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SOCIEDADE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DOCUMENTO
MÚTUO
AQUISIÇÃO
VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
I) Tendo a vendedora do veículo tratado do processo de financiamento a favor do adquirente junto da SFAC, está configurada a colaboração a que se reporta o nº1 do artigo 12º do DL nº359/91, de 21 de Setembro. II) A noção de exclusividade a que alude a alínea a) do nº2 do mesmo artigo não respeita ao quadro negocial estabelecido entre a sociedade financeira e o fornecedor mas antes à vinculação do crédito a um determinado contrato de compra e venda que é característica desta espécie de crédito conhecido na gíria comercial como crédito “afectado”. III) Deixando o adquirente de pagar as prestações atinentes ao financiamento em virtude de a vendedora não lhe ter entregado os documentos do veículo e tendo a financiadora procedido à apreensão da viatura em consequência de tal cessação, assiste ao adquirente o direito de exigir da vendedora indemnização pelas quantias por si pagas no âmbito do mútuo associado à frustrada aquisição. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa (7ª Secção):
C. R., casado, mecânico, residente em S…, P…, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra L. P. M., vendedor de automóveis, com estabelecimento na mesma localidade, pedindo que a Ré seja condenado a pagar-lhe a quantia de €10.053,85, acrescida de juros de mora à taxa legal até efectivo e integral pagamento.
Alega, em síntese, que adquiriu ao Réu o veículo automóvel de matrícula …-…-… pelo preço de €7.128,38, através de um crédito à C. SFAC e, apesar de ter iniciado o pagamento das prestações de tal empréstimo, nunca ter recebido do Réu a documentação do veículo, a fim de registá-lo em seu nome, tendo sofrido prejuízos correspondentes ao montante das prestações que pagou e terá que pagar à entidade financiadora.
O Réu contestou, alegando, por um lado, que é sócio gerente da firma L. M. A.– Unipessoal Lda, sendo esta quem comercializa os veículos e, por outro, que esta empresa apenas intermediou a venda que foi feita entre a C. SFAC e o Autor.
Mais alegou que o Autor só não obteve a documentação do veículo, porque assinou, no local errado a declaração modelo 2.
Requereu ainda a intervenção principal provocada da C. S.F.A.C., SA. e, por seu turno o autor requereu a intervenção principal provocada passiva da firma L. M. A. – Unipessoal, Lda o que foi admitido por despacho de fls 48 a 51.
Na sequência do chamamento a sociedade L. M. A. – Unipessoal Lda contestou, alegando, em suma, que fora o seu sócio gerente quem, em nome e no interesse da C. SFAC negociou a viatura, que não está registada em nome do Autor por ele ter assinado a declaração de transmissão de propriedade no local errado e nunca mais ter assinado nova declaração para o efeito, apesar de lhe ter sido solicitado pela C. SFAC.
Contestou também a C.– Sociedade Financeira para Aquisições a Crédito, SA, alegando, em síntese, que se limitara a financiar a aquisição do veículo ao Autor, que foi vendido a este pela interveniente L. M.A. – Unipessoal Lda, que recebeu na íntegra o respectivo preço.
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Discutida a causa foi a acção julgada improcedente por não provada, com a consequente absolvição do pedido.
Inconformado, recorreu o autor para pugnar pela revogação da sentença e a sua substituição por decisão que dê provimento integral ao seu pedido, alinhando para o efeito as seguintes razões com que encerra a alegação oferecida: A) O apelante comprou um veículo automóvel à interveniente, L. M. A. - Unipessoal, Lda ora apelada marca D.e matrícula …-…-…; B) L. M. A. - Unipessoal, Lda nunca entregou ao apelante os documentos do veículo, afectando assim a sua utilização; C) Ficou o apelante impedido de circular com o veículo, apesar de inúmeras vezes ter solicitado à vendedora tal documentação, que nunca lhe foi facultada; D) O recorrido tem assim o direito de ser ressarcido, nos exactos termos reivindicados nos seus articulados; E) O tribunal “a quo” violou os artigos 668º alínea b) do CPC, 879º alínea c) do CC e artigo 4º da lei 24/96, de 31 de Junho.
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Apenas a chamada Credibom apresentou contra-alegação, defendendo a confirmação da sentença.
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Factos provados:
A sentença louvou-se nos seguintes factos:
1. A Ré L. M. A. - Unipessoal, Lda é vendedora de automóveis.
2. A interveniente L. M. A. - Unipessoal, Lda vendeu ao Autor, a pedido deste, um veículo automóvel marca D. e matrícula …-…-…, que se encontrava no seu Stand, em dia data não concretamente apurada do ano de 2002;
3. O preço do referido veículo foi de €7.120,38.
4. O Autor recorreu a um crédito, através de um contrato celebrado com a C. SFAC, nos termos constantes do documento de fls. 4/5, que se dá por integralmente reproduzido, nos termos do qual se obrigou a reembolsar o crédito concedido de €7.120,38 para a aquisição do referido veículo, em 72 prestações mensais no valor de €139,63 cada.
5. Nunca foi entregue ao Autor a documentação do referido veículo: o título de registo de propriedade, o livrete e o modelo 2 da venda.
6. O Autor contactou o réu L. M., sócio gerente da Interveniente L.M.A. Unipessoal, Lda, para que lhe entregasse tais documentos, o que nunca conseguiu, nomeadamente para registar a venda em seu nome.
7. Por esse motivo, o Autor deixou de pagar as prestações à C. SFAC em Março de 2003 e esta procedeu ao levantamento do veículo em 20 de Março de 2003.
8. Para amortização do referido empréstimo, o Autor pagou à C. SFAC 14 prestações mensais, no valor de €139,63 e em 14 de Janeiro de 2008 a quantia de €6.979,03.
9. A Interveniente L. M. A. Unipessoal, Lda havia vendido a viatura referida em 2) a M. A., através de um crédito feito na C. SFAC, venda essa que foi registada na Conservatória do Registo de Automóveis em 25.02.2000, com reserva de propriedade a favor da C., SA.
10. Foi a Interveniente L. M. A. Unipessoal, Lda quem tratou do processo de financiamento do Autor junto da C. SFAC;
11. A C. SFAC é uma instituição financeira de crédito, tendo como objecto social, entre outros, a concessão de crédito ao consumo, não efectuando vendas a retalho.
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Análise do recurso:
A decretada improcedência da acção assentou na circunstância de não se ter considerado verificada a dependência contratual configurada no nº2 do artigo 12º do DL nº359/91, aplicável ao caso concreto, centrando-se o objecto deste recurso na dilucidação dessa questão de cariz jurídico/normativo.
Com efeito, escreve-se na sentença que “a relevância jurídica do incumprimento do vendedor no contrato de crédito, no domínio do artigo 12º, nº 2, do citado Dec-Lei, depende da existência de um acordo prévio entre o credor e o vendedor na preparação e conclusão da operação, o que no caso em apreço não se verifica”.
Colhe-se da confissão do réu constante da contestação de fls 39 e segs que o veículo foi vendido pela sociedade L. M. A., Unipessoal, Lda a M. A., com um financiamento de C. SFAC, sendo recuperado por incumprimento do contrato de mútuo por parte da compradora.
Ora, este mesmo veículo voltou à posse daquela sociedade que o vendeu de novo ao aqui autor, mediante a celebração de novo contrato de mútuo junto de C. SFAC.
A própria chamada C. SFAC esclarece – corroborando o que o réu afirmara – que foi a vendedora do veículo que tratou do processo de financiamento e o submeteu à sua apreciação, vindo a merecer aceitação.
Ou seja, o processo de financiamento iniciou-se – de resto, à semelhança do que sucede na normalidade das situações – com o preenchimento de uma proposta com o timbre da mutuante, onde foram inscritos os dados pertinentes e nomeadamente os atinentes ao veículo concreto a cuja aquisição o financiamento era intencionado e todas as condições da venda.
Como se assinala no acórdão de fls 153, aprovado o financiamento, o fornecedor do bem recebe da Credibom a quantia financiada, sem que o mutuário careça sequer de a contactar.
Será que num tal contexto se configura razoável pôr em dúvida a existência de um acordo prévio entre a chamada C. SFAC e a vendedora, quando até esta reconhece que todo o processo de financiamento foi por si organizado a pedido daquela?
Mas será que a união de contratos (ou a coligação de contratos a que agora alude o DL nº133/2009 (artigo 18º) só são eficazes se entre o fornecedor dos bens e a entidade financeira existisse um acordo de colaboração exclusivo, ou seja, que o fornecedor canalize o adquirente dos seus bens para os serviços da SFAC e esta apenas conceda crédito aos clientes daquele.
Já em acórdão do mesmo relator tirado em 24 de Maio de 2007 (Relação de Guimarães, apelação nº766/07), se reflectia sobre este mesmo tema, escrevendo-se na circunstância: “Compulsadas as alegações (e a contestação) verifica-se que a ré sustenta a improcedência da acção em virtude de “o negócio decompra e venda e o contrato de crédito associado não estão sob a alçada do regime previsto no nº 2 do artigo 12º do DL 359/91, de 21 de Setembro” (artº34 da contestação), afirmação que se ancora no facto de não vigorar entre as rés nenhum acordo de exclusividade. Já atrás se assinalou que não seria sequer imaginável que uma SFAC se vinculasse a financiar em exclusivo as compras de bens de um qualquer fornecedor, colocando o seu destino nas vicissitudes dos negócios deste. Ainda que igualmente pouco plausível, em tese será possível admitir que um qualquer fornecedor se obrigasse perante uma SFAC determinada a canalizar para ela todos os contratos de crédito dos seus clientes relativos aos bens por si vendidos. Como se refere no Ac. do STJ de 5/12/06 (CJ, Sup. III/06, pag.148 e segs) o DL nº 359/91 é uma mera transposição para o direito interno das Directivas nos87/102/CEE,de 22 /12/1986 e 90/88/CEE de 22/2/90, com o propósito de conceder protecção aos consumidores como de resto transparece do regime legal em causa. Será imaginável que tal tutela do consumidor esteja dependente das relações estabelecidas entre os fornecedores e as sociedades financeiras com as quais estabelecem os acordos prévios relativos aos créditos por elas concedidos? Será defensável que a sociedade financeira ou o fornecedor possam eximir-se aos ditames da referida lei, celebrando um outro acordo com duas Sfac ou, simplesmente, celebrando apenas um mas sem exclusividade? Como se escreve no acórdão do STJ atrás referido “a celebração conjunta dos dois apontados negócios jurídicos integra a figura jurídica da união de contratos, na forma de união interna, atenta a relação de dependência bilateral que reciprocamente os liga, já que, na altura da sua celebração, uma das partes estabeleceu que não aceitaria celebrar um dos contratos sem o outro (…) havendo, porém, a considerar, que, não só tal dependência não é simétrica, atenta a subordinação genética operada ao nível da validade dos mesmos – art. 12°, n° 1 - como, também, os referidos contratos não podem ser considerados dotados de absoluta autonomia, no sentido próprio deste étimo, dado o preceituado no n° 2 daquele nomeado normativo.” “ Com a celebração de um contrato de compra e venda financiada – escreveu-se no Ac. R.Lx. de 2/11/06 – pode dizer-se que coexistem dois contratos distintos e autónomos (…) com o estabelecimento entre ambos de uma ligação funcional com um objectivo: o de que o crédito sirva para financiar o pagamento do bem que foi adquirido.” Tal interligação implica que, não sendo concedido o financiamento pela instituição de crédito, o contrato de compra e venda é anulável e o vendedor deve devolver as quantias já recebidas. E na eventualidade de o contrato de compra e venda não ser cumprido ou ter sido cumprido deficientemente o consumidor pode demandar o fornecedor e suspender o contrato de crédito, desde que verificadas cumulativamente as condições fixadas no nº2 do artigo 12º. Como entender então a alusão à exclusividade aí prevista? O Acórdão da R. de Lx de 23/2/06 (disponível no site da dgsj) propõe-nos uma interpretação restritiva, defendendo que a norma é aplicável “mesmo quando não se verifique a exclusividade aí prevista, sempre que no caso concreto, procedam as mesmas razões e interesses que estão na origem do consagrado na letra da lei.” Já atrás assinalámos a incongruência da leitura que conexiona a aplicabilidade do regime legal à mencionada exclusividade: na prática equivaleria a tornar letra morta a tutela tão generosamente prodigalizada pelo legislador. Parece-nos que a exclusividade pressuposta na norma não se reporta ao quadro negocial estabelecido entre a sociedade financeira e o fornecedor mas antes à vinculação do crédito a um determinado contrato de compra e venda que é característica desta espécie de crédito conhecido na gíria comercial como crédito “afectado”. Ou seja, em execução do acordo preexistente entre a sociedade financiadora e o fornecedor este, em proposta produzida por aquela, fez inscrever as condições do contrato de mútuo pretendidas pelo seu cliente (os aqui AA), submetendo-a à sua aceitação e recebendo directamente o produto do financiamento. No contrato foi consignado o nome do estabelecimento fornecedor (e identificado até o vendedor e a autorização a viabilizar o crédito) e foi identificado o objecto a cujo pagamento o crédito foi concedido. Por conseguinte, estava vedado ao consumidor utilizar o valor financiado na compra de outro veículo ou mesmo do veículo nele identificado a qualquer outro fornecedor que não a F., S. e Cª, Lda. É esta afectação exclusiva do produto financiado ao negócio de compra e venda identificado no contrato de mútuo que justifica o regime legal plasmado no artigo 12º invocado pelas partes.”
É patente que a situação subjacente ao aresto citado é exactamente igual à versada nos presentes autos, ainda que, adianta-se já, sob diversa perspectiva jurídica.
Ou seja, a previsão da norma não teve em vista os contratos coligados em que existe um acordo de exclusividade recíproca entre os fornecedores e os financiadores da compra dos bens pelos consumidores, sob pena de na prática a norma ser rigorosamente inútil (até as SFACs das marcas estabelecem acordos prévios com uma multiplicidade de fornecedores e concessionários, como é manifesto), mas antes aqueles casos em que o financiamento é dirigido à aquisição de bens específicos comercializados pelo fornecedor e nas condições por ele fixadas.
Por conseguinte, a exclusividade a que a lei se reporta veda ao adquirente afectar o produto do empréstimo à aquisição de outro bem que não o especificado na proposta e ao fornecedor nela indicado, mas não implica qualquer espécie de exclusividade nas relações comerciais recíprocas.
Assim, se o fornecedor na pendência da aprovação do crédito cedesse o bem a um stand concorrente e lhe endossasse depois o cheque com a quantia mutuada, estava quebrada a dependência contratual prevista na disposição em análise, sem embargo, naturalmente, da eventual aprovação que a sociedade financeira viesse a dispensar a tal cedência.
Em suma, quando a lei refere que o crédito é concedido exclusivamente pelo mesmo credor aos clientes do vendedor para a aquisição de bens fornecidos por este, o legislador quis significar que “o crédito é concedido pelo mesmo credor aos clientes do vendedor apenas para aquisição de bens fornecidos por este”.
Todavia e sem embargo do que fica dito, é manifesto que nesta acção a discussão à volta deste tema tem escassa importância, porquanto, como certeiramente é referido pelos recorrentes, não é a validade do contrato de crédito que está em causa mas antes os efeitos do incumprimento pela ré L. M. A. Unipessoal, Lda do contrato de compra e venda que celebrou com os autores.
E o que resulta dos autos é que tal sociedade vendeu o veículo, primeiro a M. A. e depois, sem sequer ter promovido o cancelamento da inscrição e do encargo associado (reserva de propriedade a favor da C. SFAC), voltou a vendê-lo ao autor, recebendo o produto do empréstimo concedido pela C. SFAC, sem todavia ter feito a entrega dos documentos do veículo.
Ou seja, a vendedora reteve indevidamente os documentos do veículo, prática de resto frequente no “ramo”, por vezes complementada com a retenção de um exemplar das chaves e que tem tanto de ilegal como de temerária.
Obviamente que, como se assinala na sentença, em face da não entrega dos documentos, a sociedade vendedora incumpriu o contrato, legitimando a recusa do pagamento das prestações do mútuo “coligado”.
Foi dado por provado que na sequência da interrupção do pagamento das prestações atinentes ao financiamento a chamada C. SFAC “procedeu ao levantamento do veículo em 20 de Março de 2003”, fórmula que não permite aquilatar da sua licitude, pois não exclui o consentimento dos autores, já que sem ele tal levantamento seria flagrantemente ilegal, pois a sociedade financeira não tem qualquer direito sobre o veículo.
Claro que não traremos à colação a vasta querela jurisprudencial sobre a validade da reserva de propriedade a favor do mutuante, assinalando tão somente que o encargo registado tem como sujeito passivo a anterior adquirente do veículo (fls 33) e não o autor C. R..
Temos então que a sociedade inadimplente vendeu o veículo em Fevereiro de 2000, recebendo o preço e, muito embora o veículo continuasse registado em nome da adquirente, cerca de dois anos volvidos, voltou a vendê-lo, agora aos autores, recebendo de novo o preço (recebeu até mais, uma vez que o crédito concedido foi superior).
Por seu turno, a sociedade C. SFAC, recebeu dos AA a quantia de €8933,85 em contrapartida do empréstimo de €7120,38 e, além disso, “procedeu ao levantamento do veículo em 20 de Março de 2003”, sem que esclarecida esteja a base legal deste comportamento. Ex adverso, os autores pagaram €8.933,85 e ficaram sem carro e sem dinheiro!
Escreve-se na sentença que “a entrega dos documentos é efeito da compra e venda e não do contrato de crédito, e, porque nenhuma relação de colaboração se afirmou entre financiador e vendedor para a conclusão daquele contrato de compra e venda, a falta da entrega dos documentos não é oponível ao mutuante nem invocável perante este para o consumidor/mutuário se desonerar ou suspender o pagamento das prestações em que fracciona o reembolso da quantia mutuada”.
Não subscrevemos a afirmação transcrita tal como já deixámos assinalado, pois nenhuma dúvida subsiste que tal colaboração existiu, como se evidenciou acima e decorre da factualidade alegada pelos réus e pela chamada, sendo por conseguinte lícita a suspensão do pagamento das prestações atinentes ao contrato de crédito.
E mais adiante escreve-se na sentença: “Justificado estaria, assim, o direito do Autor à resolução do contrato, com a consequente restituição do bem vendido à vendedora e restituição do preço ao comprador. Mas o Autor não optou pela resolução do contrato de compra e venda. O Autor, inicialmente decidiu suspender as prestações do mútuo, o que conduziu a que a entidade financiadora Credibom, procedesse ao levantamento da viatura e só mais tarde decidiu regularizar o pagamento das prestações em falta. Assim, e face ao disposto no art. 804º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, imputando-se à interveniente L. M.A. Unipessoal, Lda o não cumprimento no tempo devido da prestação integral a que se achava obrigada, e sendo essa prestação, na medida em que satisfaz o interesse do credor, ainda possível, constituiu-se aquela em mora, facto este que importa para ela a obrigação de reparar os danos causados à Requerente”.
Não acompanhamos as afirmações transcritas que emergem de uma visão excessivamente formalista da lei e dos seus institutos, completamente desligada da realidade.
É irrecusável que foi a vendedora quem deu causa ao litígio ao não entregar a declaração de venda que permitiria o averbamento da propriedade da viatura em nome dos autores.
A justificação por ela dada – alegadamente transmitida pela C. SFAC - de que a declaração modelo 2 fora assinada pelo autor no local destinado ao vendedor, ilustra ela própria o incumprimento, pois significaria que a declaração entregue não estava assinada pelo vendedor, sugerindo assim que o que foi entregue foi o impresso e não a declaração.
De resto, em 23 de Setembro de 2004 (certidão de fls 33) a viatura continuava registada em nome de M. Araújo., mantendo-se a reserva de propriedade a favor de C. SFAC em garantia do crédito concedido à titular inscrita, o que vale por dizer que decorridos mais de 30 meses desde a venda, nenhuma das sociedades chamadas tinham promovido o cancelamento de tais inscrições.
Por outro lado, é verdadeiramente insólito que ao longo do lapso temporal que o processo já leva (nove anos) nenhuma das referidas sociedades se disponibilizasse a facultar a necessária declaração de venda, promovendo a recolha da assinatura da titular inscrita e o cancelamento do encargo registado a favor de C. SFAC.
Aliás, a sociedade C. SFAC na pendência do processo veio a receber em Janeiro de 2008 a quantia de €6.979,03, liquidados pelos autores “para não ter problemas no Banco de Portugal” e nem assim diligenciou pela restituição do veículo aos autores.
Neste contexto, ignora-se o que possa ter levado o tribunal a quo a escrever que o cumprimento da prestação integral a que a vendedora se achava obrigada“é ainda possível e satisfaz o interesse do credor”.
Nenhum elemento consta dos autos que aponte no sentido de não ter sido consumada a venda anunciada pela C. SFAC na carta de 20/3/2003 (fls 7), sendo intuitivo que a entrega da declaração de venda regularizada sem a viatura não convalida o negócio.
Por outro lado, não se atinge como pode afirmar-se que tal entrega a ser feita “satisfaz o interesse do credor”, pois se este adquiriu um veículo por €6.933,29 em Janeiro de 2002 de que lhe serve que a vendedora lho entregue agora, volvidos mais de dez anos?
Repare-se que decorrido apenas pouco mais de um ano desde a aquisição pelos AA, já a sociedade C. SFAC se aprestava para o vender por €2,500, 00 (fls 7), pouco mais de um terço do preço por que fora vendido aos AA!
Que interesse podem ter os AA. em receber um “monte de sucata” sem qualquer préstimo ou valor a não ser para branquear a falta de idoneidade da vendedora e a displicência da SFAC que escolheu como associada?
Não seria expectável que a sociedade C. SFAC, em vez de “levantar” a viatura e promover a sua venda, tivesse antes diligenciado pela regularização do registo, possibilitando aos autores fruir cabalmente de um bem que tinham adquirido com dificuldades óbvias e cujas prestações tinham pago ao longo de 14 meses?
Reconhece-se que os autores não procederam à resolução do contrato de compra e venda como o incumprimento da vendedora legitimava, tendo-se limitado a interromper o pagamento das prestações do mútuo, facto que determinou que C. SFAC, beneficiária da reserva de propriedade, “levantasse” a viatura, subtraindo-a à posse dos AA e diligenciando pela sua venda.
Neste contexto, parece intuitivo que os autores quiseram acolher-se à disciplina da impossibilidade da prestação por facto imputável à vendedora, que lhes confere o direito a ser indemnizados dos danos sofridos e a exigir a restituição do que haviam pago (nº2 do artigo 801º do CC).
No caso concreto, os autores limitaram-se a reclamar o pagamento das prestações atinentes ao mútuo já pagas e o valor das prestações que ainda lhes faltava pagar, sendo intuitivo que tal pretensão tem implícita a resolução do contrato de compra e venda por si celebrado com a ré.
Na verdade, se alguém que adquire um bem e o paga de imediato e mais tarde vai reclamar a devolução daquilo que pagou, dizendo que o mesmo não lhe foi entregue, terá de emitir uma declaração formal de que pretende resolver o contrato ou tal reclamação tem de ser valorada como resolução?
Objectar-se-á que in casu o bem foi entregue ainda que sem os documentos que permitiam a sua utilização e, assim sendo, a resolução só era possível se acompanhada pela restituição do próprio bem (nº 2 do artigo 432º do CC).
Sucede, no entanto, que tal exclusão do direito à resolução pressupõe que a impossibilidade de restituição emerge de circunstâncias “não imputáveis ao outro contraente”, o que vale por dizer que não abarca a situação dos presentes autos, porquanto a impossibilidade de restituição do bem decorre, por um lado, do facto de a vendedora ter vendido um bem onerado com uma reserva a favor de terceiro – habilitando-o a “levantar” a viatura e furtando-a à posse do adquirente - e, por outro, porque tal impossibilidade é o corolário do incumprimento da vendedora.
De resto, embora aos autores assistisse o direito de resolver o contrato de crédito, a coberto do disposto no nº2 do artigo 12º do DL nº359/91, como acima se deixou dito, não foi isso que fizeram, limitando-se a interromper o pagamento das prestações.
Ora, quando dias depois a C. SFAC procede ao “levantamento” do veículo é ela própria que resolve o contrato de mútuo, tornando ineficaz a compra e venda que lhe estava associada, em harmonia com o disposto no nº1 do artigo 12ºdo diploma mencionado.
No caso concreto, a vendedora recebeu apenas €7.120,38 pela venda do veículo e os autores reclamavam dela o pagamento de €10.053,85, correspondente à totalidade das 72 prestações ajustadas no contrato de mútuo, acrescida dos juros à taxa legal.
Porém, no valor peticionado estava incluído o montante total das 58 prestações atinentes ao mútuo, em falta na data da interrupção do pagamento (€8.099,03),sendo certo que os autores apenas liquidaram em 14/1/2008, o montante de €6.979,03, supostamente “tudo o que lhe deviam”, como enfaticamente referem.
Ora, devendo a ré ressarcir os AA dos danos emergentes do incumprimento, cumpre então pagar-lhes a quantia de €1954,82, correspondente às 14 primeiras prestações, acrescida dos juros sobre tal montante, vencidos desde a citação, bem como a quantia de €6.979,03 e juros desde 14/1/2008, pois essa é exactamente a extensão do seu prejuízo e não a que, reiterando o pedido feito na acção, reclama de novo nesta instância.
Em suma, o recurso merece parcial provimento, porquanto, como flui do que fica dito, a quantia efectivamente paga pelos autores é inferior à estimada na petição e que serviu de base ao pedido.
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Decisão:
Em face do exposto, concede-se parcial provimento à apelação e condena-se a chamada L. M. A. - Unipessoal, Lda a pagar aos autores a quantia de €8.933,85, acrescida de juros sobre €1.954,82 a partir de 13/7/2005 e sobre €6.979,03, desde14/1/2008, bem como dos que se vencerem sobre aquela quantia (€8.933,85) até efectivo pagamento.
As custas em ambas as instâncias serão suportadas pelos AA e pela referida chamada, na proporção do decaimento.
Lisboa, 16 de Outubro de 2012
(Gouveia Barros)
(Roque Nogueira)
(José David Pimentel Marcos)
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