MEDIAÇÃO DE SEGUROS
FORMA ESCRITA
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
Sumário

Ao qualificar como nula a transmissão de uma carteira de seguros, o Tribunal deve concluir pela restituição do que haja sido pago pela autora nos termos do disposto no artigo 289.º do Código Civil.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

W – Mediação de Seguros Lda, instaurou contra Agostinho, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 65.000,00, a título de cláusula penal, acrescida de juros de mora.
Alegou em síntese que:
- A Autora dedica-se á actividade de mediação de seguros;
- Em 17-11-2006 celebrou com a sociedade C – Mediação de Seguros, Lda, representada pelo Réu, um contrato-promessa de transmissão de carteira de mediação de seguros, sendo pago o sinal de € 5.000,00, aquando da entrega da documentação e listagens de autorização de transferência de carteira, o que sucedeu em 5-12-2006;
- O valor remanescente do preço, € 60 000,00 foi pago em 16-01-2007;
- A transmissão prometida foi feita inicialmente para N por a autora ainda estar a ultimar a entrega de documentação para obtenção da licença junto do Instituto de Seguros de Portugal;
- Em 28-06-2007, a A. inscreveu-se no registo do ISP com a categoria de agente de seguros, sob o n.º ..., com autorização para os ramos vida e não vida;
- A transmissão da carteira da C para N, verificou-se em 05-12-2006;
- A transmissão da carteira de N para a A. deu-se em 10-07-2007;
- O réu obrigou-se, conforme contrato-promessa referido, a cancelar de imediato o certificado de mediador de seguros, bem como a dissolver a pessoa colectiva correspondente à promitente transmitente no contrato; não exercer directa ou indirectamente, enquanto sócio, gerente, empregado ou em qualquer outra qualidade, nem mesmo por interposta pessoa, a actividade de mediação de seguros, durante o período de 4 anos; não contactar os segurados que integravam a carteira transmitida, no sentido da transferirem os seguros para o participado ou para terceiros;
- A estipulação destes deveres do réu foi determinante na formação da vontade de contratar por parte da Autora;
- Ficou acordado que o incumprimento das obrigações referidas dava lugar ao pagamento de uma indemnização igual ao preço da transmissão da carteira, ou seja, € 65 000,00;
- O réu incumpriu as obrigações a que se encontrava vinculado, inscreveu-se como mediador de seguros no ISP, no dia 16-09-2008, para os ramos vida e não vida, com o n.º ...; celebrou contratos de seguro com clientes cujos contratos haviam sido transmitidos;
- A cláusula penal corresponde ao montante acordado pelas partes para, em caso de incumprimento, servir como dado indemnizatório, constituindo uma verdadeira liquidação convencional dos prejuízos sofridos pela autora;

O réu contestou, mas por extemporaneidade, foi a contestação mandada desentranhar, conforme resulta do despacho de fls. 53.

Em 14-12-2010 foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados pela autora.
Depois de cumprido o disposto no artigo 484.º, n.º 2, dp CPC, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção.

Inconformada, a autora interpôs recurso para esta Relação que declarou nula a sentença por violação do princípio do contraditório, determinando que fosse dada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre o funcionamento da cláusula 9.ª, n.º 2, do contrato-promessa depender ou não da validade do contrato definitivo de transmissão das carteiras de títulos cuja nulidade se declarou.
Em cumprimento do Acórdão referido, a autora pronunciou-se no sentido de que a forma como se procede a redução do contrato a escrito está consignada na Circular n.º 068/1995, bastando-se com o preenchimento do modelo de requerimento que constitui o Anexo I àquela circular, o que foi cumprido pelos transmitente e adquirente mostrando-se as cartas subscritas por ambos.
Refere ainda a Autora que o contrato-promessa é válido e a cláusula 9.º , n.º 2, nela inserida terá de ser aplicada face ao incumprimento demonstrado nos autos, devendo aquela valer de forma autónoma relativamente ao contrato definitivo.
Prosseguiram os autos e foi então proferida nova sentença que julgou improcedente a acção, e, consequentemente, absolveu a ré do pedido.
Inconformada, interpôs a autora competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
‘’1. A forma como se procede a redução do contrato de transmissão de carteiras de seguros a escrito está consignada na Circular n.º 068/1995, disponível em www.isp.pt.
2. O que quer dizer que a formalidade da redução a escrito do contrato, se cumpre com o preenchimento e entrega do referido requerimento.
3. A Circular e os Anexos juntos aos autos foram retirados do website do ISP, que os disponibiliza para consulta e impressão.
4. Se a este facto acrescentarmos que só há transmissão se houver entrega do requerimento no ISP, e se dá como provado que houve transmissão, logo há contrato escrito.
5. O ISP é a autoridade competente para o exercício de supervisão da actividade de mediação de seguros, nos termos do art 6.º do Decreto-lei n. 144/2006, de 31 de Julho.
6. O ISP enquanto autoridade competente aceitou a documentação entregue a transmissão da carteira de seguros operada entre o Réu e a Autora.
7-. Face à matéria dada como provada, à legislação aplicável e aos formalismos a que deve obedecer a transmissão da carteira de seguros, a formalidade ad substantiam prevista no art.° 44 do Decreto-lei n.º 144,2006, encontra-se preenchida com a entrega do impresso (Anexo I), relativo a transmissão de carteira por acto entre vivos), o que a Autora fez, pois caso contrário não poderia estar a gerir as carteiras de seguro que lhe foram transmitidas pela C.
Na douta sentença, confunde-se assim o contrato definitivo com a efectiva transferência da carteira. Por um lado, temos o contrato definitivo que nos termos do artigo 219.º do CC não está sujeito a qualquer forma. Por outro lado, temos a efectiva transferência da carteira, que não se pode deixar de dar por verificada atento os factos dados como provados e atento os formalismos que a entidade supervisora prescreve para o efeito.
9. O Instituto de Seguros de Portugal considerou preenchido o formalismo constante do artigo 44.º do diploma supra mencionado, com a mera junção da documentação dor parte da Autora.
10. O contrato promessa é plenamente válido e como tal a cláusula penal ínsita no mesmo terá necessariamente de ser aplicada, face ao incumprimento demonstrado nos autos.
10.A – Atento o referido incumprimento, o Réu deveria ser sempre condenado ao ressarcimento do dano que as partes fixaram antecipadamente e negocialmente através da cláusula penal (no valor de 65,000.00 €), que deve valer de forma autónoma em relação ao contrato definitivo, considerando-se como entende o Tribunal a quo que o mesmo não foi reduzido a escrito, hipótese que se coloca em tese.
11. As obrigações assumidas na Cláusula 9, ultrapassariam sempre a validade do prazo fixado para o contrato definitivo, pelo que as mesmas permanecem válidas e vigentes, atentos os pressupostos essenciais da vontade de contratar da Autora e, designadamente, a importância dada pelas partes, à obrigação de não concorrência por parte do Réu.
12. Salvo o devido respeito, a posição sufragada pelo Tribunai a quo, constitui uma clara ofensa às concepções ético – jurídicas dominantes na colectividade, sendo certo que se o réu a viesse invocar esta tese, a mesma não deixara de configurar abuso direito, na modalidade de venire contra factum propríum’’
13. A nulidade é a característica de um negócio jurídico que, por enfermar de um vicio grave não produz ab initio, os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam.
14. O Tribunal ao qualificar como nula a transmissão da carteira de seguros deveria ter concluído pela restituição do que havia sido pago pela Autor nos termos do disposto no art.° 289_° do Código Civil.
15. Face ao exposto a decisão recorrida violou o disposto no n.º 1 do artigo 6.º e n.º 1 do artigo 44.º, ambos do DL n.º 144/2006, de 31 de Julho , os artigos 219.º, 289.º, 334.º e 810.º do CC e o artigo 664.º , alínea d) do n.º 1 do 668.º do CPC, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que conceda integral provimento ao presente recurso, condenando-se a ré no peticionado pela Autora.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Constituem questãos decidendas saber se:
i) a sentença recorrida padece do vício de omissão de pronúncia,
ii) o ajuizado contrato de transmissão da carteira de seguros é ou não nulo por falta de forma;
iii) apesar da nulidade, a haver, do contrato, deve ou não o réu ser condenado a restituir as quantias recebidas e pagas pela autora.

São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:
1. A Autora dedica-se à actividade de mediação de seguros (documento de fls. 12 a 17.pp)
2. Mediante contrato-promessa de transmissão de carteira de mediação de seguros celebrado em 17 de Novembro de 2006, entre a sociedade C – Mediação de Seguros Lda, representada por Agostinho, o Sr. N e a Sociedade W – Mediação de Seguros Lda, foi prometida transmitir uma carteira de seguros (documento de fls. 18 a 22 p.p.)
3. Mediante acordo celebrado entre as partes referidas em 2, foi combinado que o sinal de € 5.000,00, seria pago aquando da entrega da documentação e listagens de autorização de transferência de carteira (documento de fls. 23 p.p.).
4. O sinal de € 5.000,00 foi pago em 5 de Dezembro de 2006, mediante cheque n.º ...21 (documento de fls 24 p. p.).
5. O valor remanescente do preço, € 60.000,00, foi pago em 16 de Janeiro de 2007, mediante cheque n.º ...34 (documento de fls. 25, p.p.).
6. A transmissão prometida foi feita inicialmente para o Sr. N por a A. estar a ultimar a entrega de documentação para obtenção da respectiva licença junto do Instituto de Seguros de Portugal (ISP).
7. A A. inscreveu-se em 28 de Junho de 2007, no registo do ISP com a categoria de Agente de Seguros, sob o n.º ..., com autorização para os ramos vida e não vida (documento de fls 26 p.p.).
8. A transmissão da carteira da C, Lda, para o Sr. N verificou-se em 5 de Dezembro de 2006.
9. A transmissão da carteira do sr. N para a A. deu-se em 10 de Julho de 2007.
10. Na cláusula nona do contrato-promessa referido em 2 ficou consignado o seguinte: ‘’1. Em consequência do presente acordo os sócios gerentes da promitente transmitente comprometem-se a: a) Cancelar de imediato o certificado de mediador de seguros, quer da transmitente, quer dos próprios sócios gerentes em nome individual e, ainda, a dissolver a pessoa colectiva correspondente à promitente transmitente no prazo máximo de 60 dias a contar do contrato definitivo; b) Não exercer directa ou indirectamente, seja enquanto sócio, gerente, empregado ou em qualquer outra qualidade, e nem mesmo por interposta pessoa, a actividade de mediação de seguros pelo período de 4 anos. c) não contactar futuramente os segurados que integram a carteira no sentido de transferirem os seguros para os próprios e para terceiros. 2. No caso de incumprimento do disposto nas alíneas b) e c) do número 1 da presente cláusula, o actual sócio gerente da promitente transmitente, Senhor Agostinho, pagará ao promitente adquirente, a título de cláusula penal, quantia igual à do preço da transmissão’’.
11. A A. e o réu actuam num meio pequeno em que existe uma grande proximidade pessoal entre mediador e segurados.
12. A A. reclamou mediante carta com data de 18 de junho de 2009, o pagamento da quantia de € 65.000,00 (documento de fls. 31 a 33 p.p.).
13. O réu inscreveu-se como mediador de seguros, no ISP, no dia 16 de Setembro de 2008, para os ramos Vida e Não Vida, com o número 308282155 (documento de fls 34, p.p).
14. O réu celebrou contrato de seguro com o Sr. Manuel, cliente cujo contrato havia transmitido (documento de fls 35 p.p.).
15. O réu celebrou contrato de seguro com a Sociedade R G – , cliente cujo contrato de seguro havia sido igualmente transmitido (documento de fls. 36 p.p.).
16. N dirigiu à M – Companhia de Seguros SA, uma carta, com data de 10-07-2007, solicitando a transmissão da sua carteira de seguros dos ramos Vida e Não Vida para a ora A. carta que se mostra subscrita também por esta (documento de fls. 28 p.p).
17. N dirigiu à Companhia de Seguros F M, SA, uma carta, com data de 10-07-2007, solicitando a transmissão da sua carteira de seguros dos ramos Vida e Não Vida para a ora A., carta que se mostra subscrita também por esta (documento de fls 28 p.p.).
18. N dirigiu à Companhia de Seguros A, SA, uma carta, com data de 10.07.2007, solicitando a transmissão da sua carteira de seguros dos ramos Vida e Não Vida para a ora A. carta que se mostra subscrita também por esta (documento de fls 29 p.p).
19. N dirigiu à I B – Companhia de Seguros SA, uma carta, com data de 10.07.2007, solicitando a transmissão da sua carteira de seguros dos ramos Vida e Não Vida para a ora A., carta que se mostra subscrita também por esta (documento de fls 30 p.p).
20. N dirigiu ao Instituto de Seguros de Portugal uma carta, com data de 6 de Dezembro de 2006, em que refere remeter o processo de transmissão da carteira de seguros afecta à sociedade C – Mediação de Seguros Lda, inscrita no ISP sob o n.º 2011627/3 (documento de fls. 95 verso).
21. C – Mediação de Seguros Lda. dirigiu uma carta ao Instituto de Seguros de Portugal, com data de 5 de dezembro de 2006, solicitando autorização para a transmissão da sua carteira de seguros dos ramos Vida e Não Vida para N (documento de fls. 96 p.p.).

Da nulidade da sentença
Invoca a recorrente a nulidade da sentença nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea d) do CPC (omissão de pronúncia).
Um dos princípios da motivação das sentenças é o princípio da exaustão.
Segundo este princípio, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660.º, n.º 2 c.p.c.).
A lei não prescreve que o juiz conheça de todas as questões suscitadas pelas partes, nem, muito menos, que analise todos os argumentos e linhas de raciocínio por elas deduzidos ou seguidos (v.g. Acs. STJ de 26.04.84, BMJ 336:406, de 27.01.93, BMJ 423:444 e de 07.07.94, BMJ 439:299), mas sim que examine todas mas tão-só as questões efectivamente relevantes para a boa decisão da causa, quer as que tenham sido invocadas pelas partes, quer as que sejam de conhecimento oficioso.
Quer isto dizer que o juiz tem de conhecer «todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Coimbra editora, Coimbra, 2000: 299), exceptuadas as questões, quanto ao pedido, à causa de pedir ou às excepções, cuja apreciação quede prejudicada pela solução dada às outras.
A nulidade consistente na omissão de pronúncia só se verificará se o juiz não se pronunciar especificamente sobre questões invocadas pelas partes e não, como dissemos, quando deixe de apreciar qualquer argumento apresentado pelos litigantes.
O facto de o primeiro grau não ter retirado todas as consequências da declaração de nulidade do ajuizado contrato não configura error in procedendo, antes consubstancia, se pertinente, como veremos adiante, error in judicando.

Do mérito do recurso
i) ‘’O contrato de mediação constitui uma subespécie do contrato de prestação de serviços, traduzindo a situação em que alguém se compromete perante outrem a conseguir-lhe um interessado para certo negócio, aproximando-os, para que o mesmo se concretize.
No nosso ordenamento jurídico o contrato de mediação apenas se encontra regulado, e por isso tipificado, enquanto tal, em relação a algumas categorias de actividade, tais como: a mediação de seguros (DL 144/2006, de 31 de Julho Julho), mediação imobiliária (DL 211/2004, de 20 de Agosto, alterado pelo DL 69/2011, de 15 de Junho) e mediação financeira (artigo 289.º e ss do CVM)’’ (Ac. STJ, de 06.12.2012, processo n.º 370001/09.6YIPRT.L1.S1, www. dgsi.pt.).
ii) Interessa-nos apenas, para o caso sujeito, o regime da mediação de seguros, aprovada pelo DL 114/2006.
iii) O DL n.º 144/2006 procedeu à transposição da Diretiva n.º 2002/92/CE , do Parlamento Europeu e do Conselho de 9 de Dezembro, relativa à mediação de seguros, visando por um lado, a coordenação das disposições nacionais relativas aos requisitos profissionais e ao registo das pessoas que nos diversos Estados membros exercem a actividade de mediação de seguros ou de resseguros, tendo em vista a realização do mercado único no sector e, por outro lado, a reforma de protecção dos consumidores neste domínio.
iv) De acordo com o artigo 5.º do citado DL, ‘’mediação de seguros é qualquer actividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro acto preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão e execução desse contrato, em especial em caso de sinistro’’
v) Mediador de Seguro, segundo a mesma formulação normativa, é qualquer pessoa singular ou colectiva que inicie ou exerça , mediante remuneração, a actividade de mediação de seguros.
vi) Carteira de Seguros é, por sua vez, o conjunto de contratos de seguro relativamente aos quais o mediador de seguros exerce a actividade de mediação, e por virtude dos quais são criados na sua esfera jurídica direitos e deveres para com as empresas de seguros e tomadores de seguros.
vii) O Instituto de Seguros de Portugal é a autoridade responsável pela criação, manutenção e actualização permanente do registo electrónico dos mediadores de seguros ou de resseguros residentes ou cuja sede social se situe em Portugal, bem como pela implementação dos meios necessários para que qualquer interessado possa aceder, de forma fácil e rápida, à informação proveniente do registo.
viii) Para poderem inscrever-se nos registos de mediadores junto do ISP, e manter a respectiva inscrição, todos os mediadores têm de preencher um conjunto de condições relevantes que demonstrem os seus conhecimentos, aptidões e idoneidade para o exercício da actividade.
ix) Cabe ao ISP a verificação do preenchimento dos requisitos de acesso pelo candidato a mediador e proceder ao respectivo registo.
x) Assim como lhe cabe a supervisão da actividade dos mediadores de seguros (artigo 6.º citado DL).
xi) Dispõe o artigo 44.º.n.º 1, do DL 144/2006, sob a epígrafe ‘’Transmissão de carteira do mediador de seguros’’: 1. As carteiras de seguros são total ou parcialmente transmissíveis, por contrato escrito, devendo o transmissário encontrar-se em condições de poder exercer a actividade de mediação quanto aos referidos contratos de seguro.
xii) Acrescenta o n.º 2 que a transmissão da carteira de seguros a favor do mediador deve ser precedida da comunicação pelo transmitente, por carta registada ou outro meio do qual fique registo escrito e com uma antecedência de 60 dias relativamente à data da transmissão:
a) Às empresas de seguros, da identidade do mediador transmissário;
b) Aos tomadores de seguros, dos elemento referidos no n.º 1, do artigo 32.º, quanto os mediador transmissário e do direito de poder recusar a sua intervenção nos termos do número seguinte’’.
Pois bem, no caso ocorrente não resulta dos factos provados que tenha existido um acordo de vontades idóneo para a válida vigência de um contrato de mediação entre a autora e o réu.
Tal contrato deve, como meridianamente resulta do artigo 44.º do DL n.º 144/2006, ser celebrado por escrito.
Quanto à distinção entre formalidades ad substantiam e formalidades ad probationem louvamo-nos na doutrina de Luís Carvalho Fernandes quando refere: ‘’I. No domínio das formalidades relativas à forma do negócio jurídico há uma importante distinção a estabelecer entre formalidades ad substantiam e formalidades ad probationem.
As primeiras são impostas como condição de validade do negócio a que respeitam e, como tais, insubstituíveis por quaisquer outras. Só com elas o negócio se constitui validamente e, só por meio delas, o acto se pode formar.
As segundas são exigidas apenas como meio de prova do negócio, não estando, assim, inteiramente excluída a possibilidade de serem substituídas por outros meios de prova.
II. Importa ver o acolhimento dado pelo direito positivo português a esta distinção.
A formulação do artigo 220.º CC, sugere que a forma legal é em regra estabelecida ad substantiam. Contudo, o artigo 364.º do mesmo Código dá acolhimento à distinção acima feita, nos seguintes termos.
Por força do n.º 1 deste preceito, quando a lei exige documento autêntico, autenticado ou particular, a formalidade é substancial uma vez que só se admite a sua substituição por meio de prova (nomeadamente documento) ‘’de força probatória superior’’. Assim, se é exigido documento autêntico, a substituição é, em regra, de todo, impossível (artigo 377.º CC).
Contudo, o n.º 2 do artigo 364.º admite o afastamento excepcional deste regime quando ‘’resultar claramente da lei’’ que o documento é apenas exigível como prova da declaração. Trata-se, então, de formalidade probatória, podendo o documento ser substituído por confissão expressa. Fica, porém excluída no caso de formalidades ad probationem, traduzida na exigência de documento, a possibilidade de recurso aos meios de prova por testemunhas e por presunções judiciais (artigos 393.º, n.ºs 1 e 2, e 351.º, respectivamente)’’(Teoria Geral do Direito Civil, II, 3:ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2001: 235 ss).
Não temos dúvidas em considerar formalidade ad substantiam a exigência de forma escrita para transmissão da carteira de seguros (neste sentido cfr. Ac. RP, de 05.04.2001 (processo n.º 90/190.8, TBCHV.P1, in www.dgis.pt).
Como diz, e bem, o primeiro grau, ‘’o contrato de transmissão de carteira de seguros está (…) submetido a uma forma legal, devida (…) a razões de segurança e certeza da vida jurídica, bem como ainda a razões de fiscalização administrativa, tanto mais que o transmissário deve encontrar-se em condições de poder exercer a actividade de mediação quanto aos referidos contratos de seguro, sendo que tal actividade está sempre sujeita à supervisão do ISP.
Para a validade do referido contrato, é necessário, portanto, que o contrato revista a forma escrita, consubstanciando, desse modo uma formalidade ad substantiam .
Sem isso o negócio não chega a constituir-se’’.
Sendo assim as coisas, a falta de forma escrita para o contrato definitivo implica a nulidade desse mesmo negócio.
Insiste, porém, a recorrente que ‘’a formalidade ad substantiam prevista no artigo 44.º do DL n.º 144/2006, encontra-se preenchida com a entrega do impresso (Anexo I, relativo à transmissão da carteira, por acto entre vivos, disponível em isp.pt) que a autora fez.
No entanto, sobre esta matéria já se pronunciou com propriedade o tribunal recorrido quando sustenta : ‘’A Circular n.º 068/1995 foi emitida na vigência da Norma Regulamentar n.º 17/94-R, de 6-12, cujo artigo 14.º, n.º 1 dispunha que a transferência de uma carteira de seguros deve ser solicitada ao ISP através de impresso próprio, do qual constará indicação dos documentos a juntar.
A Norma Regulamentar n.º 17/94-R foi publicada em consonância com o regime vertido no DL n.º 388/91, de 10.10. Ora , o artigo 15.º, n.º 1, deste diploma legal consagrava a possibilidade de transmissão das carteiras de seguros, mas não efectuava qualquer exigência no sentido desse contrato ser reduzido a escrito.
O artigo 106.º do DL n.º 14472006, de 31.07 revogou o DL n.º 388791, de 10.10, sendo certo que aquele diploma legal entrou em vigor em 27.01.2007 (cfr. artigo 107.º), ou seja, já se encontrava em vigor quando se deu a transmissão da carteira de seguros para a ora A.
De notar que o regime transitório consagrado nos artigos 97.º e ss do DL n.º 144/2006, de 31-07 nada consagrou relativamente à aplicabilidade de exigência de forma escrita vertida no n.º 1 do artigo 44.º, devendo considerar-se que esta é exigível a partir do momento em que o diploma em causa entrou em vigor.
Por sua vez, a Norma Regulamentar n.º 17/94-R, ao abrigo da qual foi emitida a Circular n.º 068/1995 foi revogada pelo artigo 50.º da Norma Regulamentar n.º 17/2006-R, que entrou em vigor em 27-01-2007.
As normas invocadas pela autora para sustentar a desnecessidade de um contrato escrito e para demonstrar que a transmissão das carteiras de seguros se basta com o preenchimento dos Anexos à Circular n.º 068/1995 foram entretanto revogadas, para além de que foram emitidas á luz de um regime que não formulava a exigência da redução a escrito, regime esse entretanto revogado.
Aliás, a exigência da redução a escrito do contrato extrai-se de modo cristalino do artigo 144.º, n.º 7, do DL n.º 144/2006, de 31 /07, na redação que lhe foi dada pelo DL 359/2007, de 2-11, onde se alude claramente ao contrato que titula a transmissão da carteira.
A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, a não ser que outra sanção esteja especialmente consagrada na lei – artigo 220.º CC’’
Esta argumentação mostra-se fundamentada cabalmente e merece a nossa adesão.
Improcedem, pois, as alegações opostas da recorrente.

Mas já lhe assiste razão quando refere que ‘’o Tribunal ao qualificar como nula a transmissão da carteira de seguros deveria ter concluído pela restituição do que havia sido pago pela Autor nos termos do disposto no art.° 289.º do Código Civil.
Em verdade, de acordo com o Assento n.º 4/95, DR n.º 11495, série A, de 17 de Maio (hoje com o valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência), ‘’quando o Tribunal conheça oficiosamente da nulidade do negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º CC’’.
O tribunal recorrido, ao qualificar como nula a transmissão da carteira de seguros, deveria, pois, ter concluído pela restituição do que havia sido pago pela autora, ex artigo 289.º CC.
E não se diga que ao assim proceder se viola o artigo 661.º, do CPC.
Na verdade, não se pode dizer que a solução a que se chega contraria o disposto no artigo supracitado , já que o que se pretende é a restituição do que foi prestado, ainda que a título da cláusula penal.
Nem outra é a posição assumida pelo STJ em Ac. N.º 3/2001, de 23 de Janeiro (DR. 1.ºSérie-A, de 9 de Fevereiro ) quando refere :’’Tendo o autor em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 661.º do CC), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido no artigo 664.º do CPC’’.
Lê-se neste Acórdão: ‘’dispõe o artigo 664.º que ‘’o juiz não está sujeito às ale3gações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas só pode servir-se dos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º’’
Este preceito tem de estar presente ao interpretar-se o n.º 1, do artigo 661.º.
Como José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, Anotado , V: 92 e ss, ensinava, face ao disposto na redacção do então artigo 664.º ‘’no que respeita ao direito, a acção do juiz é livre’’
Em anotação ao artigo 661.º (pag. 70) o mesmo mestre aplaude a sentença que, numa acção de simulação, em que o autor só pediu que os réus fossem condenados a reconhecer que a venda foi simulada e feita expressamente para o prejudicar, a abrir mão dos prédios e a pagar-lhe a quantia a liquidar em execução de sentença, como indemnização dos prejuízos, declarou nulo o contrato de compra e venda.
A causa de pedir na acção pauliana são factos articulados que preencham as circunstâncias das alíneas a) e b) do artigo 610.º e do artigo 612.º do CC.
Tendo invocado as normas legais de impugnação pauliana e os RR contestado nessa base, face ao estatuído no artigo 664.º, nada impede que, face ao erro na qualificação dos efeitos jurídicos pretendidos, o juiz declare a ineficácia do contrato, em vez do pedido de anulação.
É que, como ensina Antunes Varela, na Revista Decana, ano 122.º: 255, obrigar-se o autor num casos destes a ‘’sofrer a improcedência da acção, para vir em seguida (dando o nome certo aos bois) requerer a declaração da ineficácia do acto […], seria uma violência e clara denegação prática de tudo quanto se deve ao direito processual, na supremacia relativa do direito substantivo […] sobre os puros ritos do direito adjectivo’’.
Nada impede, pois, que ‘’por alternativa de qualificação’’ se dê como pretendido a restituição do preço pago, aliás coincidente com a cláusula penal contratada.

Pelo exposto acordamos em julgar procedente a apelação e, consequentemente, em revogar a sentença impugnada que se substitui por outra que condena o Réu a pagar à autora a quantia de € 65 000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Custas pelo apelado.

Lisboa, 24.01.2013

Luís Correia de Mendonça
Maria Amélia Ameixoeira
A. Ferreira de Almeida