio a A. e “D” sempre viveram desde 1986, sendo que após o óbito deste a A. continuou a ali viver até agora.
5 – Já depois do óbito do “D” e com o assentimento da A. os RR. foram viver para aquele prédio.
6 – Neste momento as relações entre a A. e os RR. «não são as melhores» e a A. quer voltar a viver sozinha naquela casa, não querendo que os RR. ali vivam.
7 – Apesar das insistências da A. os RR. recusam-se a sair da casa.
8 – Em 21-10-2011 a R. requereu no Tribunal Judicial da Comarca do Funchal a instauração de inventário por morte de “D”, indicando como cabeça-de-casal a aqui A., não tendo até agora sido feita a partilha dos bens.
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III – Na sentença de 1ª instância foi entendido que o art. 2103-A do CC só actua no momento da partilha, que só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança, que «a pretensão deduzida pela A. se circunscreve no âmbito da acção típica de manutenção de posse», mas que no caso não existiu qualquer acto de turbação da posse da A..
Como resulta do art. 684, nº 3, do CPC são as conclusões da alegação do recurso que definem o objecto do mesmo. Deste modo, face às conclusões das alegações apresentadas pela A., a questão que essencialmente se coloca é a de se sendo a casa a que se reportam os autos casa de morada de família da A. na pendência do casamento com “D” e sendo ela cabeça-de-casal da herança por óbito deste, pode a A. pedir a restituição da totalidade do prédio contra os RR. quando, já depois daquele óbito, estes, com o consentimento da A., para ali foram viver.
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IV – 1 - Sustenta a apelante que é cabeça-de-casal da herança por óbito de “D”, tendo direito à ser restituída à totalidade da posse do prédio onde com ele residia e continuou a residir, fundando-se essencialmente no disposto no art. 2088 do CC.
Vejamos.
Nos termos do art. 2079 do CC a administração da herança até à sua liquidação e partilha pertence ao cabeça-de-casal, cargo que, atento o art. 2080 do mesmo Código, incumbe, em primeiro lugar ao cônjuge sobrevivo (não separado judicialmente de pessoas e bens) quando for herdeiro ou meeiro dos bens do casal.
No caso que nos ocupa foi instaurado inventário por morte de “D”, figurando a aqui A. como cabeça-de-casal, mas até agora não foi feita a partilha dos bens, mantendo-se indivisa a herança.
Genericamente os sucessores não têm direitos próprios sobre qualquer dos bens que integram a herança indivisa sendotitulares em comunhão de todo o património hereditário. Efectivamente, na herança indivisa «estamos perante uma universalidade composta por património autónomo, em que os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comunhão de tal património» ([1]).
Neste simples contexto, a A. não deteria um direito próprio sobre a casa a que se reportam os autos – o mesmo sucedendo, aliás, com a R..
Todavia, tratando-se da casa de morada de família a mesma é objecto de protecção específica em caso de morte de um dos cônjuges, nos termos do art. 2103-A do CC, tendo o cônjuge sobrevivo direito a ser encabeçado no momento da partilha no direito de habitação da casa de morada de família - devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação.
A casa de morada de família corresponderá à residência habitual principal do agregado familiar, à casa que serviu de residência efectiva à família. Ora, foi na casa a que se reportam os autos que a A. e o seu falecido marido viveram desde 1986 - ali continuando ela a viver desde o falecimento daquele - tratando-se, pois, da casa de morada de família do casal.
Sendo a partilha judicial, o pedido de encabeçamento terá de ser formulado na conferência de interessados ([2]); todavia, o direito de habitação em referência – como direito real de gozo sobre coisa alheia – só virá a constituir-se como tal na hipótese de a casa vir a caber em propriedade a outro herdeiro, pois se integrar o quinhão do cônjuge sobrevivo nenhuma necessidade haverá de constituição daquele direito.
A propósito, com evidente interesse, revela-nos Capelo de Sousa ([3]) que dados os termos da lei ao exigir que tal encabeçamento se faça no “momento da partilha” tal retira a possibilidade de acções declarativa e executiva com o pedido específico de encabeçamento nos direitos em causa. Acrescentando, contudo: «Quanto à situação da casa de morada de famíliaentre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança (arts. 2079º e segs. do CCivil), parecendo-nos porém que o cônjuge e demais partilhantes têm em relação à utilização da casa os mesmos direitos e obrigações que tinham em vida do falecido, à excepção dos que se extingam por efeito da morte deste (art. 2074º, nº 1, do CCivil, por analogia). Poderão nesse período ser concedidas ao cônjuge anteriormente ou na pendência de inventário divisório, providências cautelares adequadas a assegurar o seu direito ao encabeçamento e correlativos direitos de habitação e de uso? Atento o disposto nos arts. 2103º-A e segs. do Código Civil e 399º e segs. do Código de Processo Civil, parece-nos que sim, desde que ele prove fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável de tais direitos» (negrito nosso).
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IV – 2 - Não se põe em dúvida nos autos que a A. é cabeça-de-casal da herança por óbito de “D”, cabendo-lhe a administração daquela herança, logo administrando, designadamente, os bens comuns do casal, consoante dispõe o art. 2087 do CC. Por outro lado, a A., cabeça-de-casal, é meeira – havia sido casada com “D” no regime da comunhão geral de bens - e herdeira, do mesmo modo que a aqui R. é herdeira do falecido (art. 2133 do CC).
Estabelece o nº 1 do art. 2088 do CC: «O cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído».
Explicam Pires de Lima e Antunes Varela ([4]) que o termo entrega é a designação genérica que cobre toda a acção executiva destinada a obter que alguém coloque ao alcance do autor a coisa que o demandado tem em seu poder, qualquer que seja a natureza (real ou obrigacional) ou a duração (temporária ou definitiva) do direito em que o requerente funda a sua pretensão.
Como salienta Capelo de Sousa ([5]) o disposto no nº 1 do art. 2088 surge «para tornar efectiva tal administração» por parte do cabeça-de-casal.
Também Pires de Lima e Antunes Varela ([6]) acentuam o carácter instrumental do poder que o art. 2088 confere ao cabeça-de-casal sendo que quanto aos próprios herdeiros, por mais incontestável que seja o seu direito sobre a coisa, ele não pode deixar de ceder perante a tarefa temporária e acidental do cabeça-de-casal. «Essencial é que, como aliás se depreende do próprio texto da norma, a entrega material dos bens seja realmente necessária ao exercício da gestão que os artigos 2079º e 2087º confiam ao cabeça-de-casal como administrador da herança». É neste contexto que o artigo em causa atribui legitimidade ao cabeça-de-casal para recorrer às acções possessórias contra os próprios herdeiros.
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IV – 3 – Quanto à situação da casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança – entre as quais o aludido art. 2088.
A casa a que se reportam os autos estaria sujeita à gestão da aqui A., como cabeça-de-casal, podendo ela usar, mesmo contra os herdeiros, das acções possessórias. Determinante, todavia, é a circunstância de, aderindo ao entendimento de Capelo de Sousa, considerarmos, no que concerne ao cônjuge e demais partilhantes, que estes têm em relação à utilização da casa em questão – casa de morada de família – enquanto a partilha não esteja efectuada, os mesmos direitos e obrigações que tinham em vida do falecido, por analogia do que dispõe o nº 1 do art. 2074 do CC.
Isto independentemente da expectativa da A. poder vir a tornar-se titular do direito de propriedade ou, se assim não for, do direito de habitação do imóvel.
Deste modo, sendo aquela a casa da A. – onde viveu com o seu falecido marido desde 1986 – pode continuar a ali residir, nos termos em que anteriormente o fizera, detendo a posse da casa nos limites do antes sucedia.
Já os RR. não têm, por ora, qualquer direito a ali se manterem, tanto mais que a A. lhes nega o consentimento a com ela conviverem naquele local. Eles foram morar no prédio após o falecimento do “D” quando a A. nisso consentiu, por mera tolerância desta, mas a A. retirou, entretanto, essa anuência, não querendo que os RR. ali vivam. A imposição que os RR. levam a cabo mantendo-se na casa contra a vontade da A. perturba a utilização da mesma por parte desta nos termos em que ela o quer fazer.
À A., como vimos, sempre cumpriria a gestão e administração daquele bem.
Entende-se, pois, dever a acção proceder.
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V – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, condenando os RR. a entregar à A. o imóvel na parte em que o ocupam, livre de pessoas e bens, restituindo-lho na totalidade.
Custas pelos apelados.
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Lisboa, 28 de Junho de 2012
Maria José Mouro
Teresa Albuquerque
Isabel Canadas
----------------------------------------------------------------------------------------- [1] Capelo de Sousa, «Lições de Direito das Sucessões», vol. II, pags. 113-114. [2] Ver Nuno de Salter Cid, «A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português», pag. 374. [3] «Lições de Direito das Sucessões», vol. II, pag. 238 e nota 952. [4] No «Código Civil Anotado», vol. VI, pag. 148. [5] «Lições de Direito das Sucessões», vol. II, pag. 72. [6] Obra e local citados.