PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
PASSIVO
Sumário

I - "O inventário instaurado na sequência de divórcio destina-se à partilha dos bens comuns.
II - Face à inexistência de tais bens, existindo embora dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se verifica fundamento legal para instauração do mesmo".

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I - RELATÓRIO
Luís intentou inventário contra Isabel, em consequência de divórcio, invocando que o património comum do ex-casal não tem activo, sendo apenas composto por passivo, que identifica no artº 5º do requerimento inicial, e cuja partilha vem requerer enquanto património comum do casal.

Foi proferida DECISÃO que julgou improcedente o inventário, por ter sido entendido que o inventário, instaurado na sequência de divórcio, se destina à partilha dos bens comuns e que em face da inexistência de bens comuns, não se verifica fundamento legal para instauração do mesmo.

Não se conformando com tal decisão, dela recorreu o requerente, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª - Com fundamento na existência unicamente de passivo no património comum dos ex-cônjuges, veio o tribunal proferir sentença, pela qual julga improcedente o presente inventário com fundamento em " ... face da inexistência de bens comuns, não se verifica fundamento legal para a instauração do processo de inventário".
2ª - Apesar da inexistência de bens comuns (activo), o facto de existirem dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges basta para que se requeira a abertura de processo de inventário que possibilita a liquidação global das relações patrimoniais estabelecidas entre os cônjuges.
3ª - Com o divórcio cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges, nos termos do art° 1688° do CC, efeito que retroage à data da instauração da acção - art° 1789° CC.
4ª - Com a cessação das relações patrimoniais, cada um dos cônjuges recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum.
5ª - Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum.
6ª - Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum e, se não existirem bens comuns, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.
7ª - Prescreve o art° 1697° do CC que quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer, embora este crédito apenas seja exigível no momento da partilha dos bens comuns do casal.
8ª - Existindo os chamados "créditos de compensação" a favor do cônjuge que pagou a mais que a sua parte sobre o outro, a sua exigibilidade é na partilha.
9ª - O processo de inventário destina-se e presta-se a que, com a conferência das dívidas, à massa comum seja possível apurar se há património e por ele dar pagamento aos credores.
10ª - O Inventário é o meio adequado para se proceder à liquidação efectiva das responsabilidades entre os ex cônjuges devendo essas responsabilidades ser apuradas nos termos dos artigos 1691°, 1693° e 1694°, todos do CC.
11ª - Termos em que a sentença do tribunal a quo viola o art° 1404° do CPC e os artigos 788°, 1688°, 1691°, 1693°, 1694° e 1697° todos do CC.
Termina, pedindo que a sentença do tribunal a quo deverá ser substituída por outra que julgue procedente o inventário, com a sua consequente tramitação nos termos legais até final.

Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
A matéria de facto apurada é a que resulta do relatório que antecede.

B) Fundamentação de direito
A única questão a resolver consiste em saber se há lugar a inventário na sequência de divórcio, quando não inexistem bens do casal, existindo embora dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges.
O Tribunal da Relação de Lisboa, no seu Acórdão de 07.07.2011[1], que seguiremos de perto, já decidiu, num caso semelhante, que: “ em inventário na sequência de divórcio inexistindo quaisquer bens comuns, sendo relacionada tão só uma dívida de terceiro da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se justifica o prosseguimento do inventário”.
Na verdade, as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam com a dissolução do casamento – artº. 1688 do CC -  logo com o divórcio – artº 1788 do CC. Nos termos do artº 1689º do CC (sob o título «Partilha do casal. Pagamento de dívidas») cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património (nº 1); havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum e só depois as restantes (nº 2); acresce que os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum, mas não existindo bens comuns, ou sendo insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (nº 3).
Em consonância com o disposto neste artigo, o CPC no artº 1404º regula o processamento do inventário em consequência, designadamente, do divórcio, estabelecendo desde logo que decretado este, «qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens» (isto salvo se o regime de bens do casamento for o da separação).
Aliás, já o nº 3 do artº 1326 do CPC determinara poder «ainda o inventário destinar-se, nos termos previstos nos arts 1404º e seguintes, à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges» - para além de, nos termos gerais, se destinar a pôr termo à comunhão hereditária ou a relacionar os bens que constituem objecto da sucessão e a servir de base à eventual liquidação da herança.
Neste contexto, referia João António Lopes Cardoso[2] que o inventário se distribuía para partilhar bens, sendo que quando por falecimento de alguma pessoa não fiquem restando quaisquer bens não deveria ter lugar, concluindo que a ausência total de bens «impede a distribuição do inventário ou vem a determinar o seu arquivamento, quando indevidamente distribuído».
Mais adiante, já a propósito do tipo de inventário a que nos reportamos[3] salientava o mesmo autor que o inventário em consequência do divórcio é necessariamente um inventário divisório, sendo o seu objectivo o de «partilhar os bens que fazem parte de um património comum nos precisos termos que a lei civil estabelece».
Também Augusto Lopes Cardoso[4] afirma que, quando há bens comuns, tem de proceder-se à partilha deles - extrajudicialmente ou através do processo de inventário – se os cônjuges não quiserem manter-se na indivisão.
Saliente-se que, seguindo o inventário em consequência do divórcio o processamento previsto nos arts 1326º e seguintes do CPC – nº 3 do artº 1326º e nº 3 do art. 1404º, ambos do CPC – os arts 1345º e 1346º determinam que o cabeça de casal elaborará uma relação de bens indicando o valor atribuído a cada um deles e relacionará em separado as dívidas.
Afigura-se resultar das disposições legais acima citadas que o objectivo do inventário na sequência do divórcio é a partilha de bens consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges (se o regime for o da separação não há lugar ao inventário): a partilha de bens «constitui a finalidade última do inventário»[5].                                   
No que concerne ao pagamento de dívidas a matéria está dividida por duas disposições legais – os arts 1689º e 1697º.
Torna-se necessário, antes de mais, determinar o volume do património que responde pelas dívidas; daí cada cônjuge dever conferir o que deve ao património comum em virtude de pagamentos de dívidas da sua exclusiva responsabilidade, consoante resulta do nº 1 do artº 1689º e do nº 2 do artº1697º do CC [6].
Será também esse o momento de os cônjuges se exigirem reciprocamente o pagamento das dívidas entre si, quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles o qual se torna credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer (nº 1 do artº 1697º do CC); tal crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal (a não ser que vigore o regime da separação)[7].
Por fim, haverá que referir o pagamento de dívidas a terceiros. Atento o disposto no nº 2 do artº 1689º e no artº 1695º do CC, os credores comuns são pagos com preferência pelos bens comuns do casal; quando haja dívidas a solver serão pagas as dívidas comunicáveis, à custa da massa dos bens comuns e saldadas estas poderão ser pagas, então as restantes.
Todavia, o pressuposto dos nºs 1 e 2 do artº 1689º do CC para a partilha do casal é o da existência de bens, mais concretamente a existência de um património comum.

Do cruzamento das disposições legais citadas entendemos resultar que, no caso dos autos, inexistindo quaisquer bens comuns e sendo relacionada pelo requerente do inventário e cabeça de casal, ora apelante, tão só dívidas a terceiros e despesas da responsabilidade de ambos os cônjuges, não se justifica o prosseguimento do inventário.
Subjacente ao processo de inventário está o interesse em dar destino a um conjunto de bens, os bens comuns do casal. Esses bens serão partilhados entre os cônjuges, havendo, todavia, que ressalvar as dívidas pelas quais aquele património comum responde, nos termos desenhados pela lei civil.
Não havendo património comum não cumpre, através do processo de inventário, «partilhar dívidas».
Os credores comuns, em acção comum, poderão sempre demandar os cônjuges pelas respectivas dívidas, respondendo pelas dívidas que são da responsabilidade de ambos os cônjuges, na falta de bens comuns, «solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges» (nº 1 do artº 1695º do CC). Tal como o cônjuge que satisfaça com bens próprios dívidas comuns poderá demandar o outro cônjuge com vista a obter ressarcimento, também através de acção comum.
 
III – DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento à apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 11 de Outubro de 2012

Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida Costa
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[1]www.dgsi.pt, processo nº 9172/08.5TMSNT-A.L1-2 
[2] Partilhas Judiciais», 3ª edição, vol. I, págs. 119-120.
[3] Ob cit, vol. III, pág. 348.
[4] A Administração dos Bens do Casal», pág. 375.
[5] Acórdão do STJ de 16-5-1995, in CJ STJ II/95. 83.
[6] Augusto Lopes Cardoso, ob. Cit. pág. 378.
[7] Refere, a propósito, João António Lopes Cardoso, na obra citada, vol. III, 3ª edição, págs. 391-392, que no decurso da sociedade conjugal algumas vezes os cônjuges se tornam reciprocamente devedores entre si, situação que se verifica, designadamente, sempre que por bens próprios de um deles se dá pagamento a dívidas da exclusiva responsabilidade do outro, ou quando tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos um deles satisfaz voluntariamente maior quantia que o outro. Nesses casos, «pendente o matrimónio persiste a inexigibilidade dos créditos, passando estes a ser exigíveis tão somente após a sua dissolução ou, melhor dizendo, na subsequente partilha, a não ser que vigore o regime de separação». Defende, ainda, que tais créditos «não deverão ser objecto de relacionação isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º-3 do Código Civil» (devendo ser levados à conferência de interessados).