EXTINÇÃO DE SOCIEDADE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário

1. Com a extinção da sociedade cessa a sua personalidade jurídica e judiciária, à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular.
2. Os artigos 162º a 164º do Código das Sociedades Comerciais regulam os casos em que, após a extinção da sociedade, subsistam relações jurídicas que anteriormente a tinham como sujeito;
3. No caso de extinção da sociedade sem que se tenha procedido à partilha dos bens da sociedade estes pertencem, em comum, aos sócios;
4. Nessa circunstância, qualquer sócio tem legitimidade para, individualmente, demandar, também em nome individual, o sócio que tenha praticado actos lesivos do património da sociedade extinta.
(AP)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Nesta acção declarativa de condenação com processo sumário, o Autor, JOSÉ, residente na (…) Amadora, demanda o Réu, LUÍS (…), residente (…) em Sintra, pedindo:
a) que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia indemnizatória de € 16.666,67 (dezasseis mil seiscentos e sessenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos), nos termos dos arts. 483° e 496°, do Código Civil, acrescida dos respectivos juros de mora, a contar da citação, até efectivo e integral pagamento;
ou, caso assim não se entenda,
b) que o Réu seja condenado na restituição do montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) — a favor da sociedade "F — Sociedade de Construções, Lda", subentende-se — nos termos do art. 473° do Código Civil, acrescida dos respectivos juros.
Como fundamento do seu pedido o Autor alega, em síntese, que constituiu com o Réu e um terceiro uma sociedade comercial, que foi dissolvida em 23 de Outubro de 2009, não se encontrando ainda liquidada. Cada um dos sócios era detentor de um terço do capital social.
De acordo com o Autor, em 17 de Fevereiro de 2009, o Réu transferiu da conta bancária da sociedade para a sua conta bancária pessoal, o montante de € 50.000,00, o que fez no seu interesse único e exclusivo, sem autorização da sociedade ou de qualquer um dos outros dois sócios.
Nestes termos, o Autor conclui pela procedência da acção.
Citado, o Réu deduziu contestação, alegando que a sociedade foi liquidada em 09 de Dezembro de 2009, tendo o passivo da mesma sido satisfeito. Mais alegou que à data da dissolução existiam dívidas da sociedade por pagar, dívidas que pagou com o valor da transferência.
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Foi então proferida esta decisão:
Pelo exposto, julgo procedente, por verificada, a excepção dilatória da ilegitimidade do Autor e, em consequência, absolvo da instância o Réu LUÍS”
É esta decisão que o A impugna ,formulando estas conclusões:
A. O tribunal a quo não considerou devidamente a prova junta aos autos.
B. Tal como consta dos autos, o Apelado transferiu o montante de € 50.000,00 da conta da sociedade comercial que tinha com o Apelante e com um terceiro para a sua conta pessoal.
C. Conforme confessa, foi o ora Apelado que originou a dissolução e liquidação da sociedade em causa – F, Lda., tendo assumido a posição de liquidatário da sociedade.
D. O tribunal a quo considerou a existência de uma excepção dilatória de ilegitimidade activa, fundamentando-se em o prejuízo ter sido da sociedade comercial em causa.
E. Acontece que, a referida sociedade comercial já se encontrava dissolvida e liquidada, o que implica a inexistência da sociedade no ordenamento jurídico português.
F. Assim, é evidente que o lesado nunca poderia ser uma pessoa jurídica inexistente.
G. Aliás, é o regime legal aplicável às sociedades comerciais que estipula a responsabilidade dos sócios, após a dissolução da sociedade comercial.
I. Assim, os lesados, pela actuação do Apelado, são os próprios sócios, por serem impedidos de beneficiar de um activo da sociedade.
J. O art.° 164° do Código das Sociedades Comerciais, no qual o Tribunal a quo baseia a sua decisão, não é aplicável ao caso sub judice.
L. A sociedade dissolvida continua a ter existência jurídica, somente para a liquidação do seu património e partilha do resíduo pelos sócios - cfr. arts. 146° ss, do Código das Sociedades Comerciais.
M. Durante o processo de liquidação, a sociedade dissolvida mantém a personalidade jurídica até ao encerramento do referido processo de liquidação (arts. 146° n° 2 e 160° n° 2 do C.S.C.).
N) A sociedade só se considera extinta, no termo do processo de liquidação, através do registo do encerramento da liquidação, que marca o termo de personalidade jurídica da sociedade (art° 160° CSC e art° 3° al. s) do CRC)
O. O registo de encerramento da liquidação deve ser requerida pelo liquidatário, ou seja, pelo ora Apelado.
P. De acordo com os artigos 151° n° 8 e 152° n° 3 b) do CSC, as funções do liquidatário terminam com a extinção da sociedade.
Q. O disposto nos artigos 162°, 163° e 164° do CSC não é aplicável ao caso em apreço, porquanto não se trata de uma acção pendente à data da extinção da sociedade; não se trata de um passivo da sociedade nem sequer de um activo superveniente.
R. Existe diversa jurisprudência nesse mesmo sentido.
S. Assim, e preconizando a tese defendida pelo Tribunal a quo, o Apelado teria que intentar uma acção contra si próprio, para devolução do montante a uma sociedade extinta e sem qualquer personalidade jurídica.
T. A argumentação e decisão agora recorrida preclude o direito à justiça do ora Apelante.
U. Não existe qualquer excepção dilatória de ilegitimidade activa do Apelante.
X. Face ao exposto, o Apelado tem legitimidade activa para a presente acção.
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O apelado contra-alega, pugnando pela improcedência do recurso.
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 Os factos :
1) O Autor, o Réu e António constituíram uma sociedade comercial denominada "F – Sociedade de Construções, Lda", pessoa colectiva com sede na Rua (…), em Queluz – cfr. alínea A) dos Factos Assentes.
2) À data da constituição da sociedade cada sócio detinha a participação de € 17.000,00 (dezassete mil cures) – cfr. alínea B) dos Factos Assentes.
 3) A sociedade foi dissolvida administrativamente em 23 de Outubro de 2009 – cfr. alínea C) dos Factos Assentes.
4) Em 09.12.2009, foi registada na respectiva Conservatória do Registo Comercial a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade – cfr. teor da certidão de matrícula da sociedade junta aos autos a fls. 73-77, como doc. 5 da contestação – cfr. alínea D) dos Factos Assentes.
 5) A referida sociedade obrigava-se mediante a assinatura dos três sócios-gerentes – cfr. alínea E) dos Factos Assentes.
6) No dia 17 de Fevereiro de 2009, o ora Réu procedeu à transferência do montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) da conta titulada pela sociedade, no Banco ..., para a sua própria conta, com o n° ..., da mesma instituição bancária – cfr. alínea F) dos Factos Assentes.
7) Tal transferência foi efectuada mediante acesso ao canal de "homebanking" – cfr. alínea E) dos Factos Assentes.
8) À data da dissolução existia passivo da sociedade por liquidar – cfr. resposta positiva ao quesito 1° da Base Instrutória.
9) À data da transferência do montante de € 50.000,00, a sociedade estava inibida de emitir cheques bancários – cfr. resposta positiva ao quesito 7° da Base Instrutória.
10) Também o desaparecimento do sócio António para parte incerta impossibilitava a assinatura dos três sócios-gerentes em cheques ou ordens de transferência junto de instituições bancárias – cfr. resposta positiva ao quesito 8° da Base Instrutória.
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Atendendo a que o âmbito do objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artº 684 nº3), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art. 660 nº 2 CPC ), o que aqui se discute é se o R é parte legítima.
Vejamos
A personalidade judiciária, na definição que dela dá o artº. 5º/1 do CPC, consiste na susceptibilidade de ser parte. Vale isto dizer que a personalidade judiciária se traduz "na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecida na lei". Trata-se de um pressuposto processual: no dizer de Castro Mendes ([1]) é mesmo "o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes".
Com efeito, a legitimidade, por exemplo, ou a capacidade judiciária são atributos das partes. As partes é que são legítimas ou ilegítimas, capazes ou incapazes judiciariamente. Estes pressupostos por seu turno pressupõem uma parte, de que são atributos, e de que a susceptibilidade de o ser funciona, num plano anterior, como pressuposto ainda.
Deste modo, a legitimidade processual tem como pressuposto a personalidade judiciária, e não o inverso.
De acordo com o artº. 5º/2 do CPC, quem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária.
É este o critério geral de atribuição da personalidade judiciária - critério da correspondência ou coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária.
Dele decorre que todos os indivíduos - maiores ou menores, capazes ou incapazes - gozam, entre o momento do nascimento completo e com vida e o momento da morte, de personalidade judiciária, podendo ser partes em juízo, já que todos podem, em princípio, ser sujeitos de quaisquer relações jurídicas. E o mesmo sucede quanto às pessoas colectivas regularmente constituídas.
É uma regra sem excepções: toda a pessoa, singular ou colectiva, nacional ou estrangeira, tem personalidade judiciária - não há, no nosso direito, nenhum caso de pessoa civil não judiciária (3).
Casos há, no entanto, de entidades que, não dispondo de personalidade jurídica, têm, todavia, personalidade judiciária. Trata-se de entes desprovidos de capacidade de gozo de direitos privados, cuja personificação judiciária é reconhecida e fixada nos artºs. 6º e 7º do CPC.
No que concerne às sociedades comerciais, dispõe o artº. 5º do Cód. das Soc. Com. (CSC) que elas gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem.
Mas - e aqui está um dos casos de atribuição de personalidade judiciária a um ente a que não corresponde (ainda) personalidade jurídica - mesmo antes dessa data (do registo definitivo do contrato), já a lei processual lhes reconhece personalidade judiciária (artº. 6º-d) do CPC).
E a personalidade judiciária das sociedades comerciais mantém-se mesmo após a dissolução. O que bem se compreende, pois a dissolução apenas representa a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade - modificação que consiste na entrada da sociedade na fase de liquidação. A sociedade, como pessoa colectiva, não se extingue quando se dissolve: apenas entra na fase de liquidação. A extinção é consequência de outros factos jurídicos, que não a dissolução.
Com efeito, resulta da lei que, salvo disposição legal em contrário, as sociedades dissolvidas entram imediatamente em liquidação, mantendo, no entanto, a sua personalidade jurídica, continuando, em regra, a ser-lhes aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras relativas às sociedades não dissolvidas (artigo 146º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais).
Operada a dissolução, segue-se a liquidação, salvo, excepcionalmente, se a sociedade não tiver dívidas em geral nem fiscais exigíveis, caso em que se passa logo à fase da partilha (artigo 147º do Código das Sociedades Comerciais).
A operação de liquidação das sociedades, em regra pelos seus gerentes ou administradores visa ultimar os negócios pendentes, satisfação de direitos de créditos de outrem, cobrança de créditos próprios e conversão do património em dinheiro (artigo 151º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais).
Deve ser concluída e a partilha aprovada no prazo de dois anos a contar da data da dissolução, ou no prazo de três anos se tal prorrogação tiver sido deliberada pela sociedade (artigo 150º, nºs 1 e 2, do Código das Sociedades Comerciais).
               A sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica, como decorre expressis verbis da regra do artº. 146º/2 do CSC; e, consequentemente, também a personalidade judiciária.
A liquidação não está terminada enquanto houver créditos por satisfazer e a partilha nessa altura será prematura e incapaz de comprometer os direitos dos credores
A personalidade da sociedade manter-se-á apenas relativamente aos credores, e não relativamente aos sócios ([2]). A seguir à partilha, os sócios não podem invocar entre si a ficção da personalidade e deste facto resultam inúmeras consequências, como por exemplo os sócios não poderem acionar a sociedade e só serem concebíveis acções entre sócios individualmente considerados e, portanto sujeitas aos termos normais de competência de processo judicial.
E essa personalidade jurídica e judiciária perdura até ao registo do encerramento da liquidação. Só com a efectivação deste acto se considerando extinta a sociedade (artº. 160º/2 do CSC),sem prejuízo do que acima referimos.
Ora, no caso presente a sociedade já está extinta.
Com a extinção da sociedade cessa a sua personalidade jurídica e judiciária, à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular.
Não olvidou, porém, a lei que, mesmo após a extinção da sociedade, podem ainda subsistir relações jurídicas que anteriormente a tinham tido como sujeito, e cujo destino importa regular.
Daí o regime estabelecido nos artºs. 162º a 164º do CSC para as acções pendentes no momento da extinção da sociedade, para a questão do passivo superveniente (débitos sociais insatisfeitos depois da partilha entre os sócios) e ainda para a constatação, posteriormente à extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados.
Extinta a sociedade, os bens que não tiverem sido partilhados pertencem aos sócios, não podendo pensar-se em titularidade individual de cada sócio; tratando-se de direitos de propriedade haverá uma compropriedade. Tratando-se de direitos de crédito haverá uma contitularidade.
No caso em apreço, a lesada foi a sociedade extinta, porquanto foi retirada do seu património € 50.000.
Daí que este direito de crédito pertença à extinta sociedade, sendo certo que o A não tem sobre ele qualquer titularidade individual.
Contudo, não pode ser accionado o preceituado no artº 164 nº2 do CSC para ser reivindicado tal direito de crédito ([3]), na medida em que a acção deve ser limitada ao interesse de cada um, o que aqui não sucedeu por não ter havido uma partilha.
Consequentemente, tem o A, como pessoa individual, legitimidade em demandar o R, também como pessoa individual, já que a sociedade é inexistente e não se configura a hipótese prevista no nº2 do artº 164 do CSC
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 Termos em que procedem todas conclusões
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Concluindo: Com a extinção da sociedade cessa a sua personalidade jurídica e judiciária, à semelhança do que acontece com a morte de qualquer pessoa singular.
         Não olvidou, porém, a lei que, mesmo após a extinção da sociedade, podem ainda subsistir relações jurídicas que anteriormente a tinham tido como sujeito, e cujo destino importa regular.
Daí o regime estabelecido nos artºs. 162º a 164º do CSC para as acções pendentes no momento da extinção da sociedade, para a questão do passivo superveniente (débitos sociais insatisfeitos depois da partilha entre os sócios) e ainda para a constatação, posteriormente à extinção da sociedade, da existência de bens não partilhados.
 Não sendo este o caso previsto no artº 164 do CSC, pode o A, como pessoa individual propor a acção contra o R, uma vez que a sociedade se extinguiu e não houve lugar à partilha    
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Pelo exposto, acordam em julgar a apelação procedente pelo que se considera o A, pessoa individual, parte legítima para prosseguir a acção
Custas pelo apelado.
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Lisboa, 8 de Novembro de 2012

Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida e Costa
Carla Mendes
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[1] Direito Proc. Civil, 2º vol., 1980, ed. da AAFDL, pág. 13.
[2] Cf Raúl Ventura “Dissolução e Liquidação das Socieades ,”4ª reimpressão da 1ª edição ,pag 473
[3] Cf obra citada, a pág 493