SEGURO
FURTO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
EMPREITADA
CONTRATO DE DEPÓSITO
Sumário

1. Do contrato de empreitada decorrem para o empreiteiro, certas obrigações principais, tais como a obrigação de realizar a obra acordada e de a entregar ao dono da obra. Frequentemente emerge do contrato de empreitada, um dever lateral ou acessório, i.e., ficar o empreiteiro adstrito a guardar a coisa, conservando-a, para mais tarde a entregar ao comitente.
2. O dever de conservação existe na medida em que sobre o empreiteiro impende uma prestação de facere e um subsequente dever de entrega, aplicando-se à obrigação de custódia, naquilo que for pertinente, as regras do contrato de depósito.
3. A falta cumprimento, por parte da oficina encarregada de efectuar a reparação de um motociclo, da obrigação principal de entrega do mesmo, devidamente reparado, por violação da obrigação acessória de guarda, implica o ressarcimento da seguradora do veículo, pelo valor da indemnização paga ao respectivo segurado, sub-rogada que está nos direitos deste.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

“A”– COMPANHIA DE SEGUROS, S.A com sede na Rua …, em Lisboa, intentou contra “B”, COMÉRCIO, REPARAÇÃO DE VEÍCULOS MOTORIZADOS, UNIPESSOAL, LDA., com sede na Rua …, a acção declarativa sob a forma de processo comum sumária, através da qual pede a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 10.816,61 acrescida de juros de mora, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento.

Fundamentou a autora, no essencial, esta sua pretensão na circunstância de o seu segurado ter deixado o veículo seguro para reparação na oficina da ré e que, quando o mesmo foi levado para experimentar por um funcionário da ré, este deixou o veículo estacionado na rua e foi almoçar, tendo tal veículo sido furtado, com o que teve de indemnizar o seu segurado pelos danos, de harmonia com o que com este havia sido acordado.

Citada, a ré contestou, admitindo que o veículo foi levado para experimentar, mas alegou que tal ocorreu por indicação do seu proprietário que o autorizou, sendo alheia aos danos sofridos pelo veículo que foram causados por um terceiro.

Proferido que foi o despacho saneador, abstendo-se o Exmo. Juiz a quo de fixar, quer a matéria assente, quer a base instrutória, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, constando do Dispositivo da Sentença, o seguinte:

Face ao exposto, julgo a presente acção totalmente procedente por provada e, consequentemente, condeno a R. “B”, COMÉRCIO, REPARAÇÃO VEÍCULO MOTORIZADOS, UNIPESSOAL, LDA. a pagar à A. “A” – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a quantia de €10.816,61 (dez mil, oitocentos e dezasseis euros e sessenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos desde a citação (24-4-2006) e vincendos até integral pagamento.

Inconformada com o assim decidido, a ré interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:

i. A recorrente não se conforma com o entendimento perfilhado pelo douto tribunal a quo, uma vez que, ao contrário do entendido, logrou a Ré provar que o sinistro não ocorreu por culpa sua, ilidindo assim a presunção que sobre si recaía.

ii. Devendo, desse modo, considerar-se exonerada a Ré da obrigação de guarda e restituição da coisa depositada, nos termos do disposto na alínea c) do art. 1187.º do Código Civil.

iii. A discórdia com o sentido da sentença proferida pelo douto tribunal a quo iniciasse com a interpretação por este efetuada na subsunção dos factos dados como provados às normas legais aplicáveis.

iv. Na sua fundamentação, a sentença recorrida acaba por retirar dos factos provados, conclusões que os mesmos não permitem. Assim:

v. Ficou provado que “6. A dada altura, parou para almoçar, no Centro Comercial …, onde estacionou o veículo, no passeio exterior daquele Centro Comercial.”

vi. Tendo a sentença recorrida concluído que “(…) o empregado da R. deixou o veículo na rua, sem vigilância, enquanto parou para almoçar (…)”– sublinhado nosso.

vii. Do mesmo modo, ficou provado que “5. (…) o funcionário da Ré foi dar uma volta com o motociclo, para o experimentar, com vista a verificar se este se encontrava em boas condições, levando-o para o exterior da oficina da R.” – sublinhado nosso.

viii. Tendo a douta sentença concluído que “(…) o veículo não saiu da oficina para ser experimentado e voltar de imediato. Pelo contrário, foi utilizado
por funcionário da R. que nele se deslocou para almoçar aproveitando a circunstância de o experimentar.”

ix. Ora, dos factos provados não resulta materialidade suficiente para se poder concluir nos termos em que o fez a sentença recorrida.

x. O funcionário da Ré utilizou a coisa depositada com autorização do depositante, pelo que neste ponto não existe qualquer comportamento merecedor de censura.

xi. Conforme ficou provado, o que levou à utilização do veículo e sua deslocação para o exterior da oficina foi a necessidade de experimentar o veículo para verificar se o mesmo se encontrava em condições, e não a necessidade de almoçar.

xii. Encontrando-se o mesmo no exercício das suas funções quando se aproximou a hora de almoço, acabou por almoçar, sem que daí se possa retirar qualquer comportamento suscetível de negligenciar o dever de guarda e/ou facilitar o sinistro ocorrido.

xiii. Não existe nos factos provados materialidade suficiente para na douta sentença se ter fundamentado que o veículo foi utilizado para o funcionário ir almoçar, ou ainda que o deixou na rua sem vigilância.

xiv. Não se verifica aqui um comportamento do funcionário negligente ou diverso do que empregaria um bom pai de família.

xv. Na utilização que fez do veículo, o funcionário, não usou de qualquer comportamento negligente de condução ou violação das normas do Código da Estrada.


xvi. Ao estacionar o veículo junto ao Centro Comercial …, fê-lo nos mesmos termos exigidos para um bom pai de família, tendo-o deixado em segurança, desligado e sem a chave.

xvii. Abstendo-se ainda de o estacionar numa rua deserta ou com menor movimento, tendencialmente mais propícia à ocorrência de um furto.

xviii. O furto, é um acontecimento imprevisível, não devendo a R. ter atuado com outra diligência, senão aquela com que atuou.

xix. Ao demonstrar ter empregue o zelo e cautelas que seriam exigíveis a quem fosse colocado na posição do funcionário, ilidiu a Ré a presunção de culpa que lhe competia.

xx. As conclusões constantes da fundamentação não encontram suporte material nos factos provados, pelo que não poderia a sentença terminar decidindo como decidiu.

xxi. Conforme se pode ler em Galvão Telles, Obrigações, 3, 313, in Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, de 24.10.1995, processo n.º087094, na exoneração de culpa da Ré, é necessário provar, “(…) pelo menos, que não foi negligente, que não se absteve de tais cautelas e zelo, que não omitiu os esforços exigíveis, os que também não omitiria uma pessoa diligente".

xxii. E, as circunstâncias que mediaram o furto ocorrido no presente caso são assertivas e demonstram com clareza que não houve um comportamento negligente do funcionário da R., tendo o mesmo atuado com a diligência imposta pelo bonus pater familias.

xxiii. De tudo o que se expôs não pode deixar de se concluir que errou a sentença recorrida na apreciação dos factos provados, tendo retirado dos mesmos conclusões superiores àquelas que os mesmos permitem, tendo consequente


e erradamente, efetuado um juízo de censura sobre a conduta do funcionário da Ré.

xxiv. Razões pelas quais não poderá ser outro o sentido da sentença senão o de absolver a Ré do pedido contra si efetuado.

xxv. Sem prejuízo do que se expôs, só por si o furto é considerado um acontecimento de força maior que, atenta a sua imprevisibilidade, tem se ser entendido como facto bastante para ilidir a presunção de culpa do funcionário da Ré.

xxvi. Já assim foi entendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13.03.1983:BMJ, 325.º-564, citado in Código Civil anotado, Abílio Neto, 14.ª Edição atualizada, onde se lê: “I – O furto, é por si mesmo, uma causa não imputável ao depositário, para o efeito do art. 1188.º do Cod. Civil, isto é, para o efeito de exonerar o depositário das obrigações de guarda e restituição. II – Assim, provado o furto da coisa depositada, fica o depositário, por isso mesmo, exonerado dessa obrigação; só sobrevindo impossibilidade de cumprimento por outras causas que não as previstas no artigo, é que o depositário teria de provar a sua falta de culpa, de harmonia com o art. 799.º do Cod. Civil.”

xxvii. Ao que acresce que, o normativo ínsito no art. 1188.º do Cód. Civil, exonera o depositário da obrigação de restituição do bem, substituindo essa obrigação por outra: a de dar conhecimento imediato da privação do bem ao denunciante, obrigação cumprida pela Ré.

xxviii. Na existência de furto não ocorre uma situação de incumprimento culposo de restituição do bem, mas sim uma impossibilidade de cumprimento, não imputável ao depositário.

xxix. Não pode ser outro o entendimento senão o de que o furto, como acontecimento de força maior, conjugado com a conduta diligente do

condutor, conforme resulta dos factos provados, permite exonerar o depositário da responsabilidade que lhe advenha da não restituição do bem.

xxx. Nestes termos deve ser considerada ilidida a presunção de culpa que sobre a Ré recaía, sendo revogada a decisão proferida na parte que considerou existir um comportamento culposo do funcionário da Ré e, em consequência, ser decretada a absolvição da Ré da instância.

xxxi. Ao decidir como decidiu violou a sentença recorrida o disposto nos artigos 1187.º, 1188.º, 1189.º e n.º 1 do art. 799.º todos do Código de Processo Civil.

xxxii. Sem prejuízo do exposto, sempre será de dizer que, caso assim não se entenda, o que não se concebe nem aceita, sempre deverá a sentença recorrida ser revista na parte em que condena a Ré ao pagamento de juros de mora desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

xxxiii. A Ré foi citada para a presente ação em 20.04.2006, tendo a Audiência de Discussão e Julgamento sido realizada em 18.06.2007 e a sentença proferida em 11.11.2011, ou seja mais de 4 anos depois de ter sido efetuada a Audiência, sendo a final, a ré condenada ao pagamento de juros durante todo esse tempo.

xxxiv. Atentos os princípios de interesse público contidos na disciplina processual civil, é ao Autor que incumbe o dever de promover a instância quando esta se encontre estagnada para além daquele que é o período considerável para emissão do ato em falta, neste caso, sentença.

xxxv. Tendo o Autor aguardado 4 anos para impulsionar os autos, sendo que, em primeira linha, é seu o interesse processual no desfecho da ação, não pode a sua inércia ser coroada com 4 anos de pagamento de juros.

xxxvi. Nem pode a Ré ser injustificadamente penalizada com pagamento de um valor excessivo e desproporcional de juros, motivado pela inércia da Autora.

xxxvii. Não raras são as normas no nosso Código de Processo Civil que aplicam cominações perante a inércia da parte demandante em promover os autos, não devendo neste caso concreto, ser afastada essa cominação.

xxxviii. Assim, requer a Ré que, caso não mereça acolhimento o presente recurso, sempre seja a sentença recorrida revista na parte em que condena a Ré ao pagamento de juros vencidos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, devendo ser substituída por outra que contabilize juros desde
a data da citação até 18.06.2007, e desde a data da prolação de sentença, 11.11.2011 até efetivo e integral pagamento.

Pede, por isso, a apelante, que a sentença recorrida seja revogada, na parte que considerou não ter sido ilidida pela ré a presunção de culpa que sobre si incidia e, em consequência, seja decretada a absolvição da ré do pedido. E, caso assim não se entenda, sempre deverá a sentença recorrida ser revista na parte em que condena a ré ao pagamento de juros de mora desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, sendo substituída por outra que determine o pagamento de juros desde a data da citação até 18.06.2007, e desde a data da prolação de sentença, 11.11.2011 até efetivo e integral pagamento.

Respondeu a recorrida defendendo a manutenção do decidido e formulando as seguintes CONCLUSÕES:

i. A Recorrente pretende fazer crer que o seu funcionário, utilizou o veículo que foi furtado, para o verificar e que por acaso, chegou a hora de almoço. Ora, para verificação do estado do veículo após uma simples revisão e troca de um pneu, não necessitava o funcionário da recorrente efectuar um percurso tão grande. O que aconteceu, foi que o mesmo quis passear um

pouco com o veículo e veio almoçar a Lisboa, sem que para isso estivesse autorizado.

ii. A autorização dada pelo proprietário do veículo, para que o mesmo fosse testado, cingia-se apenas e tão só, ao percurso suficiente para o efeito, seguido de regresso imediato à oficina. Nunca a mesma comtemplou, o passeio que foi efectuado, até porque, essa situação traria riscos e gastos acrescidos ao proprietário do veículo.

iii. O funcionário da Recorrente, abusou da confiança depositada na oficina, pelo proprietário do veículo, ao utilizá-lo da forma que o utilizou, isto é, juntou o útil ao agradável, fazendo o teste e passeando-se nele a seu belo prazer, e para onde lhe apeteceu, sem que para isso tivesse sido autorizado.

iv. O funcionário da Recorrente, veio para Lisboa com o veículo, sem razão nenhuma que o justificasse.

v. O teste para avaliar a troca de um pneu e uma revisão, não justifica o percurso efectuado.

vi. Pelo contrário, mostra-se provado que o funcionário se serviu do veículo para vir almoçar às Amoreiras, à revelia de qualquer autorização.

vii. Não pode o Recorrente disfarçar a conduta negligente do seu funcionário, ao querer fazer intuir a ideia peregrina, que o mesmo fê-lo nos termos exigidos para um bom pai de família

viii. De facto, não pode o recorrente pretender que se aceite o que verteu nas suas conclusões acerca da presunção de culpa, que nunca conseguiu ilidir, nem na audiência de discussão e julgamento, nem agora a consegue ilidir, porquanto, a sua argumentação e a fundamentação é tão frágil, que não se sustenta, e prova disso mesmo, é que o próprio recorrente percebendo isso, no final das suas conclusões já se contenta com o perdão de alguns juros.

ix. Como é que o recorrente pode afirmar como o faz, que o seu funcionário empregou todo o zelo e cautelas que seriam exigíveis, e afirmando que o deixou em segurança, ao ter apenas desligado o veículo e retirado as chaves. A Recorrida entende o que se pretende, tal como o Douto Tribunal. Contudo, se dirá que o zelo e as cautelas que seriam exigíveis, não foram tomadas, pelo funcionário.

x. Nestes veículos, seus proprietários, para além de os desligarem e retirarem chaves, usam também bloqueadores nas rodas, sejam eles cadeados próprias para que não circulem, correntes para os prenderem a algo que não permita a sua retirada ou trancas de segurança, no caso em apreço nada disto foi efectuado.

xi. Também a obrigação do funcionário do recorrente, era dar uma pequena volta com o veículo em circuito próximo da oficina e, após verificar o comportamento do mesmo recolhê-lo à mesma, o que não fez e à revelia estendeu o percurso e almoçando entretanto, sem que tivesse sido autorizado.

a. A actuação do funcionário da Recorrente foi completamente negligente e violadora não só de direitos, como também com a sua conduta causou danos gravosos para terceiros.

b. O funcionário da Recorrente, em face das circunstâncias da situação, podia e devia ter agido de modo diverso e caso o tivesse feito, o furto não teria acontecido, o que aconteceu fica a dever-se, ao abuso de confiança e grave negligência praticado pelo funcionário da Recorrente;

c. A conduta adoptada pelo funcionário da Recorrente, em face das circunstâncias da situação, foi a causa única e exclusiva para o eclodir do furto, embora este possa ser imprevisível, acontece a todo o momento, e muito mais chamativo se torna para que possa acontecer quando se baixam as guardas, isto é, não se tomam as medidas necessárias para persuadir ou dificultar o acto ilícito a quem o pratica.

d. Resulta dos factos provados que o funcionário da Recorrente à altura do acontecimento, não agiu com o zelo e diligência a que estava obrigado.

e. Resulta dos factos provados que, a Recorrente se encontrava obrigada pelo contrato que celebrou, à guarda do veiculo,

f. Resulta também dos factos provados que, sobre a Recorrente incumbia provar qual a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa, o que não fez, e desta forma, não ilidiu a presunção de culpa do devedor.

g. É notório que a Recorrente vem esgrimir toda a sua argumentação, não no sentido de se sentir moralmente afectado pelo furto ocorrido, que criou a privação do veículo ao seu proprietário, e danos patrimoniais causados à Recorrida que a conduta do seu funcionário provocou, mas apenas, porque foi condenado e muito bem pelo Tribunal "a quo" a reembolsar o valor do pedido efectuado pela recorrida, sendo este o único motivo que se vislumbra para a motivação do recurso apresentado pelo Recorrente.

xii. Quanto às alegações que tece e conclusões que faz sobre a demora no términus do processo, com o consequente aumento do tempo para contagem de juros e que daí a Recorrida tiraria maior proveito do que a Recorrente, é de facto uma ideia peregrina e demonstrativa (com o devido respeito), do desconhecimento por parte da Recorrente sobre a indústria de seguros e seus negócios, porque aproveitar, aproveitou a Recorrente, sobre a máxima de quanto mais tarde pagar melhor e, podermos vir a não ser condenados, porquanto, a Recorrida não tem interesse ou vantagem em manter um processo aberto, só lhe traz custos com a sua gestão, inclusive de pessoal, interesse tinha isso sim, era receber quanto antes, para o poder reinvestir e dessa forma retirar proveitos bem maiores.

xiii. Assim, e porque provada toda a factualidade constante da Douta Sentença, mostra-se a mesma, bem fundamentada e justa e, não enferma de qualquer vício que a possa ferir, quer de apreciação de prova ou de direito.

xiv. Desta forma, o Douto Tribunal "ad quem» deverá manter na integra a decisão do Tribunal "a quo"razões bastantes para a manutenção integral da decisão recorrida mantendo-se a condenação do Recorrente.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

***

II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto nos artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i. DA NATUREZA DO CONTRATO CELEBRADO ENTRE O SEGURADO DA AUTORA E A RÉ;

ii. DAS ORIGAÇÕES PRINCIPAIS E ACESSÓRIAS DO CONTRATO DE EMPREITADA

Ø Por forma a apurar se a ré deverá ser responsabilizada pelo ressarcimento da indemnização paga pela autora ao seu segurado.

***

III . FUNDAMENTAÇÃO


A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


Foram dados como provados na sentença recorrida os seguintes factos:

1. A Autora é uma sociedade que, devidamente autorizada e em conformidade com a legislação Portuguesa aplicável, se dedica à actividade seguradora.

2. No âmbito do exercício da sua actividade, a A., celebrou com “C”, um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com cobertura facultativa de danos próprios, nomeadamente furto ou roubo, relativa ao motociclo de marca (e modelo), S… com a matrícula …

3. No dia 16 de Novembro de 2001, “C”, deixou o motociclo seguro RN nas instalações da R., sitas em …, neste Concelho e Comarca de …, para revisão e troca de um pneu.

4. Na ocasião, “C” solicitou ao funcionário da Ré que experimentasse o motociclo.

5. No dia 21-11-2001, “D”, funcionário da R. foi dar uma volta com o motociclo, para o experimentar, com vista a verificar se este se encontrava em boas condições, levando-o para o exterior da oficina da R..

6. A dada altura, parou para almoçar no Centro Comercial …, onde estacionou o veículo, no passeio exterior daquele Centro Comercial.

7. Enquanto o referido funcionário almoçava, o motociclo foi furtado, por desconhecidos.

8. Na sequência de queixa apresentada por “C”, no próprio dia do furto, o veículo veio a ser apreendido pela GNR de ....

9. Quando foi entregue a “C”, no dia 27-12-2001, o motociclo apresentava as peças quase todas substituídas, tendo apenas o quadro, parte do motor e as jantes com os pneumáticos.

10. Para reparação do veículo seria necessário um dispêndio de €13.803,85.

11. A reparação tendo em conta o valor venal do veículo foi considerada economicamente inviável pelo que foi declarada a sua perda total, ficando o salvado com “C”.

12. Na sequência do contrato celebrado com “C”, a A. pagou-lhe a quantia de € 7.753,32.
***

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Qualificou-se na sentença recorrida como de prestação de serviços, na modalidade de empreitada, o contrato celebrado entre o segurado da autora e a ré, qualificação essa que as partes não questionaram, e com a qual se concorda.

Está provado que a autora celebrou com “C” um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com cobertura de danos próprios, nomeadamente furto ou roubo, relativa ao motociclo com a matrícula … e que este, em 16.11.2001, deixou o tal motociclo seguro nas instalações da ré, sitas em …, para revisão e troca de um pneu – v. Nºs 2 e 3 da Fundamentação de Facto.

É patente que esta reparação implica a realização de trabalhos inerentes à actividade da ré, mediante uma contrapartida, pelo que estamos, efectivamente, perante um contrato de empreitada, o qual se define, nos termos do artigo 1207º do Código Civil, como sendo aquele pelo qual uma parte se obriga, em relação à outra, a realizar certa obra, mediante um preço.

Ao contrato de empreitada aplicam-se as normas especiais previstas nos artigos 1207º e seguintes do Código Civil, como também as regras gerais relativas ao cumprimento das obrigações.

Da empreitada resultam vantagens para ambas as partes, já que sendo o contrato de empreitada um contrato bilateral ou sinalagmático, oneroso e consensual, dele emergem obrigações recíprocas e interdependentes - a obrigação de executar a obra e a do pagamento do preço - sendo uma, o motivo determinante da outra.

O empreiteiro está adstrito a uma obrigação de resultado - efectuar a obra completa e isenta de defeito - sendo responsável pelos vícios ou defeitos que a obra apresentar ou nela se venham a revelar.

Muito embora a interpretação do conceito ou da expressão “realizar certa obra”, não seja pacífica, quer a nível da doutrina, quer à luz da jurisprudência, a verdade é que no caso em apreço, o trabalho a realizar mediante uma remuneração foi a revisão do motociclo seguro na autora, assim se consubstanciando a obra, empregada esta palavra na acepção de resultado material.

A situação dos autos não implica que se considere que estamos em presença de um contrato misto de empreitada e depósito, como já se entendeu na Jurisprudência – v. a propósito Ac. STJ de 032.02.1989 (Pº 076752) e Ac. R.P. de 17.10.1991 (Pº 9119309), acessíveis na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

Mas, a verdade é que, do aludido contrato de empreitada decorrem para o empreiteiro, certas obrigações principais, tais como a obrigação de realizar a obra acordada e de a entregar ao dono da obra. Frequentemente emerge do contrato de empreitada, um dever lateral ou acessório, i.e., ficar o empreiteiro adstrito a guardar a coisa, conservando-a, para mais tarde a entregar ao comitente – cfr. neste sentido, Ac.R.P. de 29.07.82 (Pº 0001506) e Ac. STJ de 24.10.95 (Pº 087094), acessíveis no supra mencionado sitio da Internet.

O dever de conservação existe na medida em que sobre o empreiteiro impende uma prestação de facere e um subsequente dever de entrega.

No caso sub judice e, em consequência do supra mencionado contrato de empreitada, decorrem para a ré, enquanto empreiteira, certas obrigações principais, tais como, a realização da dita obra de revisão e mudança do pneu e a entrega do motociclo devidamente reparado.

Todavia, acresce também para a ré a obrigação acessória de guarda do motociclo durante o período em que durar a reparação ou revisão, tal como, justamente, se fez referência – e bem – na sentença recorrida.

A esta obrigação de custódia aplicam-se, naquilo que for pertinente, as regras do contrato de depósito – v. ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Direito Privado, vol. II, Contrato de Empreitada, AAFDL, 1983, 34.

Ora, está demonstrado que o motociclo acabou por não ser entregue, pela ré ao segurado da autora, devidamente reparado.

Houve, assim, uma violação objectiva do dever da ré, inerente ao contrato de empreitada em análise, de entregar ao segurado da autora o motociclo, com a necessária reparação adequada à pretendida revisão e troca de pneu.

Considerando que estamos no domínio da responsabilidade contratual, resulta do disposto no artigo 799º, nº 1 do Código Civil, que a culpa do devedor se presume, não tendo o credor que fazer a prova dessa culpa, o que se justifica para dar maior consistência ao vínculo creditório – v. GALVÃO TELES, Direito das Obrigações, 309.

In casu, provada se mostra a ocorrência da apontada violação objectiva do dever de entrega do motociclo, por parte da ré, ao segurado da autora.


E, demonstrada tal violação, à ré, para não ser responsabilizada, como pretende a autora, competia provar que a falta de cumprimento dessa obrigação não precedeu de culpa sua, como o impõe o citado nº 1 do artigo 799 do Código Civil.

Como esclarece GALVÃO TELES, ob. cit., 310, "O devedor terá que provar que foi diligente, que se esforçou por cumprir, que usou daquelas cautelas e zelo que em face das circunstâncias do caso empregaria um bom pai de família (…). Ou, pelo menos, que não foi negligente, que não se absteve de tais cautelas e zelo, que não omitiu os esforços exigíveis, os que também não omitiria uma pessoa normalmente diligente".

Presumindo a lei a culpa do devedor, para a afastar necessário se torna a alegação e prova da existência de circunstâncias, especiais ou excepcionais, que eliminem a censurabilidade da conduta daquele, como salienta ANTUNES VARELA, RLJ 119, 126.

E, será que a ré logrou ilidir a supra referida presunção de culpa, demonstrando que foi diligente, que usou do zelo e cautelas que empregaria um bom pai de família e que a impossibilidade de entrega do motociclo, devidamente reparado, não lhe pode ser imputável ?

Vejamos,

A ré, na qualidade de empreiteira, tinha a obrigação de realizar a obra acordada (fazer a “revisão no motociclo e trocar um dos pneumáticos), como também de conservar o veículo até à sua entrega ao cliente.

É certo que foi efectuada prova de que o segurado da autora havia solicitado ao funcionário da ré que experimentasse o motociclo e, portanto, este estava autorizado a circular com o veículo para se assegurar das condições do mesmo, após a intervenção dos serviços da ré,

o que o funcionário da ré fez, levando o motociclo para o exterior da oficina – v. Nºs 4 e 5 da Fundamentação de Facto.

Igualmente se provou que o motociclo havia sido furtado durante o período em que a ré se encontrava incumbida da guarda do mesmo. Dúvidas, no entanto, se levantam quanto a saber se a ré cumpriu com todos os deveres que sobre ela impendiam no âmbito do contrato de empreitada.

É que, pese embora a prova da autorização dada ao funcionário da ré para experimentar o motociclo, não logrou a ré demonstrar a razoabilidade da deslocação, para proceder a essa experimentação, da oficina da ré, sita em …, para Lisboa, e ter de efectuar esse trajecto no período do almoço do funcionário, o que fez com que este se tivesse deslocado ao Centro Comercial das … para ir almoçar, sem que se perceba a razão, abandonando o veículo no exterior daquele centro comercial.

A necessária diligência, em termos de normalidade e zelo, implicava que o funcionário da ré circulasse com o veículo pelo tempo necessário para proceder à tal verificação da conformidade da reparação efectuada, e regressasse à oficina com o motociclo, a tempo de, em momento subsequente, ir almoçar pelos seus próprios meios.

Não tendo a ré dado cumprimento à obrigação principal de entrega do motociclo, devidamente reparado, por violação da obrigação acessória de guarda do veículo, incorreu a ré no dever de indemnizar o seu cliente – o segurado da autora - pelo valor do motociclo que lhe havia sido entregue para reparação e que, consequentemente, se encontrava à sua guarda.


Não tendo a ré dado cumprimento às aludidas obrigações e, presumindo-se a sua culpa, presunção essa que a ré não ilidiu, antes pelo contrário, demonstrada ficou a falta de diligência que não pode deixar de lhe ser assacada, tornou-se a ré responsável pelos danos que advieram à autora/seguradora.

Com efeito, e como esclarece ANTUNES VARELA, Direito das Obrigações em Geral, 2º, 298, a sub-rogação consiste na substituição do credor, na titularidade do direito a uma prestação fungível, pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor, ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento.

No caso vertente, procedeu a autora/seguradora ao pagamento dos prejuízos sofridos pelo seu segurado, “C”, ao abrigo do contrato de seguro celebrado, pelo que, por imperativo do disposto no artigo 441º do Código Comercial, ficou sub-rogada nos direitos deste, assistindo-lhe o direito de ser ressarcida do valor da indemnização que pagou, e de que é responsável a ré.

Bem andou, por conseguinte, a Exma. Juíza do Tribunal a quo ao condenar a ré no peticionado, incluindo nos juros moratórios, já que a autora é totalmente alheia à maior ou menor demora, por virtude da pendência do processo.

Soçobra, pois, a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

*

Vencida, é a recorrente responsável pelas custas respectivas - artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

***

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida e em condenar a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 29 de Novembro de 2012

Ondina Carmo Alves - Relatora
Pedro Maria Martin Martins
Eduardo José Oliveira Azevedo