CRIME
CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
PERIODO DE DEZ DIAS
INSTRUÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

I - Estando o arguido na posse de 27,020 g de cannabis, não basta as suas declarações, em 1.º interrogatório e na fase da instrução, a afirmar ser consumidor de droga desde os 11 anos e destinar aquele produto, exclusivamente, ao seu consumo e que aquela quantidade não chegaria para mais de 5 dias do seu consumo, para - sem quaisquer outros elementos de prova que as corroborem- afastar o valor da prova pericial, que refere que a quantidade apreendida, com a concentração de A9THC de 5,4%, corresponde a 29 doses diárias.
II - Donde, não só não existe dúvida séria, razoável, em termos de prova indiciaria, como, pelo contrário, existem indícios seguros da prática do crime de consumo, p. e p pelo artigo 40.º/2 do Decreto Lei 15/93.

Texto Integral

Processo n.º1532/16.4PJPRT.P1

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
Nos autos de instrução n.º1532/16.4PJPRT, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto, J1, por despacho proferido em 8/9/2017, foi decidido não pronunciar o arguido B… pela prática de um crime de consumo de estupefacientes p e p. pelo art.410.º, n.º2, do DL n.º15/93, de 22-1.
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso, extraindo da motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª Ao Arguido foi apreendido um produto que, submetido a Perícia Laboratorial, revelou tratar-se de Cannabis (resina), estupefaciente previsto na Tabela I-C anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com um peso líquido de 27,020 gramas e um grau de pureza de 5,4% (THC), suficiente para 29 doses - cfr. Relatório Pericial de fls. 106.

2.ª O Arguido declarou ser consumidor de cannabis e que o produto estupefaciente apreendido seria suficiente para o seu consumo por um período de 5 dias.

3.ª O Tribunal de Instrução Criminal concluiu que “a quantidade de droga que foi encontrada não excede a quantidade necessária para o consumo médio diário” e “Ainda que por apelo art.º 9.º da Port. 94/96, de 26.MAR (e respetiva tabela anexa) se possa concluir que a quantidade de droga encontrada na posse do arguido excedia o necessário ao seu consumo individual por dez dias, permanece a dúvida razoável, face às declarações do arguido, em que tal conclusão seja válida.”

4.ª Significa isto que, sem qualquer fundamentação, o Tribunal divergiu da conclusão do exame pericial – que atestou que a droga apreendida era suficiente para 29 doses diárias – e valorizou as declarações do Arguido que afirmou ser apenas suficiente para 5 doses diárias.

5.ª O Tribunal violou o disposto nos artigos 127.º e 163.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, ao não fundamentar o porquê de se afastar do juízo pericial.

6.ª Sobre a natureza dos valores constantes do Mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, veja-se o Acórdão dessa Relação do Porto, de 25-11-2015, no Proc. n.º 13/12.0GEVFR.P1, aliás transcrito na decisão recorrida, onde se escreveu: “Tais valores são meramente indicativos, não são de aplicação automática, não são taxativamente impostos ao tribunal que pode afastar a sua aplicação desde que devidamente fundamentada.”

7.ª Não é crível a versão do Arguido B… e seguida de perto pelo Tribunal a quo, de que o seu consumo (mais de 5 g/dia) era 10 vezes superior ao que a verdade científica não posta em causa considera o consumo médio individual diário (0,5 g/dia), tanto mais que a mesma não foi de forma alguma demonstrada.
Termos em que,
Deverá o presente recurso proceder e, por força dessa procedência, ser revogada a decisão instrutória proferida, que deverá ser substituída por outra que pronuncie o Arguido B… pelos factos por que foi acusado, e que integram a prática de um crime de detenção de estupefacientes para consumo próprio, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa àquele diploma.
O arguido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência (fls.219 a 228).
Remetidos os autos ao tribunal da relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Sr.Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso (fls.235 e 236).
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, o arguido respondeu, pronunciando-se no sentido da confirmação da decisão recorrida (fls.238 a 242).
Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O despacho de não pronúncia tem o seguinte teor:
«Foi requerida a abertura da instrução pelo arguido B… (fl.s 155/158), relativamente à acusação contra si deduzida pelo M. Público (fl.s 139/141), pela alegada prática de um crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 40.º, n.º 2 do DL 15/93, de 22.JAN.
Fundamento do seu requerimento de abertura de instrução é a alegação em como não resultam do inquérito indícios em como a quantidade de estupefaciente que foi encontrada na sua posse não é compatível com a comissão do crime de consumo de droga, antes, pelo contrário, apenas de uma contra-ordenação, uma vez que tal quantidade de droga não excedia dez dias do consumo médio dele.
Conclui, assim, pela sua não pronúncia relativamente ao acusado crime de consumo de estupefacientes.
Requereu o seu próprio interrogatório e a inquirição de uma testemunha, diligência relativamente à qual veio posteriormente a desistir.
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Aberta a instrução, procedeu-se ao interrogatório do arguido.
Foi realizado o debate instrutório, em que o M. Público pugnou pela pronúncia do arguido nos exactos termos que constam da acusação contra ele deduzida; o requerente manteve o que havia expendido no seu requerimento de abertura de instrução, concluindo pela sua não pronúncia relativamente ao acusado crime de consumo de estupefacientes.
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O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento“.
Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se a acusação deduzida contra a arguida C… pelo M. Público quanto ao crime de ofensa à integridade física por negligência assenta em indícios suficientes em como a arguido praticou tal crime.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia“.
Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C. Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.“.
Conforme se refere no acordão de 02.JUN.15 da Relação de Évora (pr.1083/13.9GDSTB) “A jurisprudência tem considerado, de modo que se nos afigura maioritário, que “indícios suficientes” correspondem à persuasão ou à convicção de que, mediante o debate amplo da prova em julgamento, se poderão provar em juízo os elementos constitutivos da infracção – cfr. entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25-06-1988, no B.M.J. nº 378, pág. 787, do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1992, no processo nº 427747, cit. em “Código de Processo Penal Anotado”, Simas Santos e Leal Henriques, vol. II, 2ª ed., e do Tribunal da Relação de Évora de 22-06-1993, no B.M.J. nº 428, pág. 706.
Isto é, os indícios suficientes correspondem a um conjunto de factos que, relacionados e conjugados entre si, conduzam à convicção de culpabilidade do arguido e de lhe vir a ser aplicada uma pena.

E por isso é que, quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidaderazoável» de condenação é uma possibilidade mais positiva que negativa; «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou os indícios são os suficientes quando haja «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
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O crime pelo qual o arguido foi acusado – de consumo de estupefacientes – consiste, nomeadamente, na aquisição ou detecção de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas anexas ao DL 15/93, de 22/01, desde que se destinem tais plantas, substâncias ou preparações ao consumo do agente (art.º 40.º do referido diploma legal).
Na sequência da Lei 30/00, de 29.NOV, foi revogado o referido art.º 40.º do DL 15/93 (salvo relativamente ao cultivo de plantas), passando a constituir contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas.
Por seu turno, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 8/2008 de 25.JUN.08, esclareceu que “…não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2 do DL nº 15/93, de 22/1, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.
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No caso em apreço, da prova indiciária recolhida no inquérito resulta, em síntese, o seguinte:
- foi encontrada na posse do arguido, em 30.DEZ.16, um produto, o qual, submetido a teste rápido, revelou tratar-se de cannabis, com o peso bruto de 27,27 g. (fl.s 2/3 e 4 dos autos);
- ouvido em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido referiu ser consumidor de droga desde os onze anos de idade e destinar o estupefaciente que lhe foi apreendido exclusivamente ao seu consumo (fl.s 25/27);
- submetido o estupefaciente apreendido ao arguido a exame pericial, revelou o mesmo ter o peso líquido de 26,94 g. e revelar um grau de pureza de 5,4% (fl.s 106)
- mais se refere nessa perícia que, de acordo com a Port. 94/96, de 26.MAR, a referida quantidade seria suficiente para 29 doses individuais;
- quando interrogado em sede de instrução, o arguido declarou que a quantidade de droga que lhe foi encontrada não chegaria para mais de 5 dias de consumo dele.
Ante o quadro factual acima descrito e projectando no tempo – em jeito de prognose – um julgamento em que a prova produzida seja idêntica à que foi recolhida em sede de inquérito, pergunta-se: será mais provável a condenação ou a absolvição do arguido pelo crime de consumo de estupefacientes?
A resposta não pode deixar de ser outra senão que é altamente improvável que viesse a ser condenado por tal crime.
Na verdade, a quantidade de droga que foi encontrada não excede a quantidade necessária para o consumo médio diário.
Ainda que por apelo art.º 9.º da Port. 94/96, de 26.MAR (e respectiva tabela anexa) se possa concluir que a quantidade de droga encontrada na posse do arguido excedia o necessário ao seu consumo individual por dez dias, permanece a dúvida razoável, face às declarações do arguido, em que tal conclusão seja válida.
Com efeito, e conforme se refere no ac. da Relação do Porto, de 25.NOV.15 (pr. 13/12.0GEVFR.P1), “I - A concentração de princípio ativo não releva para o preenchimento do tipo legal de tráfico de estupefacientes, mas é relevante para a determinação dos limites quantitativos máximos da dose média individual diária e, portanto, para o crime de consumo de estupefacientes.
II - São esses limites que traçam a fronteira entre o tráfico para consumo (artigo 26.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/1) e o tráfico de estupefacientes "tout court", e entre o ilícito criminal e o ilícito contraordenacional previsto no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11.
III - Apesar de tal não resultar, explicitamente, do Art. 40.º do Dec. Lei n.º 15/93, de 22/01 nem do Art. 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29/12, na aferição das quantidades de consumo médio individual diário de produtos estupefacientes devem ser considerados os valores fixados pelo mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26/03.
IV - Tais valores são meramente indicativos, não são de aplicação automática, não são taxativamente impostos ao tribunal que pode afastar a sua aplicação desde que devidamente fundamentada.”.
Quando muito, a conduta do arguido constitui a contra-ordenação prevista no art.º 2.º da Lei 30/2000, de 29.NOV, mas jamais o crime previsto no art.º 40.º da Lei 15/93.
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O juiz de instrução criminal, em sede de instrução, analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daqueles que teve no inquérito é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
A decisão instrutória (seja qual o sentido que tome) deve assentar apenas na apreciação da prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução; tudo o mais é espúrio e irrelevante.
No caso em apreço, examinado o inquérito, é inevitável concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática do crime de consumo de droga, ou seja, recorta-se como mais improvável que provável a culpabilidade do aqui arguido relativamente a tal crime e, consequentemente, que lhe venha a ser aplicada uma pena depois de realizada a audiência de julgamento por esse aludido crime.
Dito de outra maneira: os indícios recolhidos em inquérito não têm força persuasiva suficiente que permitam concluir que – efectuado o julgamento - seria mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição pelo crime de contrafacção de moeda.
Por isso, não pode o arguido ser pronunciado pela prática do referido crime.
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Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente parte desses indícios se afigurarem insuficientes, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIA o arguido B…, com os sinais dos autos, pelos factos vertidos na acusação pública de fl.s 139/141, que constituiriam a prática do crime de consumo de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 40.º do DL 15/93, de 22.JAN.»
Apreciação
O âmbito do recurso está delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo do tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões do presente recurso, a questão suscitada traduz-se em saber se fornecem os autos indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo art.40.º, n.º2, do DL n.º15/93, de 22/1.
Estabelece o art.308.º nº1 do C.P.Penal «Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.»
E o n.º2 deste dispositivo remete, entre outros, para o art.283.º n.º2 do C.P.Penal, o qual dispõe «Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.»
Quando a lei afirma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena – art.283.º, n.º2, ex vi art.308.º, n.º2, ambos do C.P.Penal. – não quer dizer “possibilidade mediana” ou “possibilidade mínima”.
Em direito penal não se submetem cidadãos a julgamento perante a mera possibilidade de poderem vir a ser condenados. Pelo contrário, como refere Jorge Noronha e Silveira, in O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pág.180, «A expressão indícios suficientes exige uma possibilidade particularmente qualificada de futura condenação, pressupondo a formação de uma verdadeira convicção da probabilidade dessa condenação.»
Ou seja: o juízo de probabilidade revelador dos indícios suficientes da verificação do crime e de quem é o seu agente não se contenta com um juízo de probabilidade mediano; antes pressupõe e exige uma verdadeira convicção de probabilidade dessa condenação.
Nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª edição, pág.332, nota 10 ao art.127.º, indícios suficientes são «as razões que sustentam e revelam uma convicção sobre a maior probabilidade de verificação de um facto do que a sua não verificação».
Mais conclui o mesmo autor [ob. e local referidos] que, «por isso, é inconstitucional a valoração da prova indiciária que subjaz ao despacho de pronúncia que se basta com a formulação de um juízo minimalista segundo o qual só não deve haver pronúncia se da submissão do arguido a julgamento resultar um ato manifestamente inútil (Acórdão do TC nº 439/2002)».
Em síntese, só uma forte probabilidade de condenação pode justificar a dedução da acusação ou a prolação de despacho de pronúncia.
Por seu lado, a jurisprudência fixou o conceito de “indícios suficientes” nos mesmos termos da doutrina [entre outros, Ac.R.Lisboa de 12/4/2011, Ac.R.P. de 22/10/2008, Ac. R.Porto de 28/10/2015, in www.dgsi.pt/jtrp e Ac.STJ de 21/5/2008, in www.dgsi.pt/jstj].
Na situação em apreço, o tribunal a quo considerou suficientemente indiciados os seguintes factos:
- foi encontrada na posse do arguido, em 30.DEZ.16, um produto, o qual, submetido a teste rápido, revelou tratar-se de cannabis, com o peso bruto de 27,27 g. (fl.s 2/3 e 4 dos autos);
- ouvido em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido referiu ser consumidor de droga desde os onze anos de idade e destinar o estupefaciente que lhe foi apreendido exclusivamente ao seu consumo (fl.s 25/27);
- submetido o estupefaciente apreendido ao arguido a exame pericial, revelou o mesmo ter o peso líquido de 26,94 g. e revelar um grau de pureza de 5,4% (fl.s 106)
- mais se refere nessa perícia que, de acordo com a Port. 94/96, de 26.MAR, a referida quantidade seria suficiente para 29 doses individuais;
- quando interrogado em sede de instrução, o arguido declarou que a quantidade de droga que lhe foi encontrada não chegaria para mais de 5 dias de consumo dele.
Nos termos do art.40.º, n.º2, do DL nº 15/93, de 22/1, a detenção de substâncias compreendidas nas tabelas I a IV anexas, integra a prática de um crime de consumo de estupefacientes, se a sua quantidade for superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
É hoje entendimento corrente da jurisprudência que na aferição das quantidades de consumo médio individual diário de produtos estupefacientes, devem ser considerados os valores fixados pelo mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26/3, cujo art. 9.º estabelece: «os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria …». E os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária são definidos por referência ao princípio ativo do produto estupefaciente em causa.
De acordo com o art.10.º, n.º 1 da citada Portaria, «Na realização do exame laboratorial referido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, …, o perito identifica e quantifica a planta, substância ou preparação examinada, bem como o respetivo princípio ativo ou substância de referência».
No mapa anexo à Portaria n.º94/96 e no que respeita à canábis (resina) é indicado o valor de 0,5 g, com uma concentração média de 10% de A9THC - o tetrahidrocanabinol – que é o princípio ativo da canábis (resina).
Os valores referidos no mapa anexo não são rígidos, podendo ser considerados «valores de consumo médio individual diferentes em função das caraterísticas individuais do consumidor em questão. Podem ver-se, neste sentido, João Conde Correia, «Droga: exame laboratorial às substâncias apreendidas e diagnóstico da toxicodependência» in Revista do CEJ, n.° 1, p. 86-93; Eduardo Maia Costa, «Direito penal da droga: breve história de um fracasso”, in Revista do Ministério Público, nº 74, p. 103 a 120; Vítor Paiva, in «Breves notas sobre a penalização do pequeno tráfico de estupefacientes», in Revista do Ministério Público, nº 99, p. 143; Rui Pereira, «A Descriminação do Consumo de Droga», in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 1177-1178; e, entre outros, os Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de abril de 2008, proc. Nº 07P4723; e do Tribunal da Relação de Évora de 18 de Novembro de 2007, proc. Nº 1989/07-1, ambos in www.dgsi.pt.
Esta interpretação é, de resto, imposta pela doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional nº 534/98 (in www.tribunalconstitucional.pt), que, numa interpretação conforme à Constituição da referida Portaria 94/96 (quando se suscitou a eventual inconstitucionalidade deste diploma, por poder, ele próprio, delimitar negativamente algum tipo de crime ao abrigo de uma lei de remissão), considerou que os limites fixados nessa Portaria «tendo meramente um valor de meios de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do art. 71º do Decreto-Lei nº 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado. Não está em causa a remissão para regulamento da definição dos comportamentos puníveis do art. 26º, mas tão só, bem mais modestamente, a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado da respetiva fundamentação» - Ac.R.Porto de 2/10/213, relatado pelo Desembargador Vaz Patto, in www.dgsi.pt. Ou seja, o tribunal pode afastar os limites fixados na Portaria, que têm o valor de meio de prova, desde que fundadamente justifique a divergência atento o disposto no art.163.º do C.P.Penal.
Revertendo ao caso presente, o exame laboratorial junto aos autos identifica a substância em causa, o seu peso líquido – 27,020g e não 26,94g como por lapso se refere na decisão recorrida –, a concentração de A9THC - 5,4% -, assim como o número de doses diárias a que corresponde a quantidade apreendida – 29 doses diárias.
O Sr.Juiz de Instrução Criminal considerou que os indícios não eram suficientes, não obstante os elementos constantes do exame pericial, face às declarações do arguido que afirmou que a quantidade de produto estupefaciente que lhe foi apreendida não chegava para mais de cinco dias do seu consumo. Entendeu o Sr.Juiz que estava criada uma situação de dúvida razoável a valorar em benefício do arguido e consequentemente, uma vez em julgamento, seria mais improvável do que provável a condenação do arguido.
Afigura-se-nos que nesta fase processual em que se avalia a existência de indícios da prática de um crime de consumo de estupefacientes, as declarações muito genéricas do arguido, sem quaisquer outros elementos de prova que as corroborem, não permitam afastar os valores constantes do mapa anexo à Portaria, que têm o valor de prova pericial, de forma a concluir que não há indícios suficientes da prática daquele crime. O afastamento do juízo pericial tem de estar fundamentado e não é apenas pelo facto de o arguido apresentar uma determinada versão dos factos, que a mesma cria uma situação de dúvida séria, razoável em termos de indícios da prática de um delito.
E nem se diga como o recorrido, que, numa fase de meros indícios, aceitar os valores indicativos constantes do mapa anexo à Portaria 94/96, quando são contrariados pelas declarações do arguido, viola o princípio da presunção de inocência consagrado no art.32.º, n.º2 da CRP e o princípio do contraditório p. e p. pelo n.º5 do mesmo preceito constitucional.
O arguido invoca a violação de tais normas constitucionais, sem indicar as razões em que se baseia para tanto.
De todo o modo, a propósito do princípio da presunção de inocência, sempre se diga que não deve ser interpretado de modo puramente literal, pois a adotar-se essa literalidade, nunca seria possível efetuar-se qualquer juízo indiciador da prática de um crime.
Por outro lado, o princípio do contraditório, consagrado no art. 32.º n.º 5 da CRP, significa que nenhuma decisão deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir.
No caso vertente, foram tomadas declarações ao arguido, quer em 1ºinterrogatório judicial de arguido detido quer posteriormente na fase da instrução, pelo que não lhe assiste razão ao invocar a violação de tal princípio consagrado constitucionalmente.
Por todo o exposto, existindo indícios seguros da prática de um crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo art.40.º, n.º2, do DL n.º15/93, de 22-1, procede o recurso interposto pelo Ministério Público.
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida a qual deve ser substituída por outra que pronuncie o arguido B… pela prática de um crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo art.40.º, n.º2, do DL n.º15/93, de 22/1.
Sem custas.
(texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)

Porto, 29/11/2017
Maria Luísa Arantes
Luís Coimbra