CONFISSÃO DOS FACTOS
DIREITO DE PERSONALIDADE
DIREITO À IMAGEM
EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
Sumário

1. O 485.º, al. c) do C. P. Civil não admite a confissão dos factos, por ausência de contestação, juris et de jure estabelecida pelo art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil, quando se trata de relações jurídicas indisponíveis, subtraídas à disponibilidade das partes, tal como também consta dos art.ºs 490.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto à falta de impugnação especificada, do art.º 354.º, al. b) do C. Civil, quanto à inadmissibilidade da confissão e do art.º 299.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto aos limites da confissão, desistência e transação.

2. Não é aplicável tal preceito se, com fundamento no art.º 26.º da C. R. Portuguesa, que reconhece a todos os cidadão o direito à imagem e à reserva da vida privada e familiar e no art.º 70.º do C. Civil, que protege os cidadãos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física ou moral, a A/apelada pede que o apelante seja condenado a remover o seu retrato, que este mandou tatuar na omoplata esquerda, ou, em alternativa, a alterá-lo para que deixe de ser, com ela, identificável, uma vez que um tal desiderato, não se tratando de uma relação jurídica indisponível, poderia ser atingido por mero encontro de vontades de um e outro.

3. A execução coerciva de uma tal decisão suscitará as dificuldades próprias da execução para prestação de facto positivo, inerentes ao brocardo latino nemo precise cogi potest ad factum, e à impossibilidade de execução coerciva de uma prestação infungível, mas estas não se podem confundir com as relações jurídicas indisponíveis que a al. c), do art.º 485.º do C. P. Civil se propõe acautelar.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


1. RELATÓRIO:


Cláudia …, propôs contra Pedro … esta ação declarativa de condenação, ordinária, pedindo a sua condenação a remover a tatuagem que reproduz o retrato da A na omoplata esquerda ou a alterá-la por forma a que a A deixe de com ela ser identificável, no prazo de vinte dias a contar do trânsito em julgado, a pagar-lhe a título de indemnização por danos morais sofridos, a quantia de € 2.000,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a citação e a pagar-lhe, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 50,00 por cada dia de atraso no cumprimento do peticionado.

Citado, o R não apresentou contestação.

O tribunal a quo declarou confessados os factos articulados pela A, nos termos do disposto no art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil, e proferiu sentença, julgando a ação procedente e condenando o R como peticionado pela A.

Inconformado com essa decisão o R dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a anulação da sentença, e a tramitação processual subsequente com a elaboração de despacho saneador e a marcação de julgamento, formulando as seguintes conclusões:

1- A vontade da recorrida não é suficiente nem eficaz para a produção dos efeitos jurídicos pretendidos.
2- A falta de contestação não implica nem sana a falta de advertência ao réu da obrigatoriedade de constituição de advogado.
3- O pedido feito nesta ação não pode ser considerado provado só pela vontade alegada da recorrida. Num estado de Direito democrático não se indemniza por danos morais sem deles se conhecer nem a nossa lei o permite.
4- A vontade da recorrida não é suficiente para a produção dos efeitos jurídicos pretendidos sem qualquer meio de prova!
5- A revelia não resulta automaticamente na confissão dos factos.
6- Do artigo 485° do CPC constam as exceções aos efeitos da revelia.
7- O pedido no processo em causa é baseado num facto certo e concreto mas com consequências resultantes unicamente da vontade da recorrida.
8- Os danos morais é uma manifestação de vontade por a mesma entender que a isso tem direito.
9- A sanção compulsória é a vontade da recorrida.
10- A recorrida refere um site para de seguida responder ela mesma que a responsabilidade disso é uma empresa e não o réu.
11- Queda-se o processo pela procedência de efeitos jurídicos quanto a danos morais e respetiva sanção pelo incumprimento.
12- A recorrida nem sequer especifica os danos morais alegadamente sofridos.
13- A eficácia da produção de efeitos jurídicos nesta ação depende de prova e não da vontade da recorrida!
14- A lei Civil portuguesa protege a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais quando " pela sua gravidade mereçam a tutela do direito".
15- Não foram provados danos morais. Não foi provada a sua gravidade ou não.
16- O réu não podia, legalmente, ser condenado só por vontade da recorrida.
17- O recorrente devia ter sido advertido das consequências jurídicas da não constituição de advogado.
18- Ainda que o recorrente, depois disso, não o constituísse, devia ser julgado à revelia e a recorrida fazer prova dos factos que a levam a pedir o que pediu: danos morais.
19- A recorrida não provou.
20- O recorrente foi condenado e a ação procedente por provada.
21- É nula a sentença proferida.
22- A nulidade é a característica da não produção dos efeitos jurídicos por enfermar de vicio grave. In casu, a falta de prova do alegado e a não aplicação da alínea c) do artigo 485° do CPC num pedido em que a vontade da parte não é eficaz por si só produção dos efeitos jurídicos por si pretendidos.
23- O réu tem o direito de ser julgado – fosse à revelia ou não – dado que cabe à recorrida provar o que pede a título de danos morais se eventualmente houver prova disso.

A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença por falta de fundamento da apelação.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS:

A matéria de facto a considerar, nos termos do disposto no art.º 713.º, n.º 6, do C. P. Civil, atenta a ausência de impugnação e o disposto no art.º 484.º, n.ºs 1 e 3, do C. P. Civil, é a descrita na petição inicial.

B) O DIREITO APLICÁVEL:

O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objeto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 660.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, supra descritas, as questões submetidas ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consistem em saber se: a) o apelante deveria ter sido advertido da obrigatoriedade da constituição de advogado (conclusões 2 e 17); b) o pedido feito na ação foi considerado provado só pela vontade alegada da apelada (conclusões 1, 3, 4, 7, 9, 13, 16, 19); c) não estão provados danos morais (conclusões 3, 2.ª parte, 8, 11, 12, 14, 15); d) devia ter sido aplicado o disposto no art.º 485.º, al. c) do C. P. Civil (conclusões 5, 6, 18, 23); e) a sentença é nula por falta de prova do alegado e não aplicação da al. c), do art.º 485.º, do C. P. Civil (conclusões 21, 22).

I. Quanto à primeira questão, a saber, se o apelante deveria ter sido advertido da obrigatoriedade da constituição de advogado.

Como é pacífico nos autos, o apelante foi citado na forma legal, não tendo apresentado contestação.

Vem, agora, em sede de apelação, suscitar uma atípica irregularidade dessa citação consistente em não ter sido advertido da obrigatoriedade de constituição de advogado.

Ora, salvo o devido respeito, uma coisa (a obrigatoriedade de constituição de advogado para intervir na presente ação) não tem a ver com a outra (legalidade da citação).

A citação, como dispõe o art.º 228.º do C. P. Civil, na perspetiva do que agora está em causa, “…é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender”.

No cumprimento desse ato, o tribunal dá conhecimento ao citando dos elementos necessários à sua defesa, que são os descritos no art.º 235.º do C. P. Civil.

Uma vez citado, no exercício da sua capacidade jurídica (art.º 67.º do C. Civil) e judiciária (art.ºs 5.º e 9.º do C. P. Civil), o réu pode contestar ou não contestar, com as respetivas consequências processuais (art.ºs 467.º e 490.º do C. P. Civil).

Se optar por apresentar contestação, tratando-se de uma ação declarativa ordinária, portanto da competência de tribunal com alçada, em que é admissível recurso ordinário, o réu deverá obrigatoriamente fazê-lo através de advogado (art.º 32.º, n.º 1, al. a), do C. P. Civil).

No caso sub judice o apelante não apresentou contestação, por si próprio ou através de advogado, sendo certo que, como consta a fls. 20-25, lhe foi dado conhecimento dos elementos necessários à sua defesa, entre eles, a obrigatoriedade da constituição de mandatário judicial.

Por perceber fica, pois, o alcance da sua afirmação no âmbito desta apelação de que deveria ter sido advertido da obrigatoriedade da constituição de advogado. Improcede, pois, a apelação quanto a esta questão.

II. Quanto à segunda questão, a saber, se o pedido feito na ação foi considerado provado só pela vontade alegada da apelada.

Como também consta a fls. 20-25 dos autos, no ato de citação, o apelante foi advertido que a falta de contestação importaria a confissão dos factos articulados pelo apelada, que é a cominação própria da revelia operante, por falta de contestação, cominada pelo art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil, determinando que o processo passe logo à fase de julgamento de direito (art.º 484.º, n.ºs 2 e 3, do C. P. Civil).

Não é, assim, verdadeira a afirmação de que o pedido feito na ação foi considerado provado só pela vontade alegada da apelada.

Os factos articulados pela A/apelante foram considerados provados pelo ato afirmativo desta e pelo ato omissivo do R/apelante, que os não contestou.

Improcede, também, a apelação quanto a esta questão.

III. Quanto à terceira questão, a saber, se não estão provados danos morais.

Nos art.ºs 33 a 37 da petição, a apelada articulou os factos que, no seu entender, demonstram a gravidade dos danos de natureza não patrimonial por ela sofridos e determinados pelo ato ilícito do apelante.

Tais factos estão provados por confissão, pela ausência de contestação, nos termos do art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil.

O tribunal a quo considerou que tais factos são demonstrativos de que a apelada sofreu danos que, pela sua gravidade, são merecedores da tutela do direito e, em consequência condenou o apelante na correspondente indemnização.

Discordando da condenação, o apelante não explicita os termos da sua discordância, limitando-se à negação da prova dos mesmos, o que não corresponde, como vimos, ao constante dos autos.

Improcede, pois, também esta questão.

IV. Quanto à quarta questão, a saber, se devia ter sido aplicado o disposto no art.º 485.º, al. c) do C. P. Civil.

Dispõe o art.º 485.º, al. c) do C. P. Civil, que os efeitos da revelia, por ausência de contestação, cominados pelo art.º 484.º do mesmo código, não operam: “Quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter”.

Quer isto dizer que, não obstante a falta de contestação, os factos articulados na petição se não consideram provados por acordo nos casos em que este acordo não bastaria para a sua prova.

E este um dos casos de “revelia inoperante” de que fala o Prof. João de Castro Mendes[1].

Como salientam os Prof. J. A. Reis[2] e M. Andrade[3], não há admissão por acordo quando se trata de relações jurídicas indisponíveis, subtraídas à disponibilidade das partes, tal como também consta dos art.ºs 490.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto à falta de impugnação especificada, do art.º 354.º, al. b) do C. Civil, quanto à inadmissibilidade da confissão e art.º 299.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto aos limites da confissão, desistência e transação.

Como escreve o Prof. M. Andrade: “A ideia da lei foi obviar a que nas relações subtraídas à disponibilidade das partes estas pudessem conseguir indiretamente – ou até provocá-lo de modo não intencional – um efeito jurídico que não podiam produzir extrajudicialmente através de negócio jurídico (declaração de vontade) ao mesmo efeito destinado[4].

Ora, no caso sub judice não estão em causa direitos indisponíveis das partes.

O art.º 26.º da Constituição da República Portuguesa (C. R. P), sob a epígrafe “Outros direitos pessoais” reconhece a todos os cidadãos o direito à imagem e à reserva da vida privada e familiar e o art.º 70.º do C. Civil, sob a epígrafe “tutela geral da personalidade” protege os cidadãos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física ou moral.

E é esta, grosso modo, a causa de pedir da ação.

Com fundamento em tais preceitos, a apelada pede que o apelante seja condenado a remover o seu retrato ou, em alternativa, a alterá-lo para que deixe de ser, com ela, identificável, e um tal desiderato poderia (e deveria?!) ser atingido por mero encontro de vontade de um e outro.

Consagrada, constitucionalmente, a proteção da integridade pessoal, nas suas duas dimensões, física e moral (art.º 25.º n.º 1, da C.R.P), a mesma deve ser articulada com outras medidas de proteção de direitos pessoais, como os previstos no n.º 1 do art.º 26.º da mesma C.R.P., caso do direito à imagem e reserva da vida privada, constituindo a sede fundamental do designado direito geral de personalidade, como a expressão direta, aliás, do postulado básico da dignidade humana, acolhida no art.º 1.º, da C.R.P, e assim valor básico e primeira referência em matéria de direitos fundamentais[5].

Podendo divisar-se uma situação de possível conflito entre direitos com o mesmo nível hierárquico de tutela, maxime constitucional, a solução apontada vem passando pelo princípio da ponderação dos bens, e da concordância prática entre os dois direitos, de modo a, e em atenção ao conteúdo e função específica de cada um dos direitos, se obter o máximo de proteção de cada um deles sem os descaracterizar no seu núcleo essencial, lançando-se mão de um critério de proporcionalidade, de modo a que se houver o sacrifício de algum dos direitos, o mesmo seja apenas o adequado e necessário para a realização do outro, presente até o disposto no art.º 335, do C. Civil.

Estas considerações relevam, no que ao caso concreto respeita, no atendimento de que na defesa dos direitos da Recorrida poderá divisar-se um possível conflito com direito de igual nível hierárquico de tutela que se prende com a integridade física do Recorrente, em termos de alteração ou remoção da tatuagem realizada.

Ora, na necessária ponderação a efetuar não pode ser esquecido que a conduta do agente, o Recorrente, foi voluntariamente determinada, gerando a ilicitude que se pretende colmatar, não se configurando assim, que deva ser atribuída preponderância à defesa de uma realidade que o mesmo criou, ela sim lesante do direito de terceiro, isto é, a Recorrida.

Ao suscitar esta questão, o apelante parece ter, antes, em mente as dificuldades próprias da execução para prestação de facto positivo, inerentes ao brocardo latino nemo precise cogi potest ad factum, e à impossibilidade de execução coerciva de uma prestação infungível, mas estas não se podem confundir com as relações jurídicas indisponíveis que a al. c), do art.º 485.º do C. P. Civil se propõe acautelar.

As questões inerentes à infungibilidade da prestação apenas se colocarão em sede de execução, se o apelante se colocar numa situação de incumprimento.

Nada obstava, pois, à confissão dos factos, por ausência de contestação, juris et de jure estabelecida pelo art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil.

Improcede, pois, a questão.

V. Quanto à quinta questão, a saber, se a sentença é nula por falta de prova do alegado e não aplicação da al. c), do art.º 485.º, do C. P. Civil.

As nulidades da sentença são, apenas, as previstas no art.º 668.º do C. P. Civil e entre elas se não contam a ausência de prova nem a preterição do art.º 485.º, al. c) do C. P. Civil.

Uma e outra destas matérias foram já objeto da nossa apreciação nas questões segunda, terceira e quarta que antecedem, nada mais se nos oferecendo dizer sobre elas.

Improcede, pois, esta questão e com ela a apelação.

C) EM CONCLUSÃO:

1. O 485.º, al. c) do C. P. Civil não admite a confissão dos factos, por ausência de contestação, juris et de jure estabelecida pelo art.º 484.º, n.º 1, do C. P. Civil, quando se trata de relações jurídicas indisponíveis, subtraídas à disponibilidade das partes, tal como também consta dos art.ºs 490.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto à falta de impugnação especificada, do art.º 354.º, al. b) do C. Civil, quanto à inadmissibilidade da confissão e do art.º 299.º, n.º 1, do C. P. Civil, quanto aos limites da confissão, desistência e transação.

2. Não é aplicável tal preceito se, com fundamento no art.º 26.º da C. R. Portuguesa, que reconhece a todos os cidadão o direito à imagem e à reserva da vida privada e familiar e no art.º 70.º do C. Civil, que protege os cidadãos contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física ou moral, a A/apelada pede que o apelante seja condenado a remover o seu retrato, que este mandou tatuar na omoplata esquerda, ou, em alternativa, a alterá-lo para que deixe de ser, com ela, identificável, uma vez que um tal desiderato, não se tratando de uma relação jurídica indisponível, poderia ser atingido por mero encontro de vontades de um e outro.

3. A execução coerciva de uma tal decisão suscitará as dificuldades próprias da execução para prestação de facto positivo, inerentes ao brocardo latino nemo precise cogi potest ad factum, e à impossibilidade de execução coerciva de uma prestação infungível, mas estas não se podem confundir com as relações jurídicas indisponíveis que a al. c), do art.º 485.º do C. P. Civil se propõe acautelar.

3. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.


Lisboa, 8 de janeiro de 2013.


(Orlando Nascimento)
(Ana Resende)
(Dina Monteiro)
 

[1] Direito Processual Civil, AAFDL, 1980, III vol. pág. 130.
[2] Código de Processo Civil, vol. III, 1950, pág. 15.
[3] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 166.
[4] Ob. e loc. cit.
[5] Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição Anotada, tomo I, pág. 282.