REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
NORMA DE CONFLITOS
Sumário

I - O art. 13.º/3 do Regulamento (CE) n.º 1347/2000 e o art. 49.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 reconhecem automaticamente as condenações em custas proferidas nas acções de divórcio por eles abrangidas, pelo que esse segmento da decisão não pode, em caso algum, ser objecto de revisão quanto ao fundo.
II - O Regulamento (CE) n.º 1347/2000 deixou de vigorar em 28/02/2005, quando passou a ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, mas a substituição daquele por este determina que as consequências jurídicas da aplicação do primeiro devam ser absorvidas pelo segundo, excepto nas situações em que o novo Regulamento passou a decidir diferentemente, devendo o art. 64.º deste ser interpretado como abrangendo no seu regime as decisões que o seriam ao abrigo do anterior Regulamento.
III - Os Regulamentos n.os 1347/2000 e 2201/2003 não tratam de questões como a culpa dos cônjuges, os efeitos patrimoniais do casamento, a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges ou outras medidas acessórias eventuais (v.g. direito ao nome, indemnizações devidas ao outro cônjuge etc.
IV - A acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação positiva cujo objecto é a verificação se a sentença estrangeira reúne as condições de produzir efeitos como ato jurisdicional na ordem jurídica portuguesa.
V - O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras corresponde basicamente ao chamado sistema de delibação ou de revisão meramente formal; excepcionalmente é permitida alguma fiscalização do mérito da decisão estrangeira nos termos do artigo 983.º/2 do CPC que consagra o chamado «privilégio da nacionalidade».
VI - O conceito de ordem pública internacional é vago, fluido e impreciso e carece de concretização jurisprudencial ao nível do caso concreto com o objectivo de impedir que a aplicação de certas regras ou o reconhecimento de sentenças estrangeiras possam, num caso particular, pôr em causa aspectos essenciais da ideia de direito do sistema jurídico do foro.
VII - As questões relativas à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações privadas internacionais são resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito desse Estado, mesmo que os visados tenham outra nacionalidade.
VIII - A revisão da sentença estrangeira só é denegada quando a incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português for flagrante ou significativa, possuir uma dimensão tal que não deva escapar ao controle da ordem jurídica de recepção.
IX - Integram a ordem pública internacional do Estado Português as normas jurídicas estruturantes das relações de família que reflectem a consideração dos direitos absolutos ou essenciais dos elementos da família e os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico (v.g. normas que asseguram a liberdade da constituição da família, a igualdade dos cônjuges, a manutenção do regime jurídico pessoal dos cônjuges, a estabilidade das relações patrimoniais fixadas, a não descriminação dos filhos nascidos fora do casamento), mas já não as normas que regulam aspectos acessórios da relação de família, do divórcio, da organização do poder paternal ou dos modos de substituição deste.
X - Um dos aspectos essenciais a ter em conta na aplicação do princípio da ordem pública internacional do Estado é a diferença de intensidade da ligação da situação à ordem jurídica onde foi julgada e à ordem jurídica do estado da nacionalidade.
XI - Releva ainda a circunstância de presentemente na Europa estar em vigor o Regulamento (UE) n.º 1259/2010, relativo à lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial, por força do qual os Estados-Membros passaram a estar vinculados a aceitar que o divórcio de cidadãos seus nacionais seja regido por normas distintas das do respectivo estatuto pessoal.
XII - A situação prevista no artigo 983.º/2 do Código de Processo Civil é uma excepção que tem de ser invocada pelo réu para que o tribunal possa conhecer dela.
XIII - Por força do Regulamento (UE) n.º 1259/2010, numa relação jurídica plurilocalizada entre Portugal e França, ambos os países consideram aplicável ao divórcio de cidadãos portugueses com residência habitual comum em frança a lei francesa.
XIV - Se as normas de conflito do direito interno não distinguem entre a lei aplicável ao divórcio propriamente dito e a lei aplicável aos respectivos efeitos patrimoniais, tem de se entender que a lei aplicável ao divórcio é igualmente aplicável a estas matérias.
XV - Por força desse Regulamento e dessa característica das respectivas normas de conflito, Portugal e França aceitam a lei definida pelo Regulamento (UE) n.º 1259/2010 para todas as matérias do divórcio, donde resulta que nos casos em que não for aplicável a lei nacional portuguesa não tem aplicação o disposto no artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
XVI - A revisão da sentença estrangeira deve ser decidida em função dos dados jurídicos existentes na data em que a revisão é pedida e concedida; se em data anterior a revisão não seria concedida, tal não impede que o pedido seja formulado em data posterior e beneficie da alteração do sistema jurídico em resultado da qual a revisão se tornou viável.

Texto Integral

Acção de Revisão de Sentença Estrangeira

Processo n.º 137/17.7YRPRT
Tribunal da Relação do Porto

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, divorciada, titular do cartão de cidadão n.º …….., residente em …, França, e, quando em Portugal, em Loulé, intentou acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra C…, casado, titular do cartão de cidadão n.º …….., residente na …, …, Ílhavo, pedindo que seja revista e confirmada a Sentença Estrangeira constituída pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Paris de 25.10.2007, rectificado pelo Acórdão da mesma Relação de 18.03.2010 que condenou o réu a pagar à autora as importâncias de €170.000 a título de prestação compensatória, €10.000 a título de indemnização por danos morais e patrimoniais e €8.000 a título de compensação pelas despesas com o processo de recurso.
Alegou para o efeito que no dia 09.06.1973 autora e réu contraíram casamento civil na Repartição do Registo Civil da Câmara Municipal de Draney, …, em França, sem convenção antenupcial, casamento que foi dissolvido com efeitos a contar de 03.06.2010 por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Paris de 25.10.2007, rectificado pelo Acórdão da mesma Relação de 18.03.2010, e do qual foi interposto recurso rejeitado pelo Supremo Tribunal de Justiça por Acórdão de 25.02.2009, tendo o divórcio sido transcrito para o assento de casamento n° 33606/2010 da Conservatória dos Registos Centrais em Lisboa.
Para além de ter decretado o divórcio entre autora e réu, o Acórdão referido condenou o réu C… a pagar €170.000 à autora B…, a título de prestação compensatória em matéria alimentar, com fundamento em que o divórcio causaria uma disparidade nas respectivas condições de vida dos cônjuges contra a mulher, a qual não pôde constituir poupanças, contrariamente ao marido que explorou os bens comuns em seu único proveito pessoal, desde antes da separação dos cônjuges. O Acórdão condenou ainda o réu a pagar à autora a quantia de €10.000 por lhe ter causado grave prejuízo moral e material. E, para compensar as importantes despesas que a autora se viu obrigada a suportar com o recurso interposto para aquele Tribunal da Relação, condenou o réu a pagar à autora €8.000.
O Acórdão transitou em julgado segundo a lei do país em que foi proferida e preenche todos os requisitos legais do direito português para ser confirmado na parte em que condenou o réu a pagar as quantias citadas por não haver dúvidas sobre a autenticidade do documento junto ou a inteligência da decisão; provém de tribunal estrangeiro cuja competência não foi provocada em fraude à lei e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; não pode invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, não tendo sido o tribunal estrangeiro a prevenir a jurisdição; o réu foi regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal dc origem, e no processo foram seguramente observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; e a decisão não contém conclusões cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
O réu foi citado e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e a recusa da revisão e confirmação do Acórdão da Relação de Paris na parte em que não aplicou a lei portuguesa que é a lei nacional de ambos os cônjuges e por isso condenou o réu a pagar à autora as aludidas importâncias.
Para o efeito, alegou que autora e réu são cidadãos de nacionalidade portuguesa, ele nascido em Águeda e ela nascida em Sabugal, pelo que, por força das normas de conflito do direito internacional privado português dos artigos 25.º a 65º do Código Civil Português, a lei que regia as relações entre a autora e o réu, o seu divórcio e os efeitos do mesmo, era a lei portuguesa, por ser a lei nacional comum de ambos, a qual tinha de ser aplicada pelos tribunais franceses que se consideraram competentes para julgar a acção. Todavia, o Tribunal da Relação de Paris aplicou, no aludido Acórdão, a lei francesa, em violação das normas de conflitos do direito internacional privado da lei portuguesa, das razões de ordem pública jurídica internacional e dos artigos 14.º e 36.º da Constituição da República Portuguesa.
O Acórdão, na parte das condenações referidas, conduz a resultados incompatíveis com os princípios da ordem constitucional e da ordem pública internacional do Estado português, quando se confrontam esses resultados com os que resultariam da aplicação das normas legais da ordem jurídica portuguesa vigente à data do pedido judicial de divórcio (26.9.1991), a cuja data retroagem todos os efeitos patrimoniais do divórcio (artigo 1789º, nº 2 do Código Civil Português) e mesmo em relação à lei portuguesa vigente na data da prolação do Acórdão revidendo (25.10.2007), o que impede a sua revisão/confirmação em Portugal.
À data do pedido de divórcio, da sentença do Juízo de Família e do Acórdão revidendo do Tribunal da Relação, no direito português só o cônjuge declarado único ou principal culpado é que devia reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento (artigo 1792º do Código Civil na redacção então vigente), sendo esse o único direito de indemnização que de harmonia com a lei portuguesa um dos cônjuges podia exercer ou deduzir contra o outo com base no divórcio e danos dele emergentes, pelo que se tivesse sido aplicada a lei portuguesa jamais a Relação podia ter condenado o réu a pagar a indemnização de €170.000, sendo certo que o fez com base em declarações de ambas as partes sob compromisso de honra, o que não era consentido pela lei processual civil portuguesa.
Nessas datas, a lei portuguesa apenas conferia aos cônjuges o direito a obter alimentos do outro, não havendo, então como hoje, norma legal que permita a atribuição a um dos cônjuges de uma prestação compensatória pela disparidade das condições de vida que o divórcio lhe irá causar, pelo que o resultado do Acórdão é inequitativo em relação ao que se chegaria por aplicação da lei nacional, gerando uma ofensa intolerável dos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica portuguesa.
Também a condenação no pagamento da indemnização de €10.000 não seria possível por aplicação da lei portuguesa uma vez que o divórcio foi decretado com culpas de ambos os cônjuges. O mesmo se diga em relação à condenação no pagamento de €8.000 uma vez que na ordem jurídica portuguesa só a parte que fosse considerada litigante de má-fé podia ser condenada numa indemnização à parte contrária.
A autora respondeu à contestação do réu, defendendo, em síntese, que o Acórdão revidendo foi proferido por tribunais franceses que aplicaram a lei francesa por força da norma de conflitos da própria lei francesa em virtude de o casamento ter sido celebrado em França e perante as autoridades francesas e aí terem residência as partes, as quais nunca se opuseram a que tal acontecesse, não resulta do Acórdão que o mesmo não tenha sido proferido de acordo com a lei francesa aplicável, o Acórdão não versa sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses, o reconhecimento da sentença revidenda não conduz a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, a acção de revisão de sentença estrangeira não tem por objectivo reexaminar o mérito da decisão revidenda, mas apenas e só, confirmar a verificação dos requisitos previstos nas alíneas a) a f) do artigo 980º do Código do Processo Civil.
Findos os articulados, foi determinada a junção de documentos para instrução do processo.
Foi facultado o exame do processo para alegações.
O Ministério Público alegou defendendo que o Acórdão deve ser revisto e confirmado uma vez que não contém decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português, estando as quantias arbitradas de acordo com os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa.
As partes alegaram reiterando de novo as posições que expenderam nos respectivos articulados.
Cumpre decidir.
II. Saneamento:
O tribunal é competente em razão da matéria, da hierarquia e da nacionalidade.
O processo é o próprio, e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.
Não há nulidades, excepções ou outras questões prévias de que cumpra conhecer-se e que obstem ao conhecimento do mérito.
III. Os factos:
Estão documentalmente provados os seguintes factos:
1. A autora nasceu em Portugal, no Sabugal, no dia 03.12.1951, sendo filha de pais portugueses.
2. O réu nasceu em Portugal, em Águeda, no dia 01.03.1951, sendo filho de pais portugueses.
3. No dia 09.06.1973, em Drancy-Seine, …, França, perante o oficial de Registo Civil da respectiva Câmara Municipal, a autora e o réu celebraram, entre si, casamento civil sem convenção antenupcial, inscrito no assento n.º 767 do ano de 1975 do Consulado de Portugal em Nogent Sur Marne, França, transcrito para os Registos Centrais pelo assento de casamento n.º 33606/2010.
4. Este casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 25.10.2007, rectificada por Acórdão de 18.03.2010, transitada em julgado em 03.06.2010, proferido pelo Tribunal da Relação de Paris, conforme averbamento n.º 1 ao assento de casamento n.º 33606/2010 da Conservatória dos Registos Centrais.
5. Por sentença do Tribunal de Grande Instância de Bobigny proferida em 27 de Abril de 2004 na sequência do pedido de divórcio apresentado pelo aqui réu em 26.09.1991, foi decretado o divórcio entre a autora e o réu, «por culpa partilhada de ambos os cônjuges», tendo, além do mais, o réu sido condenado a pagar à autora a quantia de €6.000,00 de indemnização «ao abrigo do artigo 1382.º do Código Civil».
6. A autora interpôs recurso da aludida sentença.
7. Por Acórdão de 25.10.2007 o Tribunal da Relação de Paris julgou o referido recurso, confirmando as disposições da sentença recorrida com excepção das «relativas à prestação compensatória, ao montante da indemnização» a favor da autora e «ao artigo 700.º do novo Código de Processo Civil», e decidindo, a esse respeito, condenar o aqui réu a pagar à aqui autora: «a título de prestação compensatória um capital de €170.000», «a quantia de €10.000 a título de indemnização com base no artigo 1382 do Código Civil» e «a quantia de €8.000 ao abrigo do artigo 700.º do novo Código de Processo Civil».
8. O referido Acórdão transitou em julgado em 03.06.2010 na sequência da rejeição pelo Supremo Tribunal de Justiça do recurso interposto do mesmo.
9. O referido Acórdão foi rectificado quanto ao nome das partes por Acórdão da Relação de Paris de 18.03.2010.
10. O referido Acórdão tem a redacção que consta da tradução junta a fols. 28 a 39, a qual aqui se dá como reproduzida.
11. Em 2.11.2010 a aqui autora instaurou no Juízo de Grande Instância Civil de Aveiro da Comarca do Baixo Vouga, a acção n.º 1874/10.2T2AVR, na qual pediu a declaração de exequibilidade judicial ou executoriedade do Acórdão da Relação de Paris de 25.10.2007 que condenou o aqui réu a pagar-lhe uma prestação compensatória de €170.000.00, a quantia de €10.000,00 a título de indemnização com base no artigo 1382.º do Código Civil Francês, e a quantia de €8.000,00 ao abrigo do artigo 700.º, do novo Código de Processo Civil Francês.
12. Por sentença de 25.3.2011 essa acção foi julgada improcedente com fundamento em não se estar perante um caso de reconhecimento ao abrigo dos Regulamentos CE n.os 44/2001, de 22/12/2000, e 2201/2003, de 27/11/2003, nem ao abrigo das Convenções de Bruxelas ou de Lugano, e que a sentença para ser exequível em Portugal terá que ser objecto de revisão e confirmação através do processo especial de revisão de sentença estrangeira.
13. Essa sentença transitou em julgado em 11/05/2011.
14. Posteriormente a autora instaurou no Juízo de Grande Instância Cível da Comarca do Baixo Vouga Aveiro, a acção n.º 43/14.7T2AVR, pedindo, ao abrigo do disposto no Regulamento CE nº 44/2001, de 22/12/2000, e subsidiariamente, ao abrigo da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária e à execução das decisões em matéria civil e comercial de 1968, a declaração de executoriedade em Portugal do Acórdão do Tribunal da Relação de Paris de 25.10.2007, na parte em que condenou o réu a pagar-lhe uma prestação compensatória de €170.000, a quantia de €10.000 a título de indemnização com base no artigo 1382.º do Código Civil Francês, e a quantia de €8.000 ao abrigo do artigo 700.º do novo Código de Processo Civil Francês.
15. Nessa acção foi proferida sentença afirmando estarem reunidos os requisitos previstos no artigo 53.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, e declarando executório em Portugal, de harmonia com o preceituado no artigo 41.º do citado Regulamento, o Acórdão do Tribunal da Relação de Paris de 25.10.2007.
16. Desta sentença foi interposto recurso para a Relação do Porto, a qual, por Acórdão de 23.03.2015 revogou a aludida sentença e absolveu o réu da instância por considerar verificada a excepção dilatória do caso julgado formado pela decisão referida nos itens 12 e 13.
IV. O mérito:
Conforme consta da matéria de facto provada, antes da instauração da presente acção de revisão de sentença estrangeira, a autora tentou por duas vezes obter a executoriedade da referida sentença ao abrigo dos Regulamentos (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000, e n.º 2201/2003, de 27/11/2003, ou ao abrigo das Convenções de Bruxelas ou de Lugano. Ficou decidido na primeira dessas iniciativas judiciais que a autora necessitava de instaurar uma acção de revisão de sentença estrangeira e, segundo foi decidido por Acórdão desta Relação na segunda, o trânsito em julgado da respectiva decisão impedia mesmo a instauração da segunda iniciativa.
Não cabendo nos poderes desta Relação questionar o então decidido e sendo certo que foi esta mesma Relação que considerou que o caso julgado formado pela primeira decisão obstava a que fosse de novo pedida a atribuição de executoriedade à sentença do Cour D’Appel de Paris ao abrigo das citadas normas europeias, tem de se aceitar o pressuposto jurídico de a autora poder lançar mão da acção de revisão de sentença estrangeira para poder posteriormente executar a sentença na medida em que esta for revista e confirmada.
Convém, no entanto, fazer uma distinção. O que naquelas acções ficou decidido com efeito de caso julgado foi a recusa da atribuição do exequatur à sentença já que era só esse o objecto das acções e só sobre este se formou caso julgado. Ainda que na fundamentação da primeira das aludidas acções se tenha aludido à inaplicabilidade dos Regulamentos invocados pela então requerente para justificar a recusa da declaração de executoriedade, tem de se entender que o caso julgado apenas se formou sobre o dispositivo da decisão e pelo fundamento então apresentado, mas não que nenhum outro tribunal possa considerar aplicáveis, total ou parcialmente, disposições dos Regulamentos em causa para qualquer outro efeito.
Por outras palavras, esta Relação não poderá recusar a revisão de sentença por entender que a execução da sentença devia ser pedida e obtida através dos mecanismos alternativos previstos nos Regulamentos em causa, mas não está impedida de considerar que os Regulamentos em causa eram afinal aplicáveis, total ou parcialmente, e por isso a revisão terá de ser concedida nos termos em que os próprios Regulamentos impunham o respeito da decisão pelas ordens jurídicas nacionais.
Vem isto a propósito da circunstância de nas anteriores acções não se ter distinguido entre os diversos dispositivos da sentença do Cour D’Appel de Paris cuja execução em Portugal a autora pretende e, sobretudo, de não se ter separado o que são as condenações decorrentes do divórcio ou relacionadas com as respectivas causas e a condenação de natureza puramente processual relativa às custas do processo e sua repartição pelas partes. Na verdade, o Acórdão de 25.10.2007 do Tribunal da Relação de Paris condenou o réu a pagar à autora uma prestação compensatória no valor de €170.000, uma indemnização com base no artigo 1382.º do Código Civil no montante de €10.000 e a quantia de €8.000 ao abrigo do artigo 700.º do novo Código de Processo Civil. Aquelas condenações têm fundamento material no regime jurídico substantivo que o tribunal considerou aplicável ao divórcio, às respectivas causas e consequências. Esta última condenação é estritamente processual e prende-se com o regime de custas que o tribunal considerou aplicável ao próprio processo de divórcio e seus recursos.
Ora como se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 15.04.2008, processo n.º 225-C/1998.C1, Teles Pereira, in www.dgsi.pt, «I- O reconhecimento automático das decisões positivas de divórcio previsto nos Regulamentos (CE) nºs 1347/2000 e 2201/2003, refere-se em exclusivo à dissolução do vínculo matrimonial. II- Assim, a parte do pronunciamento decisório constante de uma sentença de divórcio proferida por um tribunal francês que fixe uma indemnização decorrente do decretamento do divórcio, não é abrangida por qualquer desses Regulamentos, não sendo objecto de reconhecimento automático, não constituindo, essa parte da sentença francesa, título executivo em Portugal, sem a prévia obtenção do correspondente exequator. III- Esses Regulamentos (1347/2000 e 2201/2003) reconhecem automaticamente, todavia, as condenações em custas proferidas nas acções de divórcio por eles abrangidas, permitindo, assim, a instauração de um processo executivo em Portugal, assente numa condenação em custas proferida por um Tribunal francês num divórcio. IV - A condenação numa indemnização prevista no artigo 700 do Nouveau Code de Procédure Civile francês, constitui, nesse direito processual, uma condenação em custas (paralela da condenação em procuradoria por um tribunal português), sendo exequível em Portugal ao abrigo de qualquer um dos mencionados Regulamentos.»
Na respectiva fundamentação assinala-se neste Acórdão o seguinte: «[…] no que se refere à parte da condenação reportada ao artigo 700 do NCPC francês, … constata-se … estar em causa algo que, grosso modo, apresenta alguma equivalência a certos elementos do conteúdo da chamada “procuradoria” no Direito português [..]. Relativamente a este aspecto da condenação proferida pelo Tribunal francês, interessa ter presente … que o conteúdo indemnizatório em causa no artigo 700 do NCPC assume aí, no processo civil francês, a natureza de “encargo de custas” (“charges des dépens”) respeitante ao processo de divórcio [..]. Com efeito, embora se distinga em França as custas propriamente ditas (que correspondem aí aos valores elencados no artigo 695 do NCPC) da indemnização prevista no artigo 700 do NCPC [..], isso sucede em termos que apresentam alguma semelhança com a situação correspondente no nosso Direito: a que resulta da articulação entre o regime das custas da acção e o da procuradoria [..]. Significa isto que este elemento da condenação pretendido executar, será considerado, neste processo, como condenação em custas proferida pelo Tribunal francês no âmbito de uma acção de divórcio [..].» E mais à frente, ainda a propósito «do elemento da Sentença … traduzido na condenação … nos termos do artigo 700 do NCPC», chama-se a atenção para que «qualquer dos Regulamentos (1347/2000 e 2201/2003) abrange, no respectivo reconhecimento automático, as custas referentes à decisão de decretamento do divórcio (artigos 13º, nº 2, do Regulamento 1347/2000 e 49º do Regulamento 2201/2003)», por isso, uma vez que «este elemento da condenação proferida em França traduz (aí) uma condenação em custas respeitante ao próprio divórcio» é-lhe «aplicável, enquanto condenação nas custas de um divórcio, o regime de reconhecimento automático estabelecido nos Regulamentos para as condenações em custas».
Podemos apenas acrescentar que a substituição do Código das Custas Judiciais pelo Regulamento das Custas Processuais ocorrida entretanto na ordem jurídica nacional só reforça esta conclusão (da não incompatibilidade entre os regimes francês e português de custas processuais) na medida em que a eliminação da figura da procuradoria foi acompanhada pela inclusão no conceito das custas de partes das despesas com os honorários do mandatário judicial (arts. 25.º e 26.º do RCP).
Nestes termos, com que se concorda em absoluto, a sentença do Cour D’Appel de Paris não pode deixar de ser reconhecida neste aspecto particular, tanto mais que nos termos do artigo 19.º do Regulamento (CE) n.º 1347/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, e do artigo 26.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, «uma decisão não pode, em caso algum, ser objecto de revisão quanto ao fundo».
Refira-se que o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, era aplicável à sentença (de uma acção de divórcio) proferida pelo Cour D’Appel de Paris nos termos do n.º 2 do respectivo artigo 42.º, segundo o qual as decisões proferidas após a data de entrada em vigor do regulamento (em 01/03/2001) na sequência de acções intentadas antes dessa data são reconhecidas e executadas em conformidade com o disposto no capítulo III se a competência do tribunal se fundava em regras conformes com as previstas no Regulamento.
Ora o artigo 2.º do Regulamento, inserido no referido capitulo II, estabelece a competência para decidir as questões relativas ao divórcio, dos tribunais do Estado-Membro em cujo território se situe, nomeadamente, a residência habitual dos cônjuges, ou dos tribunais da nacionalidade de ambos os cônjuges. Daí decorre que a circunstância dos tribunais franceses se terem considerado competentes para julgar a acção de divórcio de dois portugueses cuja residência se situava em território francês está em conformidade com as regras de competência territorial do Regulamento (CE) n.º 1347/2000, não havendo à data da instauração da acção (26/09/1991) convenção em vigor entre o Portugal e a França que dispusesse diferentemente (parte final do n.º 2 do artigo 42.º do Regulamento).
Muito embora este Regulamento tenha deixado de vigorar em 28/02/2005, quando passou a ser aplicável o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, o facto de este ter substituído aquele determina que as consequências jurídicas da aplicação do primeiro devam ser absorvidas pelo segundo, excepto nas situações em que o novo Regulamento passou a decidir diferentemente, razão pela qual o regime do artigo 64.º deste deve ser interpretado como abrangendo no seu regime as decisões que o seriam ao abrigo do anterior Regulamento, designadamente aquela que no caso foi proferida pelo Cour D’Appel de Paris em 25/10/2007 numa acção de divórcio iniciada em 26/09/1991.
No que concerne às outras duas condenações proferidas na sentença revidenda (prestação compensatória e indemnização) é seguro que não têm aplicação os Regulamentos n.os 1347/2000 ou 2201/2003.
Com efeito, em ambos esses Regulamentos se exclui do seu âmbito material as questões que no âmbito das acções de divórcio excedam a dissolução do casamento por divórcio. Tais Regulamentos estabelecem regras de competência, reconhecimento e execução em matérias civis relacionadas com o divórcio, a separação e a anulação do casamento, mas excluem as causas do divórcio, a lei aplicável em matéria de divórcio e as questões acessórias, de que são exemplo as consequências patrimoniais do divórcio como as obrigações de alimentos entre ex-cônjuges.
Nesse sentido afirmava-se no Considerando 10 do Regulamento (CE) n.º 1347/2000 que «o presente regulamento deve limitar-se aos processos relativos ao divórcio, à separação de pessoas e bens ou à anulação do casamento. O reconhecimento das decisões de divórcio ou anulação apenas afecta a dissolução do vínculo matrimonial. O regulamento não trata de questões como a culpa dos cônjuges, os efeitos patrimoniais do casamento, as obrigações de alimentos ou outras eventuais medidas acessórias, ainda que estejam relacionadas com os processos acima mencionados
Voltando a citar e acompanhar o Acórdão da Relação de Coimbra a que atrás de fez referência, «isto mesmo foi explicitado – e trata-se de um relevante elemento interpretativo – no “Relatório Explicativo” do texto que viria a originar o Regulamento 1347/2000, o chamado “Relatório Alegría Borrás” [o relator refere-se Relatório Explicativo da Convenção, publicado na edição portuguesa do Jornal Oficial das Comunidades Europeias de 16 de Julho de 1998, C 221, pág. 27], no qual se refere: “[…] 22. A convenção limita-se às acções relativas ao vínculo matrimonial propriamente dito, quer dizer, à anulação do casamento, ao divórcio e à separação. Como tal, o reconhecimento das decisões de divórcio ou anulação apenas afecta a dissolução do vínculo conjugal. Apesar de serem questões que surgem vinculadas às anteriores, a convenção não trata de questões como, designadamente, culpa dos cônjuges, os efeitos patrimoniais do casamento ou obrigação de alimentos, ou outras medidas acessórias eventuais (direito ao nome, etc.) […]. Para as demais questões, continuar-se-ão a aplicar as regras, internas ou internacionais, vigentes entre os Estados em questão. […] 64. À semelhança do que já se referia no artigo 1º ao tratar do âmbito de aplicação da convenção em relação às matérias incluídas, basta recordar aqui que o reconhecimento [previsto no artigo 14º do Regulamento] não afecta as questões relativas à culpa dos cônjuges a regimes matrimoniais, a alimentos ou a quaisquer outras consequências económicas ou de qualquer outro tipo que estejam incluídas na mesma decisão. Incide, pois, exclusivamente no reconhecimento da dissolução do vínculo matrimonial ou da separação […].[…]”.»
Já no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 o considerando 8 assinala que «quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação de casamento, o presente regulamento apenas deve ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial e não deve abranger questões como as causas de divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras eventuais medidas acessórias». Apoiando-se neste considerando, afirma Luís de Lima Pinheiro, in O reconhecimento de decisões estrangeiras em matéria matrimonial e de responsabilidade paternal, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Vol. II, Setembro de 2006, que «o reconhecimento só tem por objecto a dissolução do vínculo matrimonial, e já não as suas consequências económicas ou de outro tipo, designadamente quanto aos bens do casal e à obrigação alimentar
Nessa medida, é necessário proceder efectivamente à revisão e confirmação da sentença nesses dois aspectos porquanto, nos termos do n.º 1 do artigo 978.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada[1].
Conforme refere Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, volume I, Almedina, 2000, pág. 455, «toda a sentença sobre direitos privados, quer provenha de um tribunal de justiça, quer emane de uma autoridade não judiciária legalmente investida no poder de julgar, é susceptível de revisão e confirmação; sendo certo que, por outro lado, só depois de revista e confirmada poderá a decisão surtir na ordem jurídica do foro, os efeitos que lhe competem segundo a lei do país de origem».
Os requisitos para que a sentença estrangeira possa ser confirmada encontram-se definidos no artigo 980.º do Código de Processo Civil. São eles os seguintes: a) que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Conforme resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 983.º do Código de Processo Civil, trata-se de requisitos necessários para a confirmação da sentença, os quais têm de se verificar cumulativamente, bastando a falta de um deles para impedir o reconhecimento da decisão estrangeira[2].
A acção de revisão de sentença estrangeira é uma acção de simples apreciação positiva cujo objecto é a verificação se a sentença estrangeira reúne as condições de produzir efeitos como ato jurisdicional na ordem jurídica portuguesa. Decorre do artigo 984.º do Código de Processo Civil que o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980.º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
É comummente aceite que o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras se inspira basicamente no chamado sistema de delibação ou de revisão meramente formal. Por princípio, o tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa. Desde que o tribunal nacional apure que está perante uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa (cf. Alberto dos Reis, in Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 141).
A excepção à referida regra está prevista no artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, e reporta-se à situação de a sentença ter sido proferida contra pessoa de nacionalidade portuguesa, caso em que a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos da lei portuguesa (cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 26.05.2009, Paulo Sá, no proc, n.º 43/09.9YFLSB, in www.dgsi.pt).
No caso não há dúvidas de que se encontram reunidos os requisitos da revisão previstos nas alíneas a) a e) do artigo 980.º do Código de Processo Civil, nem o réu suscita qualquer questão a respeito do preenchimento dessas previsões legais. A discussão que se trava e que cabe resolver reside na previsão da alínea f) do aludido preceito e consiste em apurar se a sentença revidenda contém decisão cujo reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, conforme sustenta o réu.
Segundo Baptista Machado, in Lições de direito internacional privado: apontamentos das aulas teóricas do ano lectivo de 1971-1972 na Faculdade de Direito de Coimbra, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2002, pág. 256, «o juiz precisa de ter à sua disposição um meio que lhe permita precludir a aplicação de uma norma de direito estrangeiro, quando dessa aplicação resulte uma intolerável ofensa da harmonia jurídico-material interna ou uma contradição flagrante com os princípios fundamentais que informam a sua ordem jurídica. Esse meio ou expediente é a excepção de ordem pública internacional ou reserva da ordem pública».
A lei não define o que deve entender-se ordem pública internacional[3] do Estado Português. Trata-se de um princípio geral, de uma ideia mestra, cujo conteúdo positivo terá de ser preenchido pelo julgador na análise de cada caso (cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., pág. 69). Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2014, proc. n.º 1036/12.4YRLSB.S1, in www.dgsi.pt, «o conceito de ordem pública internacional é vago, fluido e impreciso, mas, numa aproximação com escopo meramente operativo, podemos (…) designá-la como uma amálgama de valores basilares e concepções dominantes de índole social, ética, política e económica expressos em princípios e regras que o aplicador deve, em cada momento histórico, interpretar e reconhecer a fim de apreciar se os mesmos se podem ter como afrontados pelo resultado a que se chegou na sentença arbitral revidenda».
Como afirma Rui Moura Ramos, na anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Março de 2017 (Reconhecimento de sentença arbitral estrangeira e ordem pública internacional) na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 146.º, n.º 4003, pág. 290 e seguintes, ao falar-se de ordem pública fala-se de «um conceito indeterminado, e de uma noção funcional. De um conceito indeterminado ou cláusula geral porque permite tornar em conta as circunstâncias particulares do caso concreto, transferindo para o juiz a tarefa de concretizar a disposição legal no momento da sua aplicação, o que é característica dos sectores abertos do direito. De uma noção funcional, porque ela é indefinível a não ser pela função que lhe cabe desenvolver na ordem jurídica: impedir que a aplicação de certas regras ou o reconhecimento de determinadas sentenças (judiciais ou arbitrais) possam, num caso particular, pôr em causa aspectos essenciais da ideia de direito do sistema jurídico do foro. E de um conceito suficientemente importante, precisamente pela função que desempenha, para que a sua omissão em alguns diplomas legislativos tenha levado a doutrina e a jurisprudência a continuar apesar disso a considerá-lo. […]. [nas situações plurilocalizadas, cuja normação é fornecida em não poucos casos por sistemas jurídicos estrangeiros] o reconhecimento, pelo sistema do foro, de que a lei estrangeira é a lei mais conveniente e adequada para a regulação dessas relações implica forçosamente a aceitação de valores, princípios e normas diversos dos que seriam aplicáveis no sistema do foro, e que inclusivamente neste não seriam actuados. Na verdade, como se tornou comum dizer, a actuação do sistema de normas de direito internacional privado implica como que um salto para o desconhecido (Sprung ins Dunkle) pelo que a persistência na actuação dos valores e regras do foro, com desconsideração do carácter internacional da relação, poria em causa o objectivo essencial do sistema de direito internacional privado que se traduz precisamente no reconhecimento da maior adequação da aplicação, em determinadas circunstâncias, das leis estrangeiras, expressão de diversas (e por vezes opostas) concepções das que inspiram a ordem jurídica do foro. Simplesmente, o voto de confiança dado por este sistema às ordens jurídicas estrangeiras não pode ser absoluto, tendo de comportar a possibilidade de recusar a aplicação ou o reconhecimento daqueles comandos jurídicos que sejam expressão de concepções que se revelem intoleráveis face à ideia de justiça do Estado do foro.»
Para Mariana Silva Dias, in O Reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português: a excepção de ordem pública internacional, Revista Julgar, n.º 23 – 2014, a ordem pública internacional tem como «características definidoras … a imprecisão, a actualidade e a relatividade. Com efeito, a ordem pública surge como um instrumento destinado a evitar que, em cada caso concreto, se produza na ordem jurídica do foro um efeito que esteja com ela numa contradição insuportável. A excepção apenas opera em relação àquela situação jurídica concreta que visa evitar que se realize, por isso é relativa, depende de caso para caso e do sistema jurídico em que se insere (tem um carácter nacional). Por outro lado, trata-se de um conceito indeterminado, que carece da concretização do juiz aquando da sua aplicação. Essa apreciação do juiz sobre quais os princípios que integram a ordem pública internacional do Estado do foro deve ser actual, pois este instituto é fruto de concepções que vigoram no próprio país onde a questão se põe, isto é, o juiz tem de defender o particularismo jurídico do seu Estado no momento em que se levanta a questão do reconhecimento. Seguidamente, como pressupostos da sua actuação temos a ligação suficientemente estreita com a ordem do foro, que deve estar presente para que se justifique a intervenção da ordem pública (Inlandsbeziehung). Em todo o caso, para a excepção intervir, será sempre necessário que o direito estrangeiro aplicável viole grosseiramente a concepção de justiça do direito material, tal como o Estado do foro a entende. Assim, o juiz deverá detectar primeiro se se verifica uma incompatibilidade in abstracto do conteúdo da lei estrangeira com os princípios de ordem pública internacional da lex fori e, se concluir que sim, só depois verificar se há uma incompatibilidade in concreto, ou seja, se a intensidade do Inlandsbeziehung ou outras circunstâncias do caso justificam a intervenção da excepção. Relembramos que o juiz não deve tecer interferências quanto ao conteúdo da lei estrangeira cujo efeito se pretende ver reconhecido, mas sim da compatibilidade com as concepções ético-jurídicas fundamentais da lex fori da situação que adviria da aplicação da lei estrangeira aos factos em causa
A propósito da norma do artigo 22.º do Código Civil que veda a aplicação do direito estrangeiro indicado pela norma de conflitos quando essa aplicação envolva ofensa dos princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português, Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado I, Coimbra, Almedina, 2000, pág. 406, afirma que «a lei definida por competente não será aplicada na medida em que essa aplicação venha lesar algum princípio ou valor básico do ordenamento nacional, todo por inderrogável, ou algum interesse de precípua grandeza da comunidade local». O mesmo autor assinala a pág. 410, que a solução para o problema da natureza abstracta e vaga do conceito de ordem pública internacional «só pode, pois, achar-se ao nível do caso, supõe da parte do juiz da causa uma liberdade de avaliação inconciliável com qualquer fórmula rígida. A ordem pública não é uma medida objectiva para aferir a compatibilidade concreta da norma estrangeira com os princípios fundamentais do direito nacional, mas a decisão de não aplicar as leis estrangeiras é alguma coisa que joga essencialmente com avaliações subjectivas do juiz, com a representação que na mente deste se forme acerca do sentimento jurídico dominante na colectividade e das reacções desse sentimento à constituição ou reconhecimento do efeito jurídico que se tem em vista
O réu defende que a sentença do Cour D’Appel de Paris não aplicou a lei portuguesa que é a lei pessoal (da nacionalidade) de ambas as partes, a qual era aplicável segundo das normas de conflito do direito português, pelo que a não aplicação da referida lei pessoal viola o disposto nos artigos 14.º, 20.º e 36.º da Constituição da República Portuguesa.
A nosso ver este argumento é improcedente.
Nos termos dos artigos 55.º e 52.º do Código Civil Português, o divórcio é regulado pela lei nacional comum, não tendo ambos a mesma nacionalidade pela lei da residência habitual comum e na falta desta pela lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa.
Todavia, as normas de conflitos da lei portuguesa apenas dispõem sobre a lei aplicável às acções que houverem de ser decididas pelos tribunais portugueses. Nenhum outro estado é obrigado a acatar as normas de conflitos da lei portuguesa ou a incluir no seu ordenamento jurídico normas de conflitos que sejam idênticas às portuguesas, tendo, ao invés, inteira soberania para definir as suas próprias leis de conflitos[4].
A partir do momento em que a acção não cabe no âmbito da competência exclusiva dos tribunais portugueses, como é o caso da acção de divórcio que não está prevista em nenhuma das alíneas do artigo 62.º do Código de Processo Civil, a ordem jurídica nacional não se opõe a que outros países aceitem a jurisdição e julguem a acção. Nessa hipótese a ordem jurídica nacional aceita consequentemente que essas jurisdições apliquem a lei que resulta das suas próprias normas de conflito.
A questão que se colocará depois é a de saber em que condições pode a sentença que vier a ser proferida pelo tribunal estrangeiro ser reconhecida em Portugal, mas, como vimos, entre os requisitos de revisão da sentença estrangeira previstos no artigo 980.º do Código de Processo Civil não se conta, por exemplo, o requisito de a sentença ter feito aplicação da lei que seria aplicável se a sentença tivesse sido proferida em Portugal, isto é, a lei determinada pelas normas de conflito da lei portuguesa.
Por outro lado, as normas de conflito estão previstas na lei ordinária, não estão previstas na Constituição da República Portuguesa, designadamente nas normas citadas pelo réu, pelo que não é possível sustentar que a revisão de uma sentença estrangeira que aplicou lei diferente da prevista nas normas de conflito portuguesas se traduza numa inconstitucionalidade ou sequer uma ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português como decorrência da postergação de normas (de conflitos) de valor constitucional.
Ora a sentença revidenda aplicou a lei francesa porque assim o estipulava o Code Civil nos artigos 310.º, na redacção da Loi 75-617 du 1975-07-11, em vigor desde 1 de Janeiro de 1976, ou 309.º, na redacção da Ordonnance n°2005-759 du 4 juillet 2005 em vigor desde 1 de Julho de 2006, nos termos dos quais o divórcio é regulado pela lei francesa desde que pelo menos um dos cônjuges seja domiciliado em território francês, como aqui sucedia com ambas as partes. Não há, pois, qualquer irregularidade nessa aplicação.
Sustenta depois o réu que a sentença revidenda conduz a resultados incompatíveis com a ordem pública internacional do Estado Português.
O que pode obstar à revisão da sentença estrangeira não é a mera circunstância de esta conter decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. A revisão só é impedida se essa incompatibilidade for manifesta, isto é, for notória, patente, flagrante ou significativa, possuir uma dimensão tal que não deva escapar ao controle da ordem jurídica de recepção. Não basta, por isso, dizer que o resultado da sentença estrangeira não é idêntico ou não tem equivalência com o resultado que se obteria se a sentença tivesse sido proferida por um tribunal nacional. É necessário algo mais, algo que torne essa dissonância significativa, inaceitável face aos princípios e normas jurídicas do direito nacional.
Por outro lado, nem todas as normas do direito português sobre as relações de família integram a ordem pública internacional do Estado Português. Podem possuir essa natureza as normas jurídicas estruturantes das relações de família tal como elas são concebidas pela ordem jurídica nacional e as normas jurídicas que reflectem a consideração dos direitos absolutos ou essenciais dos elementos da família e os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, como são, por exemplo, as normas que asseguram a liberdade da constituição da família, a igualdade dos cônjuges, a manutenção do regime jurídico pessoal dos cônjuges, a estabilidade das relações patrimoniais fixadas, a não descriminação dos filhos nascidos fora do casamento. Mas já não o são as normas que regulam aspectos acessórios da relação de família, do divórcio, da organização do poder paternal ou dos modos de substituição deste.
No caso, a sentença Cour D’Appel de Paris condenou o réu a pagar à autora uma indemnização, com base no artigo 1382.º do Código Civil, no valor de €10.000, e uma prestação compensatória, nos termos do artigo 270.º do Código Civil, no valor de €170.000.
A indemnização foi fixada por se ter entendido que nos termos do artigo 1382.º do Código Civil[5], quando o divórcio é decretado por culpa partilhada por ambos os cônjuges, se um deles tiver sofrido um «prejuízo específico», «distinto» e «independente» do «prejuízo resultante da ruptura do elo conjugal» pode reclamar uma indemnização do cônjuge causador desse prejuízo. Segundo o texto do Acórdão revidendo a indemnização fixada destinou-se a compensar a autora do «grave prejuízo, moral e material, um stress considerável, para além de uma constante corrida contra o relógio para evitar que fosse ainda mais enganada» pelo réu.
O réu não foi condenado a indemnizar a autora pelo incumprimento dos deveres conjugais, mas por ter causado à autora um prejuízo específico distinto do originado pela dissolução do matrimónio. O réu foi condenado por ter praticado sobre o património do casal actos que obrigaram a autora a realizar variadas acções e instaurar sucessivos procedimentos judiciais para evitar ser prejudicada em relação a esse património, o que, no entendimento do Cour D’Appel de Paris, causou à autora danos passíveis de serem reparados.
Deste modo, embora proferida numa acção de divórcio, esta condenação não é um efeito do divórcio, nem uma condenação por danos causados pela dissolução do casamento. É apenas o resultado da aplicação da regra geral de responsabilidade civil equiparável ao nosso artigo 483.º do Código Civil.
Por esse motivo, afigura-se-nos ser manifesto que esta condenação não só não contradiz os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, como é mesmo, absolutamente compatível com a nossa ordem jurídica (logo, com aqueles princípios desta), independentemente de saber se a indemnização podia ser pedida e obtida numa acção de divórcio ou numa acção autónoma de responsabilidade civil, o que se prende estritamente com a organização processual interna e donde não resulta nenhuma violação daqueles princípios.
Já a prestação compensatória, segundo a norma jurídica que lhe serve de fundamento normativo[6], tem por objectivo, na expressão do Acórdão revidendo, «compensar na medida do possível a disparidade que a ruptura do casamento cria nas suas condições da respectiva vidas», através «de uma prestação de carácter forfetário» e «determinada em função das necessidades do cônjuge a quem é paga, tendo em conta a situação na altura do divórcio e da evolução dessa situação num futuro previsível[7] ».
Segundo o Acórdão da Relação de Coimbra de 15.04.2008, já citado, esta “prestação compensatória” refere-se «à situação regulada nos artigos 270 a 281 do Código Civil francês [..], traduzindo-se ela numa atribuição patrimonial a um dos cônjuges, a cargo do outro, visando compensar a disparidade criada pela ruptura do casamento relativamente às condições de vida de cada um dos cônjuges [..]. Trata-se de uma possibilidade que não tem uma correspondência exacta no direito português, fora do quadro da obrigação alimentar a cargo dos ex-cônjuges [artigo 2009º, nº 1, alínea a) do Código Civil], sendo substancialmente diferente da reparação prevista no artigo 1792º do Código Civil [..], caracterizando-a a doutrina francesa nos seguintes termos: “[…] Quanto ao seu fundamento, ele não assenta na atribuição da culpa […], mas na ideia de que, ao sair do casamento, devem os cônjuges encontrar-se numa situação de independência patrimonial comparável, sem que um deles sofra, de forma particularmente violenta, as consequências das escolhas de partilha que fez, conjuntamente, ao longo do casamento (principalmente dos sacrifícios de carreira feitos pela mulher). Assenta tal compensação, assim, puramente, num fundamento de equidade […]”.»[8]
No direito nacional, desde a versão inicial do Código Civil (Decreto-lei nº 47334 de 25 de Novembro de 1966) até à versão introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, com a modificação do artigo 2016º e o acrescento do artigo 2016º-A, os alimentos devidos entre os ex-cônjuges foram vistos, primeiro, basicamente, como uma sanção sobre o cônjuge único culpado ou o cônjuge principal culpado pelo divórcio quando ambos sejam considerados culpados.
Na reforma de 1977, operada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, em caso de divórcio e de separação judicial de pessoas e bens, continuou a reconhecer-se direito a alimentos ao cônjuge não considerado culpado – ou não considerado principal culpado – na sentença de divórcio ou de separação, mas apenas quando este haja sido decretado com base na violação culposa dos deveres conjugais, na separação de facto por seis anos consecutivos ou na ausência por quatro ou mais anos. Manteve-se o direito a alimentos para qualquer dos cônjuges, no caso de ambos serem tidos como igualmente culpados, no divórcio litigioso, ou de o divórcio ter sido decretado por mútuo consentimento (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2014, proc. n.º 141/10.6TMSTB.E1.S1, Granja da Fonseca, in www.dgsi.pt).
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.10.2014, proc. n.º 2155/08.7TMLSB-A.L1.S1, Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, com aplicação do regime anterior à Lei n.º 61/2008, «a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges encontra justificação no princípio da solidariedade pós-conjugal, devendo ser fixada em montante situado entre o indispensável à subsistência do credor e o padrão de vida decorrente do dissolvido casamento. Se tal não justifica que a obrigação de alimentos constitua para o cônjuge beneficiário um seguro de bem-estar, também não se justifica uma descida radical do estatuto económico que era garantido pelo casamento. É neste sentido a solução para que aponta a jurisprudência deste Supremo Tribunal, de que são exemplos os Acs. de 20-2-14 (Rel. Granja da Fonseca), de 22-5-13 (Rel. Pereira da Silva) e de 23-10-12 (Rel. Hélder Roque), posto que proferidos no âmbito de acções que visavam a constituição do direito a alimentos entre ex-cônjuges e não a alteração ou a cessação da obrigação. Entendimento que também é defendido por Maria João Tomé, Algumas reflexões sobre a obrigação de compensação e a obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, em Estudos em Homenagem ao Prof. Heinrich Hörster), e por Guilherme de Oliveira, A nova lei do divórcio, na Lex Familiae, nº 13, pág. 30
A versão actual do Código Civil, dada pela Lei nº 61/2008, viabilizou o divórcio a pedido de um cônjuge sem o consentimento do outro, com afastamento da apreciação da culpa por violação dos deveres conjugais, e com base na mera constatação de ruptura do casamento (artigos 1773º, nº 3 e 1781º). Em simultâneo eliminou a apreciação da culpa como factor relevante da atribuição de alimentos entre os ex-cônjuges, acentuou a ideia de que qualquer dos cônjuges tem direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio (por mútuo consentimento ou sem o consentimento do outro), afirmou o princípio de que cada ex-cônjuge deve prover à sua própria subsistência depois do divórcio (art.º 2016º, nº 1) e deixou expresso em letra de lei que “o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio” (art.º 2016º-A, nº 3).
Quanto ao montante dos alimentos, na versão inicial do Código Civil não existia norma especial relativa a alimentos em caso de separação judicial de pessoas e bens ou divórcio, devendo aplicar-se a regra geral do art.º 2004º, segundo a qual os alimentos eram proporcionados aos meios daquele que haveria de prestá-los e à necessidade daquele com direito a recebê-los, considerando também a possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência. Já a reforma de 1977 estabeleceu para o efeito no nº 3 do artigo 2016º um regime especial, consagrando que “na fixação do montante dos alimentos deve o tribunal tomar em conta a idade e estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que terão de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos e, de modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e as possibilidades do que os presta”.
Evoluiu-se assim da ideia de que o cônjuge culpado deveria proporcionar ao alimentando uma situação económica tendencialmente idêntica à da constância do matrimónio, para a posição de que “o direito a alimentos do divorciado, ao abrigo do art.º 2016º, tem natureza alimentar, pelo que não nasce por mero efeito da verificação do pressuposto da culpa previsto no n.º 1 do mesmo artigo, nem tem como finalidade assegurar ao requerente o mesmo padrão de vida que usufruía na vigência do casamento”.
Para a determinação do montante de alimentos a atribuir ao ex-cônjuge necessitado, além dos elementos acima referidos e indicados no art.º 2016º, nº 3, na versão da reforma de 1977, a última reforma acrescentou a duração do casamento, a colaboração prestada à economia do casal e um novo casamento ou união de facto. Cada um dos ex-cônjuges deverá em princípio prover à sua subsistência. Só se a um deles tal não for possível, terá então o direito a receber alimentos do outro cônjuge, em montante que lhe permita garantir um mínimo de vida digna, e sempre de acordo com as reais possibilidades económicas do ex-cônjuge obrigado a prestá-los. Este direito, assentando num dever assistencial que perdura para além do casamento, passou a ter carácter subsidiário e, seguramente, limitado pela obrigação de socorro numa situação de grande exigência resultante de manifesta carência de meios de subsistência num quadro de impossibilidade ou grave dificuldade de obtenção de rendimento suficiente à realização de uma vida minimamente condigna.
O que se revela aqui é que embora a legislação portuguesa em vigor à data da prolação do Acórdão do Cour D’Appel de Paris não previsse a prestação compensatória do direito francês, previa uma figura alternativa (a prestação de alimentos) à qual não era então estranha em alguma medida a alteração da situação económica por efeito do divórcio relativamente à que os cônjuges tinham na pendência do casamento.
Embora os alimentos devessem ser proporcionados em prestações regulares e o seu montante pudesse ser modificado em função da alteração das circunstâncias, a verdade é que a entrega imediata de um capital capaz de gerar um rendimento suficiente para proporcionar um rendimento periódico e esgotar-se no fim do respectivo período também não era uma figura estranha ao ordenamento jurídico nacional, sendo aplicável designadamente em matéria de responsabilidade civil automóvel ou laboral.
Acresce que a circunstância que podia impedir a atribuição dos alimentos era a circunstância de o cônjuge com direito a ela ter sido declarado o único ou principal culpado do divórcio, não sendo esse direito excluído ainda que ambos os cônjuges fossem declarados culpados. No Acórdão revidendo ambos os cônjuges são declarados culpados, mas não existe qualquer pronúncia sobre um deles ser o principal culpado do divórcio, ainda que na respectiva fundamentação se escreva que «as culpas do Sr. C… parecem bastante preponderantes, constituindo assim uma violação grave e reiterada dos deveres e obrigações do matrimónio».
Tendo presentes estas ideias somos de opinião que no caso os princípios da ordem pública internacional do Estado Português não são manifestamente incompatíveis com a condenação do réu pelo Cour D’Appel de Paris a pagar a aludida prestação compensatória[9].
Em primeiro lugar por uma circunstância que nos parece absolutamente determinante. Foi em França que a autora e o réu casaram por volta dos seus vinte anos, que instalaram a sua vida pessoal e familiar, que tiveram filhos, que estabeleceram a sua via comercial na área da restauração, que angariaram o significativo património comum e que praticamente duas décadas depois do casamento entraram em conflito que desencadeou o divórcio. E foi ainda nesse país que se envolveram numa sucessão inacreditável de processos judiciais a propósito dos seus conflitos pessoais e financeiros. A sua ligação com a França e com a ordem jurídica francesa é, portanto, intensa, longa e consistente, bem podendo afirmar-se que os seus direitos e obrigações são basicamente aqueles que a ordem jurídica francesa lhes proporcionou e de que souberam retirar proveito. Ao invés, a sua ligação a Portugal, até ao momento do divórcio, era escassa, residual, de curta duração e fraca intensidade.
Cremos bem que este factor, o da intensidade dos contactos com a ordem jurídica do foro, deve ser atendido em sede de preenchimento da cláusula geral impeditiva da revisão da ordem pública internacional. Se bem interpretamos, é esse, aliás, o entendimento de Moura Ramos, in loc. cit., págs. 292 e seguintes.
Este autor, depois de citar Baptista Machado na parte em que escreveu que deverá ser «recusada a aplicação da lei estrangeira competente sempre que ela contenha uma regulamentação essencialmente divergente da consagrada em disposições correspondentes da lex fori, quando estas disposições sejam inspiradas pelos interesses gerais da comunidade e sejam, por isso mesmo, rigorosamente imperativas», sendo que essa divergência deverá fundar-se «em razões de ordem económica, ético-religiosa ou política», e de citar Ferrer Correia na parte em que sublinha que a intolerabilidade do resultado deve impor-se «quer do ponto de vista do comum sentimento extra-jurídico (bons costumes), quer do ponto de vista dos princípios fundamentais do direito português: algo de inconciliável com as concepções jurídicas que alicerçam o sistema», afirma o seguinte: «Para efeitos deste apuramento, afigura-se poder dizer-se que uma tal conclusão se não apresentaria indiferente à intensidade dos contactos que a situação apresentasse com a ordem jurídica do foro, sendo potenciada pela importância destes e podendo ser praticamente excluída na sua ausência. Da mesma forma que a circunstância de a ofensa aos princípios fundamentais da ordem jurídica do foro decorrer de uma situação já constituída no estrangeiro, sobretudo se eventualmente houvesse entretanto sido fortalecida ou estabilizada por uma sentença judicial, se apresentar em termos de produzir um efeito atenuado, que possa no caso limitar a intervenção da cláusula que considerámos. E de para a constatação de uma tal ofensa ser decisivo o resultado a que se chegou numa determinada sentença, não devendo a desaplicação de uma regra em princípio qualificável como de ordem pública conduzir à actuação deste mecanismo excepcional se e quando o resultado decisório alcançado for equivalente àquele a que conduziria a correcta aplicação da regra desconsideramos
A segunda circunstância que nos parece inteiramente decisiva é a que se prende com a natureza das normas do direito da família no tocante ao divórcio, seu regime, causas e efeitos. Nas actuais sociedades europeias o respectivo regime jurídico tem sofrido uma enorme evolução por efeito da legitimação social e política de posições inicialmente defendidas por minorias mas que se impuseram e tornaram dominantes. As suas normas mostram-se particularmente permeáveis a uma espécie de pós-modernidade no entendimento da família, a uma desconstrução dos papéis tradicionais, a uma facilitação, desvinculação, informalidade e respeito pela diversidade dos modos e regimes de organização da vida a dois.
Hoje, nos países da Europa, nenhuma ordem jurídica pode reivindicar a supremacia social ou ética da forma como entendeu regular o regime jurídico do divórcio porquanto foi aprovado um Regulamento (o Regulamento (EU) n.º 1259/2010, do Conselho, de 20 de Dezembro de 2010) que, pela primeira vez com sucesso[10], criou uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial. Por força desse Regulamento os Estados-Membros passaram a estar sujeitos a normas de conflitos em matéria de divórcio que prevalecem sobre as suas normas de conflitos internas e, consequentemente, a aceitar que o divórcio de cidadãos seus nacionais pudesse ser regido por normas distintas das do respectivo estatuto pessoal.
Não é pois possível continuar a defender que se da aplicação do regime jurídico vigente no Estado-Membro considerado competente para decidir o divórcio e por aplicação da lei que todos os Estados aceitaram ser aplicável, resultar qualquer diferença, ainda que significativa, em relação ao que seria decidido pelos tribunais da nacionalidade dos cônjuges, existe sem mais uma ofensa intolerável aos princípios da ordem pública internacional do Estado da nacionalidade.
Ao invés, cremos que esse circunstancialismo justifica que se acentue a excepcionalidade desta cláusula geral impeditiva do reconhecimento da sentença estrangeira provinda de um Estado da União Europeia. Para esse efeito, não nos impressiona sequer o montante da condenação porquanto da leitura do Acórdão do Cour D’Appel de Paris não se extrai com facilidade (!) a matéria de facto que fundamenta a fixação desse montante, pelo que não é possível concluir que o resultado concreto da decisão revidenda seja de tal modo excessivo ou desproporcionado que não possa ser aceite face aos princípios essenciais e inalienáveis do ordenamento jurídico português[11].
Por todas estas razões, decidimos que não deve ser recusada a revisão da sentença do Cour D’Appel de Paris com fundamento na alínea f) do artigo 980.º do Código de Processo Civil.
Nos termos do artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação à revisão pode fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
No antigo Código de Processo Civil, por efeito das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a norma equivalente a esta, que encerra o denominado «privilégio da nacionalidade», deixou de integrar os requisitos do reconhecimento para passar a constar de norma autónoma e ser configurado como obstáculo ao reconhecimento, cuja invocação fica reservada à iniciativa da parte interessada.
Sucede que o réu em momento algum da sua impugnação ou das alegações finais se refere a este preceito, sustentando sempre que a revisão deve ser recusada com fundamento apenas na alínea f) do artigo 980.º do Código de Processo Civil ainda que para o efeito sustente que o resultado do Acórdão revidendo é mais gravoso para si do que resultaria da aplicação da lei portuguesa.
É por isso defensável que esta Relação não possa conhecer deste obstáculo ao reconhecimento uma vez que não se trata propriamente da mera qualificação jurídica dos factos submetido à apreciação do tribunal, actividade em que goza de liberdade, mas do conhecimento de uma verdadeira excepção que o réu pode opor à pretensão da autora.
Ainda assim, entendemos que a referida excepção não tem condições para proceder.
A solução do artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, tem como requisito, segundo a sua própria previsão, que o direito português fosse aplicável segundo as normas de conflitos da lei portuguesa. Relativamente a relação jurídicas plurilocalizadas no espaço da União Europeia esta norma tem de ser conjugada, se for o caso, com as normas de conflitos do direito europeu, uma vez que os Regulamentos da UE são directamente aplicáveis na ordem jurídica nacional, postergando, no seu âmbito de aplicação, as normas ordinárias internas que tenham um conteúdo diferente. Por essa razão, quanto às relações jurídicas plurilocalizadas no espaço da União Europeia, a norma em causa tem de ser lida na acepção de que o direito português deve ser o aplicável, segundo as normas de conflitos vigentes no ordenamento jurídico português.
Ora como já foi mencionado o Regulamento (EU) n.º 1259/2010, do Conselho, de 20 de Dezembro de 2010, criou uma cooperação reforçada no domínio da lei aplicável em matéria de divórcio e separação judicial. Por força desse Regulamento, desde 21 de Junho de 2012, data em que se tornou aplicável (artigo 21.º), os países-membros passaram a estar sujeitos a normas de conflitos em matéria de divórcio que prevalecem sobre as suas normas de conflitos internas.
Nos termos dos artigos 5.º a 8.º do Regulamento em princípio a lei aplicável ao divórcio é a lei escolhida pelos cônjuges, nos termos, limites e condições fixadas no próprio Regulamento. Não havendo lei escolhida de forma válida, é aplicável a lei do Estado: a) da residência habitual dos cônjuges à data da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, b) da última residência habitual dos cônjuges, desde que o período de residência não tenha terminado há mais de um ano antes da instauração do processo em tribunal, na medida em que um dos cônjuges ainda resida nesse Estado no momento da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, c) da nacionalidade de ambos os cônjuges à data da instauração do processo em tribunal; ou, na sua falta, d) em que se situe o tribunal onde o processo foi instaurado (artigo 8.º).
Segundo o considerando 21 do Regulamento «na falta de escolha da lei aplicável, o presente regulamento deverá instaurar normas de conflitos de leis harmonizadas partindo de uma escala de elementos de conexão sucessivos baseados na existência de uma conexão estreita entre os cônjuges e a lei em causa, com vista a garantir a segurança jurídica e a previsibilidade e a impedir situações em que um dos cônjuges pede o divórcio antes do outro para garantir que o processo seja regido por uma lei específica que considera mais favorável à salvaguarda dos seus interesses. Esses elementos de conexão deverão ser escolhidos de modo a garantir que os processos de divórcio e separação judicial sejam regidos por uma lei com a qual os cônjuges tenham uma conexão estreita.» Nestas condições os vários critérios elencados no artigo 8.º são sucessivos entre si, isto é, possuem uma graduação relativa, em que o primeiro critério afasta os seguintes e assim sucessivamente.
Daqui decorre que por força do Regulamento (UE) n.º 1259/2010, do Conselho, de 20 de Dezembro de 2010, numa relação jurídica plurilocalizada entre Portugal e França, ambos os países consideram aplicável ao divórcio de cidadãos portugueses com residência habitual comum em frança a lei francesa. É o caso dos autos em que autora e réu tinham a residência habitual do casal em França. Essa circunstância exclui assim a aplicação a essa relação jurídica do disposto no artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, sendo certo que segundo dispõe o artigo 12.º do Regulamento a aplicação de uma disposição da lei designada nele só pode ser recusada se essa aplicação for manifestamente incompatível com a ordem pública do foro (o que remetia assim para a discussão antes travada e decidida).
A esta conclusão pode objectar-se, por um lado, com o âmbito de aplicação do Regulamento mencionado, e, por outro lado, com a data em que o mesmo passou a ser aplicável.
É verdade que o Regulamento se aplica ao divórcio e à separação judicial, mas não se aplica, designadamente à matéria, mesmo que suscitada meramente a título de questão preliminar no contexto de processos de divórcio ou de separação judicial, dos efeitos patrimoniais do casamento [artigo 1.º, n.º 1, e n.º 2, alínea e)].
Existe uma dissonância entre essa previsão e o considerando 10 do Regulamento pois neste o que se assinala é que o regulamento «deverá ser aplicável apenas à dissolução ou suspensão do vínculo matrimonial. A lei determinada pelas normas de conflito de leis do presente regulamento deverá aplicar-se aos fundamentos de divórcio e de separação judicial. Questões preliminares, tais como a capacidade jurídica e a validade do casamento e questões como os efeitos patrimoniais do divórcio ou da separação judicial, o nome, a responsabilidade parental, as obrigações alimentares ou outras eventuais medidas acessórias deverão ser determinadas pelas normas de conflito de leis aplicáveis no Estado-Membro participante em questão».
Parece que o Regulamento deverá ser interpretado como excluindo todas as questões inerentes ao divórcio que excedam o mero decretamento deste, isto é, excluindo os efeitos patrimoniais do divórcio, v.g. as indemnizações devidas (e não apenas do casamento). Esta matéria é julgada segundo a lei determinada pelas normas de conflito do direito interno.
Todavia, quer-nos parecer que se as normas de conflito do direito interno não distinguem entre a lei aplicável ao divórcio propriamente dito e a lei aplicável aos respectivos efeitos patrimoniais, tem de se entender que a lei aplicável ao divórcio é igualmente aplicável a estas matérias. Daí decorre que nos Estados-Membros cuja lei interna compreenda uma norma de conflito aplicável ao divórcio sem distinguir tais matérias relacionadas com o divórcio mas que excedem os fundamentos da dissolução do casamento, na medida em que esses Estados-Membros estão vinculados pelo Regulamento a aceitar a lei designada por este para as matérias do divórcio, é essa mesma lei que é aplicável às restantes matérias com ele relacionadas.
É essa precisamente a situação de França e Portugal, cujas normas de conflito sobre o divórcio não distinguem qualquer das matérias relacionadas com ele e susceptíveis de serem decididas no próprio processo de divórcio. Nessa medida, Portugal e França estão vinculados a aceitar a lei definida pelo Regulamento para todas as matérias do divórcio, o que, no caso, determinaria a aplicação da lei francesa, como ocorreu, e não da lei portuguesa conforme seria exigido para ter aplicação o disposto no artigo 983.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Quanto à aplicação no tempo, o Regulamento (UE) n.º 1259/2010, do Conselho, de 20 de Dezembro de 2010, estabelece no seu artigo 21.º que é aplicável nos Estados-Membros a partir de 21 de Junho de 2012. A decisão revidenda foi proferida pela Cour D’Appel de Paris de 25.10.2007. Sendo esta data anterior à aplicação do referido Regulamento, parece que as disposições neste não poderiam interferir na solução a dar ao caso.
Entende, porém Ferrer Correia, in Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, 1963, pág. 487, que «… se uma situação jurídica se constituiu validamente no estrangeiro, de acordo com a lei que lhe é aplicável, o facto de a intervenção da ordem pública se opor à sua efectivação no Estado do foro não significa que ela seja ferida de nulidade, ela é simplesmente afectada de ineficácia, na direcção visada ou in totum, relativamente ao actual ordenamento jurídico do foro. Isto importa, pelo menos, a seguinte consequência: sobrevindas modificações na ordem jurídica local das quais resulte que tal situação já não é contrária à sua ordem pública, poderá ela, nessa altura, ser reconhecida e produzir efeitos
Segundo este autor, a confirmação ou não de uma sentença estrangeira deve ser decidida em função dos dados jurídicos existentes na data em que a revisão é pedida e concedida. Se em data anterior a revisão não seria concedida, tal não impede que o pedido seja formulado apenas em data posterior, beneficiando da alteração dos dados do sistema jurídico que entretanto tenha ocorrido e em resultado dos quais a revisão se tenha tornado viável. Nessa medida é possível recorrer às normas do Regulamento (UE) n.º 1259/2010, do Conselho, de 20 de Dezembro de 2010, para determinar a lei aplicável ao divórcio e, por arrastamento, em virtude de não haver, nos países envolvidos, norma de conflito especificamente para parte das matérias de divórcio, a lei aplicável às consequências patrimoniais do divórcio e, apurando-se que no caso não é a lei portuguesa, considerar que não se verifica a excepção à revisão do n.º 2 do artigo 983.º do Código de Processo Civil.
Eis, porque, em conclusão, se entende que nada obsta à revisão do Acórdão da Cour D’Appel de Paris e que a acção deve ser julgada procedente.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a acção procedente e, em consequência, confirmam o Acórdão do Cour D’Appel de Paris de 25.10.2007, rectificado pelo Acórdão de 18.03.2010, que condenou o réu a pagar à autora as importâncias de €170.000 a título de prestação compensatória, €10.000 a título de indemnização por danos morais e patrimoniais e €8.000 a título de compensação pelas despesas com o processo de recurso.
Custas pelo réu.
Valor da causa: €30.000,01.

Porto, 7 de Dezembro de 2017.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto388)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] Em conformidade com essa disposição, estabelece também o artigo 706.º do Código de Processo Civil que sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais, as sentenças proferidas por tribunais ou por árbitros em país estrangeiro só podem servir de base à execução depois de revistas e confirmadas pelo tribunal português competente.
[2] Cf. António Marques dos Santos, in Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações aos regime anterior), Estudos de direito internacional privado e de direito processual civil internacional, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 320.
[3] São conceitos distintos a ordem pública interna, a ordem pública internacional e a ordem pública universal ou transnacional, mas para o caso não importa aprofundar as diferentes entre eles (na doutrina cf., por exemplo, cf. Vasco Taborda Ferreira, in Acerca da Ordem Pública no Direito Internacional Privado, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano X, n.º 3, pág. 186).
[4] Como afirma Ferrer Correia, loc. cit., págs. 19, as questões relativas à determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações privadas internacionais «são resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso interno – a sua interpretação própria do DIP» e por isso «as questões de que se incumbe o DIP se resolvem em cada Estado de harmonia com normas pertencentes à ordem jurídica nele vigente».
[5] É a seguinte a redacção do «Article 1382» do «Code Civil» na redacção da «Loi 1804-02-09»: «Tout fait quelconque de l'homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer» (disponível em https://www.legifrance.gouv.fr).
[6] É a seguinte a redacção do «Article 270» do «Code Civil», na redacção da «Loi 75-617, 1975-07-11, en vigueur le 1er janvier 1976»: «Sauf lorsqu'il est prononcé en raison de la rupture de la vie commune, le divorce met fin au devoir de secours prévu par l'article 212 du code civil ; mais l'un des époux peut être tenu de verser à l'autre une prestation destinée à compenser, autant qu'il est possible, la disparité que la rupture du mariage crée dans les conditions de vie respectives.» (disponível em https://www.legifrance.gouv.fr). O artigo em questão foi alterado pela «Loi 2004-439 du 26 mai 2004» en «vigueur le 1er janvier 2005 sauf pour les exceptions citées par l'article 33 II.»
[7] Dessa prestação compensatória só estava então excluído o cônjuge declarado único e principal culpado. Era o que resultava do «Article 280-1», «créé par Loi 75-617 1975-07-11», cuja redacção era a seguinte: «L'époux aux torts exclusifs de qui le divorce est prononcé n'a droit à aucune prestation compensatoire. Toutefois, il peut obtenir une indemnité à titre exceptionnel, si, compte tenu de la durée de la vie commune et de la collaboration apportée à la profession de l'autre époux, il apparaît manifestement contraire à l'équité de lui refuser toute compensation pécuniaire à la suite du divorce» (disponível em https://www.legifrance.gouv.fr).
[8] Em nota, assinala-se neste Acórdão da Relação de Coimbra que a reparação prevista no artigo 1792º do Código Civil «equivale no Direito francês (no qual abrange danos patrimoniais e não patrimoniais) aos chamados dommages-intérêts previstos no artigo 266 do Code Civil. Ao referirmos a falta de equivalência directa no Direito português da “prestation compensatoire”, pretende-se aludir, tão-só, à diferença de regimes. Não se está, obviamente, a tomar qualquer posição sobre a possibilidade de reconhecimento ou de declaração de executoriedade, na ordem jurídica portuguesa, de uma condenação, proferida por um tribunal francês, numa prestação deste tipo.»
[9] Em rigor, se bem vimos, para defender o contrário teríamos de aceitar igualmente que quando entre nós a legislação sobre o regime de dissolução do casamento mudou, a legislação anterior, até aí vigente e considerada jurídica e socialmente aceitável, passou a ser uma legislação contrária aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, o que nos parece absolutamente de rejeitar.
[10] A primeira tentativa, sem sucesso, ocorreu em 17 de Julho de 2006, com a apresentação pela Comissão de uma proposta de alteração do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 para introduzir regras relativas à lei aplicável em matéria matrimonial, mas o Conselho, reunido no Luxemburgo em 5 e 6 de Junho de 2008, constatou a ausência de unanimidade sobre a proposta, a existência de dificuldades insuperáveis que impossibilitavam a unanimidade e a inviabilidade de alcançar num prazo razoável os objectivos da proposta.
[11] A percepção da natureza excepcional desta cláusula geral acentua-se se tivermos presente que a redacção da alínea f) do artigo 1096.º do Código de Processo Civil, na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 329-A/95, era «que não contenha decisões contrárias aos princípios de ordem pública portuguesa” e que na redacção introduzida por este diploma e que se conserva no actual 980.º passou a ser “que não contenha decisão, cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português”.