CONTRA-ORDENAÇÃO
ADMOESTAÇÃO
Sumário

I-A admoestação contra-ordenacional não é uma medida de substituição como é a admoestação penal, não sendo por isso uma sanção que se aplique em substituição da condenação numa coima.
II-È entendimento geralmente aceite que, pelo seu carácter meramente simbólico, com a admoestação não se atingem os limiares mínimos de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico. E se é assim com a admoestação penal, não há razão para ser diferente com a admoestação contra-ordenacional.
III-Não colhe a argumentação de que, fazendo o artº 51º, nº 1, do RGCO depender a aplicação da admoestação da “reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente”, exclui a necessidade de satisfação das exigências de prevenção. Qualquer punição, mesmo que de pena de substituição se trate, tem de realizar finalidades preventivas, designadamente de prevenção geral.
(CG)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ªsecção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
Por decisão de 08 de Abril de 2010, a Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria Económica e de Publicidade (CACMEP) aplicou a "E..., L.da", pessoa colectiva n.°...., com sede social na Rua ...., Cascais, a coima de € 5 000,00 (cinco mil euros) pela prática de uma contra-ordenação.
A arguida impugnou judicialmente tal decisão e, remetido o processo ao Ministério Público junto do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que o tornou presente ao juiz para apreciação do recurso interposto, admitido este, realizou-se audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:
"...julgar parcialmente procedente o recurso de contra-ordenação interposto, alterando a decisão administrativa proferida pela COMISSÃO DE APLICAÇÃO DE COIMAS EM MATÉRIA ECONÓMICA E DE PUBLICIDADE, e condenando a arguida "E...., L.DA" pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelos artigos 12°, n.° 1 e 21°, n° 1, al. a), do Decreto-Lei n.° 234/2007 de 19 de Junho, na coima de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros)".
Ainda inconformada, veio a arguida "E,... L.da" interpor recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação e concluiu a sua peça recursiva nos seguintes termos (em transcrição integral):
1. "Na douta sentença proferida, foi julgado como provado, o facto da Recorrente, "E... L.da", em 31 de Outubro de 2007, ter em funcionamento um estabelecimento de restauração e bebidas sem que possuísse título válido de abertura.
2. A Recorrente, "E..., L.da", não se pretendia eximir à necessidade de obtenção do aludido título de abertura do estabelecimento de restauração e bebidas.
3. Não há dúvida de que o procedimento adequado ao licenciamento do dito estabelecimento, foi autuado por aquela em momento posterior à realização da inspecção havida.
4. A pretendida regularização foi defraudada, mercê da existência de irregularidades do licenciamento originário da responsabilidade da sociedade comercial administradora do centro comercial em apreço.
5. O facto é que não deixaria, nunca, de soçobrar um hiato temporal, durante o qual a Recorrente, "E..., L.da", exerceu o seu normal comércio jurídico, sem que tivesse tentado estar a tal habilitada, do ponto de vista formal.
6. Tal sorte de conduta é merecedora de censura.
7. Ainda assim e por referência ao disposto no n.° 1, do artigo 18° do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, haverá que tomar em consideração que as condutas contra-ordenacionais são axiologicamente neutras.
8. A coima serve o seu propósito como mera admonição, consubstanciando uma especial advertência tendente à imposição de determinadas proibições ou imposições legais.
9. Em razão da inexistência de prova de qualquer beneficio económico decorrente da situação aqui em apreço, bem como atenta a diminuta gravidade da contra-ordenação em causa, o propósito punitivo ficaria cumprido com a aplicação da medida de admoestação.
10. Na douta sentença proferida, a infracção sindicada é tipificada como tendo uma gravidade mediana, o que, salvo o devido respeito, não se adequará ao caso dos autos, na justa medida em que os propósitos que o legislador pretendeu salvaguardar com a imposição do licenciamento, foram devidamente acautelados pela Recorrente, "Elenco de Sabores, L.da".
11. A douta decisão em crise refere a inexistência de antecedentes.
12. Tal constatação é, manifesta e inequivocamente, reveladora do escrupuloso cumprimento pela Recorrente, «E..., L.da», nomeadamente, das normas insertas no Regulamento (CE) n.° 852/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios.
13. A Recorrente, «E..., L.da», sempre aplicou com denodado vigor, os procedimentos de «análise dos perigos e controlo dos pontos críticos», consignados nos princípios «HACCP».
14. A referida inexistência de antecedentes de natureza contra-ordenacional, é sintomática da conformação originária da Recorrente, «E..., L.da», com o propósito primeiro da imposição do licenciamento de estabelecimentos de restauração e bebidas.
15. E este propósito outro não é que não seja garantir a qualidade do serviço prestado, em razão da adequação da actividade exercida, a parâmetros de higiene e segurança que aquela nunca preteriu.
16. Por ser assim e salvo o devido respeito, caberia a aplicação da sanção de admoestação, por oposição à coima havida, na justa medida em que a «admonição» cumpriria com o fim expiatório pretendido, uma vez que os parâmetros de qualidade de serviço, higiene e segurança nunca estiveram em risco.

Pretende, assim, que seja revogada a decisão de aplicação da coima, "sem prejuízo da aplicação da sanção de admoestação, atenta a adequação desta última ao propósito punitivo em apreço".
O Ministério Público na primeira instância apresentou resposta, limitando-se a afirmar que a decisão recorrida não merece qualquer censura, nomeadamente quanto à sanção aplicada, e por isso deve ser mantida.
Admitido o recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.°, n.° 1, do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II - Fundamentação
Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.°, n.° 1, e 417.°, n.° 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj, cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.° 7/95, de 19.10.95, DR, 1-A, de 28.12.1995), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso.
A recorrente não põe em causa a prática da contra-ordenação pela qual foi punida. Fê-lo na impugnação da decisão da autoridade administrativa.
Agora, a sua irresignação dirige-se às consequências jurídicas da infracção, pois considera que se justificava, plenamente, a aplicação de uma simples admoestação, em vez da coima aplicada.
Assim, a única questão a apreciar e decidir reside em saber se está verificado o condicionalismo da aplicação dessa medida[1].
É pacífico o entendimento de que a aplicação de uma pena de substituição (e a admoestação prevista no art.° 60.°, n.° 1, do Cód. Penal é como tal considerada) não é uma faculdade de que o juiz pode, ou não, usar, mas antes um poder-dever, isto é, um poder vinculado. Por isso que a decisão do tribunal, qualquer que ela seja, exige uma fundamentação específica, devendo explicitar as razões por que não suspendeu a execução da pena de prisão, não optou pelo cumprimento da prisão em dias livres ou não aplicou outra pena de substituição apesar de se verificarem os respectivos pressupostos formais.

No entanto, a admoestação contra-ordenacional não é uma medida de substituição como é a admoestação penal, não é uma sanção que se aplique em substituição da condenação numa coima.
Aliás, a aplicação da admoestação, que assenta num juízo de oportunidade, não é uma decisão condenatória e por isso não é impugnável, já que, de harmonia com o disposto no art.° 59.0, n.° 1, do RGC-O só as decisões da autoridade administrativa que apliquem coimas são susceptíveis de impugnação judicial.
Por isso que Frederico da Costa Pinto ("O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade", in "Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários", vol. I, Coimbra Editora, 269) afirma que "perante a dicotomia legal que classifica as decisões da autoridade administrativa como condenatórias ou de arquivamento, julgo que a decisão que profira a admoestação surge como uma decisão preparatória do arquivamento dos autos, no termos do art.° 55.0, n.°2" do RGC-O.
Ora, embora a fundamentação da decisão da CACMEP não se lhe refira expressamente, dela resulta muito claramente que a autoridade administrativa, face à gravidade, não negligenciável, da contra-ordenação, entendeu que a arguida devia ser acoimada, assim afastando, necessariamente, a admoestação.
Com efeito, ponderou a autoridade administrativa:
"A gravidade da Contra-ordenação — aferida esta pelas circunstâncias factuais supra descritas quanto ao modo como ocorreu, os factos e circunstâncias que a determinaram e que antecederam e envolveram a prática da infracção, as suas consequências nos termos em que resultaram provados e atenta a natureza jurídica dos deveres legais violados, tendo ainda em conta o desprezo das obrigações que sobre si impendiam, uma vez que o estabelecimento de restauração e bebidas em causa nos autos se encontrava em pleno funcionamento sem que possuísse o necessário título válido de abertura do estabelecimento".
Por outro lado, ainda que na modalidade de dolo eventual, foi dolosa a actuação da arguida.
Por isso decidiu aplicar a coima de € 5 000,00.
O tribunal recorrido, por seu turno, referiu-se expressamente à admoestação, afastando a sua aplicação com os seguintes fundamentos:
"Nos termos do disposto no n.° 1 do art.° 18.° do RGCO, a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do beneficio económico que este retirou da prática da contra-ordenação.
Por sua vez, diz-nos o art.° 51.° do mesmo diploma legal que sendo reduzida a gravidade da infracção e a culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.
Há assim a ponderar:
-A gravidade da contra-ordenação, atendendo ao modo e forma de execução da infracção, as suas consequências e os deveres jurídicos violados. A este respeito, afigura-se-nos que a infracção em causa tem uma gravidade mediana, uma vez que a arguida conhecia os seus deveres legais e ainda assim decidiu iniciar actividade sem efectuar quaisquer diligências para obter o necessário e prévio licenciamento.
- Agindo a arguida com dolo, a sua culpa é de intensidade mediana.
-O seu comportamento posterior, procurando obter o licenciamento em causa e dando entrada do competente processo junto da Câmara Municipal, ainda que tenha sido indeferido, uma vez que o foi por motivos que lhe são alheios, deve ser valorado a seu favor.
- As necessidades de prevenção especial são igualmente medianas, visto que, embora continue a laborar sem licença, não regista antecedentes contra-ordenacionais da mesma natureza;
Por outro lado não se provou qualquer benefício económico resultante da situação aqui em causa, visto que a recorrente despendeu a(s) verbas necessárias para dar início ao processo de licenciamento.
Tudo ponderado, entendemos que os factos provados não permitem concluir que estejamos perante uma situação de gravidade diminuta de tal modo que se opte pela aplicação de uma simples admoestação, mas também não justificam a aplicação de uma coima tal elevada como a que foi aplicada pela autoridade administrativa" (itálico nosso).
Como se constata, quer a autoridade administrativa, quer o tribunal a quo negaram a verificação do requisito da diminuta gravidade da contra-ordenação e, quanto ao grau de culpa, situaram-no no patamar da mediania, pois houve dolo na conduta contra-ordenacional da arguida.
Admitindo que a admoestação pode ser aplicada pelo juiz (entendimento que não é pacífico, como informa Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações", UCE, 2011, p. 223), importa apurar se, no caso em apreço, se justificava a aplicação daquela medida.
É entendimento geralmente aceite que, pelo seu carácter meramente simbólico, com a admoestação não se atingem os limiares mínimos de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico.
Neste ponto, o Professor Figueiredo Dias ("Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime", 388/389) é muito claro:
"Qualquer pena simbólica, que se esgota na mera aplicação judicial, sem possuir ao menos o conteúdo aflitivo potencial que caracteriza todas as outras penas de substituição (mesmo a suspensão da execução da prisão sem condições!) é irremediavelmente afectada na sua eficácia preventiva, não atingindo sequer o nível mínimo da verdadeira advertência penal, por destituída de qualquer consequência efectiva para o futuro".
É esta a orientação que, uniformemente, tem sido seguida na jurisprudência, como se pode verificar, entre outros, pelos acórdãos do TRL, de 12.12.2006 e de 26.06.2003, do TRC, de 04.03.2009 e do TRP, de 25.09.2002, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Ora, se é assim com a admoestação penal, não há razão para ser diferente com a admoestação contra-ordenacional.
Argumentar-se-á que, fazendo o artigo 51.°, n.° 1, do RGC-O depender a aplicação da admoestação da "reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente", exclui a necessidade de satisfação das exigências de prevenção, mas não é assim. Qualquer punição, mesmo que de pena de substituição se trate, tem de realizar finalidades preventivas, designadamente de prevenção geral.
Em todo o caso, sempre será de excluir a aplicação da admoestação, que se ajusta, apenas, às contra-ordenações qualificadas como leves.
Partilhamos, pois, do entendimento expresso no acórdão da Relação de Coimbra, de 09.01.2012 (www.dgsi.pt) quando refere: "Se houver uma qualificação legal de contra-ordenações em função da sua gravidade, aquelas dever-se-ão considerar de reduzida gravidade nos casos em que a lei as tenha como leves ou simples, como sucede nos casos previstos nos artigos 81.°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 226-A/2007, de 31 de Maio, e 22.° da referida Lei n.° 50/2006"[2].
Também na doutrina é esse o entendimento que tem prevalecido (cfr. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, "Contra-ordenações - Anotações ao Regime Geral", Áreas Editora, 6.a edição, 2011, p. 394, e Paulo Pinto de Albuquerque, Op. Cit., 222-223).
O Decreto-Lei n.° 234/2007, de 19 de Junho, contém o regime jurídico da instalação e do funcionamento dos estabelecimentos de restauração ou de bebidas, estabelecendo que a abertura dos mesmos só pode ocorrer após a emissão de um alvará de licença ou autorização de utilização para restauração ou bebidas.
Está em causa a qualidade e segurança, não só de instalações e o funcionamento dos estabelecimentos, mas também dos produtos alimentares comercializados.
Por isso, no panorama contra-ordenacional, a violação dessas normas não pode considerar-se infracção menor, atenta a relevância dos interesses em causa.
O citado diploma legal não define escalões de gravidade das contra-ordenações, mas há vários regimes especiais de contra-ordenacionais que, em função da relevância dos interesses violados, as classifica em leves, graves e muito graves, estabelecendo as molduras das coimas em conformidade com esse escalonamentos[3].
Consultando esses regimes especiais, facilmente se constata que uma coima cuja moldura vai de € 2.500,00 a 30.000,00 é a coima correspondente a uma contra-ordenação classificada como grave.
Ora, como resulta do artigo 21.°, n.° 1, do referido Dec. Lei n.° 234/2007, de 19 de Junho, a contra-ordenação praticada pela recorrente é a mais gravemente punida e tal circunstância só pode significar que, no quadro desse diploma legal, é a infracção considerada mais grave.
A favor da recorrente militam algumas circunstâncias atenuantes e foi em função desse circunstancialismo atenuante que o tribunal a quo fixou a coima em valor coincidente com o mínimo legal.
A coima, sendo uma sanção de natureza patrimonial, se não tiver uma expressão significativa, não terá senão um valor simbólico, o que faria com que as finalidades admonitórias que lhe subjazem saíssem frustradas.
São estas as razões por que entendemos não se justificar, de todo, a pretendida aplicação de simples admoestação.

III - Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente a decisão recorrida.
A recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC (artigos 513.°, n.° 1, e 514.0, n.° 1, do Cód. Proc. Penal e 8.°, n.° 5, do Regulamento das Custas Processuais).

Lisboa, 6 de Novembro de 2012

Neto de Moura
Alda Tomé Casimiro
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[1] Referimo-la, simplesmente, como “medida” porque é questionável se tem natureza sancionatória.
[2] Lei quadro das contra-ordenações ambientais.
[3]Assim acontece com a Lei nº 99/2009, de 4 de Setembro (que aprovou o regime quadro das contra-ordenações do sector das comunicações), com a Lei nº 50/2006, de 29 de Agosto (Lei quadro das contra-ordenações ambientais, com a Lei nº107/2009, de 14 de Setembro (Regime das contra-ordenações laborais), com o Código da Estrada, etc.