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ARMA BRANCA
Sumário
I-Nem todas as “armas brancas” relevam para a tipificação como crime de detenção de arma proibida, conforme decorre da descrição do tipo legal (artº 86º, nº 1, al. d), da Lei nº 5/2006, de 23/02, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 17/2009, de 6/05). II- Nos termos legais, é crime, entre outros actos, a detenção de “outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”. III- Tem prevalecido na jurisprudência o entendimento de que importa fazer uma interpretação restritiva deste preceito legal, fazendo-se abranger pela expressão “sem aplicação definida” as “outras armas brancas”. IV- O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida, sob pena de redundar num alargamento da punibilidade a condutas que não representam qualquer perigo para bem jurídico tutelado pela norma incriminadora. V- Assim, uma faca de lâmina com o comprimento igual ou superior a 10 cm, que é uma arma branca que pode ser usada como arma de agressão, mas sendo uma faca de cozinha é de aplicação definida, pelo que não pode considerar-se arma proibida para efeitos de punição, como crime, da sua detenção (não justificada pelo arguido). (CG)
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ªa Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa
I - Relatório
No âmbito do processo especial sumário que, sob o n.° 121/11.4 SHLSB, corre termos pelo 2.° Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal da Comarca de Lisboa, o arguido (...) foi submetido a julgamento, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida previsto e punível pelos artigos 86.°, n° 1, al. d), 2.°, n° 1, al. m), e 3.º, n.° 2, al. f), da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 17/2009, de 6 de Maio.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, por sentença de 16.08.2011 (cujo dispositivo está reproduzido na acta da audiência a fls. 69), foi decidido o seguinte:
"...julgo a acusação procedente, por provada, e em consequência, decido:
a) Condenar o arguido (...), pela prática, em 09/08/2011, como autor material de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos art° s 86°, n° 1 al. d) e 2°, n° 1 al. m), e 3°, n° 2 al. f), da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na redacção da Lei 17/2009 de 6 de Maio, na pena de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o montante de € 1 500,00 (mil e quinhentos euros) ou, nos termos do artigo 49° do C. Penal, em 200 (duzentos) dias de prisão subsidiária, caso o arguido não proceda ao pagamento da multa em que foi condenado e esgotadas que estejam as outras formas de pagamento.
b) Condenar o arguido em custas no montante 1 UC (cfr. art. 8°, n.° 5 do Regulamento das Custas Judiciais, por referência à tabela III do mesmo diploma legal).
Atento o disposto no art° 109° do C.P., declaro perdidas a favor do Estado, as armas apreendidas a fls. 9, dos autos, mais determinando o seu depósito à guarda da P.S.P., a fim de promover o seu adequado destino (cfr. art. 78° da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei n° 17/2009, de 6 de Maio".
Não se conformou o arguido com essa decisão e dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, de que extraiu as seguintes "conclusões" (em transcrição integral):
A) Nos termos das alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 389.°-A do CPP, a sentença, ainda que logo proferida oralmente, deve conter a indicação dos factos provados e não provados, ainda que com remissão para as peças processuais já existentes no processo, seguida de uma exposição concisa dos factos e do direito, referindo depois o n.° 3 do mesmo artigo, a obrigação de juntar a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, onde não se inclui necessariamente a fundamentação da sentença realizada pelo juiz, por razões óbvias.
B) A douta sentença lavrada não cumpre com aqueles requisitos formais de legalidade de fundamentação,
C) devendo, em consequência, ser entendida como nula, em face do disposto no art.° 379.0, n.° 1, alínea a) do CPP.
D) O art.° 2.°, n.° 1, alínea m) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, define como arma branca "todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a io cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboletas, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões".
E) Ao arguido foram apreendidos e estão à guarda dos autos uma faca "tipo" cozinha com uma lâmina de 13 cm e um machado, para o qual é indicada uma medida que não o do comprimento da lâmina, como a tipificação legal obriga.
F) Sendo um machado um objecto corto-contundente, deve ser entendido como arma branca apenas quando a sua lâmina alcança os 10 cm de comprimento.
G) O comprimento da lâmina do machado apreendido à ordem dos autos não atinge os 10 cm.
H) Por sua vez, o art.° 86 na alínea d) do n.° 1 do mesmo diploma vem tipificar como crime por detenção de arma proibida "Arma do classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxeur, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicações definidas que possam ser usadas como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse (...)"
I) No caso em apreço, não se trata de uma faca ou machado dissimulado, são instrumentos com aplicações definidas e ainda que a faca de cozinha tenha uma lâmina de 13 cm não subsume a categoria de arma proibida, a não ser que tivesse sido usada como tal.
J) o que não foi o caso.
K) ...
L) Conforme douto Acórdão da Relação de Évora, de 4/3/2008, in www.dgsi.pt:
1. Ainda que o conceito de arma branca possa abranger múltiplos instrumentos, nem todos eles podem integrar-se no conceito de arma cuja aquisição, detenção, transporte ou uso é proibida e passível de integrar o crime em causa. Só é absolutamente proibida a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte por particulares das armas brancas que integram a classe A.
2. Para que a detenção ou porte de "outras armas brancas" a que alude a alínea d) do nº 1 do art° 86° constitua crime, impõe o legislador que, cumulativamente, se verifiquem três requisitos: 1) ausência de aplicação definida; 2) capacidade para o uso como arma de agressão; 3) falta de justificação para a posse.
3. (...)
4. Uma faca de cozinha tem uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas) que não é a de meio de agressão contra pessoas mas que, subtraído ao contexto normal da sua utilização, pode ser utilizada como tal, sendo indubitavelmente uma arma branca, porque tem uma lâmina com mais de 10 cm de comprimento, não é (pelo menos no quadro da mera detenção) uma arma branca proibida.
5. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida.
M) No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 23.06.2010, publicado in www.dgsi.pt também vem dizer que "a detenção de uma faca de cozinha, com uma lâmina de 13 cm, utilizada para rasgar um placar eleitoral, não integra o crime de detenção de arma proibida, p. p. pelas disposições conjugadas dos artigos 2°, n° 1, alínea m) e 86°, n° 1, alínea d) da Lei 5/2006, na redacção que lhe foi dado pela Lei 7/2009, de 16/5. "
N) Não há assim, objectivamente, qualquer fundamento legal para a incriminação do arguido por não estarem preenchidos os elementos objectivos do tipo do crime previsto no art.° 86, n.° 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.
O) Conforme consta da prova gravada e foi declarado pelas três únicas testemunhas, 3 agentes da polícia, interpelaram o arguido àquela hora e naquele local por terem recebido uma denúncia em como este era portador de uma arma de fogo, ou seja, de uma arma proibida.
P) O que não se veio a confirmar como verdadeira.
Q) Ainda que a denúncia se revelasse falsa, ainda que não houvesse arma proibida, foram apreendidos a faca e o machado que o arguido trazia na sacola e espontaneamente declarou e mostrou, sob alegação de serem armas brancas proibidas.
R) O arguido quando foi interpelado acabava de sair de uma reunião no CPCJ, onde tudo correu normalmente e sem qualquer incidente, em nada relevando o facto de trazer estes instrumentos consigo.
S) Não tendo sido indiciado qualquer facto ou suspeita que o arguido fosse a seguir praticar qualquer crime utilizando os identificados instrumentos.
T) A Constituição prevê, no art. 205.°, um dever e o correspondente direito a fundamentação das sentenças, imposição constitucional que constitui uma garantia contra o arbítrio e a discricionariedade que é concedida a todos os cidadãos, incluindo vítimas e arguidos, permitindo-lhes compreender o sentido das decisões jurisdicionais.
U) Como esclarece Fernanda Palma, em entrevista ao diário CM de 17.01.2010, «a livre apreciação da prova, constituindo um corolário da independência dos tribunais, pressupõe critérios objectivos. E, como disse, Castanheira Neves, uma liberdade para a objectividade. A fundamentação da sentença, constrói-se através da indicação e do exame crítica das provas.»
V) Ao condenar o arguido pela prática do crime de detenção de arma proibida, o Tribunal a quo violou os artigos 410.°, nº2 e o artigo 86.°, n° 1, alínea d) da Lei 5/2006, na redacção que lhe foi dada pela Lei 7/2009, de 16/5. Ainda e sem conceder
W) ...
X) Ao arguido foi aplicada uma (pena) de 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de € 5,00, no montante global de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), ou seja, na quantidade próxima do limite máximo previsto na lei.
Y) ...
Z) Está também dado como assente nos autos que o arguido está reformado por invalidez, dado ter uma deficiência no braço esquerdo, auferindo uma pensão mensal de € 247,00, com a qual tem de fazer face às suas despesas correntes.
AA)No art.° 71.° do Código Penal, o legislador estabelece que a medida da pena deve ter em conta, entre outros critérios, as exigências de prevenção, a gravidade das consequências resultantes da prática do facto ilícito, as condições pessoais do agente e a sua situação económica.
BB)As condições pessoais do arguido e a sua situação económica foram objectivamente ignoradas, nenhuma razão havendo à luz dos critérios vertidos no art.° 71° do CP para tão pesada condenação.
CC)A medida da pena viola os critérios legalmente estabelecidos e consubstancia uma grave injustiça.
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Na 1ª instância, a digna Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, que sintetizou nas seguintes conclusões:
1. O recurso (também) da matéria de facto interposto pelo arguido não obedece aos requisitos previstos na lei processual penal, nomeadamente no artigo 412.°
2. Inexistem quaisquer vícios que afectem a sentença.
3. Não existe igualmente erro na apreciação da prova e,
4. A medida da pena a pecar, é por defeito.
5. Sem conceder, sempre diremos que aderimos totalmente à motivação da matéria de facto e de direito constante da aliás douta sentença recorrida, salientando-se que a mesma vale por si só, mostrando-se acertada no elenco factual, na sua fundamentação e na correcta aplicação do Direito aos factos.
Entende, por isso, que o recurso é de julgar improcedente.
*
Admitido o recurso (após ter sido deferida reclamação contra a sua não
admissão), já nesta instância, na intervenção prevista no art.° 416.°, n° 1, do Cód.
Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que se pronuncia pelo provimento do recurso, por não constituir crime a conduta imputada ao arguido/recorrente.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417°, n° 2, do Cód. Proc. Civil. Colhidos os vistos e realizada que foi a conferência, cumpre decidir.
II — Fundamentação
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.°, n.° 1, e 417.°, n.° 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso.
Como resulta claro da motivação do recurso e das conclusões que ficaram transcritas, o arguido/recorrente insurge-se contra o enquadramento jurídico-penal dos factos, pois considera que qualquer dos objectos (quer a faca, quer o machado) que lhe foram apreendidos e de que era detentor não são considerados armas proibidas para efeitos da tipificação do crime de detenção de arma proibida do art.° 86, n.° 1, alínea d) do Regime Jurídico das Armas e suas Munições.
Mas o recorrente também questiona a validade formal da sentença, pois considera que na sua elaboração não foram observadas formalidades legais, omissão que a tornaria nula.
São, pois, duas as questões a apreciar e decidir:
nulidade da sentença;
se uma faca de cozinha com uma lâmina de comprimento igual ou superior a 10 cm e um machado são armas brancas proibidas para efeitos da tipificação, como crime, da sua detenção injustificada.
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A alegada nulidade da sentença
O recorrente entende ser nula a sentença em face do disposto no art.° 379º, n° 1, alínea a) do Cód. Proc. Penal.
Afirma que a sentença proferida não cumpre "com os requisitos formais de legalidade de fundamentação", mas não concretiza a que formalidades se refere.
Se bem se entende, parece aludir à documentação da sentença, pois invoca o disposto no n° 3 do art° 389°-A do Cód. Proc. Penal.
Ora, a norma convocada dispõe sobre a documentação da sentença, que é efectuada nos termos dos artigos 363° e 364° do mesmo compêndio normativo, ou seja, por regra, mediante gravação magnetofónica ou audiovisual.
Antes das alterações introduzidas pela Lei n.° 26/2010, de 30 de Agosto, a sentença, tal como agora, era logo proferida verbalmente, mas ditada, na íntegra, para a acta. Agora, com as referidas alterações, só o dispositivo da sentença tem de ser ditado para a acta (n.° 2 do art.° 389.°-A do Cód. Proc. Penal), como efectivamente aconteceu neste caso. No entanto, está bom de ver que a sentença, na sua totalidade, tem de ficar documentada e essa documentação faz-se, como já dissemos, mediante gravação magnetofónica ou audiovisual. Por isso o n° 4, ainda do art.° 389.°-A, manda que seja entregue cópia da gravação a quem, em princípio, tem legitimidade para dela recorrer: arguido, assistente e Ministério Público.
Mostram-se cumpridas as formalidades legais a que tem de obedecer a sentença, pelo que improcede a arguição de nulidade.
Armas brancas — requisitos que devem reunir para que a sua detenção configure o crime tipificado no artigo art.° 86, n.° 1, alínea d), do regime jurídico das armas e suas munições.
O artigo 86.°, n.° 1, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.° 17/2009, de 6 de Maio, diz-nos que comete o crime de detenção de arma proibida quem, sem autorização, fora das condições legais, ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo alguma das armas ou algum dos instrumentos, engenhos, equipamentos, produtos ou substâncias elencados nas suas quatro alíneas.
Para o caso, interessa-nos as armas e, especificamente, as armas brancas mencionadas na alínea d) do n.° 1 citado. Arma branca é todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões (art.° 2°, n° 1, al. m, da Lei n.° 5/2006, de 23/2).
Na classificação estabelecida no artigo 3.° do mesmo diploma legal, integram a classe A, juntamente com as armas brancas dissimuladas sob a forma de outro objecto e, ainda, as armas brancas sem afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção (alíneas d) e f) do n.° 2 daquele artigo).
Daqui resulta que se podem agrupar sob a designação de armas brancas:
os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm;
independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;
as dissimuladas sob a forma de outro objecto e
os objectos ou instrumentos portáteis dotados de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm, que não tenham uma afectação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou que pelo seu valor histórico ou artístico não sejam objecto de colecção.
Para o que aqui importa, foram considerados provados os seguintes factos: "No dia 09.08.2011, cerca das 16h:15, na sequência de uma denúncia, o arguido foi encontrado, na Rua ..., na posse de uma faca tipo cozinha, com lâmina afiada de ambos os lados, cabo de 12 cm e lâmina de 13 cm, no comprimento total de 25 cm, e um machado com lâmina de 15 cm e cabo revestido a madeira com 36 cm. O arguido sabia que detinha objectos na via pública sem aplicação definida naquele contexto de se encontrar na via pública. Conhecia perfeitamente o potencial lesivo de ambos os objectos a quis tê-los na sua posse. Sabia, também, que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal".
Tendo uma lâmina de comprimento superior a 10 cm, a faca de cozinha de que o arguido era detentor constitui uma arma branca.
Já o machado, embora se tenha dado como provado que tem uma lâmina com 15 cm de comprimento, a verdade é que, conforme se vê pelas reproduções fotográficas de fls. 15, esse é o comprimento da sua parte metálica e não da sua lâmina.
Mas o que agora importa sublinhar é que nem todas as armas brancas relevam para a tipificação como crime de detenção de arma proibida.
Como decorre da descrição do tipo legal, para esse efeito, só relevam:
as armas brancas dissimuladas sob a forma de outro objecto;
independentemente das suas dimensões, as facas borboleta, as facas de abertura automática, as facas de arremesso e os estiletes;
outras armas brancas. Foquemo-nos nestas últimas.
Nos termos legais, é crime, entre outros actos já supra mencionados, a detenção
de "outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse".
Tem-se entendido (cfr. anotação de Artur Vargues, in "Comentário das Leis Penais Extravagantes", vol. 1, UCE, 242, Org. de Paulo Pinto de Albuquerque e José Branco, que cita em apoio os acórdãos do TRE, de 04.03.2008 e do TRG, de 09.02.2009, ambos disponíveis em www.dgsi.pt) que, para este efeito, as "outras armas brancas" têm de reunir, cumulativamente, os seguintes requisitos:
não terem aplicação definida;
terem aptidão para serem usadas como arma de agressão e
que o seu portador não justifique a sua posse.
No entanto, não é pacífico que a expressão "sem aplicação definida" se refira também às "outras armas brancas" e não apenas aos "instrumentos".
Não é recente a polémica sobre as características que devem reunir as armas brancas para serem consideradas armas proibidas.
Na vigência do, entretanto revogado, artigo 275.° do Código Penal revisto pelo Dec. Lei n.° 48/95, de 15 de Março (na formulação que lhe foi dada, sucessivamente, pelas Leis n.°s 65/98, de 2 de Setembro, e 98/2001, de 25 de Agosto), entendia-se que era para o artigo 3.° do Dec. Lei n.° 207-A/75, de 17 de Abril, que remetia o seu n.° 3 ao aludir a "arma proibida".
Ora, o n.° 1, al. f) desse artigo 3.° deste último diploma legal considerava proibidas a detenção, uso e porte, entre outras, de "armas brancas ou de fogo com disfarce ou ainda outros instrumentos sem aplicação definida, que possam ser usados como arma letal ou de agressão, não justificando o portador a sua posse".
A controvérsia centrava-se na questão de saber se as armas brancas, designadamente facas e navalhas, deveriam ter "disfarce" para serem consideradas "armas proibidas", ou se essa característica se referia, apenas, às armas de fogo.
A orientação dominante na jurisprudência era no sentido de que também as armas brancas teriam de estar dotadas de disfarce para poderem ser consideradas armas proibidas, argumentando-se que o princípio da necessidade, constitucionalmente consagrado (art.° 18.0, n.° 2, da CRP) "...obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção, nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais" (Figueiredo Dias, "Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime", Editorial Notícias, 1993, pág. 86) e dirige-se tanto ao legislador como ao intérprete[i].
A controvérsia jurisprudencial justificou a prolação do Acórdão n.° 4/2004 (DR, I-A, n.° 112, de 13 de Maio de 2004) que fixou a seguinte jurisprudência: "Para efeito do disposto no artigo 275.°, n.° 3 do Código Penal, uma navalha com 8,5 cm ou 9,5 cm de lâmina só poderá considerar-se arma branca proibida, nos termos do artigo 3.0,
n.° 1, alínea j), do Decreto-Lei n.° 207-A/75, de 17 de Abril, se possuir disfarce e o portador não justificar a sua posse".
O argumento decorrente do aludido princípio é recuperado pelo Tribunal da Relação de Évora (no já citado acórdão de 04.03.2008) para defender uma interpretação restritiva da alínea d) do n.° 1 do art.° 86.° da Lei n.° 5/2006, de 23/02, fazendo-se abranger pela expressão "sem aplicação definida" as "outras armas brancas"[ii]3.
É este entendimento que tem prevalecido na jurisprudência e, ao nível da 2ª instância, pode mesmo considerar-se uniforme, como resulta dos já citados arestos e, ainda, dos acórdãos do TRC, de 01.02.2012, de 06.04.2011 e de 23.06.2010 e do TRP, de 12.09.2012 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Volvendo ao caso concreto, temos uma faca com um cabo de 12 cm e uma lâmina de 13 cm de comprimento que é, portanto, uma arma branca que pode ser usada como arma de agressão, mas, sendo uma faca de cozinha, é de aplicação definida e, por conseguinte, adoptando, como julgamos ser de adoptar, aquele entendimento, não pode considerar-se arma proibida para efeitos de punição, como crime, da sua detenção (não justificada pelo arguido/recorrente).
Na sentença recorrida entendeu-se que o contexto em que o arguido era portador dos referidos objectos (recorde-se que ele seguia na via pública quando foi encontrado na posse da faca de cozinha e do machado) faz com que eles deixem de poder ser considerados de aplicação definida.
Porém, tal entendimento é rejeitado pela citada jurisprudência.
Diz-se, com efeito, no citado acórdão do Tribunal da Relação de Évora que "o uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma proibida" e no acórdão desta Relação, de 20.12.2011 pode ler--se: "O facto de serem desviadas do contexto em que se inserem ou da aplicação/afectação definida, desvio esse para outros fins quer lícitos quer ilícitos, não as transforma por si em armas brancas proibidas. Se assim não fosse, o legislador, que tão pormenorizado foi no catálogo e definições consignadas, tê-lo-ia dito. Ora, não deve o intérprete presumir do texto da lei penal mais do que o legislador quis expressar-se nem encontrar incriminações em aspectos que, porque duvidosamente legislados, por isso mesmo, na dúvida, não podem ser objecto de interpretações extensivas ou analógicas na formulação de tipos penais, sob pena de violação do princípio da legalidade quer em sentido formal (nullum crimen sine lege scripta) quer na vertente da determinabilidade (nullum crimen sine lege certa) quer, ainda, na vertente da proibição analógica (nullum crimen sine lege stricta), consagrado no art° 29° n° 1 da CRP e nos art°s 1°-1 e 2 e art° 2°- n°1 do CP"[iii].
Na verdade, o entendimento manifestado na sentença recorrida redunda num alargamento da punibilidade a condutas que não representam qualquer perigo para o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora em causa, em contradição com a natureza fragmentária e a função de ultima ratio do direito penal.
Nesse entendimento, qualquer pessoa que saísse à rua com uma faca de cozinha de lâmina com um comprimento igual ou superior a 10 cm estaria a cometer um crime de detenção de arma proibida.
Aquelas situações, vulgares em várias regiões do país, em que as pessoas são portadoras de foices, catanas, podoas, roçadoras, etc. fora do âmbito da actividade agrícola ou florestal em que são, normalmente, utilizadas, também seriam penalmente puníveis.
Não foi, seguramente, isso que se pretendeu com a norma incriminadora do artigo 86.° da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Não pode, pois, manter-se a sentença condenatória.
III - Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao presente recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo o arguido/recorrente.
Sem tributação.
Lisboa, 6 de Novembro de 2012
Neto de Moura
Alda Tomé Casimiro
--------------------------------------------------------------------------------------------------- [i] Cfr. acórdão do TRL, de 30.06.2004, disponível em www.dgsi.pt. [ii] Assim também o acórdão desta Relação de Lisboa e desta Secção, de 20.12.2011 [iii] Ainda neste sentido, o acórdão do TRP, de 23.06.2010, em que se decidiu que "a detenção de uma faca de cozinha, com lâmina de cerca de 13 cm, utilizada para rasgar um placar eleitoral, não integra o crime de detenção de arma proibida, p. p. pelas disposições conjugadas dos arts 2°, n° 1, al.m) e 86°, n° 1 al. d), da Lei n° 5/2006 de 23/02, na redacção que lhe foi dada pela Lei 1 7/2009 de 16/05".