FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
ALIENAÇÃO
VEÍCULO
PAGAMENTO DIFERIDO
PRESCRIÇÃO
Sumário

I – A alienação do veículo determina a cessação da produção de efeitos do contrato de seguro, independentemente de ser comunicada à seguradora – 13º, nºs. 1, 2 e 3 do D.L. nº 522/85,de 31 de Dezembro.
II – Em caso de pagamentos fracionados feitos pelo Fundo de Garantia Automóvel, por lesado ou a mais do que um lesado, é relevante para efeitos da prescrição do correspondente direito a data do último pagamento efetuado – nº 6 do art. 54º do Dec. Lei nº 291/07, de 21 de Agosto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

I - O F…… intentou ação declarativa comum, nos termos do D.L. nº 108/2006, de 08 de Junho, contra A. e T., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 10.816,04 euros, acrescida de juros de mora e das despesas de liquidação e cobrança que se vierem a liquidar posteriormente.
Alegou, em síntese, que no dia 26 de Julho de 2007, na Av. 25 de Abril, em C., a 2ª ré conduzia o veículo de matrícula …., quando atropelou o peão J.; o veículo … tinha sido alienado pelo 1º réu à 2ª ré em data anterior ao acidente pelo que havia cessado o contrato de seguro do mesmo celebrado com a Companhia de Seguros …; na falta de seguro, e não se tendo apurado a culpa da condutora ou do peão, o Fundo de Garantia Automóvel pagou a este último a quantia de € 10.816,04, correspondente a metade da indemnização devida pela totalidade dos danos por ele sofridos, tendo agora direito, por via da sub-rogação, a haver dos réus o montante pago, acrescido de juros de mora contados desde 27 de Maio de 2009, data em que interpelou a ré para pagar.
Os réus contestaram por impugnação e exceção, invocando, nesta última sede, a sua ilegitimidade e a prescrição do direito do autor; requereram ainda a intervenção da Companhia de Seguros …, incidente que veio a ser indeferido.
Houve resposta do autor.
Em sede de despacho saneador foi afirmada a legitimidade dos réus e dispensou-se a seleção da matéria de facto.
Realizou-se o julgamento, no final do qual se emitiu julgamento sobre a matéria de facto alegada e, subsequentemente, foi proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré “a pagar ao autor a quantia de nove mil quatrocentos e trinta e cinco euros e doze cêntimos, acrescida de juros de mora vencidos desde o dia 06 de Junho de 2009 e vincendos até integral pagamento, acrescidas de eventuais despesas de liquidação e cobrança que se venham a liquidar posteriormente”, do mais a absolvendo; e absolveu o réu dos pedidos formulados pelo autor.

Apelou a ré, tendo apresentado alegações onde formula as extensas e prolixas conclusões[1] que passamos a transcrever na sua íntegra:
a. A Ré foi condenada a pagar ao Autor, Fundo de Garantia Automóvel, a quantia de 9 255.12 Euros, mais 180.00 Euros, de relatórios médicos e ainda dos juros de mora legais desde a interpelação da Ré para pagar, ou seja, perfeitos dez dias sobre a data de expedição de 27 de Maio de 2009, concretamente desde 06 de Julho de 2009 – artigos 804 º, nº 2, 805 nº 2 a) e 806, nº 1 e 2, todos do Código Civil.
b. Não pode a Ré concordar com tal decisão, considerando a mesma que devia ser absolvida atenta a prova produzida em audiência de julgamento, designadamente: prova testemunhal e prova documental.
c. Tendo também a douta sentença feito uma errada aplicação das normas jurídicas ao caso sub Júdice, não tendo feito a subsunção dos factos provados ao direito.
d. A Ré vem fundamentar a sua Apelação em 3 pontos:
1 – Se existiu a alienação do veículo …, à agora apelante (matéria de facto e aplicação do direito), fez uma errada aplicação da matéria dada como provada as normas jurídicas (sic), violando o disposto nos artigos 520º, 521º, e 552º e 619 do CPC e artigos 341º, 342º, e 352º do C. C.
4 - Abuso do direito do Autor e da seguradora ao invocar a nulidade da apólice nº … (matéria de facto e de direito)
5 - Prescrição do valor reclamado pelo Autor no valor de 3 838.25 Euros (matéria de direito)
e. Da matéria dada como provada na douta sentença, designadamente, os nº :
- 24, que na participação do acidente de viação consta que o veículo … estaria seguro a data pela apólice nº …
- 30, na altura do acidente o prémio pela apólice nº … estava pago.
- 31, A condutora do seguro exibiu a carta verde do seguro à GNR.
- 32 Passados alguns dias a 2ª Ré foi contactada pelo Perito averiguador para falar do acidente.
- 33, O primeiro Réu é pessoa muito amiga da 2ª Ré e da sua família
- 34, a seguradora …. recebeu o pagamento do prémio do primeiro réu até Setembro de 2009
- 35, O primeiros Réu e 2ª Ré não receberam até então qualquer comunicação da seguradora a dizer que a apólice era nula.
f. Com efeito, e relativamente à matéria do ponto 1 e 2, o Autor não fez qualquer prova, há (sic) exceção dos documentos juntos com a petição inicial e do depoimento de …, funcionária da seguradora …, conforme transcrição na motivação do seu depoimento (articulado 6 desta peça).
g. Ora, do depoimento e dos documentos juntos pelo Autor, e que foram impugnados pelos Réus, em acta de 24-02-2012, em que os mesmos impugnam os documentos que foram juntos, em audiência de julgamento pela referida testemunha em que a seguradora … referia que o registo de propriedade, datado de 27/04/2006, se encontrava a favor da condutora e era a mesma que liquidava o premio desde a referida data, e embora a referida testemunha diga em Audiência de julgamento que existe uma gralha quando se refere a registo de propriedade queria dizer declaração de venda, certo é que a mesma apenas se limitou a informar a posição da companhia de seguros fidelidade mundial, de acordo com o relatório do perito.
h. Ora, este perito nunca compareceu, em audiência de julgamento, sendo certo que o Autor nem sequer o arrolou como testemunha, e ainda assim o Juiz a quo conforme consta das 3 actas de audiência de julgamento, solicitou a sua presença em julgamento por entender que o seu depoimento era relevante no processo.
i. Ao Autor, cabia ilidir a presunção do registo do veiculo a favor do primeiro Réu (nem sequer arrolou como testemunha o perito avaliador), sendo certo que o Tribunal fez vários diligencias para que o mesmo viesse a julgamento esclarecer tal matéria, o qual nunca compareceu, não entende a apelante como é que o Tribunal apenas valorou uma declaração que a mesma fez após o acidente, não valorou a informação falsa, à companhia de seguros … (carta enviada em 4 de Março de 2008), que refere que o registo de propriedade datado de 2006, se encontrava a favor da condutora e é a mesma que liquida o premio desde aquela data.
j. Ora, é incompreensível para a apelante como é que não tendo o Autor produzido qualquer prova em audiência de julgamento da proprietário (sic) do veiculo à data da ocorrência do acidente, não tendo sequer o perito averiguador contrariasse a apólice paga de Julho de 2009 (sic), a carta referiu falsamente que o registo do veiculo e pagamento do premio era a favor e pago pela condutora, ilidisse a presunção que sobre si cabia.
l) O ónus da prova da alienação do veículo, a favor da segunda Ré, era do Autor e não dos Réus, não tendo o primeiro afastado a presunção da titularidade da propriedade do veículo, pelo registo, a favor do primeiro réu, sendo que a segunda apenas tinha uma declaração de venda, mas que lhe dava apenas uma posse precária do veiculo a título de empréstimo, sendo certo que a mesma tinha possibilidade registar o veiculo a seu favor, e nunca o fez, porque nunca se sentiu, nem foi proprietária do mesmo por doação ou venda do veiculo, conforme declaração do Primeiro Réu, depoimento de parte de A…, da testemunha I. e J. O..
m) A fundamentação da sentença “de que a declaração confessória escrita anterior ao litígio, ou seja, num momento em que os réus não tinham essa qualidade em que ainda nada lhes era exigida, tiveram um valor probatório decisivo na confirmação de que antes do acidente o réu deu o carro à ré secundarizando-se os depoimentos das testemunhas J. P. B., J. P. e I., pai da ré namorado da irmã e amiga da ré, na parte em que procurou fazer a ideia concreta de que o carro era do A., até o depoimento de J. O. mecânico que confirmou que o réu deixa lá os carros para arranjar o carro dos autos e ele que paga sempre os arranjos (considera o juiz aquo) que tal não é decisivo para lançar a duvida para saber quem é afinal o seu dono, já que sempre poderá o réu ser pessoa (.... e pretender continuar assim como deu o carro, ajudar na manutenção do mesmo). mas esta fundamentação também é contraditória quando refere que os documentos juntos aos autos relativos ao prémio do seguro estarem em seu nome, mas não comprovam ser ele a pagar (sic).
n) O Juiz a quo na sua fundamentação “teve dois pesos e duas medidas” porquanto, na fundamentação da matéria dada como provada e não provada o réu “A. é chamado para pagar os arranjos, e pode faze-lo porque é pessoa abonada, mas quanto ao seguro pode não ser ele a pagar” isto é toda a prova produzida pelos réus é abalada por um documento feio pela ré pelo perito avaliador, sendo que o mesmo não foi à audiência de julgamento confirmar as circunstancias em que foi feita tal declaração pela ré tendo sido violado o principio do artigo 515º e 516º do CPC.
o) O juiz a quo afastou toda a prova produziu por ambos os réus, inclusivamente documentos comprovativos do pagamento do seguro até 2009, por A. e registo de propriedade a favor do mesmo, e apenas tirou a conclusão da alienação do veículo com base na referida declaração da Ré T..
p) Não tendo a ré T. confessado nos termos do artigo 567º, do CPC e não tendo o Autor produzido qualquer prova como lhe competia deveria ter sido dado como provado que o proprietário do veículo era o primeiro réu A., à data do acidente e que o contrato de seguro com a apólice estava válida e quem devia responder pelos danos ao peão seria obviamente a seguradora …., cuja responsabilidade estava transferida por força da apólice nº ….
q) A douta sentença violou assim o disposto nos artigos 520º, 521º, 552º e 619º todos do C.P. C. e artigos 341º, 342º e 352 º do C. C., porquanto cabia ao Autor fazer a prova de que a propriedade do veículo era do primeiro réu e que tinha existido alienação para 2ª Ré, e da prova produzida pelo Réu, que apenas se limitou a documentos juntos e que foram impugnados pelos Réus, como da prova produzida pelos mesmos resulta equivocamente que a propriedade do veiculo … era do primeiro Réu, apenas relevou para prova a declaração confessória festa pela 2ª Ré (sic) junto do perito após o sinistro.
r) Da prova produzida pelos Réu devia conduzir que o contrato de seguro estava valido entre o primeiro réu e a companhia de seguros … não tendo o autor produzido prova em contrário, a que cabia, por força dos artigos 341º, 342º e 352 º do C. C, mas também por força do princípio do contraditório e da oralidade previstos nos artigos 520º, 521º, 552º e 619º todos do C.P. C.
s) A sentença violou o disposto do artigo no artigo 659º, nº 2, e 3, do C. P. C. (sic), porquanto de acordo com referido dispositivo o julgador deve interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes ao factos que considera provados, como também na fundamentação da sentença, o Juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos, ou por confissão reduzida a escrito, fazendo o exame crítico das provas que lhe cumpre conhecer, que não o fez conforme já plasmado nos articulados anteriores, e consequentemente fez uma errada aplicação da matéria dada como provada as normas jurídicas, violando o disposto nos artigos 520º, 521º, e 552º e 619 do CPC e artigos 341º, 342º, e 352º do C. C.
t) A douta sentença violou assim o disposto nos artigos 520º, 521º, 552º e 619º todos do C.P. C., e artigos 341º, 342º e 352 º do C. C., porquanto cabia ao Autor fazer a prova de que a propriedade do veiculo era do primeiro réu e que tinha existido alienação para 2ª Ré, e da prova produzida pelo Réu, que apenas se limitou a documentos juntos e que foram impugnados pelos Réus, como da prova produzida pelos mesmos resulta equivocamente que a propriedade do veiculo …., era do primeiro Réu, apenas relevou para prova a declaração confessória festa pela 2ª Ré (sic) junto do perito após o sinistro.
u) Da prova produzida pelos Réu devia conduzir que o contrato de seguro estava válido entre o primeiro réu e a companhia de seguros … não tendo o autor produzido prova em contrario, a que cabia, por força dos artigos 341º, 342º e 352 º do C. C, mas também por força do principio do contraditório e da oralidade previstos nos artigos 520º, 521º, 552º e 619º todos do C.P. C.
v) Também a douta sentença não respeitou o disposto no artigo 659º, do C. P. C. porquanto, devia ter sido dado como provada as alíneas j) a Ré disse que tinha intenção de comprar o veículo mas que ainda não o tinha feito porque não tinha dinheiro e o Pai não lho emprestava, e acordo com os testemunhos da I. depoimento de parte do Réu A. (sic).
A douta sentença também violou o disposto no artigo 659º, do C. P. C., ao considerar como não provados as alíneas: i), era do conhecimento geral que o proprietário do veículo era o primeiro Réu.
j) A Ré disse que tinha intenção de comprar o veículo, mas que não o tinha feito porque não tinha dinheiro e o Pai não lho emprestava.
l) era do conhecimento geral que o dono do veiculo era o primeiro Réu.
m) a segunda Ré apenas conduzia o …. esporadicamente, com o consentimento e autorização do primeiro Réu.
n) o primeiro Réu nunca transferiu para o segundo Réu a propriedade do veículo.
x) Tais factos, que foram dados como não provados na douta sentença, deviam ter sido dado como provados de acordo com o artigo 659º, do C. P. C. porquanto a fundamentação do Juiz na decisão de dar como não provados tais factos, não preenche os requisitos do referido artigo, porquanto não conseguiu afastar ou afirmar que tais depoimento não fossem fidedignos e que pusessem em causa a versão do Autor.
z) Tais depoimentos prestados por testemunhas, I. e J. O., cuja transcrição “ se encontra no articulado 11 desta peça processual) que confirmaram que sempre consideraram o primeiro Réu como legitimo proprietário do veiculo e que a segunda Ré apenas estava autorizada a circular com o mesmo, assim como os documentos juntos, que provam que o seguro se encontrava pago a favor da seguradora … até Setembro de 2009, impunham fundamentação e decisão inversa da que foi proferida na douta sentença, isto é que a altura do acidente o veículo tinha sido alienado pelo primeiro Réu à segunda Ré, mais uma vez se reafirmando que foram violados os artigos 520º, 521º, e 552º, 619 e 659º do CPC e artigos 341º, 342º, e 352º do C. C.
aa) quanto à nulidade da apólice invocada pelo Autor, também aqui andou mal a douta sentença ao considerar a nulidade da apólice invocada pela seguradora quando até aceite “Também é um facto resultante da documentação junta a folhas 89 a 95 que a seguradora transmitiu ao Réu que o seguro tinha sido anulado por falta de pagamento do premio em 29 de Agosto de 2009, aceitando que até então tenha sido pago e que até então não tenho sido comunicado logicamente a algum dos Réus a sua nulidade ou qualquer motivo de cessação para além daquele.
bb) Ora, na altura do acidente a apólice era nula porque tinha havido alienação do veículo a favor da 2ª Ré, tendo a seguradora conhecimento só na data em que é feito o relatório do perito, tal nulidade não é declarada nem ao primeiro nem à 2ª Ré, a companhia de seguros confirma a receber o premio durante 2 anos do primeiro Réu, sem lhe comunicar a nulidade ou cessação do contrato por alienação do veiculo ….
cc) A ré não pode concordar com tal raciocínio que é contraditório, isto é, a apólice é nula no dia do acidente, e continua valida para receber o premio, até 2009, decorridos 2 anos da ocorrência do acidente, nunca tendo sido comunicado ao primeiro réu, a nulidade da apólice conforme resulta dos factos provados nº 34 e 35 dos factos provados.
dd) Tal posição da seguradora … e do Autor, constitui autentico abuso do direito, nem tendo o último, feito um estudo prévio de tal processo, não tendo ouvido os Réus, sobre o contrato de seguro, aceitando sem mais a recusa de seguradora …, de assumir o sinistro, tendo obrigação legal de saber porque motivo o Réu A., continuou com seguro valido até 2009, altura em que deixou de pagar o prémio por sua iniciativa sem qualquer declaração da seguradora …. da nulidade de apólice.
ee) Ora, o Autor não fundamenta porque considera tal contrato nulo, apenas refere que a seguradora …. o considera nulo à data da ocorrência do acidente, mas não existe qualquer carta da seguradora …. a invocar tal nulidade contra o primeiro Réu e a segunda Ré.
ff) o preenchimento e a proposta de seguro relativo ao veículo …., foram celebrados em data anterior à data do acidente.
gg) O simples facto articulado pelo Autor no nº 37 da P.I., é baseado apenas no facto de companhia de seguros …., ter declarado tal apólice nula, não tendo o Autor consubstanciado nem qualquer facto que alicerce a aplicação do artigo 429º do Código Comercial.
hh) A declaração de nulidade (não nulidade mas anulabilidade pelos motivos supra expostos) é uma manifestação de má fé processual por banda da Companhia de Seguros ….., que sabia que a apólice estava paga pelo proprietário do veículo, continuou a cobrar o seguro até 2009.
ii) Tendo o seu perito contactado dias após o acidente, para que a condutora do veículo viesse fazer declaração, que afastasse a presunção dos artigos 425º a 428º, do Código Comercial.
jj) O primeiro Réu tinha um contrato de seguro válido de acordo com o artigo 2º do DL 522/85 de 31 de Dezembro, pois era e continua a ser o proprietário do veículo.
ll) Nunca foi efetuada qualquer transferência de propriedade do veículo para o segundo Réu, sendo o primeiro Réu reconhecido desde a data da sua aquisição em 7/11/1995, como dono e legitimo possuidor do veículo.
mm) O mesmo não esta impedido de emprestar a familiares ou amigos, não podendo de acordo com o artigo 8º do referido diploma a companhia de Seguros …. eximir-se da sua responsabilidade de acordo com o contrato de seguro com a apólice nº …., celebrado com o primeiro Réu.
nn) O artigo 21, nº 2, da alínea a) DL 522/85 de 31/12, dispõe que o FGA garante por acidente, originando pelos veículos referidos no numero anterior a satisfação das indemnizações por:
b) Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficia do seguro válido e eficaz, ou por declarada a falência de seguradora.
oo) De acordo com o supra exposto dúvidas não existem e embora esteja previsto na lei entre nós o principio do livre apreciação de prova o mesmo não pode ceder ao principio impostos pela Lei, designadamente, da violação das regras o que deve obedecer a produção de prova e a sua fundamentação.
pp) Note-se que o Autor não carreou para os autos qualquer prova testemunhal, tendo sido para o Juiz a quo suficiente a declaração de venda e a declaração que a Ré fez na altura ao perito (sem que o mesmo) viesse a julgamento confirmar porque exigiu da 2ª Ré tal confissão e pelo seu interesse, a informação de que o registo da viatura estava em nome da 2ª Ré e que o veículo tinha sido alienado)
qq) Quanto às declarações de funcionária da seguradora …. a mesma apenas tinha conhecimento do relatório do perito e que por esse motivo não aceitaram a responsabilidade do acidente, aliás esta testemunha junta os referidos documentos, sendo certo que tais afirmações do perito eram falsas, porque o veículo na data do acidente e até ao presente ainda se encontra registado a favor do primeiro Réu.
rr) Ao aceitar a nulidade da apólice …., a douta sentença violou os artigos 520º, 521º, e 552º, 619 e 659º do cpc e artigos 341º, 342º, e 352º do c. c. o artigo 429º do código comercial e ainda o artigo 21º, nº2, da alínea a) do decreto lei 522/85 de 31/12 e consequentemente dar como não provado que não existiu alienação do veiculo …., e que a responsabilidade e por danos cansados (sic) pelo referido veículo estava validamente transferida para a seguradora ……, e consequentemente seria esta a responsável pelo pagamento dos danos causados pelo veiculo no peão, no caso subjúdice.
ss) quanto à prescrição do valor reclamado pelo autor no seu articulado 1 da P.I., veio referir que pagou em 26/08/2008, ao Peão J. C., o montante de 3 838.25 Euros (três mil oitocentos e trinta e oito euros e vinte cinco cêntimos), no termo de um processo de regulação extra judicial.
tt) De acordo com o artigo 498º, nº 3 do C. C., o direito de indemnização prescreve no prazo de 3 anos a contar do cumprimento o direito de regresso entre os responsáveis.
vv) Encontra-se assim prescrito o valor de 3 838.25 Euros (três mil oitocentos e trinta e oito euros e vinte cinco cêntimos), porquanto, decorreram mais de 3  nos entre a data do pagamento e a entrada da presente ação, dado que o prazo prescricional é relativo a cada pagamento parcelar e não a partir do ultimo pagamento, conforme maioria da jurisprudência já citada nesta peça processual.
xx) Devendo assim a apelação considerada (sic) que o valor de 3 838.25 Euros (três mil oitocentos e trinta e oito euros e vinte cinco cêntimos), se encontrava prescrito por ultrapassar o prazo de três anos previsto no artigo 498º, nº 3 do C. C.

Nas contra-alegações apresentadas, o autor sustenta a improcedência da apelação.

Colhidos os vistos cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pela apelante nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objeto do recurso.

II – Na sentença descrevem-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 26 de Julho de 2007, na Av. …, freguesia de …., ocorreu um acidente (artigo 2º da petição inicial).
2. A Av. tem uma passadeira, regulada por sinalização luminosa (artigo 6º da petição inicial).
3. Foram intervenientes no acidente o veículo de matrícula ….., registada a propriedade a favor do 1º réu, e conduzido pela 2ª ré, e o J…J. C. (artigo 3º da petição inicial).
4. O J. atravessou a passadeira (no início da qual existe um gradeamento), da direita para a esquerda atento o sentido de marcha do veículo …. (artigos 7º e 8, primeira parte, da petição inicial).
5. Nesse momento, o veículo … embateu no corpo de J. (artigo 9º da petição inicial).
6. Devido ao forte embate, J. foi projetado para cima do veículo e embateu com a cabeça no pára-brisas (artigo 14º, primeira parte, da petição inicial).
7. Do embate resultaram lesões no corpo de J., a saber, traumatismo craneo-encefálico com perda de conhecimento, torácico, do braço e do antebraço esquerdo (artigos 15º e 17º da petição inicial).
8. J. foi imediatamente transportado para o Hospital Garcia de Orta, onde foi consultado em episódio de urgência e submetido a vários exames de diagnóstico e primeiros tratamentos (artigo 16º da petição inicial).
9. Esteve internado até dia 07 de Agosto de 2007, altura em que teve alta (artigo 19º da petição inicial).
10. Em 22 de Agosto de 2007, recorreu ao serviço de urgência, por sinais inflamatórios, sendo drenado um abcesso subcutâneo do 1/3 proximal do braço (artigo20º da petição inicial).
11. Devido a isso, ficou internado até ao dia 31 de Agosto de 2007 (artigo 21º da petição inicial).
12. Teve de fazer tratamentos de fisioterapia a partir de 19 de Outubro de 2007, numa série de 20 (artigo 22º da petição inicial).
13. Teve de ser novamente sujeito a cirurgia por ter partido o material de osteossíntese, tendo ficado internado durante quatro dias (artigo 23º da petição inicial).
14. Ficou com as seguintes sequelas relacionadas com o acidente:
- mobilidade dolorosa do ombro, com rigidez do mesmo, não permitindo fazer abdução além dos 90º;
- rigidez do cotovelo, não permitindo fazer extensão além dos 170º;
- cicatrizes no braço longitudinal, operatória, com 11 cm e 8,5 cm; antebraço esquerdo, operatórias, longitudinais, com 8,5 cm, 6 cm e 11,5 cm (artigo 24º da petição inicial)
15. A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 21 de Janeiro de 2009 (artigo 25º da petição inicial).
16. Tais lesões demandaram um período de incapacidade temporária geral total de 27 de Julho de 2007 a 07 de Agosto de 2007, de 22 de Agosto de 2007 a 30 de Agosto de 2007, e de 09 de Outubro de 2008 a 12 de Outubro de 2008, ou seja, 25 dias, em que esteve impedido de realizar com autonomia as atividades da vida diária, familiar e social (artigos 26º e 30º da petição inicial).
17. O período de incapacidade temporária geral parcial foi fixado de 08 de Agosto de 2007 a 21 de Agosto de 207, de 31 de Agosto de 2008 a 08 de Outubro de 2008, e de 13 de Outubro de 2008 a 21 de Novembro de 2008, ou seja, 519 dias, durante o qual, ainda que com algumas limitações, retomou com autonomia as atividades da vida diária, familiar e social (artigo 27º da petição inicial).
18. Durante o período referido em 16. e 17. esteve totalmente incapacitado de exercer a sua atividade profissional, ou seja, durante 544 dias (artigo 30º da petição inicial).
19. Medicamente, o quantum doloris (sofrimento físico e psíquico durante o período de incapacidade temporária) foi fixado no grau IV, numa escala de VII graus de gravidade crescente (artigo 29º da petição inicial).
20. Medicamente, o dano estético foi fixado no grau II, numa escala de VII graus de gravidade crescente (artigo 30º da petição inicial).
21. À data do acidente, J. tinha 36 anos e era funcionário dos Bombeiros Voluntários de ..., exercendo as funções de piquete polivalente de intervenção, auferindo o vencimento líquido de 590,50 euros (artigo 31º da petição inicial).
21. J. deixou de auferir durante pelo menos 13 meses o seu salário, num total de 7.676,50 euros (artigo 32º da petição inicial).
22. As restantes lesões foram avaliadas pelo autor nos seguintes valores:
- quantum doloris – 800,00 euros;
- dano estético – 1.500,00 euros;
- período de internamento – 25 euros por dias/ 625 euros;
- perdas salariais não incluídas em 21. – 2.761,84 euros;
- dano biológico – 7.908,75 euros.
23. No dia 27 de Abril de 2006, o réu deu à ré o veículo …. (artigos 37º, segunda parte da petição inicial e 4º do articulado de resposta à exceção de ilegitimidade).
24. Na participação de acidente de viação consta que o veículo …. estaria seguro à data pela apólice nº …. junto da Companhia de Seguros …. (artigo 37º, primeira parte, da petição inicial).
25. A Companhia de Seguros … comunicou ao autor, em Março de 2008, que a apólice tinha sido declarada nula por ter havido alienação do veículo do 1º réu para a 2ª ré (artigo 37º da petição inicial).
26. O Fundo de Garantia Automóvel considerou que não se tendo apurado a culpa de algum dos interveniente apenas tinha de pagar metade do valor total dos danos por si apurado, tendo pago a J. o montante total de 10.636,04 euros, nas seguintes datas:
- Em 26 de Agosto de 2008, o montante de 3.838,25 euros;
- Em 06 de Abril de 2009, o montante de 6.797,79 euros (artigos 1º e 38º da petição inicial).
27. Esse valores incluem, na perspetiva do autor:
Perdas salariais, no montante de 5.219,17 euros;
Quantum doloris, no montante de 400,00 euros;
Dano estético, no montante de 750,00 euros;
Período de internamento, no montante de 312,50 euros;
Dano biológico, no montante de 3.954,37 euros (artigo 39º da petição inicial).
28. Em despesas de gestão, designadamente com três relatórios médicos, o autor pagou 180 euros (artigo 40º da petição inicial).
29. O autor enviou a 27.05.2009 carta à 2ª ré e esta recebeu-a a solicitar o pagamento no prazo de dez dias da quantia de 10.816,04 euros (artigo 46º da petição inicial).
30. Na altura do acidente, o prémio referente à apólice de seguro nº … da Companhia de Seguros …. estava pago (artigo 17º da contestação).
31. A condutora do veículo …. exibiu a carta verde do seguro à GNR (artigo 18º da contestação).
32. Passados alguns dias, a 2ª ré foi contactada pelo perito-averiguador da seguradora para falar do acidente (artigo 19º da contestação).
33. O 1º réu é pessoa muito amiga da 2ª ré e da sua família (artigo 24º da contestação).
34. A seguradora …. recebeu o pagamento do prémio do 1º réu até Setembro de 2009 (artigos 27º e 29º da contestação).
35. O 1º réu e a 2ª ré não receberam até então qualquer comunicação da seguradora a dizer-lhe que a apólice era nula (artigos 29º e 30º da contestação).
E descrevem-se como não provados os seguintes factos:
 a) O peão, quando atravessou a passadeira, tinha sinalização verde para peões (artigo 5º da petição inicial).
b) A 2ª ré, ao aproximar o veículo …. da passadeira, tinha sinalização verde para os veículos, razão porque prosseguiu a marcha (artigos 10º da petição inicial e 5º da contestação) e J. sinalização encarnada para peões (artigo 11º da contestação).
c) Inesperadamente, a sofreu o impacto do peão J. no lado direito do veículo … (artigo 11º da petição inicial e artigo 9º da contestação).
d) Só mais à frente a 2ª ré se apercebeu ter embatido em J. (artigo12º da petição inicial).
e) Só com a insistência dos bombeiros é que J. entrou para a ambulância (artigo 6º da contestação).
f) O peão não se pode lembrar se tinha sinal verde para atravessar a passadeira antes do acidente por com o embate ter ficado com amnésia (artigo 8º da contestação).
g) À data do acidente, J. também recebia abonos variáveis de 190,82 euros por mês (artigo 31º da petição inicial) e teve as, pelo autor designadas também as perdas salariais referidas pelo autor de 2.761,84 euros (artigo 33º da petição inicial).
h) O perito-averiguador da seguradora disse à ré que era melhor dizer que tinha adquirido o veículo, que já andava com ele há algum tempo, porque assim demonstrava que tinha alguma prática e o seguro não aumentava para não prejudicar o proprietário do veículo (artigo 21º da contestação).
i) O perito-averiguador da seguradora disse que não havia problema, que era apenas para facilitar o processo e para que não constasse que andava com o carro há pouco tempo (artigo 22º da contestação).
j) A ré disse que tinha intenção de comprar o veículo mas que ainda não o tinha feito porque não tinha dinheiro e o pai não lho emprestava (artigo 23º da contestação).
l) Era do conhecimento geral que o dono do veículo era o 1º réu (artigo 24º da contestação).
m) A 2ª ré apenas conduzia o veículo …. esporadicamente, com o consentimento e autorização do 1º réu (artigo 25º da contestação).
n) O 1º réu nunca transferiu para a 2ª ré a propriedade do veículo … (artigo 43º da contestação).

III – Abordemos agora as questões suscitadas.

Sobre a impugnação da decisão proferida sobre os factos:
Querendo impugnar a decisão proferida sobre os factos, a parte deve, sob pena de rejeição do recurso, especificar, quer os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e pretende ver alterados, quer os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida sobre tais factos – art. 685º-B, nº 1, alíneas a) e b) d CPC (diploma a que respeitam as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência).
Sustenta o apelado que a apelante não especificou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pelo que, ao abrigo do disposto na citada disposição legal, o recurso deve, nesta parte, ser rejeitado.
Embora prolixas, as conclusões da recorrente - e a parte das alegações que as precede – permitem ver, com clareza, que esta considera mal julgados os factos tidos como não provados e descritos na sentença sob as alíneas i) a n).
É o que decorre das conclusões v) a z) onde tais factos são especificadamente indicados como tendo sido incorretamente julgados.
E, embora sem primar pela clareza que seria desejável, deve ainda ter-se como suficientemente especificado como erradamente julgado o facto descrito sob o nº 23 do elenco factual julgado como provado.
Apesar de o conteúdo dos nºs 5 e 6 da parte arrazoada das alegações da recorrente fazer supor que esta teria em mente impugnar a decisão proferida sobre o facto descrito no nº 24 da sentença, a primeira parte do nº 16 dessa mesma alegação aponta inequivocamente no sentido de que será antes o facto descrito sob o nº 23 o que estará na sua mira, o que é depois confirmado pelo conteúdo dos depoimentos testemunhais que invoca como elementos probatórios reveladores do erro de julgamento cometido, todos no sentido de que, ao invés do consagrado naquele facto nº 23, o veículo nunca foi transmitido pelo 1º réu à 2ª ré.
Ainda no mesmo sentido aponta a circunstância de o facto nº 23 ser o reverso do julgado como não provado, descrito em n), este último concretamente indicado como padecendo de erro de julgamento.
Também o conteúdo das conclusões l), m), q), esta última de teor absolutamente idêntico ao da conclusão t), aponta em idêntico sentido, e o próprio apelado - embora subsidiariamente e para a hipótese de se entender que não é caso de rejeição do recurso de facto - tem como impugnada a decisão proferida sobre o facto nº 23, já que toda a sua argumentação vai no sentido de demonstrar o acerto da decisão que o teve como provado.
Daí que se entenda como suficientemente feita pela apelante a especificação do facto nº 23 como matéria incorretamente julgada.
Não existe, pois, motivo para a rejeição do recurso que impugna a decisão proferida sobre os factos acabados de enunciar.
 
Comecemos por atentar na fundamentação da decisão em causa.
É do seguinte teor:
“3. Matéria relativa às relações entre o réu e ré, a transferência do veículo do primeiro para a segunda, o respetivo seguro e as comunicações da seguradora ao autor e ao réu – factos provados 23º (…) e factos não provados h) a n).
A ré confessou extrajudicialmente no documento junto a fls. 118, datado de 02 de Agosto de 2007, que “O carro foi-me oferecido por um amigo dos meus pais, A., a 27 de Abril de 2006, ficando eu a legítima proprietária do veículo”.
Na contestação, a ré alegou que essa declaração não corresponde à verdade e que ela apenas foi escrita porque o perito averiguador da seguradora propôs essa redação.
Como se não conseguiu a presença do perito em audiência e como o pai da ré, a testemunha J. P. não confirmou com segurança que tal redação tenha sido sugerida, dizendo-se presente quando foi tomada, logicamente ficou em crise e se deu como não provada essa versão.
Se a ré, então, escreveu o que escreveu, tem de partir do pressuposto que para si aquela doação do veículo aconteceu naquela data.
E, batendo certo com essa transferência do veículo para si temos o documento, intitulado “Contrato verbal de Compra e Venda”, junto a fls. 114 e 115, assinado pelos réus na mesma data em que a ré afirmou ter recebido o veículo, 27 de Abril de 2006, o réu com a qualidade de vendedor e a ré com a qualidade de compradora.
Perante tais documentos, e até perante o depoimento da testemunha J. P., pai da ré, que referiu ter o réu perguntado numa conversa tida ao jantar com a família da ré, “quem é que queria ficar com o carro”, ficou o signatário com a convicção que o réu deu o carro à ré (note-se que o autor emprega as expressões “alienação”, no artigo 37º da petição inicial e “tendo a propriedade do mesmo sido transmitida”, no artigo 4º da resposta à contestação, que por jurídicas foram antes respondidas com o facto subjacente apurado “deu o carro”) na data daquelas declarações, 27 de Abril de 2006, ainda que a mesma testemunha J. P. tenha também referido ter sido o réu que continuou a pagar o prémio do seguro, o que não se sabe se aconteceu (ou se antes foi a ré que o pagou) pois os documentos juntos aos autos relativos ao pagamento do prémio, constam em nome do réu mas não comprovam ter sido ele a pagar … Aliás, na carta junta a fls. 137, a seguradora afirma mesmo que tem sido a ré a pagar o prémio do seguro.
Naturalmente que aquelas declarações confessórias escritas, anteriores ao presente litígio, ou seja, num momento em que os réus não tinham essa qualidade e em que ainda nada lhes estava a ser exigido, tiveram um valor probatório decisivo na confirmação de que antes do acidente o réu deu o carro à ré, secundarizando-se logicamente a valia probatória dos depoimentos já prestado no decurso do litígio pelas testemunha J. P. B., J. P. e I.,  pai da ré, namorado da irmã da ré e amiga da ré, na parte em que procuraram fazer passar a ideia contrária, ou seja, de que o carro era do réu A., que a ré andava esporadicamente com esse carro e carecia pedir-lhe autorização, que tanto ficava estacionado em casa do réu como da ré, etc. Também o depoimento da testemunha J. O.,  mecânico que confirmou que o réu deixa lá os carros para arranjar, entre os quais o carro dos autos, e que é ele que paga sempre os arranjos, não é decisivo para lançar a dúvida sobre saber quem é afinal o seu dono, já que sempre poderá o réu ser pessoa abonada financeiramente e pretender continuar, assim como deu o carro, a ajudar a ré na manutenção do mesmo.
Não se duvidou já, à luz dos depoimentos testemunhais prestados, que o réu e a família da ré fossem amigos, o que até entronca no oferecimento do carro.
(…)”
Como elementos probatórios que imporiam decisão diversa, ou seja, de “não provado” quanto ao facto descrito no nº 23 e de provado quanto aos demais, a apelante invoca o depoimento de parte do 1º réu A. e o depoimento das testemunhas I. e J. O. que transcreve, sem destacar, porém, qualquer passagem ou passagens dos mesmos.
O apelado, nas suas contra-alegações, sustenta o acerto da decisão proferida sobre a efetiva alienação do veículo …, feita pelo 1º réu à 2ª ré, para tanto destacando o depoimento da testemunha J. P. B., pai desta última, a cuja transcrição procede, salientando também que as transcrições feitas pela apelante não retratam com integral fidelidade as declarações prestadas.
Vejamos.
A decisão sobre o facto nº 23 consagrou como verdadeiro que, no dia 27 de Abril de 2006, o réu deu à ré o veículo … .
Já os demais factos em causa, julgados como não provados, têm o seguinte teor:
i) O perito-averiguador da seguradora disse que não havia problema, que era apenas para facilitar o processo e para que não constasse que andava com o carro há pouco tempo (artigo 22º da contestação).
j) A ré disse que tinha intenção de comprar o veículo mas que ainda não o tinha feito porque não tinha dinheiro e o pai não lho emprestava (artigo 23º da contestação).
l) Era do conhecimento geral que o dono do veículo era o 1º réu (artigo 24º da contestação).
m) A 2ª ré apenas conduzia o veículo … esporadicamente, com o consentimento e autorização do 1º réu (artigo 25º da contestação).
n) O 1º réu nunca transferiu para a 2ª ré a propriedade do veículo … (artigo 43º da contestação).
Certo é que as testemunhas invocadas pela apelante, uma delas sua amiga e a outra o dono da oficina de automóveis, até 2007/2008, que prestava serviços ao réu A., designadamente no carro aqui referenciado, prestaram depoimento [2] no sentido de que o veículo … sempre terá pertencido ao primeiro réu, dizendo a primeira, em resumo, que a ré o usava com frequência, mas mediante autorização do réu A. que lho emprestava.
E também este réu, ouvido em depoimento de parte, declarou, em síntese, ter havido o projeto de alienar o carro à 2ª ré, mas que o mesmo acabou por se não concretizar.
O Tribunal de 1ª instância nenhum valor atribuiu a este depoimento para a formação da sua convicção, o que é absolutamente correto, visto tratar-se de parte no processo, interessada no seu desfecho, sendo que as declarações prestadas se não inscrevem no âmbito confessório.
E em detrimento do depoimento daquelas testemunhas, o Tribunal de 1ª instância fez prevalecer, e bem, os escritos constantes dos autos – fls. 114/115 e 118 - ambos subscritos pela ré.
O primeiro, datado de 27.04.2006, impresso denominado “Requerimento – declaração para registo de propriedade, Contrato verbal de compra e venda” contém declarações de compra e venda do veículo …., emitidas, respetivamente, pela ré T. e pelo réu A., e o segundo incorpora uma declaração da ré, emitida em 2 de Agosto de 2007, no âmbito do processo organizado pela Seguradora, dizendo que o carro lhe foi oferecido por um amigo dos pais, A., em 27 de Abril de 2006.
O conteúdo destas declarações prestadas em alturas diversas – a primeira, atinente à compra do veículo, antes do acidente em discussão, e a segunda já depois de tal ocorrência – é absolutamente coincidente quanto à aquisição do veículo pela ré em 27 de Abril de 2006 e é inteiramente corroborado pelas declarações prestadas, a dado passo, pela testemunha J. P. B., pai da ré e, nessa medida, em posição privilegiada quanto ao conhecimento dos factos.
Com efeito, esta testemunha à pergunta feita pelo Sr. Juiz do seguinte teor: “Pronto, está bem, e chegaram a falar em dar o veículo? Em dar? Este veículo deixa de ser do Sr. A. e passa a ser da sua filha?”, respondeu assim:
Sr. Dr. a coisa começa no seguinte: uma vez jantar a casa do A. e lá em casa o A. falou: quem é que quer um carro? Em vez de ir para o abate, quem é que quer um carro? Eu fui para casa e disse, ó T. … e a T. estava lá e falou-me nisso, e eu disse ó T. podes ficar com o carro, mas atenção, não tens dinheiro. E depois, já não sei quando é que foi, disse ao A., olha a T. quer ficar com o carro. Ela fica com o carro, pronto, o carro é para ela dar as suas voltinhas, para ela ir para o ginásio, para ir aqui, ir acolá, pronto. E foi assim que o carro foi parar às mãos da T., Sr. Dr. nunca de falou em dinheiro, nada disso.
Daí que, independentemente de se não ter chegado a ouvir a testemunha [3] que, na tese da ré, lhe terá sugerido a redação da declaração de fls. 118, certo é que o seu conteúdo é coincidente com o relato daquilo que aconteceu, feito por seu pai, em audiência de julgamento.
A mesma testemunha dizendo noutras passagens do seu depoimento, em resumo, que o veículo, cedido à ré T., pertencia ao réu A., explicou que a declaração de venda foi feita tendo em vista a “legalização do carro” (sic) e que, no seu entender, essa mesma declaração era apenas “o princípio da compra e venda” (sic) e que o veículo só passaria a pertencer à ré T. se tivesse ido “aos serviços registar o carro e entregasse os documentos” (sic).
É, pois, o próprio pai da ré T. quem confirma aquilo que se julgou como provado no facto nº 23 e que contraria o facto descrito em n), julgado como não provado.
Isto não é minimamente abalado pela circunstância de, concomitantemente, a mesma testemunha dizer que o réu A. continuou a ser o dono do carro, já que esta última asserção não envolve o relato de um qualquer facto de que tenha conhecimento, mas a formulação de uma dada valoração jurídica que só ao tribunal cabe.
Tudo isto revela o acerto da convicção firmada quanto à decisão que julgou como provado o facto nº 23 e não provados os demais factos invocados pela apelante, devendo fazer-se prevalecer os apontados elementos probatórios em detrimento daqueles que a apelante invoca.
Não existe, pois, fundamento para alterar a decisão proferida sobre os factos em causa, que se mantém incólume.

Sobre a validade do contrato de seguro à data do acidente:
É matéria versada pela apelante nas conclusões aa) a rr).
A este propósito, entendeu-se na sentença, essencialmente, o seguinte:
- Por força do negócio de doação, que teve lugar em 27 de Abril de 2006, a propriedade sobre o veículo foi transferida do réu para a ré – artigos 408º, nº1 e 940º, nº1 do Código Civil -, com o que se mostra ilidida a presunção registral da titularidade da propriedade do veículo na pessoa do réu.
- Por isso, e nos termos do disposto no art. 13º, nºs 1, 2 e 3 do D.L. nº 522/85, de 31 de Dezembro, em vigor à data do acidente, o contrato de seguro obrigatório do veículo … cessou automaticamente os seus efeitos às 24 horas do dia 27 de Abril de 2006.
- Aquando da ocorrência do acidente, o dito contrato de seguro estava já caducado, nenhuma relevância tendo a exibição pela ré de carta verde que o dava em vigor ou o recebimento do prémio de seguro pela seguradora até à data do acidente, pois certamente ignorava que tal alienação tivesse ocorrido e certamente só dela tomou conhecimento quando teve em seu poder a declaração da ré de 02 de Agosto de 2007.
 - A partir do conhecimento de tal alienação, a seguradora, fundadamente, não pagou qualquer indemnização decorrente do acidente, sendo legítima a posição que assumiu perante o autor, em Março de 2008, declinando o pagamento de qualquer valor por o veículo ter sido alienado.
Isto mostra que a sentença, ao contrário da interpretação feita pela apelada, considerou verificar-se, não a nulidade do contrato de seguro, mas que este, por virtude da transmissão da propriedade do veículo, caducara, cessara os seus efeitos às 24 horas do dia em que ocorreu a alienação, isto por força do citado preceito legal, o que legitima, quer o não pagamento, pela seguradora, de qualquer indemnização destinada a ressarcir os danos causados pelo veículo no acidente em causa, quer a posição que assumiu perante o autor, descrita no facto nº 25.
E os argumentos usados na sentença quanto a esta matéria, pela sua inteira correção, não merecem qualquer censura.
A cessação de produção de efeitos do contrato de seguro é determinada pelo disposto no referido artigo 13º, nºs. 1, 2 e 3 do D.L. nº 522/85,de 31 de Dezembro, com o seguinte teor:
 “1. O contrato de seguro não se transmite em caso de alienação do veículo, cessando os seus efeitos às 24 horas do próprio dia da alienação, salvo se for utilizado pelo tomador de seguro inicial para segurar novo veículo.
2. O titular da apólice avisará, no prazo de 24 horas, a seguradora da alienação do veículo.
3. Na falta de cumprimento da obrigação prevista no número anterior, a seguradora tem direito a uma indemnização de valor igual ao montante do prémio correspondente ao período de tempo que decorre entre o momento da alienação do veículo e o termo da anuidade do seguro em que esta se verifique, sem prejuízo de o contrato ter cessado os seus efeitos nos termos do disposto no nº1”.
Tal como se considerou na sentença, o facto de a seguradora …., após o acidente e até Setembro de 2009, ter continuado a receber os prémios de seguro não “apaga” a caducidade, imperativamente estabelecida na lei, de sorte a que pudesse ter-se como vigente o contrato à data do acidente.
Ainda como se diz na sentença, poderá, quando muito, equacionar-se a hipótese de o recebimento dos prémios pela seguradora, após ter tido conhecimento da transferência da propriedade do veículo – que terá ocorrido com a entrega da declaração da apelante consubstanciada a fls. 118, portanto, já depois do acidente –, poder envolver a celebração de um outro contrato de seguro, mas cuja vigência de modo algum se pode dar como existente à data do acidente.
Não colhem, pois, as razões expostas pela apelante sobre esta matéria.

Sobre a prescrição parcial do direito do autor:
É matéria versada pela apelante nas conclusões ss) a xx).
Também aqui lhe não assiste razão.
A presente ação entrou em tribunal em 13.09.2011 e, segundo o facto provado, descrito sob o nº 26, o autor pagou a J... o montante total de € 10.636,04, nas seguintes datas:
- Em 26 de Agosto de 2008, o montante de 3.838,25 euros;
- Em 06 de Abril de 2009, o montante de 6.797,79 euros.
Invocou a apelante, tese que aqui mantém, a prescrição do direito do autor, por sub-rogação, a haver dela a quantia de 3.838,25 euros que pagou ao lesado em 26.08.2008, pois que, à data da entrada em juízo da petição inicial, havia decorrido já o prazo de três anos previsto no art. 498º, nº 2 do Código Civil.
O nº 6 do art. 54º do Dec. Lei nº 291/07, de 21 de Agosto - diploma aplicável, considerando a data em que os pagamentos foram efetuados pelo autor ao lesado - manda aplicar o nº 2 do art. 498º do C. Civil aos direitos do Fundo de Garantia Automóvel previstos nos números anteriores, estabelecendo como relevante para o efeito, em caso de pagamentos fracionados por lesado ou a mais do que um lesado, a data do último pagamento efetuado.
Ora, datando de 6 de Abril de 2009 a realização do último pagamento, é essa a data relevante para efeitos de início de contagem do prazo de prescrição em causa, que foi interrompido cinco dias após a entrada em juízo da ação, portanto, em 18.09.2011 – art. 323º, nºs 1 e 2 do Código Civil.
Não se verifica, pois, a prescrição do direito do autor.


IV – Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.

Lisboa, 26.02.2013

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral
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[1] Esquecendo que estas, por definição legal – art. 685º-A, nº 1 do CPC –, devem ser uma síntese dos fundamentos pelos quais o recorrente pede a alteração ou anulação da decisão recorrida.
[2] Cujo conteúdo corresponde, na sua essência, à transcrição feita pela apelante, sendo que as imprecisões nela contidas, certamente devidas a lapso, em nada de substancial alteram o sentido das declarações prestadas e gravadas.
[3] Por não poder comparecer em julgamento, atenta a situação de doença em que se encontrava, como resulta do despacho proferido a fls. 173 e da justificação apresentada a fls. 175 e 176.