I. É legalmente admissível a apreensão para a massa insolvente da parte dos rendimentos do trabalho que não sejam impenhoráveis, nos termos do art.º 46.º do C.I.R.E. e art.º 824.º do C. P. Civil.
2. A disposição da parte final do n.º1, do art.º 182.º, do C.I.R.E, exclui a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e tão só pela expectativa dos rendimentos gerados pela atividade do insolvente.
3. A apreensão para a massa insolvente das aludidas quantias em nada colide com o instituto de exoneração do passivo restante, pois que este só opera em momento subsequente ao encerramento do processo, enquanto a apreensão mantém-se até ao seu encerramento.
(TR)
I - Relatório:
Carlos, casado, e sua mulher Ana, residentes na (…)Póvoa de Santa Iria, requereram a sua declaração de insolvência e pediram a exoneração de passivo restante, declarando preencher todos os requisitos, nos termos do art.º 236.º/3 do C.I.R.E.
Declarada a sua insolvência por sentença proferida a 12 de setembro de 2012, foi designado dia para assembleia de apreciação do relatório, nos termos do art.º 156.º do C.I.R.E.
No âmbito de tal assembleia, realizada em 31 de outubro de 2012, do relatório do Administrador de insolvência consta que os insolventes encontram-se a trabalhar auferindo atualmente um rendimento mensal ilíquido de €1.916,80, sendo o seu agregado familiar constituído por ambos e uma filha menor com problemas ao nível das funções globais específicas da voz e da fala.
Seguidamente foi proferida decisão, onde se decidiu, entre outros, ordenar “a apreensão da quantia mensal de € 200,00 auferida pela insolvente mulher, bem como 1/3 dos subsídios de natal e férias que venha a auferir que os insolventes venham a auferir até à fase final da liquidação”.
Entendeu o senhor juiz a quo ordenar essa apreensão, a pedido do credor Cofidis, e após oposição manifestada pelos insolventes, na assembleia de credores para apreciação do relatório (fls. 149 a 154).
Deste despacho que ordenou essa apreensão vieram os insolventes interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. A apreensão para a massa insolvente do montante de €200,00 (duzentos euros) do vencimento da insolvente mulher, e de 1/3 dos subsídios de Natal e de Férias de ambos os insolventes, fora do instituto da exoneração do passivo restante é, em nosso entendimento, desprovida de fundamento legal face ao atual recorte do processo de insolvência previsto no C.I.R.E.
2. A criação da figura da exoneração do passivo restante pressupõe que a apreensão do rendimento disponível do devedor/insolvente só possa ser efetuada no âmbito das condições previstas em tal instituto, nomeadamente: com o consentimento e por iniciativa do devedor e tendo por contrapartida o benefício de limpar do seu nome, extinguindo todas as suas dívidas restantes.
3. Enquanto no processo executivo, o executado tem uma mera indisponibilidade relativa dos bens ou direitos penhorados, não ficando inibido de auferir os proventos ou rendimentos dos restantes bens ou mesmo de os alienar na sua plenitude, no processo de insolvência o devedor deixa de poder alienar quaisquer dos seus bens ou de fruir a respetiva rentabilização.
4. Seria excessivamente oneroso para o devedor insolvente, que os credores ainda pudessem pagar-se, a partir da declaração de insolvência, do produto do seu trabalho, que lhe permite, não apenas fazer face aos efeitos negativos desta, como conduzir a regularização da sua vida pessoal, para poder encetar novas iniciativas económicas após a respetiva reabilitação.
5. A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência (art.º 88.º, n.º1 do C.I.R.E).
6. A apreensão de parte dos vencimentos dos devedores, fora do instituto da exoneração do passivo restante, não compatibiliza eficazmente os interesses dos credores com as necessidades básicas dos devedores, nem permite a reabilitação económica dos mesmos.
7. A apreensão para a massa insolvente do montante de €200,00 do vencimento da insolvente mulher, e de 1/3 dos subsídios de férias e de Natal de ambos os insolventes, nesta fase do processo, em que os insolventes necessitam de arrendar uma casa para viver, e fazer face aos efeitos negativos da declaração de insolvência, irá asfixia-los economicamente, oprimindo qualquer possibilidade de os mesmos se reabilitarem financeiramente.
8. Ademais, esta apreensão para a massa insolvente feita neste momento e nestas circunstâncias, sonega o direito dos insolventes e da sua filha de 8 anos de idade, com necessidades especiais, a uma vida condigna, consubstanciando, assim, uma violação clara ao princípio da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente consagrado.
E concluiu pedindo a revogação do despacho que ordenou essa apreensão fora do instituto da exoneração do passivo restante.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo – fls.116.
Cumpridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II – Âmbito do Recurso.
Como é sabido o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso - arts. 660.º, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 685º-A, nº1, todos do C. P. Civil.
Assim, a questão essencial a decidir consiste em saber se é, ou não, legalmente admissível, após a declaração de insolvência, a apreensão de €200,00 do vencimento da insolvente mulher e de 1/3 dos subsídios de férias e de Natal de ambos os insolventes, fora do instituto da exoneração do passivo restante.
III – Fundamentação fáctico-jurídica.
1. Sendo a matéria de facto a que consta do relatório, acrescentando-se, apenas, que entretanto, por despacho proferido em 12/12/2012, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, aí se determinando “que o rendimento disponível que os devedores venham a auferir, no prazo de cinco anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, que se denomina, período de cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal equivalente a três salários mínimos mensais, que se destina ao sustento dos insolventes e da sua filha” (fls. 121 e 122)
Vejamos, então, se aos recorrentes lhes assiste razão, pois que se trata de questão puramente jurídica.
E a questão colocada não é nova e prende-se essencialmente com a interpretação jurídica do art.º 46.º do C.I.R.E., o qual estabelece:
1. A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
2. Os bens isentos de penhora só são os integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta.
Por outro lado, de acordo com o art.º 81.º do C.I.R.E., a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
E adianta o seu n.º2: “Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros suscetíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo”.
Como refere Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris,Vol. I, pag. 222” Da conjugação do nº1 com o nº2 resulta que, “em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor suscetíveis de avaliação pecuniária mas tão só os que forem penhoráveis e não excluídos por disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo embora penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a impenhorabilidade não seja absoluta”. E acrescenta, “O código esclareceu que os bens advenientes ao devedor, seja a que título for, no decurso do processo, integrarão, por regra, a massa insolvente. Mas uma vez mais importa verificar se se trata ou não de bens em geral penhoráveis, pois nesta última hipótese a integração depende da oferta voluntária pelo insolvente”.
E quanto aos bens que integram a massa insolvente, sublinham ainda estes Autores, ob. cit. pág. 340, que ela “abrange bens e rendimentos, uns e outros futuros, o que explica que em certo ponto se refira à aquisição daqueles e à obtenção destes”.
No mesmo sentido Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 4.ª Edição, págs. 93 e segs, onde esclarece que no âmbito da massa insolvente encontra-se todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os direitos que este adquira na pendência do processo e aqueles que forem reintegrados no mesmo, através do exercício pelo administrador de insolvência da resolução e benefício da massa (art.ºs 120.º e segs).
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Estudos Sobre a Insolvência”, pág. 187, também referem que “a declaração de insolvência do devedor que seja pessoa singular não o priva de exercer a sua atividade, nomeadamente a de trabalhar por conta própria ou de outrem”, entendimento que extrai do art.º 84.º, pois é pressuposto do regime nele estabelecido, resulta confirmado pelo art.º 113.º, porque a declaração de insolvência do trabalhador não suspende o seu contrato de trabalho. E acrescentam estes Autores, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, a pág. 417, que esta solução é a que melhor defende tanto os interesses do trabalhador como dos seus credores, na media em que quanto ao primeiro lhe assegura uma estabilidade de vida, mantendo o contrato de trabalho que constitui a fonte de rendimentos para ele e sua família e, no que respeita aos credores, “afasta o risco de, à custa da massa insolvente, terem de ser prestados alimentos ao devedor, nos termos do art.º 84.º”.
2. Ora, está em causa a apreensão para a massa insolvente, na sequência da declaração de insolvência, de €200,00 do vencimento da insolvente mulher e de 1/3 dos subsídios de férias e de Natal dos insolventes, no âmbito do art.º 824.º do C. P. Civil.
Citando o Acórdão de 16/11/2010, Proc. n.º 1030/10.0TJLSB-C.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, “a jurisprudência, tem-se dividido essencialmente entre os que entendem que a apreensão abrange todos os bens suscetíveis de penhora, sem sujeição a qualquer regime especial, vigorando no processo de insolvência as regras gerais constantes dos art. 822º sobre a impenhorabilidade relativa de certos bens – cfr, entre outros, Acórdãos do Tribunal de Guimarães de 12.07.2006 e 14.0.09.2006, Acórdão da Relação de Lisboa de 29.07.2010, e Acórdão do STJ de 15.03.2007; e os que defendem que, no processo de insolvência, não podem ser apreendidos a favor da massa insolvente os rendimentos auferidos pelo insolvente no exercício da sua atividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários, as prestações periódicas a título de aposentação ou de regalia social, ou pensão de natureza semelhante – cfr., entre outros, Acórdãos da Relação de Coimbra de 24-10-2006 e 06-03-2007, e Acórdãos da Relação do porto de 23-03-2009 e 26-03-2009”.
A posição defendida pela segunda corrente, e no Acórdão citado, assenta essencialmente na incompatibilidade da possibilidade de apreensão dos salários, pensões e outras prestações de natureza semelhante ao abrigo do art.º 824º do C. P. Civil, após a declaração da insolvência, com o instituto de exoneração do passivo restante, na medida em que permitiria, a ser admitida, perdurar, pelo menos, até ao termo da liquidação dos demais bens, a qual se poderá prolongar por vários anos, posição esta que é defendida pelos recorrentes.
Pela nossa parte, seguimos o primeiro entendimento, em consonância com a doutrina supra citada, por se considerar corresponder à melhor interpretação dos citados textos legais, conforme, aliás, já foi decidido no Acórdão desta Relação, proferido em 22/11/2012, Proc. n.º 1318/12.5TBBRR, disponível em www.dgsi.pt, e no qual o ora Relator interveio como Ajunto, nele se exarando que:
“(…)
Compreende-se, por isso, que o art. 46º do CIRE determine:
«1 – A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
2 – Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta».
Por sua vez, o art. 17º do CIRE determina que «O processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código».
Ora, nos termos do art. 821º do CPC, estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda, sendo certo que, de acordo com o art. 601º do Código Civil, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora.
Equacionando os citados normativos com o disposto no art. 149º do CIRE, nos termos do qual, proferida a sentença declaratória da insolvência, se procede à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido arrestados, penhorados, e não se desconhecendo que existe jurisprudência em sentido contrário, temos por correto o entendimento de que o devedor insolvente está sujeito à apreensão, para a massa insolvente, dos seus rendimentos do trabalho, na parte em que não são impenhoráveis.
Na verdade, resulta do disposto nos art. 822º, 822º e 823º do CPC que os rendimentos do trabalho do executado – vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante – são «bens parcialmente penhoráveis», pois apenas são «impenhoráveis» dois terços desses rendimentos, impenhorabilidade essa que tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
Como notam L. Carvalho Fernandes e João Labareda «de acordo com o que resulta dos art. 81º nº 1, 2 e 4, e 84º nº 1, o insolvente pode – e deve, na medida do possível! – providenciar pela realização de um trabalho que lhe garanta meios de subsistência, suscetível também de gerar rendimentos que, uma vez obtidos, integrem a massa insolvente. (cfr ob cit., pág., 602).
Também no Ac do STJ de 30/6/2011 (Proc. 191/08.2TBSJM – H.P1.S1 – in www.dgsi.pt) se decidiu que pode ser apreendido para a massa insolvente um terço do vencimento do insolvente, exarando-se:
«Pode-se defender que o insolvente, por se encontrar numa situação de gestão global e objetiva do seu património, está mais fragilizado do que aquele que é objeto de um processo de execução e, por conseguinte, merecedor de uma maior proteção (…). Mas também é defensável a tese (...) de que, assim, a insolvência é um caminho encorajador da falta de cumprimento das obrigações.
A verdade, porém, é que o legislador pronunciou-se expressamente sobre a questão e em termos que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não permitem dúvidas de qual fosse a sua vontade.
Com efeito, o art. 46º nº 1 do CIRE estabelece que a massa insolvente abarca todo o património do devedor à data da declaração de insolvência e todos os bens adquiridos na pendência do processo.
O seu nº 2 ressalva os bens impenhoráveis, os quais só integrarão essa massa por vontade do insolvente e se a impenhorabilidade não for absoluta.
O que significa que os bens penhoráveis integram a massa insolvente. Ora, a parte penhorável de um vencimento não é um bem relativamente impenhorável.».
3. E quanto ao argumento da excessiva duração da apreensão até ao termo da liquidação dos demais bens, adianta-se, como esclarece L. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit, pág. 602, que “a disposição da parte final do n.º1, do art.º 182.º, vem, precisamente, excluir a possibilidade de a liquidação se manter aberta apenas e tão só pela expectativa dos rendimentos gerados pela atividade do insolvente”, estatuindo expressamente que “o encerramento da liquidação não é prejudicado pela circunstância de a atividade do devedor gerar rendimentos que acresceriam à massa”.
4. Por outro lado, não se vê qualquer incompatibilidade com a finalidade do instituto da exoneração do passivo restante, regulado no Título XII, Capítulo I, do C.R.E., i. é, precedido pelo Capítulo XI, que contém os preceitos legais relativos ao encerramento do processo de insolvência.
Com efeito, de acordo com o estatuído no art.º 235.ºdo CIRE «se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo.»
Trata-se de um regime específico da insolvência das pessoas singulares e traduz-se na possibilidade conferida a esses devedores, em situação de insolvência, de uma liberação definitiva quanto ao passivo (mais propriamente à exoneração dos débitos correspondentes a esses créditos, pois não se fica exonerado de créditos, estes perdem-se - cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, pág. 778), que não sejam integralmente pagos no respetivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento.
Pretendeu o legislador, com a inovação deste instituto e introduzido no C.I.R.E., conceder uma certa reabilitação económica, profissional e social, recomeçando, de novo, a sua atividade profissional sem o peso desses débitos, com a correspondente perda, para os credores, de parte dos seus créditos, que serão extintos, salvo alguns créditos taxativamente indicados, que pela sua natureza dele estão excluídos (art.º 245.º/2 do C.I.R.E), ou como refere Luís Menezes Leitão, ob. cit., pág. 316, “o devedor tem a possibilidade de obter um fresh start e recomeçar uma atividade económica, sem o peso da insolvência anterior”.
Justificando esta inovação no C.I.R.E, diz o legislador, no n.º 45.º da parte preambular:
O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos.
Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Como foi sublinhado no Ac. do T. da Rel. do Porto, de 15/3/2011, in www.dgsi.pt/jtrp, Processo 2887/10.0TBGDM-E.P1, “ (…) Estamos, pois, perante um importante benefício que é concedido ao devedor singular e que se filia na ideia de que quem passou por um processo de insolvência aprende com os seus erros e terá no futuro um comportamento mais equilibrado no plano financeiro.”
Mas estatui o n.º2 do art.º 239.º, do C.I.R.E:
“O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
Decorrentemente, uma das imposições legais para a concessão deste benefício é a obrigação do devedor, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, ceder o seu rendimento disponível a uma entidade, designada fiduciário e escolhida pelo tribunal.
E considera o n.º3, alínea b), subalínea i), desse normativo legal, que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão “do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Na verdade, a lei estabelece, em regra, que todos os rendimentos que venham a ser auferidos pelo insolvente deverão ser afetados aos pagamentos referidos no art.º 241.º, nomeadamente a ser rateado pelos credores da insolvência, excluindo, porém, desse rendimento disponível, o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo essa exclusão exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional
Portanto, só após o encerramento do processo de insolvência, e nos cinco anos subsequentes, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir será cedido ao fiduciário, sendo que com o encerramento do processo cessam todos os efeitos resultantes da declaração de insolvência, recuperando o devedor o direito de disposição dos seus bens – art.º233.º/1, al. a) do C.I.R.E. O mesmo é dizer que cessa a apreensão ordenada no despacho recorrido.
Decorrentemente, a apreensão para a massa insolvente das aludidas quantias em nada colide com o referido instituto de exoneração do passivo restante, pois que este só opera em momento subsequente ao encerramento do processo, enquanto aquela apreensão mantém-se até ao seu encerramento.
Aliás, posteriormente a essa apreensão, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo e estabelecido o rendimento indisponível em três vezes o salário mínimo nacional, valor máximo legalmente permitido.
Em resumo, improcede a apelação.
V- Decisão.
Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da massa insolvente (art. 304º do C.I.R.E).
Lisboa, 2013/03/14
Tomé Ramião
Vítor Amaral
Fernanda Isabel Pereira