ARRESTO
EMBARGOS DE TERCEIRO
SOCIEDADE UNIPESSOAL
SOCIEDADES COMERCIAIS
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
PATRIMÓNIO SOCIAL
Sumário

Se os bens arrestados pertencem à sociedade embargante, mas esta é uma sociedade por quotas unipessoal, sendo sua sócia única a sociedade arrestada, devedora do arrestante, que decidiu vender os bens daquela (sociedade totalmente dominada) para pagar as suas (da sociedade total-mente dominante) dívidas, justifica-se que se desconsidere a personalidade jurídica da embargante e se tratem os bens arrestados como se fossem da sociedade arrestada, não se levantando o arresto dos bens.
(da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

“A” (= arrestante) requereu, em 05/06/2011, um arresto de bens contra “B” – ..., Lda (= arrestada), com sede na Rua ..., n.º ..., R/C, Esquerdo, 0000-000 Lisboa, por ter um crédito contra a mesma (resultante de um mútuo que lhe fez em 19/05/2010).
Por decisão de 15/06/2011, transitada em julgado, foi decretado esse arresto.
Em 18/07/2011, a “C” – Sociedade ..., Unipessoal, Lda (= embargante), também com sede na Rua ..., n.º ..., R/C, Esquerdo, 0000-000 Lisboa (e que se identificou no cabeçalho sem a referência a Unipessoal) veio deduzir os presentes embargos contra esse arresto, alegando, no essencial, que tinha adquirido esses bens à arrestada nos anos de 2008, 2009 e 2010 (invoca para o efeito algumas facturas de compras não documentadas) e que nada devia ao arrestante.
O arrestante contestou, querendo que fosse desconsiderada a personalidade jurídica da embargante, alegando para o efeito que: esta é uma sociedade unipessoal por quotas, ou seja, tem um sócio único que é o detentor da totalidade do seu capital social; sócio esse que é a sociedade arrestada; pelo que a embargante integra o património da arrestada, que assim é a proprietária indirecta ou última de todos os bens da embargante; e a isto não deve obstar o facto de embargante ter uma personalidade jurídica diferente da arrestada: a embargante não tem independência económica da arrestada, ambas representam uma só unidade económica cujos desígnios são dirigidos, em última instância, pela arrestada (como também se vê do relatório sobre a análise económica/ financeira da arrestada, em que ela faz uma análise da sua situação financeira tendo em consideração todos os seus activos e os seus passivos, entre os quais se destacam aqueles relativos à embargante; e onde se propõe, como uma das opções, “vender a totalidade da participada por um valor mínimo de 1.750.000€ e com o produto da venda liquidar os passivos da sociedade e da sua participada […]”). A diferença de personalidade jurídica entre a arrestada e a embargante é apenas uma forma pela qual se concretiza materialmente a organização de um só património sob uma só direcção, i.e, o património da arrestada (invoca aqui o ac. do TRL de 31/05/2011 - 7857/06.0TBCSC.L1-7, da base de dados do ITIJ, de onde são todos os acórdãos citados sem indicação de outra fonte).
De seguida foi proferida decisão julgando improcedentes os embargos (e determinando a restituição dos bens e direitos cujo arresto foi concretizado ao arrestante, na qualidade de depositário dos mesmos).
A embargante recorre desta decisão, concluindo, em síntese contida numa das 52 conclusões [a que, neste acórdão, se acrescenta um parênteses recto], que:
“i) A decisão ínsita na sentença vai para além do pedido e do objecto dos embargos de terceiro [porque mantém o arresto de bens de terceiro e o que foi pedido foi o arresto de bens da arrestada…];
ii) A decisão não indica quais as normas jurídicas com base nas quais aplica o instituto da desconsideração da personalidade jurídica; e
iii) Ainda que a aplicação de tal instituto fosse admissível, não existiu qualquer conduta ilícita pela ou através da embargante”.
O arrestante contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.
A arrestada não foi notificada das alegações da embargante porque, segundo o requerimento feito por ela, os mandatários constituídos por ambas as sociedades no presente processo são os mesmos, pelo que, ainda que formalmente pudesse considerar-se exigível a realização de tal notificação, a mesma constituiria acto inútil (fls. 285).
*
Questões que cumpre solucionar: se se verifica alguma das nuli-dades implicitamente invocadas pela embargante [falta de fundamentação de direito e condenação em objecto diverso do pedido, art. 668/1b) e e) do CPC]; e se o arresto devia ter sido levantado (por não se verificarem os pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica).
*
Foram dados como provados os seguintes factos, para além daqueles que já resultam do relatório que antecede:
3. Os bens e direitos objecto do arresto foram adquiridos pela embargante à arrestada, nos anos de 2008, 2009 e 2010, e, consequentemente, foram retirados do imobilizado da arrestada e contabilizados pela embargante no respectivo mapa de reintegrações e amortizações.
4. A embargante não é nem nunca foi devedora de qualquer quantia ao arrestante.
6. A arrestada adquiriu a totalidade das quotas da embargante, aquisição essa registada em 06/12/2007.
7. A transformação da embargante em sociedade unipessoal por quotas foi registada em 04/06/2010.
8. Em assembleia-geral extraordinária de 21/05/2011, [da arrestada, presidida pelo sócio “D”], os sócios da arrestada, “E”, “D” (o qual tam-bém ali representava o sócio “F”) e “G” [depois de analisada em pormenor a situação económico-financeira da arrestada e da sua participada embargante, com base no relatório entregue e estando claras as decisões a tomar (e disto tratava o 1º ponto da ordem dos trabalhos)], deliberaram autorizar a gerência a) na venda da empre-sa e/ou dos activos detidos pela arrestada e pela sua participada embargante [pelo melhor preço possível e com o produto da venda liquidar os passivos da arrestada e da sua participada embargante, com primazia para os passivos de curto e médio / longo prazo (Le-tras/Livranças e Empréstimos bancários)] e b) em representação da arrestada, a votar todas as deliberações necessárias para a execução do ora delineado ao nível da embargante, bem como outorgar todos os contratos, acordos, etc., necessários para a execução das delibe-rações ora tomadas [e este era o 2º ponto da ordem dos trabalhos]. [acrescentou-se. neste acórdão, as partes entre parênteses rectos, para mais completa síntese da acta da referida AG]
9. Os gerentes da embargante e da arrestada são os mesmos “E” e “D”.
*
A fundamentação da decisão recorrida é a seguinte [de forma condensada e na parte com imediato relevo para a decisão das questões a solucionar]:
“A arrestada é titular da totalidade das quotas da embargante pelo que existe, por essa circunstância, uma relação de domínio total entre ambas as sociedades (cfr. art. 489.º/1, do Código das Sociedades Comerciais).
Embora se trate de sujeitos de direito distintos, a arrestada, ao adquirir a totalidade das quotas da embargante, adquiriu também o domínio ou controlo societário desta última e, por conseguinte, o poder de determinar a gestão daquela. Na verdade, e apesar de se tratarem de duas entidades juridicamente distintas, há um único centro de decisão: os sócios da arrestada.
Acresce que, embora a embargante, como ser jurídico distinto da sua sócia única – no caso a arrestada - seja a titular dos respectivos bens sociais, a aquisição da totalidade das quotas numa sociedade equivale a uma aquisição indirecta do património social dessa empresa (vd. ac. STJ de 11/03/2010, relator Serra Baptista, in www.dgsi.pt) Por conseguinte, pode-se afirmar que os bens e direitos que foram objecto do arresto são também propriedade da arrestada, que, aliás, os administra como resulta dos factos provados supra descritos.
Defende o arrestante que «(…) resulta evidente que no caso sub judice se verifica a total dependência económica entre a arrestada e a embargante, pois esta é uma sociedade unipessoal cuja quota única é detida por aquela, configurando assim uma mistura de esferas jurídicas e de patrimónios que iniludivelmente conduz à desconsideração da personalidade jurídica das duas sociedades (…)».
A «desconsideração da personalidade jurídica» consiste na derrogação do princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam (os seus sócios).
Este instituto surgiu como forma de corrigir abusos da pessoa colectiva, mas o mesmo só é admissível a título excepcional e para o caso concreto (assim, Pedro Cordeiro, A desconsideração da persona-lidade jurídica das sociedades comerciais in Novas perspectivas do direito comercial, Faculdade de direito da universidade clássica de Lis-boa, Centro de estudos judiciários, Livraria almedina, Coimbra, 1988).
Os pressupostos da «desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais» são:
1) O abuso objectivo da pessoa colectiva, isto é, a utilização da pessoa colectiva de uma forma objectivamente ilícita;
2) A existência de uma posição de domínio (ou seja, a possi-bilidade de formar de per si a vontade social) por parte daquele que utilizou, de modo objectivo, abusivamente a sociedade (ob. cit., pág. 309).
E quando é que se pode afirmar que há abuso da limitação de responsabilidade?
“Quando alguém invocar e insistir na autonomia patrimonial da sociedade usando e abusando da limitação da responsabilidade em seu favor e em prejuízo dos credores desta, ou então, quando esse mesmo sujeito, em seu favor e em prejuízo dos credores da sociedade, desrespeitar a limitação da responsabilidade.” (ob. cit., pp. 129 e ss).
No caso concreto, e face ao exposto supra, afigura-se-nos ilegítima a invocação da autonomia jurídica da embargante e da separação de patrimónios da arrestada e da embargante para obstar ao arresto que foi decretado como forma de garantir direitos de créditos detidos pelo arrestante contra a arrestada na medida em que, na prática, é esta última que forma a vontade social da embargante, para além de ser também, ainda que de forma indirecta, proprietária do património social da embargante, no qual estão incluídos os bens e direitos arrestados.
Em conclusão, justifica-se o recurso ao instituto do «levanta-mento da personalidade jurídica» da embargante, não a conside-rando, consequentemente, «terceira» para efeitos dos presentes embargos, o qual implica a improcedência dos mesmos.”
*
Da desconsideração da personalidade jurídica
A desconsideração da personalidade jurídica é, de modo genérico, uma solução jurídica para o problema do abuso da personalidade jurídica. Trata-se de “um instituto jurídico [que] não tem unidade, nem ao nível das causas dos problemas suscitados […] nem ao nível das soluções. […] De comum, todos os casos têm apenas suscitarem problemas de articulação das regras implicadas na personalidade colectiva das sociedades comerciais e a Ordem Jurídica, no seu conjunto, como têm ainda, ao nível das soluções, ser imperioso, por exigência do sistema, uma resposta de não aplicação, no caso concreto, do que resultaria da estrita aplicação do regime que se resu-me na personalidade colectiva” (Diogo Pereira Duarte, Aspectos do levantamento da personalidade colectiva nas sociedades em relação de domínio…, Almedina, 2007, pág. 252).
Trata-se, usando as palavras de Ana Perestrelo de Oliveira, “de via para controlar o uso das sociedades pelos sócios para (objectiva ou subjecti-vamente) alcançarem fins ilícitos e repudiados pela ordem jurídica, na ausência de previsão legal adequada” (A insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial…, Revista de Direito da Sociedades, nº. 4, 2009, Almedina, pág. 105). Ou, nas palavras de José A. Engrácia Antunes de “um instituto através do qual o julgador, sem norma legal que o suporte, mas por exigência do sistema jurídico, afasta a personalidade jurídica ou moral de um ente colectivo com vista a imputar um determinado efeito jurídico à realidade a ela subjacente.” (Os grupos de sociedades, Estrutura e organização jurí-dica da empresa plurissocietária, 2ª edição, Almedina, Maio 2002, pág. 599).
E daqui já resulta que o facto de a decisão recorrida não fazer refe-rência a normas jurídicas não tem nada a ver com a falta de fundamentação de direito, é, pura e simplesmente, uma consequência de se tratar da descon-sideração da personalidade jurídica, não como uma solução que resulte da aplicação de normas específicas, mas antes de uma exigência do sistema. Ainda neste sentido, diz Menezes Cordeiro, que se trata de “sem normas específicas e por exigência do sistema […] o Direito, em certas situações, passar do modo colectivo ao modo singular, ignorando a presença formal duma pessoa colectiva” (O levantamento da personalidade colectiva…, Almedina, 2000, pág. 102).
E com isto fica já afastada a conclusão ii) do recurso da embargante e a questão da nulidade da a. b) do nº. 1 do art. 668 do CPC.
*
Das sociedades em relação de grupo por domínio total
Um dos grupos de casos mais típicos em que tem sido dividido o problema do abuso da personalidade jurídica é precisamente o caso das sociedades em relação de grupo (Engrácia Antunes chama-lhe “um dos terrenos de eleição desta problemática” – obra citada, pág. 599).
E se isto é assim quanto às relações de grupo em geral, é-o ainda mais em particular no caso das sociedades em relação de grupo por domínio total, que existe (arts. 488.º a 491.º do CSC) “sempre que uma sociedade detenha, directa ou indirectamente, inicial ou supervenientemente, a totalidade das partes sociais de uma outra” (Engrácia Antunes, obra citada, pág. 843).
Não quer isto dizer que a simples existência de uma relação de grupo por domínio total, apesar de implicar legalmente o poder, para a sociedade totalmente dominante, de dar instruções à sociedade totalmente dominada que possam ser desvantajosas (= prejudiciais) para esta (art. 503.º do CSC, aplicável por força do art. 491.º do CSC), ponha um problema de abuso de personalidade jurídica.
Sendo uma situação (a de relação de grupo por domínio total) prevista legalmente, não pode, só por si, ser considerada uma situação de abuso. Como diz Ana Perestrelo de Oliveira, “não é a mera presença do controlo ou sequer da direcção unitária que fundamenta o recurso ao instituto”. E mais à frente: “a interpenetração das esferas das sociedades, a integração económica, financeira, administrativa e pessoal entre elas, ou, em termos mais gerais, a unidade de direcção do grupo, são tudo características normais e lícitas do grupo, que não podem fundamentar, sem mais, o levantamento da personalidade de qualquer das sociedades envolvidas” (obra citada, pág. 1005).
*
De qualquer modo, a situação de domínio total potencia o abuso da personalidade jurídica.
Diogo Pereira Duarte (obra citada, pág. 368, nota 565) cita neste sentido uma decisão do Tribunal Supremo dos EUA: “Em toda a experiência do Direito não existiu causa mais propiciadora de fraudes do que a sociedade de um único sócio”.
Menezes Cordeiro começa o seu estudo com uma referência à ques-tão logo no nº. 1: “Esse levantamento é particularmente requerido perante sociedades que controlem outras sociedades” (citado, pág. 10). E mais à frente diz que “o levantamento da personalidade colectiva tem um lugar especial no domínio dos grupos de sociedades (citado, pág. 131).
Ana Perestrelo de Oliveira diz que: “o grupo torna mais provável a ocorrência fáctica de situações tipicamente capazes de originar o levanta-mento – maxime, a confusão de esferas jurídicas ou até a subcapitalização material […]” (obra citada, pág. 1005).
E Engrácia Antunes chama a atenção para que “[d]e um ponto de vista económico, esta modalidade grupal […] permite às sociedades agrupadas realizar uma integração económico-empresarial particularmente intensa: de facto, a sociedade totalmente dominada está agora inteiramente à disposição da sociedade totalmente dominante, simultaneamente sua sócia única e sua sociedade-mãe, podendo desempenhar por isso uma função em quase tudo idêntica à de uma mera sucursal ou divisão sem personalidade jurídica desta última […]. [N]o grupo constituído por domínio total a sociedade totalmente dominada mantém formalmente a sua individualidade jurídico-patrimonial e jurídico-organizativa, muito embora, na prática, tudo se passe com se efectivamente a houvesse perdido” (obra citada, págs. 843/844).
*
O abuso da personalidade jurídica
Estabelecido que a relação de grupo com domínio total potencia o abuso da personalidade jurídica e que essa é a situação dos autos, cabe agora dizer que no caso não se está perante uma simples situação de relação de grupo por domínio total (superveniente).
Desde logo, porque, a juntar ao domínio total, existe ainda uma única gerência para as duas sociedades (os gerentes são os mesmos), que aliás têm o mesmo local de sede (e até o mesmo advogado).
(estamos pois perante um caso evidentíssimo de “união pessoal” de que fala Diogo Pereira Duarte, obra citada, pág. 119, “e tal é, desde logo, demonstrativo quanto ao grau de integração da organização o que […] pode ser muito relevante para as soluções de levantamento” – e o autor só está a falar das simples relações de domínio…; quanto ao emprego do mesmo advogado, como indício que possibilitaria a desconsideração, veja-se a lista de que dá notícia este autor, naquele estudo, pág. 158: factor 9: “the employment of the same […] attorney”).
Depois, a arrestada, que é a sociedade totalmente dominante, já decidiu vender a empresa (note-se que o determinado na deliberação social é a venda da empresa, não de uma das empresas ou de uma parte da empre-sa) da arrestada e da embargante, que é a sociedade totalmente dominada, para com o produto da venda pagar as suas próprias dívidas e as da embargante. Ou seja, os bens da embargante vão responder pelas dívidas da arrestada.
Ora, isto pode ser visto de duas perspectivas, ambas favoráveis à solução encontrada pela decisão recorrida:
- por um lado, tal corresponde precisamente àquilo que o arrestante, credor da arrestada, quer que aconteça; isto é, que os bens, que aparente e formalmente são da embargante, respondam pela dívida que a arrestada tem para consigo. Pelo que a embargante nada deveria opor à pretensão deste, desde que ele seja de facto credor (questão que não é aqui definitivamente resolvida…);
- por outro lado, tal revela um caso evidente de mistura de patrimó-nios: a utilização definitiva do património da embargante para os fins da arrestada. “Dar-se-á confusão de patrimónios se bens de determinado titular foram ou são afectos ao cumprimento de obrigações de outro” (Diogo Pereira Duarte, obra citada, pág. 249). Ora, também este pertence a um grupo de casos típico de abuso da personalidade jurídica.
E havendo abuso há ilícito e com isto fica desde já afastada a conclusão iii) do recurso da embargante.
*
A “propriedade substancial”
Para além disso, tudo isto revela precisamente a realidade subjacente invocada pela decisão recorrida: o “proprietário substancial” dos bens arrestados é a arrestada e não a embargante.
Daí que a sentença recorrida e o acórdão do STJ por ela citado lem-brem que para certas situações tem-se considerado que o titular da totali-dade das quotas (ou seja, o único sócio) é o titular indirecto ou substancial do património social.
Isto é, se as sociedade comerciais, porque têm personalidade jurídica, são os titulares do património social e se, por isso, aquilo que integra esse património pertence à sociedade e não aos sócios (por exemplo, Alexandre Soveral Martins, Estudo de Direito das Sociedades, 4ª edição, Almedina, 2001, pág. 72), isto (esta separação patrimonial – art. 197/3 do CSC) em dados casos pode ser desconsiderado, salientando-se então que se trata apenas de uma proprieda-de formal, não substancial.
Dai que se diga, em certas situações, de alguém que comprou a totalidade das participações sociais de uma sociedade titular de uma empre-sa, que o que ele comprou foi a própria empresa, ou melhor, o património social que a inclui: “[A] aquisição da totalidade […] das participações numa sociedade equivale a uma aquisição indirecta (ou substancial) […] do patri-mónio social” (Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, 2011, 4ª edição, Nov. 2011, pág. 404).
“De um ponto de vista subjectivo e/ou objectivo (isto é, de acordo com a concreta intenção dos contratantes e/ou da opinião pública, ao menos no meio empresarial), através da compra e venda de todas ou da maioria das participações numa sociedade uma das partes cede e a outra parte adquire o domínio ou controlo societário e, consequentemente, o poder de determinar a gestão da empresa social; quem adquire as participações sociais consegue praticamente uma posição equiparável à de um empresário singular; há uma transmissão indirecta da empresa social – podendo mesmo falar-se de transferência da propriedade indirecta ou mediata sobre ela. […]”
(Coutinho de Abreu, Curso…, págs. 179 e 400 a 406; ≈ Da empresarialidade, As empresas no direito, Teses, Almedina, 1996, pág. 213 e 342 a 358; no mesmo sentido, Alexandre Soveral Martins, Estudos…, págs. 76/79; com alternativa a este entendimento, veja-se a nota 109 da pág. 125 da obra de Maria de Fátima Ribeiro, A tutela dos credores da sociedade por quotas e a “desconsideração da personalidade jurídica”, Almedina, 2009; com várias referências, veja-se ainda Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, vol. II, Dez2008, págs. 1447 a 1456).
E toda esta situação tem um equivalente em direito do trabalho, em que se fala de empregadores formais e de empregadores reais e em que se faz responder todas as sociedades de um grupo pelos créditos contra uma delas – art. 378.º do Código de Trabalho de 2003 (Lei 99/2003, de 27/08) ≈ art. 344.º do CT de 2009 (Lei 7/2009 de 12/02) -, solução que existe pela insuficiência da solução de fazer responder apenas o empregador jurídico-formal (Diogo Pereira Duarte, obra citada, nota 20 da pág. 24 e pág. 134, fazendo referência a estudo de Pedro Romano Martinez).
Ora, a situação material do caso é esta, isto é, só formalmente é que a embargante é a proprietária dos bens; materialmente quem é proprietária dos bens é, pelo menos, também a arrestada, como o revela a deliberação tomada pela arrestada de vender os bens da embargante para pagar as suas (dela, sociedade totalmente dominante) dívidas.
*
Da consolidação de patrimónios
O que ainda se pode ver de outra forma:
Com a venda dos bens da arrestada e da embargante para com o produto da venda se pagarem as dívidas de uma e de outra, a arrestada está a proceder, materialmente, a uma consolidação dos patrimónios da arrestada e da embargante.
Ora, como diz Ana Perestrelo de Oliveira, “[a] consolidação substantiva não deixa de poder ser reconduzida, aliás, em termos de natureza jurídica última, ao instituto do levantamento da personalidade: em causa está, afinal, uma forma de “levantamento global” (quanto atinja as diversas sociedades agrupadas), fundada na intensidade da gestão unitária e na proximidade existente entre as sociedades, que permite ver no património do grupo uma massa comum e realizar o princípio par conditio creditorum ao nível do grupo, ignorando as fronteiras laterais entre as várias sociedades, impostas pela respectiva personalidade jurídica […]” (obra citada, pág. 1004).
Ou seja, a própria arrestada, que domina totalmente a embargante, actua de forma correspondente a uma consolidação de patrimónios (que é, no fundo, a confirmação da mistura já existente), que nada mais é do que, no caso, um levantamento da personalidade jurídica.
*
A engenharia financeira como outro indício da mistura de patrimónios
Consolidação ou desconsideração para que também aponta a engenharia financeira de que os factos dão conta:
Em 2007 a arrestada adquire a totalidade das participações sociais da embargante. Depois vende os seus bens à embargante. E agora vai vender os bens “desta” para com o produto da venda pagar as suas dívidas. Com a interposição da embargante, a arrestada vai conseguir obter, por duas vezes, o valor dos seus bens. Ou seja, vai vender, por duas vezes, os mesmos bens, em seu proveito.
Quem vende dados bens e continua a ter disponibilidade para os vender em seu proveito de novo (apesar de formalmente os bens estarem no património de terceiro), é porque de facto, materialmente, não os vendeu da primeira vez. Tratou-se de uma venda formal.
(sobre a engenharia financeira como factor para a consolidação, vejam-se as notas 42 e 34 do estudo citado de Ana Perestrelo Oliveira).
*
Caso de imputação
Tem-se dito que “para concretizar de modo sistemático o método da desconsideração jurídica, convém distinguir dois “grupos de casos”: o grupo de casos de imputação […] – determinados conhecimentos, qualida-des ou comportamentos de sócios são referidos ou imputados à sociedade e vice-versa – e o grupo de casos de responsabilidade […] – a regra da responsabilidade limitada que beneficia certos sócios (de sociedades por quotas e anónimas, nomeadamente) é quebrada”
(Coutinho de Abreu, Curso… pág. 178; ≈ Da empresarialidade…, pág. 208; Alexandre Soveral Martins, Estudos… pág. 81; Maria de Fátima Ribeiro, Contrato de franquia (franchising): o recurso à "desconsideração da personalidade jurídica" para tutela dos interesses do franquiador, CDP nº. 35 Julho/Setembro 2011, pág. 30; e a Tutela dos Interesses…, pág.s 134 e segs; esta autora coloca a questão em termos de a desconsideração ser invocada, essencialmente, para aqueles dois efeitos distintos; Ana Perestrelo de Oliveira fala de situações em que “o sistema, através do princípio da boa fé, determina uma imputação das situações jurídicas activas e passivas em termos distintos daqueles que formalmente resultam da personalidade jurídica autónoma das diversas sociedades do grupo e da consequente limitação das responsabilidade legalmente prescrita” (estudo citado, págs. 1001 e 1010).
A solução encontrada para o caso - os bens da embargante são tra-tados, por força da desconsideração da personalidade jurídica da embargan-te, como bens da arrestada – será um caso de imputação… e não de respon-sabilização, pelo que o apoio da decisão não será, no essencial, o abuso de direito, mas antes a visão substancialista da personalidade colectiva e a interpretação teleológica das normas (seguindo a posição de Coutinho de Abreu, Curso…pág. 178).
*
Outros casos jurisprudenciais de desconsideração
Independentemente disto, a decisão recorrida está na linha de outras (em que o resultado da desconsideração da personalidade jurídica se traduz em considerar que um dado bem, apesar de formalmente pertencer a uma dada sociedade, deve ser tratado como pertencente a outrem).
Assim, no ac. do STJ citado na decisão recorrida (de 11/03/2010, 4056/03.6TBGDM.S1), ficcionou-se que A, com a aquisição da totalidade das quotas da adquirente de má fé B, tinha adquirido também o património social da B, pelo que A tinha passado a ser uma subadquirente, em relação à qual também se tinha que verificar a má fé para a preenchimento dos requisitos da impugnação pauliana. Assim, o bem, apesar de formalmente ser de B, foi tratado – neste caso em prejuízo do credor impugnante C… - como se fosse de A. O que interessa reter deste caso é que o STJ aceitou considerar que o proprietário de um bem possa ser o “proprietário substan-cial” e não o “proprietário formal”
No ac. do STJ de 10/01/2012 (434/1999.L1.S1), uma sociedade dizia que era proprietária do bem; o STJ considerou, com base no levanta-mento da personalidade, que o proprietário era o sócio (que comprou, a coberto do véu daquela sociedade criada para o efeito e que dominava a 85%, um bem que tinha prometido vender e que, por isso, se fosse comprado em seu nome teria de revender ao promitente comprador).
No caso que se vê discutido na obra de Maria de Fátima Ribeiro, A tutela…, no fim da nota 109, págs. 129/ 130, percebe-se que o tribunal alemão não aceitou uns embargos deduzidos por uma sociedade por quotas, apesar de formalmente ser a proprietária do bem penhorado em execução movida contra o único sócio e gerente da sociedade. É o mesmo resultado que foi obtido no caso dos nossos autos, com a particularidade de, aqui, a sócia ser uma sociedade comercial, e de não se tratar de uma penhora mas de um arresto. O tribunal alemão fê-lo com base na desconsideração da personalidade jurídica. A objecção da Profª. Maria de Fátima Ribeiro não será a de que, no caso, os embargos deveriam proceder, mas sim no sentido de que deviam improceder por via da solução da recusa do exercício do direito por abuso do mesmo, fazendo referência a um autor alemão que propõe o recurso do § 242 do BGB (cuja tradução, de Paulo Mota Pinto e Ingo Wolfgang Sarlet, em Direitos Fundamentais e Direito Privado, de Claus-Wilhelm Canaris, Almedina, 2003, pág. 147, é a seguinte “O devedor é obrigado a efectuar a prestação tal como a boa fé, considerando os usos do tráfico, o exige”) para impedir a sociedade de invocar a propriedade do veículo. Ou seja, recusar-se-ia a alguém, com base nos limites da boa fé, “a possibilidade da invocação de certos factos, direitos ou relações jurídicas” (com aplicação do art. 334 do CC).
*
Do objecto dos embargos
O arrestante levantou, na contestação aos embargos, a questão da desconsideração da personalidade jurídica. Esta pode levar, como se disse, a que, bens que formalmente pertencem a uma sociedade, sejam considerados da única sócia (no caso a arrestada). Portanto, a decisão recorrida, ao decidir a questão não foi para além do objecto do processo, antes decidiu a questão que se lhe impunha que conhecesse. E ao mesmo resultado se chegaria, se, tendo em conta os factos, fosse de considerar, que, por abuso do direito, por via da boa fé e do exercício inadmissível de posições jurídicas, a embargante não podia exercer o direito em causa.
E com isto também já fica afastada a conclusão i) do recurso da embargante e a questão da nulidade da al. e) do nº. 1 do art. 668 do CPC.
*
Do prejuízo para o arrestante
A relação de grupo com domínio total, particularmente qualificado, conjugada com a mistura de patrimónios, permitiu já considerar que se verificava um abuso (necessariamente ilícito) da personalidade jurídica (a desfuncionalização do instituto da personalidade jurídica), com a solução da desconsideração dessa personalidade.
Mas, para além disso, o abuso ia-se traduzir num prejuízo para o arrestante, o que se passa a demonstrar.
Como já se viu, a arrestada tem programada uma venda dos bens da embargante para pagar as suas (da arrestada) dívidas. E, como resulta da referência, que é feita na deliberação social, à primazia na liquidação de certos passivos, a venda dos bens não chegará para pagar todas as dívidas (o que ainda indiciará uma situação de insolvência – art. 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - já que não se coloca, tendo em conta tudo o que antecede, a possibilidade de recurso ao crédito por parte da arrestada e da embargante).
Ora, os credores têm o direito a um tratamento igualitário no paga-mento dos créditos: art. 604/1 do CC: Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
Assim, a arrestada não pode escolher pagar a uns credores e não pagar ao arrestante.
Ora, a actuação da embargante (gerida pela arrestada), ao deduzir estes embargos, para levantar o arresto dos bens, concretiza, ao menos objectivamente, uma tentativa de evitar o pagamento do crédito do arrestante (mas já não dos restantes credores). Pelo que, se o crédito do arrestante existe (e para já está indiciado que existe), o desejo da embargante de evitar esse pagamento é ilegítimo.
Temos assim suficientemente concretizada uma situação em que a invocação da propriedade de dados bens, por uma pessoa jurídica (embargante) distinta da pessoa da sua sócia (arrestada), é feita para vir a prejudicar o arrestante, pelo que é esta mais uma razão para se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica.
Ou seja, é mais uma razão para que não fosse aceite o levantamento do arresto visado pela embargante com base na sua propriedade formal dos bens arrestados.
Tanto mais que o arresto é uma medida cautelar e provisória e não uma venda executiva. O arresto não vai pois conduzir a uma situação definitiva, em que os bens sejam vendidos para pagamento da divida ao arrestante. Vai servir para, ao que se vê, impedir a venda dos bens em proveito exclusivo da arrestada, da embargante ou de outros credores, e em prejuízo do arrestante, enquanto não se decide a acção principal.
Se o arrestante é ou não credor da arrestada e se os bens que formalmente são da embargante vão ou não responder pelas dívidas da arrestada, é questão que terá de ser julgada em definitivo no processo principal.
*
(…)
*
Assim, consideram-se improcedentes os argumentos da embargante.
*
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.
Custas pela embargante.

Lisboa, 8 de Novembro de 2012

Pedro Martins
Eduardo Azevedo
Lúcia Sousa