DESPEJO
RENDAS
FALTA DE PAGAMENTO
RESOLUÇÃO
CADUCIDADE
Sumário

1. Na ação de despejo por falta de pagamento de rendas, o inquilino faz caducar o direito do senhorio à resolução do contrato de arrendamento se depositar (até à contestação da ação de despejo) as rendas devidas no último ano, com a indemnização de 50% prevista no art. 1041.1:CC – desde que, na contestação, invoque essa caducidade.
2. Ainda que invocando essa caducidade, o réu terá de pagar também todas as rendas devidas há mais de um ano, se elas foram pedidas pelo senhorio, já que o crédito das rendas não é afetado pela caducidade do direito às resolução.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório
A 9ª Vara Cível de Lisboa julgou procedente por provada a ação de FP (autor, recorrido) contra BR (ré, recorrente) e em consequência: (a) declarou resolvido o contrato de arrendamento em que a ré era arrendatária, relativo ao 1º andar direito do prédio da Rua …, …, …; e (b) condenou a ré a pagar ao autor o valor das rendas vencidas desde maio de 1994 e as vincendas até ao despejo, imputando-se a tal pagamento as rendas depositadas nos autos e como tal devendo ser entregues ao autor.
A ré apelou, pedindo que se revogue aquela sentença, substituindo-a por outra que absolva a ré.
O recorrido pediu que se confirme a mesma sentença.
Foram dispensados os vistos.
Cumpre decidir se é ou não de declarar resolvido aquele contrato de arrendamento e se é ou não de condenar a ré naquele pagamento.
Fundamentos
Factos
Provaram-se os seguintes factos, apurados pelo Tribunal a quo:
1. Em 1999.06.16, a ré BR procedeu ao depósito na Caixa Geral de Depósitos da quantia global de 439.599$00 à ordem deste processo, indicando como senhorio o autor FP, precisando por escrito que “Da quantia total depositada ( 439.599$00), 305.808$00 dizem respeito ao pagamento das rendas (6.371$00) que se venceram entre maio de 1994 e abril de 1998, e 133.791$00 respeitam ao pagamento das rendas vencidas entre maio de 1998 e junho de 1999 + 50% (documento de fls. 14, cujo teor se dá por reproduzido.
Corrigiu-se o manifesto lapso de escrita da sentença, que refere ter sido a “Autora” quem procedeu ao depósito e ser senhorio o “Réu”, quando na realidade, pelo exame dos autos, se verifica ter sido o depósito feito pela ré BR (inquilina) e a favor do autor FP (senhorio).
Análise jurídica
Considerações do Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou-se nas seguintes considerações:
(…)
Conclusões do recorrente
A isto, opõe o recorrente as seguintes conclusões:
(…)
Contra-alegações do recorrido
Mas o recorrido contrapõe o seguinte:
(…)
A indemnização do art. 1041.1:CC e art. 64.1:RAU: “50% do que for devido”
O art. 64.1.a:RAU permitia ao senhorio resolver o contrato de arrendamento se o inquilino não pagasse a renda no tempo e lugar próprios nem fizesse depósito liberatório. Este depósito liberatório era o previsto nos arts. 1041.1 e 1042.1.CC. Em caso de mora, o inquilino tinha de depositar “além das rendas ou alugueres em atraso uma indemnização igual a 50% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento”.
Hoje, o art. 1041.1:CC também dá ao locador, em caso de mora do locatário, o direito de exigir, “além das rendas ou alugueres em atraso, uma indemnização igual a 50% do que for devido (...)”. Oferecendo ao senhorio o pagamento dessas rendas e uma indemnização de 50%, o inquilino põe fim à mora – art. 1042.1:CC.
O tribunal recorrido considerou que, além das rendas ou alugueres em atraso entre maio de 1994 e junho de 1999, era devida a indemnização de 50% sobre a totalidade dessas rendas; mas que a ré só depositou, além daquelas rendas, a indemnização de 50% sobre as rendas correspondentes ao último ano (maio de 1998 a junho de 1999). Assim, não depositou a indemnização suficiente nos termos do art. 1041.1:CC, e a consequência seria o despejo por falta de pagamento das rendas.
A questão, como notou o próprio tribunal recorrido, é que há duas correntes jurisprudenciais sobre o cálculo da referida indemnização de 50%: há uma 1ª corrente jurisprudencial no sentido de que só é devida a indemnização de 50% sobre as rendas relativas ao último ano (desde que se invoque a caducidade do direito à resolução quanto às rendas dos anos anteriores); e há uma 2ª corrente jurisprudencial no sentido de que é devida a indemnização de 50% sobre a totalidade dessas rendas em dívida. E porquê a questão? Porque a resolução do contrato de arrendamento deve ser efectivada dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade – art. 65.1:RAU, hoje art. 1085.1:CC. Normalmente, o senhorio sabe muito bem que o inquilino não lhe pagou a renda de cada mês e, sabendo isso, caduca a resolução do contrato por dívidas superiores a um ano.
Ora, segundo a 1ª corrente, quando o senhorio pede judicialmente a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, mostrando assim saber que as rendas não foram pagas, faz caducar o direito à resolução pelo não pagamento das rendas anteriores ao último ano (art. 1085.1:CC); mas, para evitar dúvidas, o inquilino tem de invocar essa caducidade (embora a caducidade seja de conhecimento oficioso, art. 333.1:CC), pagar a indemnização de 50% pelas rendas do último ano, e pagar a totalidade das rendas em dívida. E note-se que aqui o direito à resolução do contrato caduca, mas não caduca o direito a receber as rendas em dívida acrescidas da indemnização legal, que é um direito autónomo daquele: este direito só prescreve ao fim de cinco anos, mas a prescrição tem de ser invocada (arts. 310.b e 303:CC).
(Foi isso justamente o que aconteceu na presente ação de despejo: a ré contestou, invocou a caducidade do direito de pedir a resolução do contrato quanto às rendas entre maio de 1994 e abril de 1998, depositou as indemnizações de 50% entre maio de 1998 e junho de 1999, e a totalidade das rendas desde maio de 1994. Com isto, pensou que ficara livre do despejo).
Mas, para a 2ª corrente, é preciso pagar a indemnização de 50% sobre a totalidade das rendas vencidas, e não apenas sobre as do último ano.
E foi por esta solução que o tribunal recorrido seguiu. Concluiu que a ré não tinha pago a totalidade da indemnização e que portanto era de decretar o despejo.
Não podemos concordar.
Por um lado, estas questões de lana caprina só conduzem à incerteza do direito e portanto ao acumular de processos nos tribunais. E não é justo decretar o despejo com base numa dúvida jurisprudencial, uma solução que os interessados não poderiam antever com segurança.
E, por outro lado, a solução que o tribunal afastou é mais justa e prudente na solução dos interesses em jogo. Logo é a melhor jurisprudência: porque jurisprudência é justamente justiça e prudência na construção judiciária do direito.
Na verdade, o art. 1041.1:CC é claro: “indemnização igual a 50% do que for devido”. Quando a ré contestou em 1999 e invocou a caducidade, estava por pagar a totalidade das rendas desde maio de 1994, é certo; mas não era por não pagar as rendas desses cinco anos que o senhorio podia pedir a resolução do contrato: podia pedi-la apenas por não estarem pagas as rendas do último ano, porque relativamente às anteriores caducara o direito à resolução (art. 65.1:RAU e art. 1085.1:CC); assim a indemnização de 50% devida era apenas a respeitante às rendas do último ano em dívida – era esta indemnização que fazia caducar o direito à resolução do arrendamento por falta de pagamento das rendas.
Dir-se-á que havia aqui uma mora de cinco anos ou mais, e que esta solução tem como resultado só indemnizar o senhorio pela mora relativa ao último ano.
Mas são assim as regras da caducidade e da prescrição de direitos: o direito não foi exercido durante um determinado prazo, e por isso prescreve ou caduca – art. 298:CC. Os arts. 1048 e 1085:CC assentam no objetivo de levar o inquilino a pagar as rendas em dívida com uma penalização de um ano (a caducidade do art. 1085), e não no objetivo de espoliá-lo com uma indemnização de 50% em vários anos de renda – quando foi o próprio senhorio que permitiu que se prolongasse essa situação de não pagamento! Isto é a economia, o equilíbrio das prestações no mercado do arrendamento, não é a espoliação dos inquilinos nem a sorte grande para os senhorios.
Só mais uma nota: As regras da imputação do cumprimento (arts. 784-785:CC) são supletivas e não resistem à leitura do que ficou bem expresso na guia de depósito de fls. 14. Aí, a ré esclareceu (facto provado) que:
“Da quantia total depositada ( 439.599$00), 305.808$00 dizem respeito ao pagamento das rendas (6.371$00) que se venceram entre maio de 1994 e abril de 1998, e 133.791$00 respeitam ao pagamento das rendas vencidas entre maio de 1998 e junho de 1999 + 50%”.
O próprio tribunal recorrido deu esse facto como provado, pelo que não podemos fazer apelo para as normas legais supletivas da imputação do cumprimento.
Portanto, ao depositar as rendas vencidas entre maio de 1998 e junho de 1999, com a indemnização de 50 % (133.791$00), bem como as rendas em dívida entre maio de 1994 e abril de 1998 (305.808$00), invocando a caducidade do direito à resolução do arrendamento, a ré fez caducar validamente este direito – tornando a ação improcedente (arts. 64.1.a, 65.1:RAU e arts. 1041.1, 1048:CC, na redação vigente à época; e arts. 1048.1, 1041.1, 1085.1:CC, na atual redação).
Estas quantias depositadas pela inquilina deverão ser entregues ao autor, na qualidade de senhorio e credor das mesmas.
Como resulta do exposto, não se verifica a pretendida nulidade por contradição entre fundamentos e decisão da sentença (§§ 1º e 2º das conclusões da recorrente).
Decisão
Assim, e pelo exposto, considerando procedente o presente recurso, acordamos em revogar a sentença recorrida, julgando improcedente esta ação de despejo, por caducidade do direito à resolução do arrendamento. E condenamos a ré inquilina no pagamento das rendas em dívida, com o acréscimo de 50% relativamente ao período de maio de 1998 a junho de 1999, e bem assim das rendas que se venceram até à presente data.
Após trânsito, entregue-se ao senhorio o contravalor em euros das quantias depositadas pela inquilina, nos autos em nome deste.
Custas pela ré.
Processado e revisto.

Lisboa, 2013.05.21
João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton