DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO JUDICIAL
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário

1. O depoimento de parte não constitui um testemunho de parte, sendo apenas um meio de obter a confissão, ou seja, a admissão de factos que lhe são desfavoráveis.
2. Nos termos do artigo 353º nº2 do CC, havendo litisconsórcio necessário, a confissão do litisconsorte é ineficaz, do que se conclui que, nesse caso, não é admissível o depoimento de parte de um litisconsorte, se não for requerido também o depoimento de parte do outro ou outros litisconsortes, pois o depoimento visa a obtenção da confissão e, se o litisconsorte vier a confessar, a confissão é ineficaz.
(MTP)

Texto Integral

Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
Por apenso à execução que BC intentou contra João R B e Maria R B, vieram Manuel e Celina R B deduzir embargos de terceiro, relativamente a bens penhorados em 16 de Junho de 2010, apenas tendo havido contestação da embargada exequente e tendo os embargantes, no seu requerimento probatório, requerido o depoimento de parte apenas do executado João R B.
A exequente embargada opôs-se a este requerimento, alegando que, não tendo sido requerido o depoimento de parte dos restantes embargados, uma eventual confissão do executado depoente seria sempre ineficaz.
O depoimento de parte do embargado e executado João R B foi admitido por despacho que o condicionou à “parte que constitua confissão dos factos”.

Inconformada, a exequente embargada, interpôs recurso e alegou, formulando as seguintes conclusões:
1. O despacho recorrido admitiu o depoimento de parte do embargado João R B, “na parte em que constitua confissão dos factos”, requerido pelos embargantes.
2. Os embargantes não requereram o depoimento de parte da embargada Maria R B (mulher de João R B), nem da embargada BC.
3. Da conjugação do regime do depoimento de parte previsto na nossa lei adjectiva e do regime da confissão determinado na lei substantiva, resulta com assaz clarividência que o depoimento de parte corresponde a um meio processual que visa alcançar a confissão judicial. Trata-se, com efeito, da chamada “confissão prova”.
4. “Entre nós, apesar de a revisão de 1995-1996 ter admitido a iniciativa oficiosa do depoimento de parte, este continua a ter como única função a obtenção da confissão” – cfr. LEBRE DE FREITAS, José, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, págs 231 e 232.
5. Porém, a confissão feita pelo litisconsorte é ineficaz se o litisconsórcio for necessário. É o que resulta expressamente do disposto no art. 353º, nº2 do Código Civil.
6. Ora, nos presentes autos de embargos de terceiro, verifica-se litisconsórcio necessário passivo entre a exequente e os executados e, ainda, entre ambos os executados entre si (marido e mulher), que são as partes primitivas referidas no art. 357º, nº1, do Código de Processo Civil.
7. Trata-se, com efeito, de um litisconsórcio necessário natural, na medida em que o efeito de uma eventual procedência dos embargos não é atingido sem uma decisão uniforme par a exequente e para os executados – cfr. artigo 28º nº2 do Código de Processo Civil, vide, nesse sentido e a título de exemplo, o douto acórdão da Relação de Lisboa, proc. nº809/2004-1, in www.dgsi.pt.
8. Não tendo os embargantes requerido o depoimento de parte dos demais litisconsortes, uma eventual confissão por parte do embargado João será irremediavelmente ineficaz, quer em relação à embargada Maria (mulher de João), quer em relação à embargada BC
9. “Quando se trate de litisconsórcio necessário, não tem valor algum a confissão isolada dum dos consortes. A frase “não tem valor algum” significa que a confissão não pode ser invocada, nem como prova plena (art. 565º), nem como prova livre” – cfr. Professor ALBERTO DOS REIS (in Código de Processo Civil anotado, volume IV, Coimbra Editora, 1981, pág. 91).
10. Na mesma senda, o acórdão do Tribunal Constitucional de 13.07.2004 (proc. nº222/2004, in Diário da República, II Série, de 02.11.2004, pág. 160939 arrazoou o seguinte quanto à admissibilidade de depoimento de comparte, aqui aplicável com as devidas adaptações: “O direito à prova, nesta ultima, que é a que ao caso cabe, como a generalidade dos direitos, não é absoluto, antes contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca (…). Não se vê que fique vedado ao legislador ordinário regular a possibilidade de limitar o depoimento de parte por forma a impedir o exercício do direito de o prestar quando o respectivo objecto seja irrelevante enquanto confissão, ou seja, quando se anteveja uma disfunção entre o meio processual e o fim tido em vista pela sua previsão”.
11. Ora, justamente, o que aqui está em causa é essa limitação intrínseca postulada pela circunstância de os factos sobre os quais haveria de recair o depoimento de parte do embargado João, porque desacompanhado dos depoimentos de parte dos seus consortes, se encontrarem fora dos limites da eficácia da confissão.
12. Assim, salvo o devido respeito, o despacho recorrido carece de sentido ao admitir o depoimento de parte do executado “na parte em que constitua confissão dos factos”, quando, como se viu, essa confissão no caso concreto não poderá ser obtida.
13. Acresce que, apesar de regularmente citado, o executado/embargado João não contestou os presentes autos de embargos de terceiro, pelo que, não fosse a circunstância de a ora embargada ter apresentado contestação, todos os factos alegados pelos embargantes considerar-se-iam confessados – cfr. arts 484º, nº1 e 485º, alínea a) do Código de Processo Civil.
14. Ora, conforme refere ANTUNES VARELA (in Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 545), “[s]e a pessoa contra quem a acção é proposta e não contesta, depois de ter sido regularmente citada na sua própria pessoa, é porque, na generalidade dos acasos, considera fundada a sua pretensão”.
15. Ao não contestar os presentes embargos apesar de citado, o executado João evidenciou, ainda que tacitamente, que concorda com a pretensão dos embargantes.
16. O facto de embargante e executados serem patrocinados no processo pelos mesmos mandatários revela adicionalmente que aqueles e estes não assumem nos autos posições antagónicas e que não existe entre si colisão de interesses (aliás, se assim não fosse, estaríamos perante grave e flagrante incumprimento por parte daqueles mandatários do disposto no art. 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados).
17. Atenta a invocação por parte da embargada BC de acordo simulatório entre os embargantes e os embargados João e Maria (acordo esse que se encontra quesitado na base instrutória), uma eventual confissão por parte do executado João sobre os factos vertidos os arts 1º a 5º da base instrutória revelar-se-ia igualmente favorável aos embargantes e ao próprio depoente e uma eventual confissão aos arts 6º a 8º da base instrutória revelar-se-ia igualmente desfavorável aos embargantes e à aquele depoente, o que sempre redundaria na postergação da “correspondência funcional e teleológica entre o meio processual e o objecto do meio de prova fixado na lei” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.03.2003, in www.dgsi.pt, nº convencional 03A3530.
18. Também por este motivo, deveria pois o depoimento de parte requerido pelos embargantes ser indeferido, sob pena de o depoimento de parte ser transformado em testemunho de parte livremente valorável em todo o seu conteúdo, favorável ou desfavorável ao depoente, à revelia das opções do legislador (note-se que LEBRE DE FREITAS, em nome da Ordem dos Advogados, Parecer II.4.D, chegou a formular propor, aquando da revisão do processo civil de 1995-1996 a figura do testemunho de parte, a qual no entanto foi rejeitada pelo nosso legislador).
19. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou pois o disposto nos arts 553º e 554º do Código de Processo Civil, conjugados com o art. 353º nº2 do Código Civil.

Os embargantes contra-alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida e o recurso foi admitido como apelação, como subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
A questão a decidir é a de se saber se é ou não admissível o depoimento de parte do embargado João R B.

FACTOS.
Para além dos factos que resultam do relatório do presente acórdão, tem interesse para a decisão o conteúdo dos pontos da base instrutória, que é o seguinte:
Os executados celebraram em 26 de Dezembro de 2008 com os embargantes o “Contrato de Compra e Venda de Bens Móveis” transcrito na alínea B) da factualidade assente, que foi apresentado ao Exmo Sr Solicitador de Execução aquando da penhora do recheio da residência dos mesmos?
Os embargantes adquiriram o recheio da casa de morada de família dos executados, de modo a viabilizar que estes, através do produto da venda, procedessem ao pagamento das responsabilidades tributárias da sociedade (…) – Comércio e importação de artigos de vestuário, Lda, sociedade comercial de que os executados são sócios?
O preço da compra ascendeu a 113 752,52 euros?
Este valor foi pago na data da assinatura do supra mencionado contrato, pelos embargantes, mediante o cheque emitido à ordem da Direcção Geral do Tesouro – IGCP referido em D)?
Os embargantes pretendiam que os executados mantivessem o gozo dos bens, motivo pelo qual ficou estipulada na Cláusula Quarta do contrato a constituição do direito de usufruto dos executados sobre os bens constantes do Anexo mencionado em C)?
Embora os executados tenham declarado vender os bens móveis identificados naquele contrato aos embargantes que, por sua vez, declararam comprá-los, na realidade, os não quiseram vender, nem os embargantes os quiseram comprar?
Aquele contrato foi celebrado entre embargantes e executados com a intenção de gerar a aparência de uma compra e venda e, em consequência, uma aparente transmissão da propriedade dos executados para os embargantes?
Era seu intuito frustrar a penhora daqueles bens na execução movida pela exequente?

ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
O depoimento de parte está contemplado nos artigos 552º a 567º do CPC, denominando-se a secção respectiva “prova por confissão das partes”.
Por seu lado, a confissão vem definida no artigo 352º do CC como sendo “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.
Portanto, o depoimento de parte destina-se a obter a confissão das partes, ou seja, a admissão de factos que lhes são desfavoráveis e, sendo a confissão judicial obtida por depoimento de parte, esta será reduzida a escrito e terá o valor de prova plena (artigos 358º nº1 do CC e 563º nº1 do CPC).
Não pode, por isso, ser requerido o depoimento de parte para ser apreciado livremente pelo Tribunal, sem ter como objectivo a obtenção da confissão, sob pena de se estar a admitir um “testemunho de parte” que não é admissível na nossa lei, inadmissibilidade que se manteve, mesmo depois da revisão de 1995, a partir da qual se passou a conferir ao juiz a possibilidade de convocar as partes para prestar depoimento de parte (cfr. Lebre de Freitas, CPC anotado, volume 2, páginas 497 e seguintes).
Havendo pluralidade de partes, quer activa, quer passiva, podemos estar perante coligação – em que existe uma pluralidade de relações jurídicas, mas com uma conexão entre elas – ou perante um litisconsórcio – em que, apesar da pluralidade de partes, existe apenas um relação jurídica.
Estatui o artigo 29º do CPC que, se a lei, ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida (nº1), ou se for necessária a intervenção de todos eles quando, por sua própria natureza, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (nº2), a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade; nestes casos, o litisconsórcio é necessário e não meramente voluntário.
De acordo com este artigo 29º, o litisconsórcio necessário poderá, assim, ser um verdadeiro litisconsórcio, resultante da existência de uma única relação jurídica com pluralidade de partes, em que a lei ou o negócio impõem a intervenção de todos na acção; ou poderá ser um litisconsórcio artificial ou extrínseco, não resultando de uma única relação jurídica, sendo antes uma coligação, na qual, por virtude da respectiva natureza, é necessária a intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o efeito útil normal (cfr A. Reis, CPC anotado, Volume I, página 87).
Se houver confissão de um dos litisconsortes, estabelece o artigo 353º nº2 do CC quanto à confissão de factos, e o artigo 298º nº2 do CPC, quanto à confissão do pedido, que, no caso de litisconsórcio necessário, a confissão de um dos litisconsortes é ineficaz.
Compreende-se que assim seja, pois, nos casos de litisconsórcio necessário, a lei, ao prescrever no artigo 29º a intervenção de todos os interessados sob pena de ilegitimidade, impõe que a solução jurídica seja igual para todos os interessados.
Nos presentes embargos de terceiro, a exequente e os executados foram todos demandados como embargados, como se impunha.
A exequente tem legitimidade passiva nos embargos de terceiro, por ter interesse em contradizer o pedido dos embargantes de levantamento da penhora impugnada.
Os executados têm também legitimidade passiva nos embargos de terceiro e em contradizer o pedido dos embargantes, na medida em que poderão ter interesse em alegar que os bens lhes pertencem e que, como tal, devem servir para pagamento da dívida exequenda (sem prejuízo de, como parece ser o caso dos autos, poderem vir defender a tese dos embargantes, não se opondo a que seja levantada a penhora).
Embora todos tenham legitimidade passiva, a exequente e os executados não são titulares do mesmo direito ou de direitos compatíveis mesma relação jurídica, não existindo, assim, entre eles um litisconsórcio natural, de acordo com a definição acima exposta (podendo até acontecer, como parece ser o caso dos autos, existir um interesse antagónico entre o exequente e os executados).
Contudo, existe um litisconsórcio necessário entre a exequente e os executados, por via do nº 2 do artigo 29º, ou seja, porque a intervenção de todos é necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal: para que a execução prossiga, tem de haver definição sobre o destino da penhora, definição essa que tem de ser igual para a exequente e para os executados.
Por outro lado, entre os dois executados existe seguramente litisconsórcio necessário, pois, tendo sido demandados na execução na qualidade de marido e mulher, são os dois titulares da mesma relação jurídica e é obrigatória a intervenção de ambos nos embargos de terceiro, havendo litisconsórcio necessário dos dois nos embargos de terceiro, na qualidade de executados/embargados (cfr Alberto dos Reis, CPC anotado, volume IV, página 91).
Sendo assim, a confissão de qualquer um dos cônjuges é ineficaz se for desacompanhada da confissão do outro, não podendo ser aproveitada, nem sequer para ser apreciada livremente (A. dos Reis, obra citada, na mesma página 91).
O requerido depoimento de parte do embargado João mostra-se, por isso, sem qualquer utilidade, pois está vedada a prestação do seu depoimento para outro objectivo que não seja o de obter a confissão e, se confessar, a confissão é ineficaz.
É certo que a lei permite, no artigo 553º nº3 do CPC, que cada uma das partes possa requerer não só o depoimento da parte contrária, mas também o dos seus compartes, o que poderia ser um indício de que é sempre admissível o depoimento de uma das compartes sem o depoimento das outras.
Contudo, esta disposição legal tem de se interpretar no sentido de que cada parte não pode requerer a prestação do seu próprio depoimento, uma vez que o depoimento de parte visa obter a confissão, ou seja, a admissão de factos desfavoráveis, podendo apenas requerer o depoimento da parte contrária, ou dos seus compartes, desde que, quanto a estes, tenha um interesse antagónico que permita, como acontece com a parte contrária, a obtenção da confissão, o que não acontece no litisconsórcio necessário em que não existam interesses antagónicos, como seria o presente caso entre os dois cônjuges executados (cfr neste sentido A. dos Reis, obra citada, páginas 90 e 91).
Procedem, pois as alegações da apelante, não sendo admissível o depoimento do executado por si só.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, revogando o despacho recorrido, não se admite o depoimento de parte do embargado/executado João R B.
Custas pelos apelados.

Lisboa, 4 de Outubro de 2012

Maria Teresa Pardal
Tomé Ramião
Jerónimo Freitas